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Mortalidade infantil em remanescentes de quilombos do Munícipio de Santarém - Pará, Brasil

Infant mortality rates in quilombo areas of the Municipality of Santarém - Pará, Brazil

Resumos

Este trabalho é uma análise preliminar da mortalidade infantil em áreas quilombolas do município de Santarém-Pará. Trata-se de uma Pesquisa Domiciliar Censitária realizada no período de março/abril de 2006, por meio de procedimentos de busca ativa de óbitos em menores de um ano de idade, com identificação de sub-registro na população das comunidades de terra firme e de várzea. Os níveis de mortalidade foram obtidos pela técnica indireta de estimação. Encontrou-se diferencial na mortalidade de menores de um ano de idade para os quilombos da área de terra firme e várzea, de 30,4 óbitos/por mil nascidos vivos e de 50,2 óbitos/por mil nascidos vivos, respectivamente. Os resultados evidenciam profundas desigualdades, na medida em que as taxas de mortalidade das comunidades quilombolas são maiores quando comparadas com as do país (27,0 óbitos/por mil nascidos vivos), da região Norte (26,2 óbitos/por mil nascidos vivos), e da população negra rural do estado do Pará (32,9 óbitos/por mil nascidos vivos). Observa-se que nenhuma das taxas de mortalidade dos quilombos alcançou níveis considerados satisfatórios quando comparadas com os parâmetros preconizados pelo Ministério da Saúde em 2005 (menos de 20 óbitos/por mil nascidos vivos). Constata-se que, enquanto a mortalidade infantil vem diminuindo no país como um todo, nos quilombos de Santarém, principalmente os da área de várzea, a probabilidade de uma criança quilombola morrer antes de completar o primeiro ano de vida é bastante elevada, superando a média nacional, regional e estadual e classificando-se como alta, conforme os critérios definidos pelo Ministério da Saúde.

Mortalidade infantil; Quilombos; Santarém; Brasil


This paper is a preliminary analysis of the infant mortality rates in areas of quilombos (hiding places of runaway slaves) in the city of Santarém, state of Pará. It is a Domiciliary Census Research developed from March to April 2006, through procedures based on the active search of data related to deaths of children in their first year of life, including the identification of non-registered births in the populations of dry land and floodplain communities. The mortality levels were obtained through indirect estimation technique. A difference was found concerning the death of children under one year old regarding dry land and floodplain quilombo areas: 30.4 deaths / 1,000 live births and 50.2 deaths / 1,000 live births, respectively. The results of this study reveal an indisputable inequality, considering that mortality rates in these communities are much higher when compared to the country's total percentages (27 deaths / 1,000 live births). Moreover, none of the mortality rates in the quilombos has reached satisfactory levels when compared to the parameters established by the Ministry of Health in 2005 (less than 20 deaths / 1,000 live births). This paper shows that while infant mortality rates have been decreasing all over the country, in the quilombos, especially those of the floodplains, the probability that a child dies before her first birthday is high, surpassing the national, regional and state averages, and being classified as high according to the criteria established by the Ministry of Health.

Infant Mortality; Quilombos; Santarém; Brazil


ARTIGOS

Mortalidade infantil em remanescentes de quilombos do Munícipio de Santarém1 1 Apoio de financiamento: MCT/CNPq/MS-SCTIE-DECIT e Instituições Colaboradoras: CPqLMD - Fiocruz e UEA. - Pará, Brasil

Infant mortality rates in quilombo areas of the Municipality of Santarém1 1 Apoio de financiamento: MCT/CNPq/MS-SCTIE-DECIT e Instituições Colaboradoras: CPqLMD - Fiocruz e UEA. - Pará, Brazil

Ana Felisa Hurtado GuerreroI; Denise Oliveira e SilvaII; Luciano Medeiros de ToledoIII; José Camilo Hurtado GuerreroIV; Pery TeixeiraV

IMestre e Pesquisador do Projeto Quilombos/CPqLMD/Fiocruz, Amazônia e Professor do Curso de Enfermagem da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Endereço: Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane - CPqLMD/Fiocruz, Amazônia. Rua Teresina, 476, Adrianopólis, cep 69057-070, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail: guerrerocol@amazonia.fiocruz.br

