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Serviços residenciais terapêuticos em saúde mental: uma proposta que busca resgatar a subjetividade dos sujeitos?

Therapeuthic residential services in mental health: is it a proposal to rescue the subjects' subjectivity?

Resumos

Este estudo procura contextualizar o surgimento de projetos de moradia para pessoas com transtornos mentais no Brasil a partir da implantação da Reforma Psiquiátrica, ocorrida na década de 1980, e da problemática dos moradores de hospitais psiquiátricos. Apresenta os resultados de um levantamento bibliográfico realizado na base de dados LILACS sobre o tema, a partir do qual foram encontradas diferentes abordagens da questão da moradia para pessoas com transtornos mentais no período das três diferentes décadas sobre as quais o levantamento ocorreu: década de 1980: busca da humanização do espaço asilar por meio dos lares abrigados; década de 1990: construção dos parâmetros para moradias, que começam a ocupar os espaços urbanos; a partir de 2000: busca do ator principal das moradias, ou seja, quem nelas reside. No entanto, a construção desses espaços não garante a mudança na lógica das relações institucionais em pessoas com transtornos mentais, permanecendo como um dos desafios o resgate da subjetividade dos sujeitos por meio da ampliação dos espaços de troca e participação dos sujeitos que nela residem.

Saúde Mental; Moradias Assistidas; Reforma Psiquiátrica


The study aims to contextualize the emergence of home projects for people with mental disorders in Brazil based on the implantation of the Psychiatric Reform in the 1980s and on the problem of psychiatric hospitals' residents. The study presents the results of a bibliographic research carried out in the LILACS database about the theme. Different approaches to the subject of homes for people with mental disorders were found in the period of the three different decades covered by the research: 1980s - attempts to humanize the asylum spaces through sheltered homes; 1990s - construction of the parameters for supported housing, which starts to occupy the urban spaces; from 2000 onwards - attempts to focus on the main actor of the homes, that is, those who reside in them. However, the construction of these spaces does not guarantee the change in the logic of the institutional relationships with people with mental disorders. Therefore, the challenge that remains is the rescue of the subjectivity of the people that reside in them.

Mental Health; Supported Housing; Psychiatric Reform


ARTIGOS ORIGINAIS

Renata Cristina Boaretto SuiyamaI; Marli Alves RolimII; Luciana de Almeida ColveroIII

IMestre em Enfermagem Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.Terapeuta Ocupacional.Endereço: Rua José Casas Garcia, 239. Jd. Rosa Maria, 05547-050, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: reboaretto@yahoo.com.br IIIDoutora em Enfermagem. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Endereço: Rua Dr Augusto de Miranda,1300, apto 121, Pompéia, 05026-001, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marliarolim@hotmail.com IVDoutora em Enfermagem. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Endereço:Rua Dr Miranda de Azevedo, 957, apto 84, Pompéia, 05027-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: lucix@usp.br

RESUMO

Este estudo procura contextualizar o surgimento de projetos de moradia para pessoas com transtornos mentais no Brasil a partir da implantação da Reforma Psiquiátrica, ocorrida na década de 1980, e da problemática dos moradores de hospitais psiquiátricos. Apresenta os resultados de um levantamento bibliográfico realizado na base de dados LILACS sobre o tema, a partir do qual foram encontradas diferentes abordagens da questão da moradia para pessoas com transtornos mentais no período das três diferentes décadas sobre as quais o levantamento ocorreu: década de 1980: busca da humanização do espaço asilar por meio dos lares abrigados; década de 1990: construção dos parâmetros para moradias, que começam a ocupar os espaços urbanos; a partir de 2000: busca do ator principal das moradias, ou seja, quem nelas reside. No entanto, a construção desses espaços não garante a mudança na lógica das relações institucionais em pessoas com transtornos mentais, permanecendo como um dos desafios o resgate da subjetividade dos sujeitos por meio da ampliação dos espaços de troca e participação dos sujeitos que nela residem.

Palavras-chave: Saúde Mental; Moradias Assistidas; Reforma Psiquiátrica.

