Acessibilidade / Reportar erro

Universalismo e focalização na política de atenção à pessoa com deficiência

Universalism and targeting in the policy of attention to the handicapped person

Resumos

Este artigo trata da atenção especial dispensada à Pessoa com Deficiência (PCD) no município de Betim (MG) para, a partir dela, discutir as noções de universalismo e a focalização em política social. Examina, inicialmente, a conceituação de deficiência, salientando a institucionalização da abordagem da questão no plano internacional e a forma como se dá sua incorporação na agenda pública brasileira. Analisa, a seguir, as dificuldades técnicas que surgem na operacionalização do conceito, ilustrando-as com as discrepâncias observadas na comparação dos dados do censo demográfico de 2000 relativos à mensuração da incidência do fenômeno em Betim com os levantamentos de pesquisa realizada, em 2005, pela Fundação João Pinheiro (FJP) no município. Com base nas informações disponibilizadas por essa pesquisa, descrevemos a relação entre pobreza e deficiência para colocar em evidência as conseqüências perversas de uma política social, como a praticada no país, que se revela incapaz de assegurar acesso universalizado a serviços essenciais à população. Mostra que a relação é recíproca, ou seja, que a deficiência também fomenta a pobreza, lançando luz sobre as políticas de atenção às PCDs atualmente acionadas pelo governo, que as elege como grupo focal, mas não consegue sequer assegurar-lhes condições mínimas de vida digna. Nas conclusões, chama a atenção para a necessidade de uma articulação mais consistente e refinada entre focalização e ações ou serviços de cunho universalista.

Deficiência; Pobreza; Política Social; Universalismo e Focalização


This article deals with the special attention that is given to handicapped persons in the municipality of Betim, state of Minas Gerais, with the purpose of discussing the notions of universalism and targeting in social policies. Initially, it examines the conceptualization of handicap, highlighting the institutionalization of the approach to this issue in the international environment and how it is inserted in the Brazilian public agenda. Next, it analyses technical problems regarding the application of the concept in the field of social policies. Those difficulties are evident in discrepancies referring to the mensuration of the phenomenon incidence in Betim, which may be observed in the comparison between data obtained from the demographic census (2000) and data from a research carried out by Fundação João Pinheiro in 2005 at the mentioned city. Based on outcomes of this research, the present article describes the relation between poverty and handicap. It shows the perverse consequences of a social policy as the one implemented in Brazil, which proves to be incapable of assuring this population universal access to essential services. Furthermore, it reveals the existence of a reciprocal correlation between poverty and handicap: not only poverty foments handicap but also handicap contributes to poverty. So, the article highlights the social policies focusing on handicapped persons currently set by the government, and it shows that despite targeting on these people, the government is not capable of assuring them minimum conditions of a worthy life. In the conclusions, it argues that a more consistent and refined articulation is needed between targeting and interventions or universal services in the field of social policies.

Handicap; Poverty; Social Policy; Universalism and Targeting


ARTIGOS ORIGINAIS

José Moreira de SouzaI; Ricardo CarneiroII

IMestre em Sociologia, Professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro - FJP Endereço:Rua Pires da Mota, n. 202, Madre Gertrudes, Cep 30.512-760, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: jose.moreira@fjp.mg.gov.br IIDoutor em Ciências Humanas - Sociologia e Política, Professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro - FJP Endereço:Avenida Otacílio Negrão de Lima, n. 103, São Luiz, Cep 31.365-450, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: ricardo.carneiro@fjp.mg.gov.br

RESUMO

Este artigo trata da atenção especial dispensada à Pessoa com Deficiência (PCD) no município de Betim (MG) para, a partir dela, discutir as noções de universalismo e a focalização em política social. Examina, inicialmente, a conceituação de deficiência, salientando a institucionalização da abordagem da questão no plano internacional e a forma como se dá sua incorporação na agenda pública brasileira. Analisa, a seguir, as dificuldades técnicas que surgem na operacionalização do conceito, ilustrando-as com as discrepâncias observadas na comparação dos dados do censo demográfico de 2000 relativos à mensuração da incidência do fenômeno em Betim com os levantamentos de pesquisa realizada, em 2005, pela Fundação João Pinheiro (FJP) no município. Com base nas informações disponibilizadas por essa pesquisa, descrevemos a relação entre pobreza e deficiência para colocar em evidência as conseqüências perversas de uma política social, como a praticada no país, que se revela incapaz de assegurar acesso universalizado a serviços essenciais à população. Mostra que a relação é recíproca, ou seja, que a deficiência também fomenta a pobreza, lançando luz sobre as políticas de atenção às PCDs atualmente acionadas pelo governo, que as elege como grupo focal, mas não consegue sequer assegurar-lhes condições mínimas de vida digna. Nas conclusões, chama a atenção para a necessidade de uma articulação mais consistente e refinada entre focalização e ações ou serviços de cunho universalista.

Palavras-chave: Deficiência; Pobreza; Política Social; Universalismo e Focalização.

ABSTRACT

This article deals with the special attention that is given to handicapped persons in the municipality of Betim, state of Minas Gerais, with the purpose of discussing the notions of universalism and targeting in social policies. Initially, it examines the conceptualization of handicap, highlighting the institutionalization of the approach to this issue in the international environment and how it is inserted in the Brazilian public agenda. Next, it analyses technical problems regarding the application of the concept in the field of social policies. Those difficulties are evident in discrepancies referring to the mensuration of the phenomenon incidence in Betim, which may be observed in the comparison between data obtained from the demographic census (2000) and data from a research carried out by Fundação João Pinheiro in 2005 at the mentioned city. Based on outcomes of this research, the present article describes the relation between poverty and handicap. It shows the perverse consequences of a social policy as the one implemented in Brazil, which proves to be incapable of assuring this population universal access to essential services. Furthermore, it reveals the existence of a reciprocal correlation between poverty and handicap: not only poverty foments handicap but also handicap contributes to poverty. So, the article highlights the social policies focusing on handicapped persons currently set by the government, and it shows that despite targeting on these people, the government is not capable of assuring them minimum conditions of a worthy life. In the conclusions, it argues that a more consistent and refined articulation is needed between targeting and interventions or universal services in the field of social policies.

Keywords: Handicap; Poverty; Social Policy; Universalism and Targeting.

Introdução

O fenômeno das desigualdades sociais constitui um traço característico das sociedades modernas que se manifesta, com intensidades e nuances variadas, ao longo do percurso histórico dos movimentos de industrialização e urbanização desencadeados em meados do século XVIII e que se consolidam no século XX. Sob o impulso das forças de mercado, o capitalismo surge e expande-se, promovendo "(...) un mejoramiento milagroso de los instrumentos de producción, acompañado de uma dislocación catastrófica de las vidas de la gente común" (Polanyi, 1992, p.45), ao desarticular os mecanismos de proteção social anteriormente existentes.

Progressivamente, a necessidade de lidar com os efeitos perversos da economia de mercado vai se impondo na conformação das agendas públicas dos diferentes países capitalistas. De uma tímida e precária assistência a indivíduos absolutamente incapazes de garantir sua subsistência por meios próprios, ilustrada pela Lei dos Pobres da Inglaterra do século XVIII1 1 Este assunto foi objeto de abordagem de numerosos autores, como Jeremy Benthan, que o discute em diversos estudos produzidos entre 1795 e 1799. Ver, a respeito: BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril, 1974; MILLER, J.-A. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000 , a atuação do Estado na área social segue uma trajetória rumo à ampliação da cobertura e ao adensamento do conteúdo da proteção assegurada à população diante de situações de desamparo, marginalidade e pobreza. O período posterior à Segunda Guerra Mundial inscreve-se nesse processo assinalando um salto de qualidade nas políticas sociais, corporificado na estruturação do denominado Estado de Bem-Estar.