IIDoutora, Pesquisadora do Projeto Quilombos/CPqLMD/Fiocruz, Amazônia e da DIREB/Brasília. E-mail:deniluz@fiocruz.br IIIDoutor, Pesquisador do Projeto Quilombos/CPqLMD/Fiocruz, Amazônia e Prof. da ENSP/RJ E-mail: luciano.toledo@ensp.fiocruz.br IVDoutor, Pesquisador do Projeto Quilombos/CPqLMD/Fiocruz, Amazônia e Professor do Curso de Enfermagem da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: jguerrero@uea.edu.br VDoutor, Pesquisador e Professor da UFAM/AM. E-mail: periteixeira@uol.com.br

RESUMO

Este trabalho é uma análise preliminar da mortalidade infantil em áreas quilombolas do município de Santarém-Pará. Trata-se de uma Pesquisa Domiciliar Censitária realizada no período de março/abril de 2006, por meio de procedimentos de busca ativa de óbitos em menores de um ano de idade, com identificação de sub-registro na população das comunidades de terra firme e de várzea. Os níveis de mortalidade foram obtidos pela técnica indireta de estimação. Encontrou-se diferencial na mortalidade de menores de um ano de idade para os quilombos da área de terra firme e várzea, de 30,4 óbitos/por mil nascidos vivos e de 50,2 óbitos/por mil nascidos vivos, respectivamente. Os resultados evidenciam profundas desigualdades, na medida em que as taxas de mortalidade das comunidades quilombolas são maiores quando comparadas com as do país (27,0 óbitos/por mil nascidos vivos), da região Norte (26,2 óbitos/por mil nascidos vivos), e da população negra rural do estado do Pará (32,9 óbitos/por mil nascidos vivos). Observa-se que nenhuma das taxas de mortalidade dos quilombos alcançou níveis considerados satisfatórios quando comparadas com os parâmetros preconizados pelo Ministério da Saúde em 2005 (menos de 20 óbitos/por mil nascidos vivos). Constata-se que, enquanto a mortalidade infantil vem diminuindo no país como um todo, nos quilombos de Santarém, principalmente os da área de várzea, a probabilidade de uma criança quilombola morrer antes de completar o primeiro ano de vida é bastante elevada, superando a média nacional, regional e estadual e classificando-se como alta, conforme os critérios definidos pelo Ministério da Saúde.

Palavras-chave: Mortalidade infantil; Quilombos; Santarém, Brasil.

ABSTRACT

This paper is a preliminary analysis of the infant mortality rates in areas of quilombos (hiding places of runaway slaves) in the city of Santarém, state of Pará. It is a Domiciliary Census Research developed from March to April 2006, through procedures based on the active search of data related to deaths of children in their first year of life, including the identification of non-registered births in the populations of dry land and floodplain communities. The mortality levels were obtained through indirect estimation technique. A difference was found concerning the death of children under one year old regarding dry land and floodplain quilombo areas: 30.4 deaths / 1,000 live births and 50.2 deaths / 1,000 live births, respectively. The results of this study reveal an indisputable inequality, considering that mortality rates in these communities are much higher when compared to the country's total percentages (27 deaths / 1,000 live births). Moreover, none of the mortality rates in the quilombos has reached satisfactory levels when compared to the parameters established by the Ministry of Health in 2005 (less than 20 deaths / 1,000 live births). This paper shows that while infant mortality rates have been decreasing all over the country, in the quilombos, especially those of the floodplains, the probability that a child dies before her first birthday is high, surpassing the national, regional and state averages, and being classified as high according to the criteria established by the Ministry of Health.

Keywords: Infant Mortality; Quilombos; Santarém; Brazil.

Introdução

A taxa de mortalidade infantil se constitui em um importante indicador para a avaliação das condições de vida e da qualidade da atenção à saúde de uma determinada população, em um certo espaço geográfico (Hartz e col., 1996; Victora e col., 2006).

No Brasil, diversos estudos demográficos e de saúde têm demonstrado que, nas ultimas décadas, vem ocorrendo uma diminuição progressiva da mortalidade infantil (IBGE, 2001; PNUD, 2005). Entretanto, essa diminuição não ocorre de forma homogênea, sendo menos acentuada, sobretudo entre os grupos populacionais em situações de maior vulnerabilidade.