ABSTRACT

The study aims to contextualize the emergence of home projects for people with mental disorders in Brazil based on the implantation of the Psychiatric Reform in the 1980s and on the problem of psychiatric hospitals' residents. The study presents the results of a bibliographic research carried out in the LILACS database about the theme. Different approaches to the subject of homes for people with mental disorders were found in the period of the three different decades covered by the research: 1980s – attempts to humanize the asylum spaces through sheltered homes; 1990s - construction of the parameters for supported housing, which starts to occupy the urban spaces; from 2000 onwards – attempts to focus on the main actor of the homes, that is, those who reside in them. However, the construction of these spaces does not guarantee the change in the logic of the institutional relationships with people with mental disorders. Therefore, the challenge that remains is the rescue of the subjectivity of the people that reside in them.

Keywords: Mental Health; Supported Housing; Psychiatric Reform.

Introdução

A Reforma Psiquiátrica teve início no Brasil nos últimos anos do Governo Militar, entre 1964 e 1985 (Ogata e col., 2000). Segundo Mângia e Nicácio (2001), ela pode ser entendida como o "processo de crítica às instituições asilares e de busca de alternativas de transformação que emergiu no final da década de 1970." (p.73)

No início, ela tinha como meta principal a humanização do atendimento ao doente mental internado nos hospitais psiquiátricos. Hoje, tendo como busca o resgate da cidadania e da singularidade dos sujeitos, são premissas básicas desse movimento a desinstitucionalização da psiquiatria e a criação de serviços alternativos que visam à reabilitação psicossocial das pessoas com transtorno mental.

No processo da Reforma Psiquiátrica, as Conferências Nacionais de Saúde Mental foram marcos importantes e apresentaram a proposta de dar continuidade ao processo de crítica ao modelo hospitalocêntrico de assistência e de definir estratégias e rumos na implementação da Reforma Psiquiátrica, buscando referências em experiências internacionais exitosas desde o início da década de 1980. A I Conferência foi realizada em 1987, como decorrência da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Nela foi apresentado o impasse no modelo centrado no hospital e no médico-psiquiátrico, entendido como ineficaz e oneroso, tanto para a sociedade como para os usuários, e no qual ocorria violação dos direitos humanos fundamentais (Brasil, 2002a).

Na década de 1990, puderam-se observar movimentos no campo da saúde mental que contribuíram para a continuidade desse processo. Podemos citar, por exemplo, a articulação dos profissionais de saúde mental na discussão e na criação de novas experiências de intervenção na área (Amarante e Torre, 2001; Gonçalves e col., 2002); o surgimento de diversas experiências e iniciativas no campo assistencial, assim como novos procedimentos apontados nas Portarias Ministério da Saúde 189/91 e 224/92.

A II Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu em 1992, já no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) e contou com a participação inédita e expressiva de usuários e de familiares. Nesta Conferência buscou-se formalizar o esboço de um novo modelo assistencial, com lógica, conceitos, valores e estrutura da rede de atenção diferentes do modelo hospitalocêntrico, e também na forma concreta de lidar com as pessoas com a experiência de transtornos mentais, a partir de seus direitos de cidadania (Brasil, 2002a).

Contudo, o modelo asilar ainda permaneceu hegemônico, "tanto no que se refere à capacidade instalada como no total de recursos gastos na rede hospitalar" (Brasil, 2002a, p. 14). No ano de 1989, havia no Brasil 450 mil pacientes internados por transtornos mentais.

Boa parte desses pacientes são residentes nos hospitais psiquiátricos, tendo os mesmos perdido completamente seus vínculos familiares e sociais, dificultando sobremaneira as tentativas de reabilitação junto a esta população (Brasil, 2002a, p.128).

Na década de 1990, com a redução dos leitos oferecidos em hospitais psiquiátricos, ocorreu a alocação de alguns pacientes institucionalizados cronificados para recursos em programas na comunidade e a ampliação na rede de equipamentos que substituíssem o manicômio. Mas apesar de o processo brasileiro ter conseguido a ampliação dessa rede, acabou beneficiando mais a uma clientela com alguma possibilidade de suporte social. Aqueles em via de institucionalização ou já institucionalizados foram pouco beneficiados, o que era incompatível com um sistema de saúde que substituísse o manicômio (Fagundes, 1998).

