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Gênero, vulnerabilidade das mulheres ao HIV/Aids e ações de prevenção em bairro da periferia de Teresina, Piauí, Brasil

Gender, women's vulnerability to HIV/Aids and preventive actions at a neighborhood on the periphery of Teresina, Piauí, Brazil

Resumos

Com a mudança ocorrida no curso da epidemia de Aids a partir dos anos 1990, marcada pelo aumento da incidência entre segmentos fora dos "grupos de risco", entre eles as mulheres, o conceito de risco individual foi substituído pela noção de vulnerabilidade social, abrangendo questões relacionadas ao comportamento coletivo, como as relações de gênero, além das ações do Estado voltadas para essas questões. Este artigo relata os achados de uma pesquisa de corte qualitativo realizada com mulheres adultas, vivendo relações conjugais estáveis, moradoras de bairro considerado de baixa renda, na periferia de Teresina. Para isso, buscou-se identificar a vulnerabilidade desse grupo à infecção pelo HIV, em função da utilização ou não de preservativo, bem como a relação desse aspecto com as relações de gênero vivenciadas pelos parceiros e o papel do Programa Saúde da Família nesse contexto. Verificou-se que a maioria das mulheres não faz uso contínuo do preservativo, por estar vivendo relação estável com parceiro fixo; entretanto, considera-se vulnerável, pois não tem absoluta confiança no comportamento sexual do parceiro. A negociação com o parceiro sobre o uso do preservativo é quase sempre difícil, e, por vezes, requer a alegação de que representa segurança para se evitar uma gravidez indesejada. Rassalta-se que o Programa Saúde da Família não incorpora a discussão sobre sexualidade e relações de gênero ao trabalho de educação em saúde da mulher por estar centrado no acompanhamento pré-natal e na redução do câncer ginecológico.

Gênero e saúde; Saúde da mulher; HIV/Aids


With the change that started to occur in the course of the Aids epidemic from the 90s onwards, marked by an increasing incidence among segments outside the "risk group", including the women, the concept of individual risk was replaced by the notion of social vulnerability, encompassing questions related to collective behavior, such as gender relations, and also the actions taken by the government concerning these matters. This article reports the findings of a qualitative research conducted with adult women who had stable marital relationships and lived on the poor periphery of the city of Teresina, state of Piauí. This paper identified the group's vulnerability to HIV based on the use of condoms, as well as the relations of this aspect to the gender relations experienced by the partners and the role of the Family Health Program in this context. It was verified that most of the women do not continuously use condoms because they are living a stable relationship with a single partner; nevertheless, they consider themselves vulnerable since they do not trust their partners' sexual behavior. The negotiation with the partner about the use of condoms is nearly always difficult, and at times, it is necessary to mention the need to avoid unwanted pregnancy. It is important to highlight that the Family Health Program does not approach the discussion about sexuality and gender relations in the health education of the woman, for it focuses on prenatal care and on the reduction of gynecologic cancer.

Gender and Health; Women's Health; HIV/Aids


ARTIGOS TEMÁTICOS

GÊNERO, CORPO E CONHECIMENTO

Gênero, vulnerabilidade das mulheres ao HIV/Aids e ações de prevenção em bairro da periferia de Teresina, Piauí, Brasil

Gender, women's vulnerability to HIV/Aids and preventive actions at a neighborhood on the periphery of Teresina, Piauí, Brazil

Maria da Consolação Pitanga de SousaI; Antônio Carlos Gomes do Espírito SantoII; Sophia Karlla Almeida MottaIII

IMestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco - Profa. da Faculdade de Saúde, Ciências Humanas e Tecnológicas do Piauí - NOVAFAPI. Endereço: Rua Dra. Maria Carvalho Santos, 2036, casa 03, Condomínio Village do Horto Teresina, CEP 64052-465, Piauí, Brasil. Email: consolapitanga@yahoo.com.br

IIDoutor em Saúde Pública, Professor Associado do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco. Endereço: Rua Costa Gomes, 180, apto 1103, Madalena, CEP 50710-510, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: ag.santo@yahoo.com.br

IIIDoutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP. Endereço: Rua João Julião, 296, apto 43 A, Paraíso, CEP 01323-020, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: sophiaespiritosanto@usp.br

RESUMO

Com a mudança ocorrida no curso da epidemia de Aids a partir dos anos 1990, marcada pelo aumento da incidência entre segmentos fora dos "grupos de risco", entre eles as mulheres, o conceito de risco individual foi substituído pela noção de vulnerabilidade social, abrangendo questões relacionadas ao comportamento coletivo, como as relações de gênero, além das ações do Estado voltadas para essas questões. Este artigo relata os achados de uma pesquisa de corte qualitativo realizada com mulheres adultas, vivendo relações conjugais estáveis, moradoras de bairro considerado de baixa renda, na periferia de Teresina. Para isso, buscou-se identificar a vulnerabilidade desse grupo à infecção pelo HIV, em função da utilização ou não de preservativo, bem como a relação desse aspecto com as relações de gênero vivenciadas pelos parceiros e o papel do Programa Saúde da Família nesse contexto. Verificou-se que a maioria das mulheres não faz uso contínuo do preservativo, por estar vivendo relação estável com parceiro fixo; entretanto, considera-se vulnerável, pois não tem absoluta confiança no comportamento sexual do parceiro. A negociação com o parceiro sobre o uso do preservativo é quase sempre difícil, e, por vezes, requer a alegação de que representa segurança para se evitar uma gravidez indesejada. Rassalta-se que o Programa Saúde da Família não incorpora a discussão sobre sexualidade e relações de gênero ao trabalho de educação em saúde da mulher por estar centrado no acompanhamento pré-natal e na redução do câncer ginecológico.

