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Políticas de saúde materna no Brasil: os nexos com indicadores de saúde materno-infantil

Maternal health policies in Brazil: relations to maternal and child health indicators

Resumos

Desde o início do processo de medicalização diversos esforços ocorreram para a perpetuação da força de trabalho. Uma das medidas para o exercício do controle estatal foi a institucionalização do parto. Com isso, o entendimento sobre os processos fisiológicos e patológicos referentes à gestante, ao parto e ao recém-nascido avançou nos campos científico e tecnológico, permitindo a intervenção médica para melhoria das condições de saúde materno-infantil. O presente estudo se propõe a identificar as principais legislações que fundamentaram a formulação e a execução de políticas públicas para a saúde materno-infantil no Brasil, a partir da década de 1980, além de estabelecer as relações dessas políticas com indicadores de mortalidade materna e neonatal, no período de 1996 a 2005. Uma pesquisa documental foi realizada para identificar as principais legislações aprovadas e políticas implementadas pelo Ministério da Saúde relacionadas à saúde materno-infantil; enquanto os dados referentes aos indicadores de saúde foram coletados nas bases de dados do SINASC e SIM e disponibilizados on-line. Concluiu-se que as políticas públicas geradas no seio da sociedade pelos movimentos sociais na década de 1980, apesar de seus limites, culminaram na consolidação de diversas leis e programas de saúde voltados à atenção materno-infantil e estas tiveram papel importante na organização dos sistemas e serviços de saúde, de modo a refletir na melhoria dos indicadores de mortalidade neonatal nos anos 1990 e 2000. Entretanto, a persistência dos elevados índices de mortalidade materna leva ao questionamento inevitável de que as políticas de gênero não têm conseguido êxito tão significativo.

Políticas públicas de saúde; Programas nacionais de saúde; Serviços de Saúde Materno-Infantil


Since the beginning of the medicalization process, there has been a huge effort towards the maintenance of the working force. One of the measures taken to control the work forces was the institutionalization of delivery. With this, knowledge concerning the physiological and pathological processes of the pregnant woman and of the newborn evolved so much that it allowed medical intervention focusing on the improvement of maternal and child health. The present study aims to identify the main laws and regulations, dating from 1980 onwards, which act as the basis to the creation and execution of public health policies towards pregnant women and newborns in Brazil. It also proposes to discuss the relation between these policies and maternal and child mortality from 1996 to 2005. A documental research was performed to identify the main laws and policies implemented by the Health Ministry regarding Maternal and Child Health. Information on health indicators was extracted from SIM and SINASC databases, available on-line. It is possible to conclude that the policies generated in society by social movements in the 1980s ended up consolidating many laws and health policies aiming at maternal and child health These had an important role in the organization of health services and systems, improving neonatal mortality indicators in the 1990s. However, the persistence of high maternal mortality rates brings the inevitable question: why have the female gender policies not been so successful in the last years?

Public Health Policy; National Health Programs; Maternal and Child Health Services


ARTIGOS TEMÁTICOS

GÊNERO, CORPO E CONHECIMENTO

Políticas de saúde materna no Brasil: os nexos com indicadores de saúde materno-infantil

Maternal health policies in Brazil: relations to maternal and child health indicators

Edson Theodoro dos Santos NetoI; Kelly Cristina Gomes AlvesII; Martha ZorzalIII; Rita de Cássia Duarte LimaIV

IDoutorando em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca - FIOCRUZ. Endereço: Rua Guilherme Bassine, 286, São Pedro I, CEP 29030-720, Vitória, ES, Brasil. E-mail: edson.neto@bol.com.br

IIMestre em Saúde Coletiva. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço: Centro de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - UFES, Av. Marechal Campos, 1468, Maruípe, CEP 29040-090, Vitória, ES, Brasil. E-mail: kellygomesalves@gmail.com

IIIProfessora-Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço: Centro de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - UFES, Av. Marechal Campos, 1468, Maruípe, CEP 29040-090, Vitória, ES, Brasil. E-mail: mazorzal@uol.com.br

IVProfessora-Adjunta do Departamento de Enfermagem. Professora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço: Centro de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - UFES, Av. Marechal Campos, 1468, Maruípe, CEP 29040-090, Vitória, ES, Brasil. E-mail: ritacdl@uol.com.br