O conteúdo objetivo da proteção decorrente da seguridade social proporcionada pelo Estado e o grau de cobertura ou acessibilidade efetivamente assegurado aos diversos segmentos da população projetam diferenças expressivas entre os modelos adotados pelos diferentes países. Isso se aplica tanto a países capitalistas desenvolvidos quanto a países em desenvolvimento. O contraste mais nítido, contudo, manifesta-se na comparação entre os dois grupos de países, principalmente no tocante à cobertura, em que o enfoque universalista prevalecente no primeiro grupo encontra pouca ressonância no segundo. Para ser mais específico, ao contrário dos países desenvolvidos, como aqueles da Europa Ocidental, os países da América Latina, como o Brasil, sequer levaram a termo a construção propriamente dita de um sistema de seguridade social, limitando-se ao esboço de algo do gênero, com direitos sociais precários em conteúdo e restritos em cobertura.

Mais recentemente, a onda de reforma do Estado, desencadeada por alegados problemas fiscais e desempenho ineficiente na condução da atividade governativa, levou os países capitalistas de modo geral ao reexame e à reformulação de suas políticas de proteção social. Na América Latina, os rumos do processo reformista foram fortemente influenciados por um diagnóstico comum, segundo o qual "(...) había un déficit de eficiencia en los setores sociales y que los gastos públicos no estaban siendo dirigidos hacia quienes más lo necesitaban". Desse diagnóstico resultaram duas prescrições principais, articuladas entre si: a retração das ações do Estado na área social, substituindo-as, sempre que possível, por mecanismos competitivos de mercado, e o direcionamento da aplicação dos recursos disponíveis prioritariamente para os segmentos mais pobres da população. Em outras palavras, se o Estado gasta mal, o melhor a fazer é abrir espaço para a iniciativa privada e concentrar os escassos recursos públicos em ações ou programas focalizados na pobreza, pois a prestação de serviços aos pobres não oferece atrativos suficientes para despertar o interesse do capital.

A força política de tal receituário alcançou o Brasil, que seguiu a tendência latino-americana no campo social. A despeito do esforço despendido pelo país no sentido da universalização na provisão de determinados serviços, como a saúde, proliferam, desde meados dos anos 1990, iniciativas afinadas com uma perspectiva compensatória, num assistencialismo precário e freqüentemente descontínuo, que elege determinadas "clientelas" como alvo de focalização2 2 Ver, a respeito: MENICUCCI, T. M. G. Público e privado na política de assistência à saúde: atores, processos e trajetórias. 2003. Tese - FAFICH, UFMG, Belo Horizonte, 2003. . Este artigo procura discutir as mudanças em curso na concepção das políticas de proteção social do país, colocando em relevo a ênfase atribuída a intervenções de cunho focalizado. O eixo da argumentação desenvolvida é que a focalização pode representar, quando muito, uma resposta engenhosa para a alegada escassez de recursos públicos, mas seguramente não constitui, em si mesma, uma alternativa para o equacionamento dos graves problemas sociais presentes na realidade brasileira. As "vítimas" da ordem capitalista no conjunto dos países latino-americanos, em especial no Brasil, são numerosas demais para encontrarem abrigo decente sob o teto estreito de ações compensatórias gestadas pelo pragmatismo racionalizador da focalização, consoante o receituário de organizações multilaterais do porte do Banco Mundial. A questão não se prende a contrapor a focalização à universalização como princípio norteador das intervenções públicas na área social. Não há que se fazer opção por uma delas, como se fossem excludentes, mas, ao contrário, examinar formas de conciliá-las que sejam capazes de contribuir efetivamente para a promoção de melhorias sustentadas no bem-estar da sociedade. Entende-se que qualquer ação focalizada deve estar sintonizada e articulada à prestação de serviços homogêneos, acessíveis ao conjunto da população e revestidos de um padrão de qualidade que não afronte a dignidade humana.

A análise empreendida fundamenta-se na discussão de questões atinentes às pessoas com deficiência (PCDs), cujas dificuldades de prover a própria subsistência as tornam candidatos naturais a merecer tratamento especial no âmbito da sociedade, configurando uma "clientela" que se apresenta, a priori, como indicada para a adoção de políticas ou ações focalizadas por parte do poder público. A abordagem do assunto fundamenta-se, empiricamente, no exame do caso de Betim3 3 O município de Betim integra a região Metropolitana de Belo Horizonte. Concentra grandes plantas industriais, como a Refinaria Gabriel Passos da Petrobras e a fábrica da Fiat Automóveis, contando com uma população da ordem de 306 mil pessoas em 2000, conforme dados do IBGE. , tomando de empréstimo informações disponibilizadas por pesquisa referente às PCDs residentes no município, realizada pela Fundação João Pinheiro (FJP), no ano de 2005 (FJP e col., 2005.)4 4 A pesquisa "Atenção à Pessoa com Deficiência no município de Betim" teve início em abril de 2005 e foi concluída em outubro do mesmo ano. Foram visitados 6.500 domicílios, em 136 setores censitários do referido município, de forma a identificar a existência de PCDs, e realizadas entrevistas junto a 491 moradores de residências nas quais havia sua ocorrência. Para uma visão mais completa dos objetivos, metodologia e resultados da pesquisa. .

O texto parte de uma breve discussão sobre a conceituação da deficiência, remetendo a definições institucionalizadas no cenário internacional, que referenciam a abordagem do tema. Examina, a seguir, as dificuldades técnicas que surgem na operacionalização do conceito, ilustrando-as com as discrepâncias observadas nos resultados de mensurações recentes do quantitativo de PCDs residentes em Betim. Feitas essas considerações iniciais, destaca a relação que se estabelece entre pobreza e deficiência no município, por meio da qual se evidenciam as conseqüências perversas de uma política social incapaz de assegurar o acesso universalizado a serviços essenciais à população, e que fazem, do Estado, um dos principais responsáveis pela "produção" de deficientes no país. Mostra que a relação entre pobreza e deficiência tem mão dupla, isto é, a deficiência fomenta a pobreza, lançando luz sobre os limites das políticas de atenção às PCDs acionadas pelo governo, que as elege como grupo focal, mas não consegue sequer oferecer-lhes condições mínimas de vida digna. As conclusões condensam os principais resultados da análise, enfatizando a necessidade de se pensar a focalização em políticas sociais de forma articulada a um conjunto básico de ações ou de serviços de cunho universalista.

A Emergência e Institucionalização da Deficiência na Agenda Pública

A percepção da deficiência como um atributo ou característica determinante de uma identidade grupal surge com a sociedade moderna, no rastro do gradativo alargamento e consolidação dos direitos de cidadania, mais especificamente, os denominados direitos sociais. Diferenças historicamente circunscritas à dimensão sociocultural da vida comunitária e nela diluídas adquirem, assim, relevância político-institucional, para se inscreverem na pauta dos assuntos de interesse das agendas públicas contemporâneas.

No curso desse processo de institucionalização, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, em meados dos anos 1970, uma das principais referências conceituais para a abordagem das questões atinentes à PCD e sua inserção na dinâmica da vida em sociedade. O assunto foi objeto da Resolução XXX/3447, aprovada na Assembléia Geral da entidade, em dezembro de 1975. De acordo com essa resolução, deficiência denota uma situação que configura a "perda ou limitação de oportunidades da participação da vida comunitária, em condições de igualdade com as demais pessoas" (FJP e col., 2005, p.21).

Trata-se de definição que coloca em evidência a existência de diferenças na capacidade natural dos indivíduos – as desigualdades que Rawls (2002) designa como "loteria natural". Aquilo que o indivíduo pode fazer ou se imaginar fazendo, enquanto membro de dada sociedade, é, reconhecidamente, condicionado "por pontos de partida e circunstâncias de escolha bastante desiguais" (Murphy e Nagel, 2005, p.91). O ponto incisivo aqui remete à autonomia dos agentes, suscitando considerações de natureza moral, identificadas com o ideal normativo de igualdades de oportunidade, o qual supõe que as chances vitais das pessoas, numa ordem social que se pretenda justa, não sejam influenciadas, no sentido de distorcidas, por fontes de desigualdade arbitrárias, como a deficiência.