Um dos grandes problemas da desinstitucionalização tem sido o tratamento dos pacientes crônicos na comunidade. (...) Para o (seu) atendimento (...) na comunidade é necessária a criação de locais de moradia onde eles tenham uma assistência diferenciada que contemple suas dificuldades, assim como o acompanhamento contínuo da equipe e da família nas suas necessidades sociais e culturais para uma reinserção satisfatória (Fagundes, 1998, p.392).

No entanto, percebemos em nossa experiência junto a estes pacientes que passaram por longas internações psiquiátricas que muitas das vezes o núcleo familiar não mais está disponível para recebê-las em seus domicílios e para estes casos acreditamos que o foco da atenção/ação deverá ser a rede social ampliada

Na perspectiva no ano 2000, o Ministério da Saúde promulgou a Portaria GM/MS n°106, de 11 de fevereiro, que criou os "Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde, para o atendimento ao portador de transtornos mentais". De acordo com a portaria, em seu parágrafo único:

" Entende-se com Serviços Residenciais Terapêuticos, moradias e casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuem suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social" (Brasil, 2002b, p.85).

Na Portaria acima citada, estes serviços substitutivos à internação psiquiátrica prolongada, deveriam ser local de assistência e suporte a essa população, além de ter papel de promover da reinserção do indivíduo à vida comunitária mediante projeto terapêutico que responda às necessidades dos usuários, contemplando os princípios da reabilitação psicossocial, baseado nas seguintes diretrizes, conforme seu parágrafo quarto:

a. "respeitar os direitos do usuário como cidadão e como sujeito em condição de desenvolver uma vida com qualidade e integrada ao ambiente comunitário."

b. "ser centrado nas necessidades dos usuários, visando à construção progressiva da sua autonomia nas atividades da vida cotidiana e à ampliação da inserção social;"

c. "ter como objetivo central contemplar os princípios da reabilitação psicossocial, oferecendo ao usuário um amplo projeto de reintegração social, por meio de programas de alfabetização, de reinserção no trabalho, de mobilização de recursos comunitários, de autonomia para as atividades domésticas e pessoais e de estímulo à formação de associações de usuários, familiares e voluntários." (Brasil, 2002b, p.85).

De acordo com as normas e critérios de inclusão destes serviços no Sistema Único de Saúde (SUS) em seu parágrafo quinto esta portaria estabelece que estes serviços devem ser, "de natureza pública, ou de acordo com o gestor local poderão ser de natureza não governamental, sem fins lucrativos; estarem integrados à rede de serviços do SUS, com gestão preferencialmente local, podendo funcionar em parceria com organizações não-governamentais (ONG), sempre supervisionados por um serviço especializado de saúde mental mais próximo"

Foi, pois, no bojo desses pressupostos que surgiu a proposta de estudarmos os Serviços Residenciais Terapêuticos como estratégia na desinstitucionalização de pacientes crônicos psiquiátricos, pois acreditamos que nestes serviços seja possível ampliar as trocas, a circulação das diferenças e promovendo assim espaços onde estas pessoas egressas de internações psiquiátricas de longa duração sejam efetivamente sujeitos de sua vidas, atributos que, segundo Saraceno (2001), a instituição lhes confiscou.

Isso motivou a necessidade de realizarmos um levantamento bibliográfico sobre o tema, para conhecer sua evolução histórica na produção bibliográfica e identificar sua evolução ao longo dos anos.

Esse levantamento ocorreu na base de dados LILACS, no período de julho a agosto de 2003, tendo sido utilizados diferentes descritores para acesso aos artigos/publicações, dos quais os principais foram: habitação saúde mental, moradia saúde mental e lares abrigados. Buscamos textos a partir da década de 1980, quando a Reforma Psiquiátrica se instaurou no Brasil. Conseguimos ter acesso a nove publicações nacionais, que foram analisadas uma a uma e aqui apresentadas. A partir dessa análise, pudemos vislumbrar uma evolução histórica na produção sobre o tema, em conformidade com a evolução da implantação da Reforma Psiquiátrica.