Palavras-chave: Gênero e saúde; Saúde da mulher; HIV/Aids.

ABSTRACT

With the change that started to occur in the course of the Aids epidemic from the 90s onwards, marked by an increasing incidence among segments outside the "risk group", including the women, the concept of individual risk was replaced by the notion of social vulnerability, encompassing questions related to collective behavior, such as gender relations, and also the actions taken by the government concerning these matters. This article reports the findings of a qualitative research conducted with adult women who had stable marital relationships and lived on the poor periphery of the city of Teresina, state of Piauí. This paper identified the group's vulnerability to HIV based on the use of condoms, as well as the relations of this aspect to the gender relations experienced by the partners and the role of the Family Health Program in this context. It was verified that most of the women do not continuously use condoms because they are living a stable relationship with a single partner; nevertheless, they consider themselves vulnerable since they do not trust their partners' sexual behavior. The negotiation with the partner about the use of condoms is nearly always difficult, and at times, it is necessary to mention the need to avoid unwanted pregnancy. It is important to highlight that the Family Health Program does not approach the discussion about sexuality and gender relations in the health education of the woman, for it focuses on prenatal care and on the reduction of gynecologic cancer.

Keywords: Gender and Health; Women's Health; HIV/Aids.

Introdução

No Brasil, no início dos anos 1980, os primeiros casos de Aids notificados surgiram entre os denominados grupos de risco, que incluíam os homossexuais do sexo masculino, os usuários de droga injetável e as prostitutas (Brasil, 1998, 2000; Pimenta e Souto, 2003; Guimarães, 2001). A evolução da epidemia revelou a capacidade da Aids alcançar todos os adotavam comportamentos de risco, como, por exemplo, manter relações sexuais sem preservativo ou compartilhar seringas (Seffner, 2004).

Desse modo, ainda na década de 1980, a noção de grupos de risco foi substituída pela expressão comportamento de risco, embora ela ainda se baseasse na exposição como questão de decisão individual, como um risco assumido pelo indivíduo (Guimarães, 2001; Parker e Camargo Jr., 2000; Pimenta e Souto, 2003; Seixas, 1998).

Com base nessa concepção, o Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde realizou campanhas pautadas na responsabilidade individual, com slogans do tipo "Se fosse seringa, você usava?", direcionadas aos usuários de drogas injetáveis.

Contudo, as denominações grupos de risco e comportamento de risco não se mostraram suficientes para explicar as mudanças ocorridas no curso da epidemia, visto que, já na década seguinte, o universo de pessoas infectadas pelo HIV ampliou-se, passando a abranger homens hetero e bissexuais não usuários de drogas injetáveis, revelando ainda uma tendência ascendente de disseminação entre as mulheres, particularmente aquelas pertencentes aos estratos sociais considerados de baixa renda; a maioria delas tendo relação estável com os parceiros sexuais - em geral, o marido ou companheiro (Parker e Galvão, 1996). Nesse sentido, Barbosa e Villela (1996), em estudo publicado na segunda metade dos anos 1990, indicavam as mulheres como grupo mais vulnerável ao HIV/Aids, se comparadas a outros segmentos sociais.

À época, a noção de risco individual e comportamento de risco começou a ser substituída, principalmente no meio acadêmico, pelo conceito de vulnerabilidade social, que dizia respeito a um conjunto de fatores estruturais que condicionam o avanço da epidemia, entre eles as condições materiais de existência, sobretudo as questões relacionadas aos direitos humanos, gênero, sexualidade, raça/cor e cidadania, entre outros, passando a exigir do Estado políticas e/ou ações de combate ao HIV/Aids, em uma perspectiva social e não meramente sanitária (Pimenta e Souto, 2003). A problemática da Aids começava a ser encarada como algo que ultrapassava o campo específico da saúde, invadindo o campo das relações sociais, ensejando discussões e reflexões acerca da estrutura da sociedade, sua organização política como também das estratégias do Estado diante das desigualdades sociais.

A vulnerabilidade social ao HIV/Aids, vivenciada pelas mulheres, poderia, segundo Barbosa e Villela (1996), ser explicada por meio da inter-relação de fatores de diferentes naturezas, que compreenderiam três dimensões: a individual, decorrente em última instância da dificuldade de acesso às informações acerca da prevenção e dos meios para concretizá-las, como o preservativo e os informes educativos; a social, resultante do acesso a serviços públicos, como educação e saúde, aptos a reduzir a vulnerabilidade individual; e, por último, a política, determinada pela elaboração e implementação das políticas de saúde para o combate ao HIV, articuladas às políticas públicas de proteção à população feminina.

Seguindo essa linha, a resposta efetiva à epidemia, essencialmente entre as mulheres, passa a constituir uma questão fundamentalmente sociopolítica; por conseguinte, implica em processo de mudanças sociais, que devem necessariamente buscar a transformação das relações de poder e dominação presentes na sociedade (Parker e col., 1994).

Para isso, uma das estratégias fundamentais seria a desconstrução da tradicional concepção de gênero, baseada na desigualdade de poder entre homens e mulheres, construindo-se outra, segundo a qual homens e mulheres sejam pensados como seres sociais e políticos, capazes de refletir, discutir e tomar decisões de modo igualitário (Scott , 1990). Mulheres nessa condição estariam prontas para assumir, na relação com o parceiro, uma postura pró-ativa acerca do uso do preservativo nas relações sexuais (Parker e col., 1994).