Deficiência assume, na conceituação proposta pela ONU, a configuração de um fator de adscrição à participação plena do indivíduo nas múltiplas relações da sociedade, restringindo ou, no extremo, inviabilizando o aproveitamento de oportunidades potencialmente abertas para a satisfação de interesses e promoção de seu bem-estar. A ênfase recai, portanto, nas conseqüências advindas da deficiência, que, independentemente dos elementos causadores e da forma como se manifesta, é vista como um vetor de desigualdade que cria obstáculos ao desempenho de diferentes ocupações e atividades de todo o tipo. O que se tem é um diferencial negativo na capacidade de autopromoção, que estreita o leque de alternativas de ação ou condutas que se colocam efetivamente ao alcance do indivíduo, delineando uma trajetória de exclusão social. O reconhecimento formal desse diferencial de capacidade, por sua vez, tem implicações claras e diretas no sentido da adoção de tratamento especial à PCD, como um imperativo da idéia de justiça. Isso aponta para o acionamento de políticas voltadas à potencialização da capacidade de realização e de afirmação das escolhas que fazem e da manifestação de suas preferências, assegurando-lhes condições minimamente satisfatórias de vida, dentro de padrões aceitáveis de dignidade humana.

Não é surpresa então que, na mesma resolução que propõe definir e classificar a deficiência, a ONU introduza e conceitue a noção de reabilitação. Nos termos da conceituação proposta pela entidade, reabilitação significa um

processo que visa a conseguir que pessoas com deficiências estejam em condições de alcançar e manter uma situação funcional ótima do ponto de vista físico, sensorial, intelectual, psíquico ou social, de modo que conte com meios para modificar sua própria vida e ser mais independentes. (FJP e col., 2005, p.21.)

Se a deficiência potencializa a dependência, a vulnerabilidade e a exclusão social, a reabilitação denota a preocupação com seu oposto, ou seja, o incremento da autonomia decisória e a promoção da inclusão social, afinada com princípios basilares na construção de uma sociedade justa. Explicita-se, ademais, na conceituação proposta, o caráter multifacetado que reveste o fenômeno da deficiência – as dimensões física, sensorial, intelectual, psíquica ou social –, o que implica reconhecer a necessidade do acionamento de ações também variadas para lidar adequadamente com suas conseqüências, em sintonia com a idéia mais geral de focalização.

Outra importante referência conceitual para a abordagem da deficiência é proporcionada pelo documento International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps: a manual of classification relating to the consequences of disease (ICIDH), editado pela Organização Mundial de Saúde5 5 Ver: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Secretariado Nacional de Reabilitação. Classificação Internacional das Deficiências e Desvantagens: um manual de classificação das conseqüências da doença (CIDID). Lisboa: SNR: OMS, 1989. (OMS), em 1989. De concepção abrangente, o manual contempla considerações técnicas que vão da diagnose do quadro de deficiência a suas implicações no tocante à capacidade de desempenho de papéis e desenvolvimento de atividades necessárias à sobrevivência e à participação ativa do indivíduo na dinâmica social. Quanto à diagnose, propõe uma tipologia para a classificação da deficiência baseada em critérios que incorporam aspectos variados da saúde humana e da doença, de ampla difusão e aplicação no campo da medicina e disciplinas afins. As implicações são desdobradas em duas noções principais: incapacidade e desvantagem (FJP e col., 2005).

Na conceituação adotada pelo manual da OMS, deficiência expressa "perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, temporária ou permanente". Exterioriza, portanto, "um estado patológico, associado à ocorrência de anomalia ou defeitos na estruturação e funcionamento do organismo humano" (FJP e col., 2005, p.20). Pode ser congênita ou adquirida, em que intervêm fatores de causação variados. E comporta graus distintos de intensidade, de leve a completa ou profunda, passando por moderada e grave.

Incapacidade traduz, assim, uma restrição causada pela deficiência quanto à habilidade para desenvolver atividades consideradas normais para o ser humano no cotidiano da vida. Sinaliza para uma situação de dependência e vulnerabilidade, que requer assistência ou apoio sistemático voltado a "compensar" o déficit de capacidade funcional, de forma a assegurar o desempenho de comportamentos e ações essenciais à subsistência do indivíduo. Desvantagem, por sua vez, é entendida como "uma discordância entre capacidade individual de realização e as expectativas do indivíduo ou de seu grupo social" (FJP e col., 2005, p.20). Projeta a deficiência na estrutura das relações sociais, em que se manifesta sob a forma de desigualdades na capacidade de agência, que repercutem nas oportunidades de engajamento efetivo do indivíduo, com perspectivas realistas de êxito, nos variados campos de atividade. São desigualdades que delineiam trajetórias de exclusão dos espaços de vida coletiva e, portanto, da afirmação da existência social. O mercado de trabalho, no qual o portador de deficiência tende a ser visto e tratado, juntamente com outros grupos sociais marginalizados, como "o segundo em qualidade", na expressão utilizada por Offe (1994), ilustra bem a questão. Seguindo com a análise do autor, as desvantagens acabam por condenar os portadores de deficiência "a serem obrigados a aceitar condições de trabalho particularmente desfavoráveis e rendimentos particularmente baixos" (Offe, 1994, p.59). Oportunidades de escolha restritas e inserção precária no mercado de trabalho – conseqüências sociais da desvantagem – incluem-se entre os principais fatores que justificam e impulsionam o acionamento de políticas de inclusão voltadas a reverter ou, pelo menos, atenuar os efeitos perversos dos diferenciais de capacidade.

As conceituações e proposições difundidas pela ONU e OMS serviram de balizamento para a legislação brasileira que trata da matéria, mais especificamente, a Lei nº. 7.853, de 24 de outubro de 1989 (Brasil, 1989), e o Decreto nº. 3.298, de 20 de dezembro de 1999 (Brasil, 1999). Consoante o disposto nesses textos legais, deficiência significa "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividades dentro do padrão considerado normal para o ser humano" (FJP e col., 2005, p.21). As várias modalidades de "perda ou anormalidade" são agrupadas em quatro categorias principais – física, auditiva, visual e mental – com as caracterizações e qualificações pertinentes, além dos respectivos critérios de enquadramento. Qualquer que seja o enquadramento, tem-se como implicação um diferencial na capacidade de agência, ao qual se associam limitações na autonomia decisória e restrições de participação, afetando a inserção nas relações sociais em sentido amplo.

Revestida de caráter institucionalizado, a deficiência transforma-se num atributo formal que distingue os indivíduos enquanto categoria social, a exemplo de etnia ou gênero, e os credencia a tratamento diferenciado no âmbito da formulação das políticas públicas. Sob o rótulo genérico de atenção ou atendimento à PCD, os anos mais recentes testemunham a proposição de uma série de iniciativas, programas e projetos orientados à inclusão dos diferentes tipos de deficientes no acesso e consumo de bens e serviços e no mercado de trabalho. Nessa busca por assegurar direitos à PCD e conferir-lhe vantagens em aspectos relacionados às habilidades de sobrevivência, diversos países, dentre os quais o Brasil, têm recorrido principalmente a intervenções ou ações focalizadas, com resultados nem sempre satisfatórios, conforme discutido mais adiante.