A escassez de estudos e, conseqüentemente, de dados e informações sobre o perfil demográfico de populações remanescentes de quilombos aponta a relevância de pesquisas que realizem uma análise oportuna de indicadores epidemiológicos para a implementação de políticas públicas que busquem a distribuição eqüitativa de serviços de atenção em saúde e distribuição eficiente de gastos sociais (Romero-M, 2002). Essas intervenções devem ser destinadas aos contextos de forma a evitar a perda de muitas vidas.

Os resultados deste estudo constituem-se, muito provavelmente, nas primeiras referências empíricas sobre o perfil de mortalidade infantil nestas áreas quilombolas, caracterizando-se como um estudo que poderá contribuir para a superação da chamada "danosa invisibilidade demográfica e epidemiológica" (Coimbra Jr. e Santos, 2000), de alguns grupos populacionais específicos, como é o caso dos quilombolas. Assim, este trabalho visa avaliar a magnitude da mortalidade infantil em seis comunidades quilombolas referenciadas para o município de Santarém-Pará.

Metodologia

Localização das Comunidades Quilombolas Estudadas

Foram estudadas seis comunidades quilombolas referenciadas para o município de Santarém, estado do Pará. Duas localizadas na área de várzea, banhadas pelo rio Amazonas (Arapemã e Saracura), e quatro situadas em área de terra firme (Bom Jardim, Murumuru, Murumurutuba e Tiningú), nas proximidades do lago Maicá (figura 1). Em março/abril de 2006 a população nessas comunidades era de aproximadamente de 2.197 indivíduos.


Fonte dos Dados

As estimativas e as análises deste trabalho foram baseadas nos dados levantados na pesquisa domiciliar censitária realizada nas seis comunidades citadas. Essa pesquisa fez o recenseamento de todas as pessoas residentes em cada comunidade quilombola durante o período de marco/abril de 2006, incluindo aquelas que se encontravam temporariamente ausentes, o que exigia o retorno do entrevistador.

Na definição da população residente foi utilizado o conceito de Souza e Santos (2001). Nesses termos, foram considerados como indivíduo residente todos os moradores constantes do cadastro das famílias feito pela Federação das Associações dos Quilombos de Santarém e do registro das famílias realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), independentemente de sua presença ou ausência na data de referência da pesquisa.

Os cálculos das taxas de mortalidade infantil total, e para o subconjunto das comunidades situadas em terra firme e várzea, foram feitos a partir de dados e informações que a pesquisa obteve sobre número total de filhos nascidos vivos, número de filhos nascidos vivos nos 12 meses anteriores à data do censo, número de filhos nascidos mortos até a data do censo e número de filhos sobreviventes na data do censo por idade da mãe.

As informações sobre o número de filhos nascidos vivos, filhos nascidos mortos, data de nascimentos, data de morte, entre outros, foram levantadas exclusivamente por meio de entrevistas feitas com as mães, solicitando-se, inclusive, a apresentação de documentos comprobatórios. Essas informações foram confrontadas com os registros dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que compunham o Sistema de Informações da Secretaria Municipal de Saúde de Santarém, Pará.

Estimativas Indiretas de Mortalidade

Os cálculos das taxas de mortalidade (probabilidade de morrer antes de completar um ano de idade) foram obtidos utilizando-se o método indireto de estimação, segundo técnica proposta por Brass e col. (1968)2 2 A técnica de Brass de estimação da mortalidade infantil trabalha com as proporções de óbitos dos filhos das mulheres em idade reprodutiva, e são transformadas em probabilidades de morrer antes de completar algumas idades específicas, entre 1 e 20 anos, por meio de multiplicadores que dependem da fecundidade das mulheres. O uso de curvas logito de Brass permite ajustar uma tábua modelo de mortalidade aos dados encontrados e, assim, obter a estimação de probabilidades de sobrevivência (inclusive a referente à mortalidade infantil) e da esperança de vida ao nascer (Brass, 1975; Brass e Coale, 1975; Teixeira, 1996; Sawyer e Castilla, 1989). . Conforme já citado, essas estimativas foram feitas a partir de dados e informações coletadas no decorrer da pesquisa domiciliar censitária. Essa pesquisa realizou uma busca ativa dos óbitos, visando eliminar o sub-registro, por meio de um instrumento semi-estruturado de variáveis sociodemográficas e econômicas do universo da população das comunidades quilombolas pesquisadas.

As classificações das taxas de mortalidade infantil seguiram as recomendações de Pereira (1995) e adotadas pela Portaria 25 do Ministério da Saúde (Brasil, 2005): alta (50 óbitos ou mais por mil nascidos vivos), média (20-49 por mil nascidos vivos) e baixa (menos de 20 óbitos por mil nascidos vivos).