De acordo com Seixas (1998), a sexualidade feminina foi historicamente construída no sistema de gênero como impura e passiva, a ser exercida a partir do sentimento de amor e não de desejo. No que se refere à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a Aids, o sistema de gênero só poderia dificultar a negociação do uso do preservativo pela mulher, visto que a construção da sexualidade feminina neste sistema prioriza o enfoque maternal e pró-criativo, opondo-se à proposta de prevenção do HIV/Aids. Nesse contexto, evidenciam-se fenômenos como o da desconfiança intrínseca, presente na relação, conforme a seguinte citação:

(...) em geral, as mulheres mais jovens temem ser consideradas 'fáceis' ou 'experientes demais', enquanto as mais velhas reportam o medo de desagradar ao parceiro, pois solicitar o uso do preservativo pode ser visto como uma "prova de desconfiança" (...) (Brasil, 1997, p. 73).

No estudo intitulado Adoção de Práticas Sexuais mais Seguras entre Mulheres em Intervenções Educativas com o Preservativo Feminino, o Ministério da Saúde (Brasil, 2005) admite como fatores de fundamental importância na determinação da vulnerabilidade ao HIV/Aids o acesso à informação e aos serviços sociais e de saúde, as relações de gênero, as questões de raça/etnia, as atitudes diante da sexualidade, as crenças religiosas e o nível de pobreza, entre outros.

Não obstante o esforço de incorporação, por parte do órgão governamental, do conceito de vulnerabilidade social nas campanhas educativas mais recentes para a prevenção do HIV/Aids, permanece intocada a discussão das questões relacionadas à vulnerabilidade, entre elas a questão de gênero.

A par dessa conjuntura, julgou-se relevante investigar as condições em que se têm desenvolvido as práticas de prevenção do HIV/Aids por parte de mulheres adultas moradoras de um bairro de Teresina, situado entre aqueles com maior número de casos notificados da doença, aplicando-se ênfase ao papel desempenhado nesse contexto pelas relações de gênero e pela atuação do Programa Saúde da Família, como estratégia de atenção básica à saúde.

Metodologia

A pesquisa teve caráter descritivo, utilizando-se a abordagem qualitativa, tendo em vista o interesse no aprofundamento das questões de natureza subjetiva, supra-explicitadas.

Como base territorial da pesquisa, foi escolhida a Vila Mocambinho II, localizada em uma das regiões do município com maior número de casos notificados, sendo selecionada, com a ajuda das Agentes Comunitárias de Saúde, uma amostra de 20 mulheres usuárias da Unidade Básica de Saúde, localizada nesse território, com idades entre 20 e 49 anos, faixa etária na qual se concentra o maior número de mulheres infectadas, segundo os dados obtidos na Gerência de Epidemiologia da Fundação Municipal de Saúde de Teresina.

O período de coleta dos dados transcorreu de março a novembro de 2006, após a aprovação do Comitê de Ética do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (CCS/UFPE), que obedeceu a norma para pesquisas com seres humanos do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

A pesquisa teve início pela observação do trabalho desenvolvido pela Equipe de Saúde da Família, registrando-se as ações dirigidas às mulheres adultas, com ênfase nas ações de prevenção ao HIV/Aids. Não sendo realizadas pela equipe atividades coletivas, a observação restringiu-se aos atendimentos individuais feitos às mulheres: consultas e exames de clínica médica e ginecologia/obstetrícia.

Posteriormente, foram contatadas as mulheres para a realização das entrevistas individuais, efetivadas, em caráter individual e privativo, em domicílio, utilizando-se roteiro com questões semi-estruturadas, após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Concluída a etapa de aplicação das entrevistas individuais, foram formados três grupos focais com as mulheres entrevistadas, nos quais foram colocadas em discussão questões consideradas ainda obscuras e/ou polêmicas levantadas nas entrevistas individuais.

Os resultados e as discussões apresentados a seguir surgiram das entrevistas individuais, bem como dos encontros com os grupos focais. Estão organizados em três categorias, consideradas eixo norteador do corpo da pesquisa: conhecimento sobre HIV/Aids e como isso se concretiza na relação entre os parceiros; a autopercepção das mulheres em relação à vulnerabilidade ao HIV/Aids a partir da relação com seu parceiro; e como o Programa de Saúde da Família (PSF) contribui para redução da vulnerabilidade ao HIV/Aids entre as mulheres.

O Diálogo entre os Parceiros e a Prática da Prevenção

Algumas entrevistadas informam jamais ter mantido qualquer tipo de diálogo com o parceiro sobre assunto.

(...) Não, nunca conversamos. Não sei, nunca passou pela minha cabeça assim, sentar, conversar. (...) Não, a preocupação dele mesmo é só com filho, pra não ter mais filho, porque a renda mensal é pouca. Mas de doença assim mesmo, ele não fala não (...)

A maioria, no entanto, relata, nas entrevistas, manter diálogo com o parceiro sobre a da prevenção da Aids, de modo geral, e, em particular, sobre a necessidade de uso do preservativo.

(...) A gente já conversou sobre isto. A gente tem um diálogo aberto e eu acredito que ele não procura ninguém por fora (...) A gente usa (o preservativo) mais com relação à prevenção de gravidez. Quando tô tomando remédio (anticoncepcional) a gente fica só com o remédio, mas a gente usa quase sempre o preservativo (...)