RESUMO

Desde o início do processo de medicalização diversos esforços ocorreram para a perpetuação da força de trabalho. Uma das medidas para o exercício do controle estatal foi a institucionalização do parto. Com isso, o entendimento sobre os processos fisiológicos e patológicos referentes à gestante, ao parto e ao recém-nascido avançou nos campos científico e tecnológico, permitindo a intervenção médica para melhoria das condições de saúde materno-infantil. O presente estudo se propõe a identificar as principais legislações que fundamentaram a formulação e a execução de políticas públicas para a saúde materno-infantil no Brasil, a partir da década de 1980, além de estabelecer as relações dessas políticas com indicadores de mortalidade materna e neonatal, no período de 1996 a 2005. Uma pesquisa documental foi realizada para identificar as principais legislações aprovadas e políticas implementadas pelo Ministério da Saúde relacionadas à saúde materno-infantil; enquanto os dados referentes aos indicadores de saúde foram coletados nas bases de dados do SINASC e SIM e disponibilizados on-line. Concluiu-se que as políticas públicas geradas no seio da sociedade pelos movimentos sociais na década de 1980, apesar de seus limites, culminaram na consolidação de diversas leis e programas de saúde voltados à atenção materno-infantil e estas tiveram papel importante na organização dos sistemas e serviços de saúde, de modo a refletir na melhoria dos indicadores de mortalidade neonatal nos anos 1990 e 2000. Entretanto, a persistência dos elevados índices de mortalidade materna leva ao questionamento inevitável de que as políticas de gênero não têm conseguido êxito tão significativo.

Palavras-chave: Políticas públicas de saúde; Programas nacionais de saúde; Serviços de Saúde Materno-Infantil.

ABSTRACT

Since the beginning of the medicalization process, there has been a huge effort towards the maintenance of the working force. One of the measures taken to control the work forces was the institutionalization of delivery. With this, knowledge concerning the physiological and pathological processes of the pregnant woman and of the newborn evolved so much that it allowed medical intervention focusing on the improvement of maternal and child health. The present study aims to identify the main laws and regulations, dating from 1980 onwards, which act as the basis to the creation and execution of public health policies towards pregnant women and newborns in Brazil. It also proposes to discuss the relation between these policies and maternal and child mortality from 1996 to 2005. A documental research was performed to identify the main laws and policies implemented by the Health Ministry regarding Maternal and Child Health. Information on health indicators was extracted from SIM and SINASC databases, available on-line. It is possible to conclude that the policies generated in society by social movements in the 1980s ended up consolidating many laws and health policies aiming at maternal and child health These had an important role in the organization of health services and systems, improving neonatal mortality indicators in the 1990s. However, the persistence of high maternal mortality rates brings the inevitable question: why have the female gender policies not been so successful in the last years?

Keywords: Public Health Policy; National Health Programs; Maternal and Child Health Services.

Introdução

Desde o período das grandes transformações políticas, sociais e econômicas ocorridas na Europa no século XVIII, com o estabelecimento de novas relações de poder entre o estado e sociedade e o nascimento da medicina social, começaram a surgir as primeiras políticas voltadas fundamentalmente para o controle social, privilegiando a higiene, a infância e a medicalização da família. Segundo Foucault (1984), o principal objetivo das primeiras políticas de saúde consistia em produzir um melhor número de crianças, com boas condições de vida, sob a imposição de um conjunto de obrigações tanto aos pais quanto aos filhos. Isso porque para o estabelecimento dessas novas relações, o capitalismo burguês, baseado na razão, na tecnologia e na produtividade, necessitava reformular o modo de entender os indivíduos, transformando a visão de corpo individual para corpo social produtivo, que deve ser protegido e cuidado de modo quase médico-biológico sob controle e vigilância do estado.

A partir do início do processo de medicalização, os esforços do estado para a perpetuação da força de trabalho, capaz de acelerar a engrenagem do capitalismo, tornaram-se cada vez mais abrangentes. Uma das medidas implementadas para o exercício do controle estatal foi a institucionalização do parto, constituindo-se numa das tentativas de se controlar e monitorar o desenvolvimento da população. Desde então, o entendimento sobre os processos fisiológicos e patológicos referentes à gestante, ao parto e ao recém-nascido avançaram pelo desenvolvimento científico e tecnológico, permitindo a intervenção médica para melhoria das condições de saúde materno-infantil.

No cenário brasileiro, a preocupação estatal com a saúde materno-infantil remonta aos anos de 1940, com a criação do Departamento Nacional da Criança, que enfatizava não só cuidados com as crianças, mas também com as mães, no que se referia à gravidez e amamentação. Essa preocupação estatal passa por um longo período, do Estado Novo até o Regime Militar, em que o objetivo fundamental do estado brasileiro era o de produzir braços fortes para a nação com ações voltadas para as camadas urbanas mais pobres (Nagahama e Santiago, 2005).

Com o advento da ditadura militar, na década de 1960, o modelo do Sistema Nacional de Saúde implantado caracterizou-se pelo predomínio financeiro das instituições previdenciárias e pela hegemonia de uma tecno-burocracia, cuja lógica estava centrada na mercantilização da saúde, o que teve impactos deletérios na formulação e execução de saúde pública e na medicina previdenciária.

Almeida (2005) aponta que nesse período, embora com o crescimento e a expansão da previdência social e do discurso oficial sobre os "benefícios" do milagre econômico, no bojo da população, em particular os habitantes nas regiões metropolitanas, o que se constatava era uma grande massa de excluídos, submetidos a políticas concentradoras de renda, péssimas condições de vida e crescente massa de desempregados sem acesso à maioria dos equipamentos públicos. Essa situação resultou na piora do quadro sanitário, decorrente principalmente da ausência do Estado para prover o acesso a bens públicos como educação, moradia e saúde.