Apresentação do Levantamento Realizado

Os primeiros Lares Abrigados surgiram no Brasil em São Paulo e no Rio Grande do Sul, dentro do Movimento da Reforma Psiquiátrica, com o objetivo de retirar os usuários das enfermarias e propiciar sua participação na gestão de sua vida e diversificar seu contato com o espaço urbano. Não seriam caracterizados como um espaço de atendimento, devendo estar vinculados à rede de assistência local, com atendimento externo ao Lar. A equipe que nele trabalharia teria o papel de intermediação entre o Lar e o local de assistência e seus profissionais. (Barros e Josephson, 2001).

A proposta dos Lares Abrigados, então, é a de trabalhar com pessoas que já estiveram internadas e que perderam seus vínculos, ou mesmo com aquelas que, ainda tendo referências familiares, não querem ou não conseguem "retornar ao núcleo familiar". Além disso, trata-se de criar oportunidades para o estabelecimento de relações diferentes daquelas do hospital, investindo na mudança da cultura hospitalocêntrica para a de uma residência, cujo funcionamento terão de gerir (Barros e Josephson, 2001, p.62).

Palladini, em 1984, conceitua lar abrigado como:

(...) 'uma unidade pequena, descaracterizada em seus aspectos hospitalares, onde se processa, através da convivência, formas dignas de existência com recuperação da autonomia, das relações sociais, participação nas decisões, da cooperação no trabalho, do estímulo para perceber e pensar a própria condição' (Palladini, 1986-1987, p.64).

Ao longo desta revisão bibliográfica, pudemos observar grande variedade nos termos utilizados para denominar as experiências de moradias para pessoas com transtornos mentais: Lares Abrigados (Palladini, 1986-1987; Furtado e Pacheco, 1998; Barros e Josephson, 2001), República (Rolim e col., 2000), Moradia Assistida (Fernandes, 2001), Lar de Acolhimento (Gonçalves e col., 2002), Moradias extra-hospitalares (Furtado e Pacheco, 1998), Pensões Protegidas (Furtado e Pacheco, 1998; Guimarães e Saeki, 2001), Núcleo de Convívio (Guimarães e Saeki, 2001), Vila Terapêutica (Guimarães e Saeki, 2001), Serviços Residenciais Terapêuticos (Brasil, 2002b; Milagres, 2003). No entanto, observamos que todas essas experiências têm em comum o objetivo da transformação da assistência prestada, buscando substituir a internação psiquiátrica e ser uma alternativa de moradia.

A primeira publicação sobre o tema deste levantamento foi de 1986-1987, em que há um relato da experiência dos Lares Abrigados implantados no Hospital do Juqueri (Franco da Rocha-SP) em 1984. Esses lares eram uma tentativa de modificação das condições de vida dos internos e das práticas institucionais. O trabalho foi iniciado com um grupo de 48 pacientes psiquiátricos cronicamente hospitalizados, com a transformação estrutural e funcional de clínicas e colônias do hospital.

Neste trabalho busca-se propiciar que o próprio grupo defina sua direção na medida em que possa superar posições heterônomas formadas em anos de internação, com crescente autonomia cooperativa (Palladini, 1986-1987, p.62).

Após longo período sem publicações a respeito, em 1998, Furtado e Pacheco publicaram texto sobre a experiência ocorrida no Hospital Cândido Ferreira, em Campinas-SP, com moradores do hospital. Furtado e Pacheco (1998) e Furtado (2001) apresentaram um pouco do processo de implantação dos serviços residenciais desse hospital, onde se passou a buscar uma mudança no modelo de atenção prestado aos seus usuários. Da coletividade massificante da lógica institucional, procuraram individualizar as relações com os internos.