(...) Ele já sabe. Sempre! [refere-se à freqüência do uso do preservativo]. Não sou ligada [laqueada] e tenho que me prevenir (...) a gente sabe que homem é bicho danado (...)

(...) Eu converso, ele tem muito medo e ele se previne. Toda vez que a gente vai fazer alguma coisa [sexo], ele usa o masculino. Também pra não engravidar, uso o anticoncepcional (...)

Conforme é possível observar, a preocupação com a possibilidade da gravidez indesejada é muito clara nos depoimentos, parecendo ser esse o principal motivo para o uso do preservativo. No primeiro depoimento, em que a entrevistada demonstra confiança no comportamento sexual do marido, o preservativo representa um recurso utilizado apenas nos períodos em que ela não está fazendo uso da medicação anticoncepcional.

O preservativo, por vezes, representa um recurso opcional por causa dos efeitos colaterais do anticoncepcional oral.

(...) Não [sobre o uso sistemático do preservativo]. Só quando eu não era ligada. Eu tinha medo, porque eu não queria pegar logo gravidez, e eu não podia tomar remédio. Quando eu tomava, passava mal. Não uso [o preservativo] há oito anos (...)

A aceitação do uso do preservativo como medida de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, contudo, não é, para alguns autores, uma luta que alinha homens de um lado e mulheres de outro. Para Guimarães (2001), resulta de uma cultura socialmente arraigada, que associa a vivência do sexo pela mulher à função reprodutora e nunca ao desejo e ao prazer.

A atuação das equipes de saúde, vinculando fortemente a saúde da mulher aos cuidados voltados à gestação, ao parto e ao cuidado com a criança, estaria reforçando a desigualdade de gênero e legitimando a cultura tradicional da reprodução. Esse despreparo dos serviços está diretamente ligado à dimensão social da vulnerabilidade (Barbosa e Villela, 1996).

Os condicionantes que intervêm no relacionamento íntimo entre mulheres e homens para a decisão sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis exigem um trabalho capaz de ir além dos instrumentos tradicionais a informação e os meios e caminhar para a construção de um diálogo aberto entre o profissional da saúde e as mulheres, permitindo uma relação de confiança, na qual a mulher possa expor seus sentimentos, angústia, medos e desejos. Essa atitude por parte da equipe de saúde representará um significativo avanço na conquista da integralidade da atenção.

O diálogo acerca da prevenção parece sempre marcado por um clima de conflito, com os homens normalmente opondo-se ao uso do preservativo. Mesmo assim, em algumas respostas, essa dificuldade parece restrita a uma fase do relacionamento dada como superada.

(...) Ele já usa camisinha mesmo, normalmente, não reclama. É difícil a gente ter relação. Não é coisa de todo dia não [risos]. No começo ele botava dificuldade, mas depois foi aceitando numa boa. Não reclama mais não (...)

Foram registradas situações, ainda que raras, nas quais a iniciativa partia do homem, bem como a mobilização para a obtenção do preservativo, tarefa sempre atribuída à mulher.

(...)Ele diz que tem que se prevenir. Tá recente, tal, a gente precisa se conhecer melhor, mas não é muito bacana (...)

(...) Ele aceita o preservativo e quando a gente não tem, ele compra. A gente usa sempre (...)

Por sua vez, a postura da mulher nessa relação e a prática que dela resulta mostram-se bastante variáveis. Em alguns casos, diante de uma resistência tenaz do parceiro e de um corpo argumentativo por ele engendrado, manipulando o desconhecimento que ela manifesta sobre determinados aspectos da questão, parece haver uma capitulação sem resistência.

(...) Não. Ele não quer usar [preservativo]. Nunca pedi não, mas ele não quer mesmo. Ele diz que não precisa, que não anda na rua com outra mulher. Não [risos]. Nunca usei. Acho que meu marido não anda na rua. (...) já ouvi falar que camisinha dá inflamação. Eu nunca usei e ai quem já tem [inflamação], faz é aumentar mais. Ele [marido] disse que dá inflamação e dá outros tipos de coisa mais. Sendo assim eu não vou usar não (...)

Essa aceitação, em determinados casos, se dá como um crédito de confiança, ficando o parceiro intimado a honrá-lo sob ameaça de retaliações.

(...) Eu digo pra ele: olha se tu tiver alguém, tu se previne por aí, porque se alguma coisa acontecer aqui em casa, eu pegar uma doença qualquer, eu te mato. Eu sou fiel, né?; eu tenho minha consciência limpa. Agora se de repente (...) ele me enche de doença dentro da minha casa, a vontade é de matar um ordinário desse. Porque dentro de casa não falta nada [risos], aí de repente a gente descobre que tá doente. Eu faço uma besteira. Eu não uso porque ele não gosta. Ele diz que não se sente bem, eu acho que ele não sente prazer [risos] usando aquele negócio ali [risos] (...)

Em outros casos, a mulher reforça seu poder de argumentação com alguns artifícios, como é o caso do risco de uma gravidez indesejada, totalmente improvável pelo fato de estar usando secretamente a medicação anticoncepcional.

(...) Eu digo que não tomo remédio, porque se eu disser que tomo, ele não vai usar. Tá entendendo? Porque se eu disser ele vai achar que não tem necessidade de usar e eu acho que tem sim. Sempre [uso do preservativo] em toda relação (...)

O desejo do macho também é manipulado em determinadas situações como é o caso do período de namoro, normalmente cercado por um clima de romantismo e marcado por uma maior mobilização do homem para a conquista da parceira.