Para a análise dos dados, utilizou-se o gerenciador de bases de dados Redatam, Versão SP, do Centro Latino-Americano de Demografia (Celade). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa, além de receber prévia autorização das organizações quilombolas locais.

Apresentação e Análise dos Resultados

População dos Quilombos

A população residente nos seis quilombos era de 2.197 pessoas, em abril de 2006. Os quilombos localizados em terra firme contavam com uma população de 1.349 habitantes, e os de várzea, com 848. A maior concentração de famílias foi observada nas comunidades de Saracura (26,2% do total) e Murumurutuba (16,3%) (Tabela 1).

Mulheres em Idade Reprodutiva e Fecundidade

As mulheres em idade reprodutiva representam 13,7% da população total dos quilombos. Os quilombos situados em terra firme representam 61,4% e os de várzea, 38,6%. As comunidades de Saracura e Bom Jardim são as que contam com as maiores proporções de mulheres em idade fértil (27,9% e 15,9%, respectivamente) (Tabela 2).

Quanto à distribuição por faixa etária, a maior proporção de mulheres em idade reprodutiva encontra-se no grupo de 20 a 24 anos de idade (22,6%), seguida da faixa de 25 a 29 anos (18,3%), conforme mostra a tabela 2.

No conjunto dos quilombos estudados a taxa de fecundidade total é de 6,8 filhos por mulher. Quando se comparam os resultados obtidos com outras estimativas, verifica-se que as comunidades quilombolas estudadas apresentam níveis mais elevados da taxa de fecundidade total. Para fins de ilustração, pode-se citar que, para a população brasileira em 2000, a taxa média era 2,3 filhos; para a região Norte, 3,2 (filhos) (Brasil, 2002), para o estado do Pará, 3,1 filhos (PNUD, 2000) e para a população rural negra deste estado, 5,5 filhos por mulher (estimativas dos autores a partir dos dados censitários de 2000).

Estudos sobre o perfil demográfico realizado para os povos indígenas como os Sateré Mawé, no estado de Amazonas, em 2003 (Teixeira, 2005) e Xavantes, de Mato Grosso, no período de 1993-1997 (Souza e Santos, 2001) encontraram médias maiores que a dos quilombolas: 8,1 filhos por mulher e 8,6 filhos, respectivamente. Já entre os índios Bororo, de Mato Grosso, no período de 1993-1996, a média é reduzida: de 4,3 filhos (Souza e col. 2006).

As análises comparativas acima apresentadas nos permitem inferir que, nas comunidades estudadas, as mulheres quilombolas ainda apresentam níveis de fecundidade elevados, o que indicaria um processo ainda atrasado de transição de fecundidade.

Mortalidade Infantil

Para o total da população quilombola estudada, a taxa de mortalidade chega a 38,6 óbitos por mil nascidos vivos (Figura 2). A distribuição da mortalidade infantil por área de moradia da população quilombola revelou maiores riscos de óbito para as crianças das comunidades localizadas em área de várzea, com 50,2 óbitos por mil nascidos vivos contra 30,4 por mil nascimentos em comunidades de terra firme.


Quando se compara esses resultados com as estimativas para o conjunto do país e regiões, verifica-se que os quilombolas apresentam taxas mais elevadas. Esses dados diferem também dos estimados para o conjunto do Brasil (27,1 por mil nascimentos) e dados estimados para 2003 em algumas regiões como o Norte (26,2% por mil nascidos vivos) (PNUD, 2004).

As comunidades de várzea apresentaram, em seu conjunto, um índice que se assemelha ao registrado para o Brasil, em 1990 (47,5 mortes a cada mil crianças nascidas vivas), enquanto para as comunidades de terra firme esses índices foram menos elevados. Esses dados mostram-se bastantes distantes, por exemplo, dos recomendados para o Brasil nas metas do Milênio (16,0 óbitos por mil nascidos vivos) (PNUD, 2005).

Os resultados deste estudo, se enfocados segundo os critérios de classificação estabelecidos por Pereira (1995) e recomendados pelo Ministério da Saúde, indicam situações bastante diversas quando consideradas as comunidades de terra firme e de várzea. As primeiras situam-se no estrato médio de mortalidade infantil (20-49 óbitos por mil nascidos vivos) e a de várzea no estrato alto (50 por mil ou mais).