No hospital passaram a funcionar a Unidade de Reabilitação de Crônicos, a Unidade de Internação de Agudos, o Núcleo de Oficinas de Trabalho e o Hospital-Dia. O projeto de moradias surgiu a partir da Unidade de Crônicos como uma possibilidade para a desospitalização de seus internos, que em sua maioria eram pessoas com longas internações psiquiátricas.

Furtado e Pacheco (1998) relataram o processo de constituição do Lar Abrigado (a partir de 1991) e da Pensão Protegida (a partir de 1995). Ambos eram serviços ligados ao hospital, com uma história de dificuldades nos primeiros anos de funcionamento, tendo vários de seus moradores retornado ao hospital. Dentre as principais dificuldades observadas, podemos destacar: o tipo de acompanhamento requerido dos profissionais no cotidiano da moradia; o risco da reprodução da lógica institucional do hospital, no que diz respeito à autonomia, tanto dos moradores quanto da administração e das finanças, assim como o vínculo de dependência dos moradores com a instituição de origem; a necessidade de atenção especializada para dar suporte às pessoas com diagnóstico de deficiência mental; a pequena inserção dos moradores na comunidade; episódios de crise vivenciados pelos usuários, que foram relacionados pelos autores à dificuldade em adaptação dos moradores fora do contexto asilar; o descompasso entre as expectativas dos profissionais e as possibilidades imediatas dos moradores.

Furtado (2001) fez uma análise dos processos de transformação na assistência em saúde mental ocorridos no Município de Campinas. É um texto posterior ao já apresentado e refere-se a outro momento, em que várias experiências de projetos de moradia estavam em andamento no município, assim como transformações na rede de assistência à saúde mental. Observamos a ausência de um detalhamento de como essas experiências evoluíram diante das dificuldades apresentadas anteriormente. Entretanto, o aspecto relevante apontado no processo de implantação dos Serviços Terapêuticos em Campinas, no período estudado pelo autor, é a orientação para inclusão destes serviços numa rede de atenção à saúde mental, em que outros tipos de equipamentos estão disponíveis, como referência e contra-referência.

A dependência das moradias do hospital, inicialmente observada, era um entrave no processo de desinstitucionalização dos pacientes crônicos. Sobre esta questão, a inexistência de formas específicas de financiamento para projetos de residências auxiliava na manutenção dessa dependência, já que, formalmente, os moradores continuavam sendo seus pacientes.

No ano 2000, foi publicada a Portaria nº. 106, sobre Serviços Residenciais Terapêuticos. Neste mesmo período observamos um aumento no número de publicações encontradas sobre esse tema, mesmo que sobre experiências ocorridas na década anterior.

Rolim e col. (2000) relataram a experiência da constituição de uma "República" no Instituto "A casa", indicada tanto para seus usuários sem indicação para internação e sem família, como para aqueles que têm indicação para saírem da casa de seus pais ou para morarem sozinhos. Tinha como modelo a República de Estudantes e visava preparar para a vida independente. Seria um recurso temporário de moradia assistida, parte de um processo de reabilitação social.

A 'REPÚBLICA' incide primordialmente na construção do cotidiano de cada morador. Apresentar a experiência da 'REPÚBLICA' é convidar para que se entenda a força terapêutica da instauração do cotidiano de um 'cotidiano vital', com suas rotinas e normas particulares e as discussões do grupo de moradores e acompanhantes terapêuticos sobre o lugar e função de cada um nesse coletivo (Rolim e col., 2000, p.24).

Em 2001, Guimarães e Saeki relataram o projeto Pensões Protegidas, do Hospital Santa Tereza (Ribeirão Preto-SP), mantido pelo governo do Estado. Esse projeto surgiu no contexto da reforma psiquiátrica brasileira, tendo como ponto de partida a criação, em 1983, de um Núcleo de Convívio. Esse núcleo era localizado dentro do hospital, mas afastado do centro, com uma equipe ainda a ele vinculada. Em 1987, iniciou-se o projeto Vila Terapêutica, formada por cinco casas, com até quatro moradores em cada uma. Ficava dentro do hospital, com um membro de sua equipe responsável por ela como referência para cada morador. As Pensões Protegidas começaram a ser negociadas em 1988, mas se constituíram apenas em 1992. Em 1998, eram três casas, com quatro moradores cada, localizadas em diferentes bairros de Ribeirão Preto.