(...) Eu converso assim com o meu namorado porque na hora de fazer [sexo] eu sempre falo na camisinha. Ele diz que não, mas eu insisto e ele, como namorado apaixonado (...) [cede]. Nossa, eu tenho medo demais. Eu acho sexo uma coisa tão séria, tão séria. Bom demais, mas séria (...)

Outros depoimentos demonstram o poder assumido pela mulher nesse confronto, insistindo na argumentação, endurecendo na negociação ou simplesmente impondo a sua vontade.

(...) Ele é por fora destes assuntos, mas às vezes eu dou um empurrãozinho pra ele usar. Ele bota banca, mas aí tem que ser no empurrão (...)

(...) A gente conversa, né? Porque a gente não vai querer fazer sem se prevenir. Aí a gente tem que falar que tem de usar mesmo. Ele não bota banca não; ele usa também. A gente tem de ajudar a gente mesmo (...)

(...) Nós conversa, nós briga. Eu uso, sempre uso. Eu tenho medo (...) da gravidez (...)

Apesar de o posicionamento das mulheres parecer, na maioria das entrevistas, muito claro, em favor do uso do preservativo, nada permite supor que haja adesão unânime e sem reservas da parte delas.

(...) Eu uso, mas não vou mentir, eu não me sinto à vontade. Não é gostar, é uma coisa assim que eu (...) Mas deveria ser um material assim mais (...) Não sei nem como dizer. Tem gente que diz que dá inflamação. Eu ainda não usei foi a feminina (...)

Como se percebe, parte das críticas resulta de noções errôneas acerca do preservativo, passíveis de serem desmistificadas por informações corretas. Outras, no entanto, requerem uma discussão acerca das possibilidades de ressignificação do objeto, segundo Arilha (1998), de modo a superar suas conotações negativas.

Convém destacar alguns raros casos em que o homem foi citado como protagonista, na tomada de iniciativa de prevenção:

(...) Nós dois (nos mobilizamos para usar o preservativo). Ele mais. O principal é ele. Mas acho que tem que ser a mulher, que os homem não quer. Tem homem que não quer (...)

Contudo, o grau de interesse dos homens em tomar a iniciativa do diálogo ou, pelo menos, em aceitar mantê-lo quando levantado pela parceira, é diretamente proporcional ao seu grau de interesse no uso do preservativo. Essa conduta masculina mostra-se, em parte, motivada pelo papel, normalmente atribuído à mulher, de supervisionar as prescrições médicas e de gerenciar os cuidados de saúde no seio do grupo familiar. Deve-se, também, por outro lado, à sensação de confiança inspirada pelo comportamento quase sempre monogâmico da parceira, quando inserida em uma relação estável, condição que atende às expectativas do grupo social no qual está inserida.

(...) ele disse que não vai usar camisinha de jeito nenhum porque a mulher que ele usa dentro de casa é eu, sabe que eu não sou doente nem ele também é; que ele não anda com mulher de rua porque ele sabe que as da rua nenhuma são sadia (...)

Desse modo, cabem, na maioria das vezes, à mulher as iniciativas de mobilização para a prevenção. A pergunta feita sobre quem se mobiliza para a obtenção do preservativo teve respostas como as que seguem:

(...) Eu, geralmente é eu. Ele aceita normal, mas se for deixar por ele é difícil. (...)

(...) Eu, sou eu. Porque sabe como é homem né? (...) Eu acho que deveria ser os dois, mas no meu caso sempre sou eu. Mas eu acho que deveria ser os dois (...)

(...) às vezes pega a gente desprevenido. Entendeu! Talvez, eu confio que ele pode ter e às vezes ele não tem [preservativo] e ele acha que eu vou levando, o preservativo. Eu acho que ele tá tendo [preservativo] com ele, que ele levou e às vezes ele não levou e ele acha que eu levei. Então encontra os dois sem preservativo e acontece. Por isso é que acontece às vezes sem o preservativo. Poucas vezes que acontece sem o preservativo. Ai rola porque nenhum dos dois tem preservativo (...)

Embora achando que as iniciativas deveriam partir dos dois, as mulheres aceitam essa tarefa de prover os meios de prevenção como mais uma atividade inerente a seu papel. Ainda mais por se perceberem o lado mais vulnerável da relação.

(...) Eu, porque eu quero me prevenir de pegar Aids (...) Tem que ser é os dois. Os dois têm que decidir (...)

(...) Eu acho que é a mulher [é quem deve tomar a iniciativa]. Você sabe que o homem é mais (...) o macho, pra ele não tá nem aí. (...) Tem que se prevenir tem que ficar cobrando mesmo. Se não tiver cobrando, ele nem liga (...)

(...) Eu acho que é ela. A mulher é mais comportada e o homem é mais danado. Porque ele é difícil. Agora a mulher tem que dizer que tem [que] usar a camisinha. A mulher é mais cuidadosa. O homem não tá nem aí se ele pega doença de ninguém não. Ele quer saber de tá transando com ela e trazendo [doença] pra dentro de casa, pra esposa (...)"

Essa maior vulnerabilidade é vista por elas como inerente à sua dinâmica de vida e de trabalho, como mulheres, com sua presença sendo exigida no lar, dando conta dos afazeres domésticos e do cuidado com as crianças. Uma realidade em que as oportunidades de prazer são muito mais facultadas ao homem.