A Percepção da Deficiência: uma questão de método

A caracterização da deficiência, como visto nas considerações anteriores, comporta uma ampla gama de especificações técnicas, envolvendo desde aspectos atinentes à função orgânica comprometida, com seus vários subtipos, passando pelos fatores de causação da doença ou anormalidade, se congênita ou adquirida, e o grau de comprometimento funcional, até suas conseqüências em termos de risco, vulnerabilidade e dependência social do indivíduo. Diagnosticá-la constitui procedimento complexo que requer conhecimento especializado, contemplando duas dimensões principais do fenômeno. A primeira tem a ver com os critérios técnicos associados à configuração objetiva da deficiência como patologia. A segunda refere-se às tecnalidades dos dispositivos legais que regem o tratamento a ser dispensado às PCDs, os direitos, as vantagens e os benefícios que lhes são atribuídos enquanto categoria social formalmente institucionalizada.

As tecnalidades tendem a escapar à percepção do leigo, seja ele o próprio deficiente ou a pessoa de seu grupo de convivência. Deficiência comporta graus variados de intensidade no tocante à incapacidade que gera e aos cuidados especiais que suscita, numa escala que vai de leve a profunda, conformando uma qualificação que está longe de ser incontroversa. As estatísticas do censo demográfico de 2000, produzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), proporcionam uma indicação interessante da amplitude que a ocorrência da deficiência pode assumir, dependendo da conceituação adotada e da forma de sua interpretação.

De fato, tomando-se como referência o município de Betim, os dados censitários de 2000 apontaram a existência de um contingente de 40.962 PCDs numa população de 306.675 pessoas, ou 13,36% do total (IBGE, 2000). Mesmo sem um exame mais detido da metodologia utilizada pelo IBGE, é perceptível a relação que se estabelece entre o uso de uma definição abrangente de deficiência no levantamento realizado e o elevado número de PCDs apurado. A esse respeito, cabe salientar que apenas duas categorias "incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de enxergar" e "incapaz, com alguma ou grande dificuldade de ouvir" – explicam a maior parte das ocorrências registradas, somando 36.731 pessoas, ou 11,9% da população total (IBGE, 2000).

Ao mesmo tempo que impressionam, pela magnitude, os dados censitários de 2000 não parecem os mais indicados para traçar um cenário realista do fenômeno da deficiência nem, o que é mais importante, para orientar políticas de atenção à PCD. Ao incluírem, na categoria de PCD, indivíduos com alguma ou grande dificuldade de enxergar, ouvir e caminhar, as estatísticas do IBGE diluem a "identidade" do deficiente enquanto indivíduo com diferencial relevante de capacidade e, portanto, de dependência, que está na base da "politização" da questão. Adotando-se critérios mais rigorosos de enquadramento, sintonizados com as prescrições do manual da OMS, o quantitativo de PCDs tende a cair de forma drástica. É isso que mostra um estudo elaborado pela Fundação Getúlio Vargas6 6 Ver: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Diversidade e retratos da deficiência no Brasil. Disponível em: < www.fgv.gov.br/cps/deficiencia_br/inicio.htm>. (FGV), segundo o qual, se a análise do fenômeno da deficiência se restringir àquelas pessoas com percepção de incapacidade estrita, chega-se ao contingente de 2,5% da população brasileira (FJP e col., 2005).

A pesquisa realizada pela FJP no município de Betim identifica um número de PCDs que se coaduna com a taxa nacional de 2,5% do total da população, acima mencionada. Por essa pesquisa, a taxa municipal de PCDs, referente a maio de 2005, foi da ordem de 2,23% do total. A expansão da amostra, por sua vez, levou a um quantitativo de 8.617 pessoas com deficiência, numa população total estimada de 394.986 pessoas (FJP e col., 2005).

As discrepâncias entre as estatísticas censitárias do IBGE e os dados da pesquisa da FJP ganham contornos mais nítidos quando se examinam as informações desagregadas por tipo de deficiência. Assim, a categoria "incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de enxergar", utilizada pelo IBGE, na qual se enquadram os deficientes visuais, que somava 25.839 pessoas em 2000, encolhe para apenas 787 pessoas em 2005, no estudo da FJP. Os deficientes auditivos também sofrem queda acentuada na comparação entre os dois levantamentos, com quantitativos de, respectivamente, 10.882 (IBGE, 2000) e 659 pessoas (FJP e col., 2005).

Avançando além de uma mensuração mais "rigorosa" da ocorrência da deficiência no município, a pesquisa da FJP explora também duas questões cruciais a uma visão compreensiva do fenômeno, que assumem particular relevância para a formulação e a avaliação de políticas públicas voltadas ao atendimento à PCD, não só no nível local como no nacional. A primeira tem a ver com o exame dos fatores de causação do problema, trazendo à luz evidências que desnudam o déficit de cobertura e a baixa qualidade da política social brasileira. A segunda refere-se à caracterização socioeconômica da PCD, em que se explicita a estreita relação entre deficiência e pobreza, proporcionando subsídios importantes para a discussão das estratégias de focalização no campo das políticas sociais.

A "Produção" de Deficientes em Betim: o Estado aquém do mínimo

En América Latina, los estados sociales o los sistemas de políticas sociales raras vezes alcanzaron la universalidad en la cobertura. Sea en materia de salud, seguridad social y aún educacíon, los sistemas de protección social se han caracterizados por dos aspectos fundamentales: ausencia de cobertura de los sectores más pobres y estratificación en la calidad y en condiciones de acceso formales y reales a los servicios y benefícios (Filgueira e col., 2005, p.13.)

Esse diagnóstico descreve bem a realidade brasileira e, como se verá, está na raiz da explicação de expressiva parcela da incidência de deficiência observada no município de Betim, que expressa uma espécie de "microcosmo" do país.

A deficiência envolve fatores de causação variados, que podem ser agrupados em três categorias principais: congênita, hereditária e adquirida. A deficiência congênita é aquela gerada com o indivíduo; a hereditária caracteriza-se por ser transmitida pelos pais, com manifestação precoce ou tardia; e a adquirida denota, em geral, seqüelas de acidentes ou doenças que acometem o indivíduo ao longo de sua existência (FJP e col., 2005). Embora as duas primeiras sejam bastante representativas na composição do quadro de PCDs de Betim, a maior parcela corresponde à modalidade adquirida, conforme dados da Tabela 1, sinalizando para um número não desprezível de casos de deficiência potencialmente evitáveis, mas não evitados na prática.

A deficiência de origem hereditária congrega 394 indivíduos em Betim, significando 4,57% do total de PCDs do município em 2005. A congênita, por sua vez, atinge um contingente bem maior de indivíduos, 2.780 pessoas, representando 32,26% do total. Ao contrário da hereditária, que é transmitida pelos pais independentemente da atenção e assistência à saúde no período de gestação, o fato de ser congênita não quer dizer que não possa ser evitada ou, pelo menos, ter sua manifestação reduzida ou minimizada. Dentre os tipos de prevenção, interessa salientar a denominada prevenção primária, "feita antes da concepção para evitar a ocorrência de um defeito congênito", e a terciária – pós-natal ou neo-natal ", "visando a minimizar ou corrigir os defeitos congênitos" (FJP e col., 2005, p.55). Enquanto isso não for devidamente percebido pelo Estado brasileiro, ou seja, incorporado às suas ações concretas na área de saúde pública, o país seguirá "fabricando" deficientes que não precisariam existir, alguns dos quais povoam as estatísticas de PCDs do município.

Das deficiências adquiridas, a pesquisa da FJP identificou 1.722 casos como decorrentes de quadros mórbidos, que explicam 19,98% do total de PCDs do município. Dentre as doenças causadoras de deficiência destacam-se meningite, poliomielite, diabetes e acidentes vasculares cerebrais. As duas primeiras incidem sobre crianças, enquanto as duas últimas referem-se principalmente à população adulta (FJP e col., 2005). O êxito obtido pelo país no controle da poliomielite, por meio de campanhas massivas de vacinação, reafirma o potencial das políticas de saúde pública na redução e no controle da ocorrência de situações de deficiência. Evidências, contudo, não aparentam ser suficientes para orientar as decisões governamentais no tocante à realização do gasto, aproximando-as de opções capazes de proporcionar melhor retorno social. É o que espelham, mais uma vez, as estatísticas de PCDs de Betim.