Em 2001, Fernandes escreveu sobre a Moradia Assistida do Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS), serviço da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, localizado no Município de São Paulo.

(...) tem como objetivo avaliar e atender as demandas dos usuários do serviço referentes à habitação de um modo geral e, especificamente, criar estratégias de encaminhamentos de necessidades que surgem nos Núcleos de Assistência e Sociabilidade. Assim, visa o desenvolvimento de intervenções que possam operar tanto no sentido da sociabilidade, compreendida desde a convivência cotidiana, quanto na interação com a comunidade do bairro e região, como também oferecer-se como mais um recurso para a intervenção terapêutica no campo extra-institucional (Fernandes, 2001, p.103-104).

O projeto teve início em 1998 e era destinado a usuários do CAPS com dificuldades de moradia que faziam "tratamento integral" (Fernandes, 2001, p.107) na instituição. Era um "espaço de sociabilidade" (Fernandes, 2001, p.108) para outros usuários da instituição, com contratos específicos. Caracterizava-se como local de permanência transitória (contratos de um ano, em geral, e que poderiam ser renovados) e seus moradores recebiam ajuda de custo, apesar de o projeto ser majoritariamente financiado pelo Programa de Integração Docente Assistencial (PIDA), convênio existente entre a Universidade de São Paulo e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo desde 1996. Contava com equipe que realizava plantões semanais e nos finais de semana (por volta de 3 horas diárias), com a função de organização das tarefas cotidianas e elaboração de projetos individuais e grupais, além de reunião semanal com moradores para discussão de questões relativas ao cotidiano da casa.

A autora fez uma leitura deste projeto à luz do que denomina "Clínica Ampliada", em que se busca dupla aceitação desses moradores: como sujeitos psíquicos, com todas as suas possibilidades de subjetivação, e como cidadãos, sujeitos de direitos. A Moradia Assistida, nesse caso, seria um projeto de socialização realizado por meio da Clínica Ampliada.

Ainda em 2001, Barros e Josephson apresentaram dados de uma pesquisa que mapeou alguns projetos de Lares Abrigados no Rio de Janeiro: Lar Abrigado Paulo Barreto, ligado ao Instituto Philippe Pinel, a Colônia Juliano Moreira, o Lar Abrigado do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB) e a República de Passárgada, do Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII). No momento do estudo, não havia qualquer forma específica de financiamento para esses projetos, que eram sustentados, em parte, pelas instituições das quais se originaram.

A rotina nesses lares estava ligada à criação de espaços coletivos onde os usuários teriam condições de decidir questões relativas à gerência de sua vida cotidiana/vida da casa. Entretanto, os critérios de seleção dos usuários para integrar esses projetos seriam baseados na indicação de alta, se teriam para onde ir e serem encaminhados, isto é, se contavam com referência sócio-familiar. Estes critérios não priorizavam o projeto terapêutico individualizado pautado na avaliação dos processos de adaptação e incremento da autonomia destes usuários no cotidiano do lar.

Nas relações com o território, todos os projetos buscavam aproximação com a comunidade, apesar da existência de preconceito. Algumas estratégias utilizadas para a aproximação foram a participação dos responsáveis pelo projeto em reuniões de moradores antes da implantação do Lar e a realização de atividades abertas à comunidade.

Esses autores trabalharam com um entendimento da criação dos Lares Abrigados dentro de um contexto social cada vez mais excludente, individualista. Apontaram a necessidade de entender esse processo, à luz da Reforma Psiquiátrica, em suas relações com as políticas de saúde mental e demais políticas sociais.

No ano de 2002, encontramos o trabalho de Gonçalves e col., que apresentaram a proposta do Lar de Acolhimento Franco da Rocha, unidade de atenção a pacientes de longa permanência do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma proposta de ressocialização de pacientes com "capacidades cognitiva e psicomotora parcial ou completamente preservadas" (Gonçalves e col., 2002, p.392).