(...) Nós, mulher, precisamo muito mais de ter mais cuidado, porque nós, nós somos dona de casa, nós não temo tempo de sair pra farriar e tudo. E o homem não, o homem tem tempo pra tudo, pro seu trabalho, tomar uma cervejinha, arranjar um rabo de saia por aí e sair. Então a gente não sabe o que ele tá fazendo lá fora e nós que tamo dentro de casa, nós temo que ficar mais atenta sobre isso, né? (...)"

O quadro que projetam para o futuro, no caso de contraírem a doença, de abandono, uma vez que do homem não esperam o papel de cuidador, seja em relação a elas, seja em relação a ele próprio e aos filhos, privados da presença materna. Seu papel de sustentáculo do lar parece sobrepor-se a seu interesse pessoal na manutenção da própria vida.

(...) Eu acho que a mulher [quem deve assumir as iniciativas]. Porque se ele pega uma doença e vem e passa pra ela, quem vai sofrer ela e não ele. Eu mesma procurei pegar nos posto, (...) e às vezes quando não dava pra receber, eu compro, ele compra, e assim. (...) se eu pego uma doença dessa eu vou me prejudicar mais, vou ficar mais doente, vou ficar mais preocupada, e o homem não. E mesmo filho sem mãe pior do que sem pai (...)

(...) A mulher tem que se prevenir contra as doenças, se ele pega lá aí vem querer usar né?, bem que ela [companheira de grupo focal] falou aí também, né. A mulher tem que se prevenir, tem que ir à luta, porque senão quem vai sofrer mais é ela, mais que o homem. O homem pode sofrer, mas não do tanto quanto a mulher sofre. (...) A mulher é que cuida da casa, a mulher que faz as coisas pro homem. Tem homem que não faz nada pra mulher. Tem homem que não tá nem aí pra mulher, aí a mulher vai se acabar mais primeiro do que o homem. A mulher morre e o homem fica aí pras outras (...)

A Autopercepção acerca da Vulnerabilidade

A confiança no próprio comportamento sexual monogâmico é uma justificativa apresentada por algumas mulheres para a sua autopercepção de baixa vulnerabilidade. Desta forma, indagadas sobre a probabilidade de serem infectadas, algumas delas responderam:

(...) Acho que não. Porque eu tinha medo assim de pegar se eu fosse uma mulher que andasse com todos os homens, mas só a gente com o homem de dentro de casa não tem medo não (...)

(...) Olha, mais ou menos, no meu caso eu acho que não porque eu tenho um parceiro fixo e meu marido no caso não tem a doença, mas se tivesse outros parceiros, assim e acho que tinha que usar sempre porque sem a gente conhecer a pessoa tem que usar (...)

A confiança no comportamento sexual do parceiro também aparece nas respostas de outras entrevistadas, como motivo para que o uso do preservativo seja relativizado.

(...) eu acho que se ele não se previne [durante a relação sexual com ela], eu acho que tem consciência que tá com uma pessoa sadia né? (...). Talvez com alguém fora, ele pode se prevenir, mas comigo aqui, nós não se previne não, nós se confia um no outro, né? (...)

(...) Nem todas às vezes [usamos o preservativo], pelo fato dele confiar em mim e eu confiar nele. A gente tenta confiar, né? Eu confio nele e ele diz que confia em mim [risos]. Acho que [quando usamos é] pela doença [Aids], porque uma vez eu ouvi que filho dá trabalho e tudo, mas doença é morte (...)

Na maioria das respostas, no entanto, essa confiança se mostra abalada, pairando sempre uma suspeita sobre a possibilidade de que o parceiro mantenha secretamente relações paralelas, conduta justificada pela natureza do homem e pelo assédio de outras mulheres e aceita como natural.

(...) Quando eu pergunto pro meu ele diz que não tem outra mulher, mas eu não vou jogar minha mão no fogo não. Não acredito não (...)

Mesmo uma rotina que poderia indicar um comportamento monogâmico não retira a suspeição sobre o parceiro, visto ser o comportamento masculino social e culturalmente marcado como propenso à poligamia.

(...) Não tenha dúvida [de que é impossível confiar integralmente]. Do jeito que o tempo tá! Eu sou uma mãe de família, eu sei que eu não saio. Meu marido também não sai, ele é supercaseiro. Se sai, é com a gente, mas nunca se deve meter a mão no fogo, porque se a gente meter queima e aí a gente não sabe. A gente não anda 24 horas com o marido da gente. Não é só à noite não que pode fazer. Toda noite pode procurar que ele tá em casa (...) homem pode pular cerca qualquer hora. Então corre o risco, não tem pra onde não, dizer não, nunca vai acontecer isso comigo. Não tem essa não (...)

Naturalizado, o comportamento masculino não faz parte da agenda de discussão do casal nem aparece nas falas como elemento motivador de graves conflitos, sequer naquelas situações em que deixa de ser uma possibilidade e emerge como fato consumado. As mulheres parecem aceitá-lo como uma realidade inelutável e dirigem suas preocupações no sentido de prevenir os possíveis riscos decorrentes.

(...) Uma vez eu achei uma coisa na bolsa dele. Aí eu perguntei por que quando a gente ia ter alguma coisa [relação sexual] ele não queria usar e agora estava com aquele preservativo na bolsa. Ele aí ficou brigando, brigando e não explicou nada. Se me trai eu não quero nem saber por que é, eu só quero que use [o preservativo] pra não me trazer doença (...)