Ao se comparar os resultados deste estudo com as taxas de mortalidade infantil segundo raça/cor de mães do Brasil, para o ano 2000, verificam-se valores muito maiores nesse indicador para a área de várzea, uma vez que a mortalidade infantil era de 38,0 óbitos de menores de um ano por mil nascidos vivos para o total de filhos das mulheres negras do país e de 22,9/1.000 nascidos vivos para os filhos de mulheres brancas (PNUD, 2004). Por outro lado, a mortalidade infantil da área de terra firme é inferior à estimada para o total dos filhos de mulheres negras do país.

Ainda para fins comparativos, deve-se considerar que as taxas de mortalidade infantil nos quilombos de várzea se mostraram maiores do que as estimadas para o estado do Pará (26,3 óbitos por mil nascidos vivos) e para o município de Santarém (18,2 por nascidos vivos) (Brasil, 2005) e ademais, as estimativas realizadas pelos autores para a população rural negra do Pará (32,9 por mil nascidos vivos).

As taxas reveladas na população quilombola estudada são inferiores às encontradas para os povos indígenas em nível nacional – 51,4 por mil nascidos vivos – (Santos e Pereira, 2005), Xavante, no Mato Grosso, no período de 1993-1997 – 55,2/1.000 – (Souza e Santos, 2001), e dos índios Bororo, de Mato Grosso, no período de 1993-1996 (58,8/1.000) (Souza e col. 2006).

Esses resultados ratificam que grupos étnicos de origem indígena e quilombola mostram padrões diferenciados de mortalidade quando comparados com a população urbana e rural do país. Os diferenciais de mortalidade infantil observados entre a população quilombola e indígena merecem novos estudos e investigações. Independentemente de maiores interpretações, esses resultados tornam evidente a situação de elevada vulnerabilidade e risco de morte entre as crianças menores de um ano, seja nas comunidades quilombolas seja nas comunidades indígenas, sobretudo entre aquelas residentes na região Amazônica.

Uma das questões que surge de forma indireta a partir das interpretações dos resultados acima apresentados é se a falta de acesso a serviços de saúde poderia, por si só, justificar taxas de mortalidade infantil tão elevadas nos territórios quilombolas estudados. Embora fugindo ao tema central deste estudo, poderíamos, também, interrogar quais seriam as possíveis justificativas para taxas de mortalidade infantil tão expressivas entre os povos indígenas. Especialmente pelo fato de existir para eles um subsistema de saúde específico que atende às suas necessidades sanitárias.

De um modo geral, as abordagens que se têm feito sobre o tema da mortalidade infantil no Brasil sempre colocam esse indicador como marcador sentinela importante das condições de vida e do acesso aos serviços de saúde de uma população (Hartz e col., 1996; Victora e col., 2006).

Esta pesquisa mostra que enquanto a mortalidade infantil vem diminuindo no país, nos quilombos estudados, principalmente os da área de várzea, esses valores são bastante expressivos e superam a média nacional, regional e estadual, classificando-se como alta, conforme critérios definidos pelo Ministério da Saúde.

Os resultados acima apresentados são indicadores que revelam, de forma irrefutável, a precariedade das condições de vida das comunidades estudadas, especialmente aquelas que habitam a área de várzea. Parte dessa precariedade, segundo Hurtado Guerrero3 3 HURTADO GUERRERO, A. F. Relatório sobre situação de calamidade no quilombo de Arapemã, Santarém - Pará. Projeto Quilombos/CPqLMD, Manaus, Amazonas, abril, 2006. , pode ser explicada pelo fato de essas populações sofrerem com o fator "sazonalidade climática" da região, sendo atingidos por seis meses de seca e outros seis de intensas enchentes, períodos em que se torna escasso o principal item de sua alimentação: o peixe, já que são famílias que vivem principalmente da pesca.

Durante o período de abril a maio de 2006, as comunidades de várzea, principalmente, Arapemã, sofreram um dos períodos de enchentes mais agressivos da história. Nos terrenos alagados, a maior parte do cultivo se perde, tornando-se escassos os alimentos e produtos do extrativismo. As habitações, em sua maioria, vêm sofrendo enchentes, obrigando as famílias a construírem assoalhos que acabam se tornando confinamentos para poder sobreviver (ver fotos) (Hurtado Guerrero, 2006). Associa-se a isso a inadequação das condições de saneamento, especificamente as relacionadas aos dejetos sanitários que na ocasião das enchentes, ficam expostos, e à presença de animais mortos, que contaminam os rios, aumentando o risco de morbidades nos moradores.