Foi proposto, então, o Projeto de Reformulação Assistencial da Colônia Juliano Moreira, com o intuito de adaptar o espaço asilar para a moradia e rever as práticas terapêuticas vigentes. Seu objetivo era oferecer condições de moradia mais individualizadas, ampliando as atividades culturais e de lazer, buscando resgatar o vínculo com a sociedade, enfraquecido após tantos anos de institucionalização, além de uma qualidade de vida que possibilitasse a reinserção e a reconstituição dessas pessoas como sujeitos sociais.

Os critérios de seleção dos moradores seriam: ter interesse em integrar o novo modelo de assistência e moradia, sendo este o mais importante; apresentar nível razoável de autonomia nos cuidados pessoais; mostrar disponibilidade para participar de atividades grupais em geral e; especificamente das preparatórias para a implantação dos lares.

Os autores apontaram ainda resultados que superaram suas expectativas, principalmente no que diz respeito à autonomia nos cuidados de si e nas relações entre as moradoras.

Em 2003, Milagres apresentou os serviços residenciais terapêuticos como um suporte social para pessoas inseridas no sistema manicomial.

Somente com a montagem de uma ampla rede de dispositivos residenciais, adequada aos vários níveis de complexidade, pode-se pensar em um projeto de reforma que inclua um cuidado eficaz aos chamados 'pacientes crônicos', em especial àqueles desprovidos de vínculos sociais e familiares sólidos. Contudo, as transformações que os serviços residenciais operam são ainda mais profundas quando nos aproximamos dos sujeitos, usuários desses serviços, e evidenciamos a sua relação com o território (Milagres, 2003, p.122).

Este texto diferenciou casa/moradia de lar, sendo o primeiro um espaço físico habitável, e o segundo o espaço que abriga nossa intimidade. As residências, neste entendimento, seriam "dispositivos de produção de subjetividade" (Milagres, 2003, p.124). O lar também pode extrapolar a casa, estendendo-se ao território, onde nos "sentimos em casa".

Foram apresentados ainda dados de uma pesquisa realizada em 2001 com pessoas institucionalizadas que estavam saindo do hospital para passar a viver em serviços residenciais terapêuticos do Centro de Reabilitação e Integração Social (CRIS), do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, utilizando observação de campo e relatos orais dos moradores. Apresentaram-se também trechos dos relatos e das histórias de cada um deles, principalmente no que diz respeito à institucionalização e à experiência de estar numa residência. Dentre esses relatos, destacamos maior ou menor grau de dependência que alguns apresentavam em relação à instituição de origem, o lar como local para construir um projeto de vida (que poderia passar pela saída do lar, espaço transitório, território de contato), a possibilidade de retomar o cotidiano de uma casa, o desejo de voltar ao hospital, onde o cuidado seria absoluto e totalizador.

Nesse texto, o autor procurou enxergar as ações dos sujeitos e as particularidades dentro da estrutura de serviço, verificando que em cada residência terapêutica poderia haver tantas "casas" quanto moradores que nela habitavam, já que "casa" é uma construção subjetiva.

Considerações Finais

Este levantamento permitiu vislumbrar o processo histórico acerca das residências para pessoas com transtornos mentais, dispositivo que iniciou sua trajetória na década de 1980, como tentativa de humanização de pavilhões e alas do hospital psiquiátrico, objetivando levar seus usuários a um nível maior de gestão de suas próprias histórias. Também foi uma tentativa de reestruturação do trabalho e da lógica asilar, no momento em que se iniciavam as críticas ao modelo manicomial psiquiátrico vigente no Brasil.

Após o início da implantação e a consolidação da Reforma Psiquiátrica como política de saúde mental no Brasil, observamos, em especial na década de 1990, a busca de um novo local para as moradias no processo de desinstitucionalização de pacientes com longas internações, então residentes nos hospitais psiquiátricos, sem vínculos familiares. Iniciou-se uma "invasão" do espaço urbano: as residências instalaram-se para fora dos muros do hospital; encontramos apontamentos sobre a necessidade de sua articulação com a rede de saúde local e da circulação dos residentes por espaços nas cidades.