A alternância de períodos de exigência, pela mulher, do uso e do não-uso do preservativo, a depender do seu nível temporário de suspeita em relação ao comportamento sexual do parceiro, também fica evidenciada em alguns depoimentos.

(...) Se for naquele dia [em que o parceiro parece ter saído com outra] eu não quero ele de jeito nenhum; só se ele tiver camisinha (...)

Para algumas mulheres, a preocupação com o uso do preservativo passou a ocorrer após o fim do casamento.

(...) Quando eu tava casada nunca conversei sobre isso, não [risos] (...)

Para outras, ocorre a conduta inversa, havendo uso rigoroso do preservativo nos primeiros tempos da relação e um relaxamento após a sua consolidação.

(...) Eu passei dois anos usando camisinha. Foi dois anos de briga. Toda vez que a gente tinha uma coisa [relação sexual], ele não queria usar, aí eu brigava (...)

As Ações de Prevenção Desenvolvidas pelo Programa Saúde da Família

No decorrer da conversa, foram surgindo queixas acerca da necessidade de um trabalho educativo mais efetivo.

(...) Eu gostaria que ela [profissional de saúde] me explicasse alguma coisa, porque a gente está desinformada. Tinha que ter uma pessoa só pra explicar tudo pra gente, pra orientar (...)

(...) Acho que [o trabalho educativo da equipe de saúde da família] podia ser melhor. Ter uma participação maior nas comunidade mais carente. Essas pessoas sendo mais visitada. São poucas as pessoas que têm informação. Então eu acho que ainda falta assim muita (...) deveria ser melhor (...)

(...) a gente vai no posto de saúde, dificilmente vê o comentário. Eu acho que alguém da saúde, assim, a doutora das família e tudo, devia marcar reunião assim, ta entendendo? "Olha, hoje vai ter uma reunião em tal lugar com a Dra. Fulana, pra gente falar sobre esse pobrema"(...)

Com base nessas respostas, poder-se dizer que a concepção de integralidade, pensada em perspectiva horizontal, não estaria presente na assistência à saúde produzida pela equipe de saúde da família. Sob esse aspecto, torna-se claro, à medida que progride o andamento das entrevistas, que o assunto é tratado sistematicamente pela equipe da maternidade, ainda que pontualmente, no início do acompanhamento pré-natal, em meio às demais recomendações voltadas para esse momento da vida da mulher.

(...) A primeira vez que eu ouvi foi dos médicos. Teve palestra sobre a Aids, explicando pra gente. Eu tava grávida nesse tempo, quando ele chamou a gente pra palestra e pra explicar o que era HIV (...)

(...) Já teve [alguém] falando sobre a Aids. Justamente lá [na maternidade] tem essa palestra quando a mulher engravida. Aí, ela [a enfermeira] faz a palestra com as mulheres (...)

(...) Já assisti palestra na maternidade, quando eu tava grávida. Recebi um folhetinho. Sempre eu lia (...)

A realidade informada nas entrevistas aqui apresentadas mostra-se coerente com as considerações feitas por Lauretis (1994), para quem o programa dito de saúde da mulher está centrado na saúde reprodutiva, que prevê um acompanhamento sistemático, a partir do momento da gestação até o nascimento da criança, para a qual estão voltadas todas as preocupações. Um sistema de gênero que reconhece a mulher como reprodutora e dessexuada estaria fortemente presente na chamada assistência à saúde materno-infantil.

A realização de eventos de caráter esporádico em datas como o Dia Mundial de Luta contra a Aids e durante o Carnaval ou em situações emergenciais, como as aglomerações de famílias residindo em abrigos improvisados por ocasião de enchentes também aparece na fala das entrevistadas, bem como a necessidade de o trabalho educativo da unidade de saúde alcançar outros segmentos da população.

Vale lembrar a crítica sustentada por Scott (2005), sobre a formação biologizante dos profissionais de saúde, marcada por uma concepção medicalizante, centrada no crescimento e na deterioração dos corpos individuais. Santos (2006) enxerga esse fator como responsável pela definição de grupos a serem prioritariamente assistidos pela atenção básica, entre eles os menores de um ano e as gestantes.

Dessa forma, a força que o programa de atenção ao idoso parece demonstrar que responderia muito mais à ênfase dada às doenças crônicas, como hipertensão arterial e diabetes, do que a uma lógica programática orientada segundo os ciclos de vida. Estaria, assim, também explicada a dificuldade para a abordagem de temas que envolvem dinâmicas de relacionamento e manifestações da sexualidade e que requerem o alcance de outros perfis populacionais, necessários, como a mulher não-gestante e os adolescentes.

Algumas mulheres, por outro lado, entendem que o papel desempenhado pela equipe de saúde é suficiente e adequado.

(...) O trabalho deles é alertar, incentivar as pessoas a usar [o preservativo]. Eles têm um programa das mulheres receberem remédio [anticoncepcional] ou camisinha e os homens também. Eu acho que o básico estão fazendo (...)

(...) Quando eu ia receber o remédio [anticoncepcional] eu falava com ..... e ela me explicava que o preservativo não era só pra prevenir de menino; era também pra prevenir de pegar doença (...)

Para elas, é preciso tão-somente que as usuárias façam sua parte, o que nem sempre acontece.

(...) Eu acho que nós, mulheres e homens, também têm que se interessar de ir, insistir, têm que espalhar mais. Só que as mulheres é assim: uma vai, a maioria não. Tem que se interessar de ir, pra assistir, saber o que tá acontecendo (...)