As seqüelas de acidentes de natureza variada constituem outro importante fator explicativo das situações de deficiência do município, envolvendo 974 casos, ou 10,91% do total. Os acidentes de trabalho, isoladamente, explicam 4,10% do total das ocorrências de PCDs, tendo, nas atividades da construção civil, o principal lócus de manifestação do fenômeno (FJP e col., 2005). Acidentes de trânsito respondem por 319 casos, ou 3,70% do total, e refletem a conjunção de problemas no sistema viário, nas condições de manutenção e no uso de veículos, e no comportamento das pessoas, enquanto transeuntes ou motoristas, nas vias urbanas e interurbanas. Por fim, 302 PCDs, ou 3,51% do total, "o são devido à exposição a situações de violência" (FJP e col., 2005, p.131). Em todas as circunstâncias, o Estado é parte interveniente do processo, seja como regulador – normatizando e fiscalizando o cumprimento das regras estabelecidas nas relações de trabalho, de trânsito etc. –, seja como prestador de serviços, com destaque para a área de segurança pública. A capacidade do poder público no desempenho de atribuições que estão no núcleo básico de suas funções revela-se, portanto, aspecto não negligenciável quanto a prevenção e controle de deficiências adquiridas.

Já a faixa populacional com idade acima de 60 anos – convencionalmente tratada como "terceira idade" – foi destacada, no âmbito da pesquisa da FJP, por sua expressiva participação na ocorrência de situações geradoras de deficiência. Em Betim, 982 pessoas se enquadram nessa situação, correspondendo a 11,40% do total. O progressivo aumento da expectativa de vida da população brasileira, acompanhando tendência internacional, e a maior exposição de pessoas idosas ao risco de acidentes ou de contrair doenças com potencial elevado de seqüelas combinam-se para fazer, dos idosos, um grupo social merecedor de atenção especial nas ações de saúde, proteção e assistência social do governo (FJP e col., 2005). Novamente aqui, resta sensibilizá-lo para a questão.

Por fim, nada menos que 1.765 casos de deficiência no município, correspondendo a 20,48% do total, foram agrupados na modalidade "outras causas". A maior parte reflete a dificuldade de "classificar com precisão o relato dos entrevistados do ponto de vista da aquisição da doença" (FJP e col., 2005, p.136). Isso traduz situações em que a deficiência resulta de um processo de causação complexa, cuja origem permanece indeterminada até porque, em várias circunstâncias, sequer foi objeto de exame por parte de profissional habilitado. No entanto, mesmo em situações em que há diagnóstico médico, as informações obtidas junto ao entrevistado, com freqüência, não forneceram subsídios suficientes para a especificação do que a motivou ou de suas origens. Esse é um dado revelador do contexto social mais amplo em que a deficiência se inscreve. Se o deficiente ou pessoa de sua convivência não consegue fazer uma descrição compreensível da causa ou origem da deficiência, é de se esperar que tenha as mesmas dificuldades cognitivas no tocante aos direitos assegurados pela legislação à PCD e aos cuidados especiais que sua condição exige.

Em resumo, grande parte das ocorrências de deficiência em Betim resulta de seqüelas de acidentes diversos, violência ou quadros mórbidos, ainda que nem sempre claramente especificados. Evitá-las não depende só do indivíduo, mas das condições sistêmicas mais gerais que cercam sua existência, moldadas, por sua vez, pelos arranjos institucionalizados de apoio e assistência que a sociedade proporciona a seus membros, enquanto cidadãos, por meio do Estado. Quanto mais abrangentes, universalistas e sólidos os dispositivos de proteção assegurados pela comunidade como um todo aos diversos indivíduos que a compõem, o que inclui o acesso a bens e serviços essenciais à sobrevivência e ao aperfeiçoamento humano, como saúde e educação, menor a interveniência da variável renda na forma como a deficiência incide e se distribui no conjunto da população.

Cobertura insuficiente, problemas de acesso e estratificação da qualidade dos serviços provisionados ou de competência do Estado tendem a ter, como visto, implicações relevantes sobre o quadro de manifestação das deficiências, no sentido de penalizar as famílias de menor capacidade aquisitiva, que não podem prescindir do poder público, por opção de buscar atendimento junto ao mercado. É isso que se constata em Betim, onde deficiência e pobreza aparecem associadas. Por omissão, ausência ou déficit de capacidade operacional, o Estado brasileiro configura-se como um "produtor" de deficiência, distribuindo-a, numa seleção perversa, principalmente àqueles que têm o infortúnio de pertencer ao vasto contingente de pobres existentes no país.

Deficiência e Pobreza como Fenômenos Interligados

Nem todas as PCD de Betim são pobres. Mas ser pobre, no município, aumenta em muito a possibilidade de ser deficiente. Essa circunstância pode ser visualizada na Tabela 2, que mostra a distribuição local das PCDs por áreas de residência, agrupadas segundo estratos de renda média domiciliar.

Embora a deficiência não seja um atributo da pobreza, é por ela influenciada. A presença de PCDs nas áreas dos estratos inferiores de renda em Betim é relativamente mais expressiva que nas dos estratos de renda mais elevada. Em conjunto, as áreas de estratos de renda média domiciliar de até 5 salários mínimos, que somavam 74,62% do total da população estimada para o município em 2005, detinham 82,61% das PCDs locais. Em contrapartida, às áreas dos estratos de renda média domiciliar acima de 5 salários mínimos correspondiam apenas 17,39% das PCDs, para uma participação de 25,28% no total da população (FJP e col., 2005).

O exame um pouco mais detido dos fatores de causação da deficiência fornece subsídios importantes para a compreensão da forma como ela se relaciona com o fenômeno da pobreza. Observa-se assim que, para as diversas modalidades de deficiência adquirida abordadas na pesquisa da FJP " à exceção apenas daquelas cujas origens advêm de problemas de saúde incidentes na faixa etária designada como "terceira idade" –, as áreas dos estratos de menor renda média domiciliar detêm maior proporção de PCDs que as áreas dos estratos de renda mais elevada, comparativamente às respectivas participações na estrutura da população municipal, conforme dados da Tabela 3.

Concentrando 74,62% da população residente, as áreas dos estratos de renda média domiciliar inferior a 5 salários mínimos respondem por 81,73% dos casos de deficiência congênita do município (FJP e col., 2005). Muitas das patologias fetais podem ser tratadas durante a gestação, a exemplo de hidrocefalia, toxoplasmose e anemias. Outras patologias ocorrem durante a fase neonatal e também são passíveis de prevenção ou tratamento. Seja por falta de informação ou por incapacidade de processá-las adequadamente, seja por dificuldades no acesso a serviços de atenção à gestante, situações de deficiências que poderiam ser evitadas não são. Caracterizadas por menor nível de escolaridade e menor capacidade de mobilização de recursos, as famílias inscritas nas áreas dos estratos inferiores de renda revelam-se mais suscetíveis à incidência de deficiência congênita, num efeito perverso das desigualdades sociais.

Deficiências resultantes de quadros mórbidos também manifestam "preferência" pelas áreas de pobreza. A renda influencia aspectos importantes da saúde humana, como as condições de nutrição, moradia, saneamento básico e de atenção médico-hospitalar, dentre outros. Refletindo essa influência, a pobreza é, ao mesmo tempo, hospedeira preferencial de uma ampla gama de moléstias e "filtro" no acesso aos serviços do sistema de saúde, a despeito da universalização do atendimento formalmente assegurado pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no país. Não surpreende, assim, que 83,27% das deficiências advindas de quadros mórbidos do município apareçam associadas às áreas dos estratos de renda média domiciliar de até 5 salários mínimos (FJP e col., 2005).