Nesse contexto, segundo Silva e col. (2006), os diversos sentidos da fome emergem como uma sombra do ecossistema ambiental, social e econômico, em que o componente transversal é a questão da posse da terra, nas suas dimensões sociais, econômicas e de ancestralidade, somada às restrições de acesso aos serviços de saúde e ao pouco acesso a outras políticas públicas que assegurem a melhoria de suas condições de vida.

Existe, ainda, uma falta de serviço de saúde, de planejamento e de implementação de ações para essas populações, direcionadas a prevenir situações de vulnerabilidade e risco durante períodos críticos. Por exemplo, observa-se uma escassez, por não dizer ausência total, de medicamentos para surtos diarréicos, cloro para tratamento de água de consumo humano, soros antiofídicos para atender a problemas como mordeduras de cobras, medicamentos para amenizar as dores provocadas por mordeduras de animais peçonhentos, entre outros.

Existe uma densa literatura reiterando que a avaliação efetiva de políticas de melhoria das condições de vida precisa de sistemas de informações que possibilitem o acompanhamento permanente de sua evolução e o desenho desses sistemas exige a utilização de indicadores que permitam conhecer as condições de vida das populações e fazer comparações nos níveis de bem-estar nos diferentes grupos sociais (Lesotho, 1996).

Assim, é necessário enfatizar a preocupação de instituições de saúde locais para que se construam bancos de informações específicas sobre essas populações, que permitam levar ao conhecimento de sua real situação, bem como, acompanhar as tendências, no tempo, de indicadores como esse, visando subsidiar informações para a implementação de políticas públicas de melhoria de suas condições de vida e acesso aos serviços de saúde.

Secularmente, as condições de vida desse grupo étnico não têm sido das mais favoráveis, e sabe-se que condições sociais e materiais influenciam de forma indireta no processo saúde/doença, e conseqüentemente, na expectativa de vida dessas minorias (Oliveira, 2001).

O processo de saúde/doença é resultante de um processo histórico que envolve a questão das desigualdades sociais. Por esse motivo, é importante priorizar a busca da eqüidade por meio do acesso ao sistema de saúde e a utilização dos serviços que promovam melhoria na qualidade da atenção específica dessas populações (Minayo, 2000).

Considerações Finais

Esta pesquisa mostra que, enquanto a mortalidade infantil vem diminuindo no país como um todo, nos quilombos estudados, principalmente os de área de várzea, os índices são ainda bastante expressivos, superando as médias nacionais, regionais e estaduais, e classificando-se como alta conforme critérios definidos pelo Ministério da Saúde.

Os resultados apresentados coincidem com os achados em estudo promovido pelo PNUD (2004), que apontam uma maior probabilidade de morte precoce entre as populações negras, em grande parte associada às dificuldades determinadas pelas suas menores possibilidades de acesso a serviços de saúde de boa qualidade.

Recebido em: 11/12/2006

Aprovado em: 08/04/2007

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    Apoio de financiamento: MCT/CNPq/MS-SCTIE-DECIT e Instituições Colaboradoras: CPqLMD - Fiocruz e UEA.
  • 2
    A técnica de Brass de estimação da mortalidade infantil trabalha com as proporções de óbitos dos filhos das mulheres em idade reprodutiva, e são transformadas em probabilidades de morrer antes de completar algumas idades específicas, entre 1 e 20 anos, por meio de multiplicadores que dependem da fecundidade das mulheres. O uso de curvas logito de Brass permite ajustar uma tábua modelo de mortalidade aos dados encontrados e, assim, obter a estimação de probabilidades de sobrevivência (inclusive a referente à mortalidade infantil) e da esperança de vida ao nascer (Brass, 1975; Brass e Coale, 1975; Teixeira, 1996; Sawyer e Castilla, 1989).
  • 3
    HURTADO GUERRERO, A. F.
    Relatório sobre situação de calamidade no quilombo de Arapemã, Santarém - Pará. Projeto Quilombos/CPqLMD, Manaus, Amazonas, abril, 2006.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      08 Abr 2007
    • Recebido
      11 Dez 2006
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