Conquistas e desafios ocorreram. Houve, por um lado, referência à melhora nos cuidados consigo e com a casa, nas relações entre os moradores; por outro, o hospital permaneceu como referência da qual era difícil desligar-se. Da mesma forma, as equipes e seus processos de trabalho precisavam mudar: que tipo de cuidado se fazia necessário ofertar? Com que intensidade? Como pagar esses projetos? Que tipo de financiamento era possível? Iniciaram-se experiências no contexto dos serviços extramanicomiais, como no CAPS e também, no setor privado, destacamos na cidade de São Paulo, o serviço denominado "A casa".

Encerrando esta década, em que tantas experiências ocorreram, houve a promulgação da Portaria nº. 106, que regulamentou e estabeleceu diretrizes para o funcionamento dos serviços Residenciais Terapêuticos. A partir desta portaria estes serviços ganharam uma nomenclatura própria e uma forma específica de financiamento, deixando claro seu papel de estratégia de desinstitucionalização.

Após esse marco, observamos grande aumento no número de publicações sobre o tema, mesmo que se referindo a experiências iniciadas na década de 1990. Em 2003, encontramos pela primeira vez o depoimento dos próprios moradores, alvo primeiro desses serviços, até então não diretamente presentes nos textos encontrados. Novamente, conquistas e desafios foram apresentados, mas desta vez por outro protagonista: ganha voz o sujeito, ex-residente do hospital psiquiátrico, morador de um Serviço Residencial Terapêutico.

Ao buscarmos conhecer as experiências de moradia para pessoas com transtornos mentais crônicos e observarmos sua evolução histórica, algumas inquietações podem ser colocadas.

A subjetividade dos moradores estaria começando a ser colocada em destaque em relação às questões estruturais dos serviços? Nesse sentido, encontramos apenas uma produção apontando esse caminho, sendo também o texto mais recente sobre o tema.

Com a publicação da Portaria nº. 106, estariam as questões estruturais mais claras nesse momento? Muitas das publicações da década de 1990 debruçam-se sobre as estruturas, os critérios de seleção, a equipe mínima, as relações com a rede extra-hospitalar.

Apesar de todas essas experiências, o modelo asilar ainda é o predominante em nosso país, consumindo grande parte da verba destinada à assistência em saúde mental. Também entendemos que construir espaços fora do hospital, com menor número de moradores, não garante a mudança na lógica com que são tratadas as pessoas com transtornos mentais graves.

Como garantir que os Serviços Residenciais Terapêuticos não se tornem apenas uma reprodução, em microrealidades, da lógica manicomial? Como podem ser utilizados na tentativa de reverter o quadro nacional de domínio das instituições asilares na assistência para pessoas com transtornos mentais? De que forma podem ser espaços de busca da subjetividade perdida há tantos anos nos longos corredores do hospital psiquiátrico?

Essas são algumas das inquietações que podem ficar para os protagonistas dessa história ao olharmos para os Serviços Residenciais Terapêuticos como estratégia de desinstitucionalização da psiquiatria no Brasil. É a partir das incertezas e dos questionamentos que podemos procurar investir em novas possibilidades e potencialidades latentes o que exige de todos criatividade, ousadia e paixão. O que nos ocorre é que pensar tais iniciativas passa inicialmente pelo envolvimento individual que pode vir a ser o esteio de experiências mais amplas, resultando numa construção coletiva, onde profissionais mais sensibilizados podem dar início à operacionalização de propostas que se tornem realidade. No entanto, a vontade política é fundamental.

Recebido em: 12/09/2006

Reapresentado em: 05/04/2007

Aprovado em: 28/05/2007

  • AMARANTE, P. D. C.; TORRE, E. H. G. Constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil. Saúde em Debate, Londrina, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio 2001.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Revisado
      05 Abr 2006
    • Recebido
      12 Set 2006
    • Aceito
      28 Maio 2007
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