Padrão similar de incidência é observado para as deficiências associadas a seqüelas decorrentes de fatores externos, nas quais o indivíduo fica exposto ao risco de acidentes variados e de violência. Das deficiências relacionadas a acidentes de trabalho, 77,12% do total diz respeito às áreas dos estratos de renda média domiciliar de até 5 salários mínimos e os restantes 22,88% do total, às áreas do estrato de renda entre 5 e 8 salários mínimos. Não custa lembrar aqui que as mesmas relações de trabalho que proporcionam menor remuneração são exatamente aquelas que tendem a oferecer menor proteção e segurança ao trabalhador. No caso de deficiências advindas de seqüelas de acidentes de trânsito, as áreas dos estratos de renda média domiciliar de até 5 salários mínimos comparecem com 79,63% do total dos registros, no âmbito dos quais prevalecem atropelamentos e ocorrências envolvendo usos de bicicletas e motos. Para as deficiências associadas a seqüelas de violência, as áreas dos estratos de renda média domiciliar de até 5 salários mínimos respondem por 80,46% do total (FJP e col., 2005). Viver na pobreza significa defrontar-se com menor proteção por parte do aparato de segurança pública e não contar com recursos suficientes para adquirir proteção no mercado. O contraste com as áreas do estrato de renda média domiciliar mais elevada, acima de 8 salários mínimos, onde não se observa registro desse tipo de deficiente, é esclarecedor da assimetria gerada pela renda, expondo a insuficiência de cobertura e a seletividade da segurança provida pelo Estado brasileiro.

A deficiência adquirida na "terceira idade" é, na expressão usada pelo relatório de pesquisa da FJP, a mais "democrática" em sua distribuição pelas áreas de estrato de renda média domiciliar. Chama a atenção, contudo, a participação relativamente "modesta" das áreas de renda média domiciliar inferior a 3 salários mínimos, da ordem de 19,55% do total de PCDs classificadas nessa modalidade, que se coloca, inclusive, abaixo da respectiva participação no número de residentes – 22,58% do total (FJP e col., 2005). De acordo com a análise realizada no relatório de pesquisa da FJP, "a explicação aparece quando se constata que nas áreas de pobreza, há um percentual de PCD que adquiriu essa condição antes de ingressar na terceira idade" (FJP e col., 2005, p.133). Vale dizer que doenças típicas de faixas etárias mais elevadas tendem a se manifestar mais precocemente na população pobre.

Se a desigualdade de renda reflete-se, como observado, no padrão de incidência da deficiência, a recíproca também é verdadeira. Indo direto ao ponto, a presença de PCD influencia a renda da família, colocando-a sistematicamente em patamar inferior à da média do conjunto de famílias das áreas do estrato de renda em que se inscreve, tanto em termos domiciliares quanto per capita. Os dados da Tabela 4 evidenciam, com clareza, a perversa relação que se estabelece, no município de Betim, entre deficiência e pobreza.

Nas áreas do estrato de renda média familiar de até 3 salários mínimos, as famílias com PCD apresentam-se como as mais pobres entre os pobres, com rendas média familiar e per capita de, respectivamente, 2,38 e 0,59 salários mínimos, abaixo das já reduzidas rendas familiar e per capita do conjunto das famílias nelas residentes – respectivamente, 2,50 e 0,78 salários mínimos. O contraste torna-se mais evidente nas áreas dos demais estratos de renda. Em todos eles, o rendimento médio familiar dos domicílios com PCD fica abaixo do limite inferior de renda que demarca cada estrato (FJP e col., 2005).

Essa influência da deficiência na renda da família e, por extensão, em seu bem-estar, tem a ver, em larga medida, com a precária inserção da PCD no mercado de trabalho. De um lado, a condição de "segundo em qualidade" reduz a "competitividade" da PCD quanto ao aproveitamento de oportunidades de ocupação produtiva e geração de renda comparativamente às pessoas que não apresentam tal característica. De outro, quando a PCD consegue dispor de alguma fonte de renda, o rendimento que aufere é, em média, muito baixo.

As dificuldades de obtenção de ocupação produtiva geradas pela deficiência ficam nítidas quando se observam os dados relativos à situação das pessoas de famílias com PCD diante do trabalho. Dentre as PCDs do município de Betim, apenas 12,88% trabalhavam em 2005, ou seja, uma parcela da ordem de 87,12% do total não tinha qualquer tipo de ocupação produtiva, formal ou informal. O quadro revela-se muito distinto para os demais membros das famílias com PCD. Para elas, a taxa de ocupação quase triplica, elevando-se para 31,03% do total. Quando se considera o conjunto dos membros da família, a taxa média de ocupação fica em 26,14% do total (FJP e col., 2005). Disso se infere a dependência da PCD diante da "empregabilidade" dos demais membros da família, sobre os quais recai a responsabilidade de compensar sua precária inserção no mercado de trabalho. É uma sobrecarga para a qual não há resposta satisfatória, o que está estampado no diferencial da renda média familiar dos domicílios com PCD vis-à-vis a renda média familiar dos demais domicílios do município.

Mesmo quando conta com alguma fonte de renda, qualquer que seja sua natureza, a PCD não tem muito que "comemorar". O rendimento recebido é, regra geral, extremamente modesto: a renda média mensal percebida pela PCD residente em Betim, no ano de 2005, sequer alcançava o salário mínimo fixado pelo governo, correspondendo a 88% de seu valor (FJP e col., 2005). A despeito de ser evidente que nem toda PCD é necessariamente pobre, a condição de deficiência potencializa uma desvantagem econômica para a família à qual pertence, configurando-se numa espécie de "passaporte" para a entrada e permanência na pobreza.

Pobreza e deficiência, portanto, interligam-se como "irmãos siameses". A primeira "alimenta" a segunda e é por ela "alimentada". É o que mostra a dura realidade vivenciada pelas PCDs residentes em Betim.

Deficiência e Inclusão Social: a "perna curta" das políticas de atenção à PCD

A deficiência caracteriza-se, como discutido anteriormente, pelo diferencial de capacidade gerado para o indivíduo, repercutindo nas diversas dimensões de sua vida diária, o que envolve suas relações nos ambientes doméstico e comunitário ou social. De um lado, dificuldades no desempenho de atividades básicas à subsistência humana podem exigir atenção especial que, em várias circunstâncias, assume a configuração de acompanhamento sistemático, traduzido na figura do "cuidador" (FJP e col., 2005). De outro, dificuldades de aprendizagem, de locomoção e de envolvimento em ações ou tarefas mais complexas podem restringir em muito o acesso a bens e serviços essenciais ao bem-estar " saúde, lazer, cultura etc. ", bem como a inserção no mercado de trabalho.

O apoio e a assistência da comunidade e, especificamente, do poder público no enfrentamento das dificuldades associadas ao diferencial de capacidade da PCD revela-se essencial para assegurar-lhe condições mínimas de vida digna. Se o Estado não se faz presente, pelas políticas coerentes e sólidas de proteção à PCD, as alternativas são a atenção e os cuidados prestados, direta ou indiretamente, pela família, ou o desamparo. Deixar a responsabilidade para a família impõe-lhe um encargo que ela pode não querer assumir ou que está além de sua capacidade de mobilização de recursos. A pobreza intervém nesse quadro agudizando a condição de vulnerabilidade à qual a PCD está naturalmente exposta e, por extensão, o risco de exclusão social.

A necessidade de apoio e assistência aos deficientes de Betim salta aos olhos quando se constata que, em 2005, 3.981 PCDs residentes no município, conforme Tabela 5, representando 46,20% do total, dependiam de acompanhamento e de cuidados especiais providos por um cuidador. Esse número exclui "casos em que a pessoa necessita de cuidado, mas não o tem. Isto ocorre com pessoas que moram só ou de uma família de idosos" (FJP e col., 2005, p.186).