(...) Eu não posso nem culpar o profissional de saúde não, porque o povo fica em casa, né, raramente participa. O pouquinho que ela [a agente de saúde] passa pela gente, ela diz: "Vão no posto, tá tendo distribuição de camisinha, tá tendo remédio". Assim ela tá divulgando, né? Agora, quem quiser que (...) A acomodação é que mata a pessoa (...)

Há nesses depoimentos a percepção de desinteresse por parte das mulheres com relação às práticas educativas ou, mais especificamente, às palestras. Como também transparece o entendimento de que o trabalho da unidade está completo, na medida em que atende à demanda passiva, não podendo se responsabilizar por aqueles que não a procuram.

Se for patente a presença da questão de gênero, a expressar-se sob diversas formas no cotidiano do atendimento da equipe às mulheres, é igualmente flagrante o fato de não ser abordada como questão a ser trabalhada no sentido de reduzir a vulnerabilidade das mulheres às doenças e aos agravos, o que é creditado por Scott (2005) à naturalização de uma questão que, na verdade, constitui uma construção social, exterior ao indivíduo e, portanto, independente de sua particular vontade.

Assim, tanto os profissionais de saúde como suas clientes parecem não levar em conta que a prevenção não depende dos conhecimentos e atitudes dos homens ou das mulheres, mas da forma como vivenciam a relação de gênero.

Conforme já foi assinalado, o trabalho de prevenção ao HIV/Aids restringe-se a uma orientação feita na primeira consulta de pré-natal, à solicitação do exame sorológico quando há possibilidade de contato suspeito, à afixação de cartazes e entrega de folder e à distribuição de preservativos. A justificativa para a não-realização de atividades envolvendo grupos é a falta de espaços para reuni-los e a pouca adesão da população a essas atividades. Quando necessário, em ocasiões de campanhas ou quando há solicitação de outras instituições, como a Defesa Civil em casos de calamidades públicas, a ESF está pronta para atuar.

No atendimento individual às mulheres, parece ainda predominar a noção de comportamento de risco, que faz com que a mulher solteira que declara manter vida sexual ativa e cujo parceiro seja suspeito de ser soropositivo torne-se o alvo das orientações e da solicitação do sorodiagnóstico, enquanto as casadas ficam dispensadas desses cuidados.

Não se verifica, nas consultas de pré-natal, nas consultas ginecológicas, ou na clínica médica, a abordagem de temas como sexualidade e relação de gênero, sendo claro o posicionamento dos profissionais de saúde, que evitam discutir essas questões quando aludidas pela usuária; quando o fazem apenas contrapõem a prescrição sanitária adequada à situação, eximindo-se de discutir o assunto e de achar meios de tentar solucioná-lo juntamente com a usuária.

Conclusão

Verifica-se que a grande maioria das mulheres não utiliza o preservativo durante as relações sexuais; e a confiança, ainda que relativa, na relação estável com o parceiro, é a justificativa que elas apresentam para se considerarem com baixa vulnerabilidade. Entre aquelas que utilizam, são raras as que o fazem de modo contínuo, prevalecendo o uso intermitente, como recurso diante dos efeitos colaterais do anticoncepcional oral ou no período inicial de um relacionamento.

Fica evidente que o grau de vulnerabilidade dessas mulheres é elevado e que as relações de gênero têm uma decisiva influência nessa realidade. A necessidade de um trabalho educativo, que incorpore a discussão sobre o assunto, extensivo não apenas às mulheres, mas a seus parceiros, mostra-se de fundamental importância no sentido de contribuir para a mudança do quadro.

O diálogo sobre a necessidade de uso do preservativo é quase sempre uma iniciativa da mulher, obstaculado pela maioria dos homens, seja mediante o emprego da tática de levantar suspeição sobre a fidelidade da mulher, seja pela estigmatização dos atributos do preservativo apresentado como causador de doenças ginecológicas. Entre as mulheres que não cedem a esses expedientes estão aquelas que enfrentam de modo frontal essa resistência, recusando-se a manter relações sexuais sem a utilização dessa proteção. A maioria, no entanto, vale-se de certos artifícios, alegando a necessidade de prevenir uma gravidez indesejada.

As ações de saúde da mulher desenvolvidas pela ESF concentram-se no acompanhamento de pré-natal e nos exames periódicos de colpocitologia, não havendo a abordagem de questões como relação de gênero e sexualidade. Essas temáticas também não são discutidas com os demais segmentos da clientela, como os adolescentes e os homens adultos.

Parte das mulheres entrevistadas ressente-se da ausência de um trabalho educativo contínuo e esclarecedor, capaz de remover as dúvidas que persistem após as rápidas orientações recebidas durante o atendimento individual ou após o contato com a comunicação veiculada pela mídia ou lida nos impressos distribuídos nas unidades de saúde. Outra parcela, no entanto, entende ser esse o funcionamento normal de uma unidade de saúde, parecendo assimilar o modelo de assistência voltado para o atendimento individual da demanda espontânea, fornecendo os meios de prevenção, no caso, o preservativo.

A naturalização das relações de gênero existentes e que contribuem para o aumento da vulnerabilidade à Aids é uma postura expressa pelas mulheres, mas aceita pela ESF, que não desenvolve nenhuma ação efetiva para discuti-las e empoderar as mulheres no sentido de revertê-las.

Recebido em: 27/03/2007

Reapresentado em: 05/08/2007

Aprovado em: 20/08/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Aceito
    20 Ago 2007
  • Revisado
    05 Ago 2007
  • Recebido
    27 Mar 2007
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