A responsabilidade pelo cuidado dispensado à PDC fica a cargo, quase sempre, de membro da família residente no domicílio. Do conjunto de cuidadores, nada menos que 88,92% se enquadram nessa categoria. Outros 5,45% do total são representados por parentes não residentes no domicílio. A parcela restante – 5,63% do total – distribui-se entre "especialista contratado não residente", entendido como "toda pessoa não residente remunerada para cuidar de uma com deficiência" (FJP e col., 2005, p.186), e "vizinhos ou colegas", enquadrados sob a denominação genérica de "outros" pela pesquisa.

Uma primeira e importante questão suscitada pelo exame dos dados relativos à atenção dispensada à PCD diz respeito à sua qualidade. Cuidar de PCD não é tarefa trivial, exigindo, em diversas circunstâncias, conhecimentos e habilidades de relativa complexidade. É ilustrativo observar que, em 2005, cerca de 40% dos deficientes de Betim "foram internados pelo menos uma vez e o motivo da internação tem a ver com a deficiência" (FJP e col., 2005, p.180). A procura por assistência médica revela-se ainda mais intensa. Do conjunto de PCDs residentes no município, quase 68% haviam demandado, em período recente, serviços de atendimento médico (FJP e col., 2005).

A habilidade de obter e processar informações, inclusive de natureza técnica, parece constituir, assim, requisito básico a ser preenchido pela figura do cuidador. Utilizando-se as condições de acesso à educação formal como indicador de capacidade cognitiva, o quadro que se delineia para as famílias das PCDs residentes em Betim não é muito alentador, para dizer o mínimo. Das pessoas residentes nos domicílios com PCD, uma parcela da ordem de 14,41% tem baixa escolaridade, ou seja, é analfabeta ou alfabetizada sem escolarização. Por sua vez, apenas 2,68% do total apresentava nível elevado de escolaridade, entendida como pessoa que, pelo menos, ingressou em curso superior, independentemente de sua conclusão (FJP e col., 2005).

Como a ampla maioria dos cuidadores é formada por familiares residentes no domicílio, infere-se que a atenção à PCD tende a ficar sob responsabilidade de pessoa cujo perfil educacional não a credencia para lidar com situações e tarefas que envolvem habilidades técnicas específicas e/ou processamento de informações de maior complexidade. Esse raciocínio pode ser estendido às categorias "parente não residente" e "outros". Mesmo nos poucos casos em que o cuidador recebe a denominação de "especialista contratado", a situação não deve ser muito distinta. A designação como especialista, na pesquisa da FJP, está associada fundamentalmente ao desempenho remunerado do papel de cuidador, não refletindo a qualificação da pessoa para o exercício da função.

Uma segunda questão, igualmente importante, refere-se ao ônus que recai sobre a família da PCD advindo dos cuidados especiais que esta demanda. As implicações incidem sobre as múltiplas dimensões da vida familiar e suas interfaces com a comunidade circundante. Dentre essas implicações, uma das mais relevantes tem a ver com os custos econômicos, diretos e indiretos, incorridos na atenção dispensada à PCD. Não se trata apenas de pagamentos efetuados ao cuidador contratado para o desempenho da função. Ainda que não remunerado, quando exercido por familiar ou parente, o papel de cuidador ocupa uma pessoa economicamente ativa, que poderia estar engajada em atividade geradora de renda. Há, portanto, um custo de oportunidade não negligenciável, principalmente quando se tem em mente o quadro de pobreza no qual a deficiência se inscreve. Deve-se considerar, ademais, a ocorrência de despesas de natureza variada, como gastos com transporte em busca de atendimento médico-hospitalar e remédios, para ficar nos itens mais comuns. Outras conseqüências são mais difíceis de mensurar e valorar, até porque envolvem elementos intangíveis ou de natureza subjetiva, que escapam à precificação de mercado. Para ilustrá-las, toma-se de empréstimo a situação descrita, de forma concisa e contundente, no relatório de pesquisa da FJP:

O pânico instalado nas relações conjugais com o nascimento de uma pessoa com deficiência, além de promover rupturas, cria também uma obrigação que persegue os pais ao longo da vida: o dever de sobreviver ao filho deficiente. O medo de morrer e deixar o filho desvalido conduz a um sofrimento incalculável para os pais. Isso acontece em especial quando os filhos são portadores de deficiência mental ou sofreram paralisia cerebral com o comprometimento acentuado das funções neurológicas. (2005, p.216).

Se a necessidade de cuidados especiais denota a condição de dependência, o acesso à educação formal constitui um dos principais vetores com vistas a assegurar maior capacidade de agência, autonomia decisória e independência à PCD. O quadro que se delineia a partir de informações da pesquisa da FJP revela-se, mais uma vez, pouco alentador. A prevalência de situações de baixa escolaridade – analfabetismo ou alfabetização sem escolarização " é bem expressiva, correspondendo a 29,77% das PCDs em idade escolar de Betim (FJP e col., 2005).

A ocorrência de analfabetismo ou alfabetização sem escolarização entre os portadores de deficiência de Betim reproduz, com tintas mais fortes, o cenário observado junto aos demais membros da família residentes em domicílios com PDC. Vale salientar, contudo, a interveniência da variável renda na distribuição da baixa escolarização entre as PCDs locais. É isso que se infere quando se observa que as áreas do estrato inferior de renda média domiciliar de até 3 salários mínimos, o qual concentra 23,28% das PCDs do município, comparece com 30,78% do total que se enquadra na condição de analfabetos ou alfabetizados sem escolarização. Os dados referentes às PCDs com escolarização elevada corroboram essa constatação. De fato, um número muito pequeno de PCDs de Betim – 78, representando menos de 1% do total de deficientes locais – havia alcançado o ensino superior ou pós-graduado em 2005. Dentre elas, a maioria absoluta, 55,13% do total, corresponde a famílias residentes nas áreas do estrato de renda média domiciliar acima de 8 salários mínimos (FJP e col., 2005).

Em síntese, à pobreza se associa maior proporção de PCDs com baixa escolarização, enquanto a escolarização mais elevada concentra-se nas áreas de maior renda média domiciliar. Logo, a capacidade de mobilização de recursos da família influencia a trajetória educacional da PCD. Ser deficiente em domicílios das áreas de pobreza aumenta em muito a possibilidade de ser analfabeto ou alfabetizado sem escolarização e, simultaneamente, estreita enormemente a chance de se alcançar o ensino superior. Seja por omissão, descaso ou incompetência, a atuação do Estado não corrige essa distorção, pelo menos no município de Betim.

A política pública pouco contribui também para a inserção da PCD no mercado de trabalho. Como já mencionado, a proporção de PCDs residentes em Betim com ocupação produtiva é relativamente modesta. Tão ou mais importante, dentre aqueles que trabalham, menos da metade possui contrato formal de trabalho. A despeito da existência de direitos e prerrogativas institucionalizadas com vistas a garantir à PCD oportunidades efetivas de trabalho, sua eficácia revela-se baixíssima no município. Apenas 13 PCDs locais que trabalhavam em 2005, representando cerca de 1% daqueles que dispunham de ocupação produtiva, afirmaram "valer-se da lei que lhes garante acesso ao trabalho" (FJP e col., 2005, p.205).

Se pouco contribui para a inserção das PCDs no mercado de trabalho, a ação estatal mostra-se mais eficaz, pelo menos em termos de cobertura, no tocante a assegurar-lhes algum tipo de renda, o que envolve instrumentos variados, como pagamentos de aposentadoria ou pensão e transferências por meio de programas na linha do denominado Benefício de Prestação Continuada7 7 O Benefício de Prestação Continuada foi introduzido pela Lei nº. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e regulamentado pelo Decreto nº. 1.744, de 8 de dezembro de 1995. . Independentemente da situação quanto à ocupação produtiva, a esmagadora maioria das PCDs de Betim, 94,16% do total, dispunha de fonte de renda em 2005, ainda que, quase sempre, o valor recebido fosse baixo. "Com efeito, há rendimentos de até R$ 15,00 mensais por pessoa, o que é muito menor do que se pode obter mendigando" (FJP e col., 2005, p.214).

Com um rendimento médio individual correspondente a 88% do valor do salário mínimo (FJP e col., 2005), a PCD residente em Betim está condenada a um consumo muito restrito de bens e serviços, insuficiente para assegurar-lhe um padrão de vida digno. O Estado brasileiro não falha apenas na prevenção da deficiência. Falha também em lidar com suas conseqüências, limitando-se a uma assistência que contribui, quando muito, para a subsistência da PCD. A inclusão social, se efetivamente pretendida, é por demais pontual para ter visibilidade.

Conclusão

A análise realizada colocou em evidência a "preferência" da deficiência pelas áreas de pobreza. Esse é o quadro que se delineia em Betim, a partir do exame dos dados disponibilizados pela pesquisa realizada pela FJP. É razoável, no entanto, argumentar que não se trata de uma preferência de âmbito local, mas de abrangência nacional. De fato, a associação entre deficiência e pobreza tem raízes em aspectos estruturais da realidade brasileira, como as profundas desigualdades na distribuição de renda. Desconsiderar essa associação perversa compromete, de saída, as possibilidades de êxito de qualquer política que se proponha a lidar com a questão no país.

A pobreza "alimenta" a deficiência porque abriga os fatores que tornam os indivíduos mais suscetíveis a adquirir essa condição. O baixo poder aquisitivo da população pobre restringe em muito o acesso ao mercado como fornecedor de bens e serviços que afetam diretamente suas condições de subsistência e bem-estar. Se o fornecimento por meio do mercado está fora do alcance de quem é pobre, porque a renda não permite acessá-lo, resta a alternativa de provisão pelo Estado. Caso os bens e serviços provisionados pelo Estado, especialmente aqueles que se configuram como essenciais a uma vida decente, não cheguem a todos que deles necessitam, com qualidade e regularidade, como até agora tem ocorrido, a "fábrica" de deficientes não encontrará maiores problemas para continuar funcionando, com invejável eficiência. Enquanto direitos sociais mais comezinhos continuarem a ser fragmentados e parciais, principalmente no que diz respeito aos indivíduos imersos na pobreza, para os quais se assemelham a mera ficção, a "produção" de PCDs no Brasil seguirá sua trágica rotina.

Se o Estado demonstra inapetência para atuar sobre as causas da deficiência, deve-se reconhecer que, pelo menos, tem se esforçado em lidar com suas conseqüências, o que, diga-se de passagem, não é surpresa, dada a preferência histórica pelo assistencialismo presente na política social brasileira. A proteção à PCD revela-se ambiciosa em seus propósitos, mas tímida em seus resultados, o que também não causa maiores surpresas. Poucas ações apresentam grau expressivo de cobertura e, quando isso ocorre, os impactos ocasionados tendem a ser modestos, como evidenciam as iniciativas de apoio financeiro à PCD. Assegurar à PCD rendimento mensal inferior ao salário mínimo, que é o padrão em Betim, não deixa de ser uma ajuda, até porque o beneficiário, quase sempre, é membro de uma família pobre. No entanto, com esse tipo de transferência "generosa" de renda, não há como escapar das privações e carências que cercam as condições de vida na pobreza.

Políticas de atenção às PCDs são importantes e necessárias, desde que efetivas em seus resultados, e não meros paliativos ou enunciados vazios, que costumam ressurgir ocasionalmente, junto com o ciclo eleitoral. Mesmo que efetivas, contudo, as PCDs estariam em melhores condições se não tivessem adquirido essa condição. Se isso não é possível para todas – a deficiência tem também origem hereditária – é para uma parcela expressiva delas. O requisito básico consiste numa política social que permita o acesso a bens e serviços essenciais a uma vida digna, independentemente da capacidade de pagamento do indivíduo ou de sua família. A partir dela, ajudaria muito o acionamento de uma política de prevenção à deficiência, com ações focadas nas principais causas do fenômeno. É esse o longo e difícil caminho que poderia conduzir ao fechamento da fábrica de PCDs. Se for seguido, a deficiência não apenas irá retroagir, mas se tornará mais "democrática", deixando de ser um jogo viciado, cuja vítima preferencial é o pobre, como mostra a análise realizada em Betim, aproximando-se de uma espécie de loteria, cuja vítima é escolhida de forma aleatória. Como as oportunidades dificilmente serão iguais para todos, que pelo menos alguns riscos possam ser mais bem distribuídos. Não é o melhor dos mundos, mas não deixa de ser um pouco mais justo ou, o que dá no mesmo, menos injusto.

Recebido em: 25/10/2006

Aprovado em: 20/06/2007

  • BRASIL. Lei nş 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência; sua inclusão social; sobre a Coordenadoria Nacional pela Integração da Pessoa Portadora de Deficiência CORDE; institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 out. 1989. Col.1 ,p. 1920.
  • BRASIL. Decreto nş 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei nş 7853, de 24 de outubro de 1989; dispõe sobre a Política Nacional para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência e consolida as normas de proteção. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1999. Col. 1, p.1.
  • MURPHY, L.; NAGEL, T. O mito da propriedade São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • OFFE, C. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico Brasileiro, 2000. CD – Base de informações por setor censitário 2000, RMBH Estatcart, 2003
  • POLANYI, K. La gran transformación: los orígenes políticos y económicos de nuestro tiempo. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1992.
  • RAWLS, J. Uma teoria da justiça São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • FILGUEIRA, F. et al. Universalismo básico: una alternativa posible y necesaria para mejorar las condiciones de vida latinoamericanas. Washington, DC: INDES-BID, 2005
  • FJP - FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; CDM; INSTITUTO ÉSTER ASSUMPÇÃO. Pesquisa Atenção à Pessoa com Deficiência no município de BetimMG Belo Horizonte, 2005. Relatório final
  • Universalismo e focalização na política de atenção à pessoa com deficiência

    Universalism and targeting in the policy of attention to the handicapped person
  • 1
    Este assunto foi objeto de abordagem de numerosos autores, como Jeremy Benthan, que o discute em diversos estudos produzidos entre 1795 e 1799. Ver, a respeito: BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril, 1974; MILLER, J.-A. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000
  • 2
    Ver, a respeito: MENICUCCI, T. M. G. Público e privado na política de assistência à saúde: atores, processos e trajetórias. 2003. Tese - FAFICH, UFMG, Belo Horizonte, 2003.
  • 3
    O município de Betim integra a região Metropolitana de Belo Horizonte. Concentra grandes plantas industriais, como a Refinaria Gabriel Passos da Petrobras e a fábrica da Fiat Automóveis, contando com uma população da ordem de 306 mil pessoas em 2000, conforme dados do IBGE.
  • 4
    A pesquisa "Atenção à Pessoa com Deficiência no município de Betim" teve início em abril de 2005 e foi concluída em outubro do mesmo ano. Foram visitados 6.500 domicílios, em 136 setores censitários do referido município, de forma a identificar a existência de PCDs, e realizadas entrevistas junto a 491 moradores de residências nas quais havia sua ocorrência. Para uma visão mais completa dos objetivos, metodologia e resultados da pesquisa.
  • 5
    Ver: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Secretariado Nacional de Reabilitação. Classificação Internacional das Deficiências e Desvantagens: um manual de classificação das conseqüências da doença (CIDID). Lisboa: SNR: OMS, 1989.
  • 6
    Ver: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Diversidade e retratos da deficiência no Brasil. Disponível em: <
  • 7
    O Benefício de Prestação Continuada foi introduzido pela Lei nº. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e regulamentado pelo Decreto nº. 1.744, de 8 de dezembro de 1995.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      25 Out 2006
    • Aceito
      20 Jun 2007
    Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: saudesoc@usp.br