Com a tomada do poder pelo militarismo, o modelo de atenção à saúde torna-se médico assistencial privatista. A partir de meados da década de 1970, alguns programas verticais de atenção à saúde materno-infantil são implementados, a saber, o Programa de Saúde Materno-Infantil (Brasil, 1975) e o Programa de Prevenção à Gravidez de Alto Risco (Brasil, 1978). Como adverte Almeida (2005), nessa fase as políticas voltadas para a saúde reprodutiva foram predominantemente direcionadas para o excesso da "intervenção médica sobre o corpo feminino", em particular por meio do uso e abuso da cesariana como forma de parir e a esterilização como método contraceptivo preferencial.

Nesse contexto, pode-se destacar que as transformações no cenário brasileiro da época estavam embutidas pelas ações que caracterizaram o início do processo de redemocratização e do fortalecimento dos movimentos sociais contrários ao regime ditatorial e às políticas por ele implementadas. Esses movimentos foram fundamentais para se compreender as principais conquistas do início da década de 1980, no que tange às políticas de saúde materno-infantil.

A partir disso, a regulamentação legal dos direitos à proteção começa a surgir não baseada apenas no interesse unilateral do estado brasileiro, mas impulsionada por forte pressão popular que culminará na aprovação de leis e políticas públicas que permeiam a década de 1980, intensificam-se em toda a década de 1990 e estendem-se até os anos 2000, pela formulação e execução de programas e estratégias de saúde pública voltadas à atenção materno-infantil. Contudo, cabe refletir se tais políticas continuam reproduzindo a ideologia de priorização à saúde da criança do século XVIII ou se, na prática, os indicadores de saúde refletem a melhoria na atenção à saúde tanto da mulher-mãe quanto da criança.

Proposta de Estudo

A proposição do estudo é identificar as principais legislações que fundamentaram a formulação e a execução de políticas públicas para a saúde materno-infantil no Brasil, a partir da década de 1980, e estabelecer as relações dessas políticas com indicadores de mortalidade materna e neonatal no período de 1996 a 2005.

Para alcançar tais objetivos foi realizada uma pesquisa documental nos endereços eletrônicos do Governo Federal Brasileiro, que permitiram o acesso e seleção das legislações aprovadas e das políticas implementadas pelo Ministério da Saúde relacionadas à saúde materno-infantil, a partir da década de 1980. Os dados referentes aos indicadores de saúde foram coletados nas bases de dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), disponibilizados on-line pelo Ministério da Saúde (MS) no site http://www.datasus.gov.br, em março de 2007. O tratamento estatístico dos dados foi realizado no Sistema Operacional Windows XP Professional pelo programa Microsoft Office Excel 2003. O método de análise utilizado foi quantitativo por análise do conteúdo das tabelas, geradas automaticamente com agrupamento dos dados, cálculo dos indicadores e construção de gráficos.

Identificação e Contextualização dos Aspectos Legais e Políticas de Proteção à Saúde Materno-Infantil

O final dos anos 1970 se notabilizou pela articulação dos movimentos sociais (de moradia, da saúde, dos médicos, das mulheres etc.), na luta pela redemocratização do país e, conseqüentemente, pela melhoria das condições de vida da sociedade brasileira. Dentre esses movimentos, destacou-se o da reforma sanitária, tendo como principal bandeira o direito à saúde como um direito de cidadania de toda a população.

Com essas premissas os movimentos se articularam no sentido de aglutinar diferentes demandas reprimidas pela ditadura na sua relação com a sociedade, constituindo-se em cenário fértil para unir forças nos movimentos sociais. No que diz respeito ao movimento das mulheres, Almeida (2005) afirma que essa foi uma oportunidade de reivindicação para maior autonomia da mulher e por justiça social em várias das dimensões da vida cotidiana.

Nesse processo, o Movimento Feminista brasileiro contribuiu significativamente na construção do novo modelo político, uma vez que se organizava em torno de denúncias acerca das desigualdades sociais e de gênero. Essas denúncias reportavam desde problemas mais gerais, como falta de água, saneamento básico, escolas e creches e postos de saúde, a problemas mais específicos do gênero feminino, como o direito à creche, saúde da mulher, sexualidade, contracepção e violência contra a mulher (Farah, 2004). Essas reivindicações culminaram nas primeiras políticas de apoio e humanização à saúde materno-infantil.

As mulheres organizadas argumentavam que as desigualdades nas relações sociais entre homens e mulheres se traduziam também em problemas de saúde que afetavam particularmente a população feminina. Por isso, fazia-se necessário criticá-los, buscando identificar e propor processos políticos que promovessem mudanças na sociedade e conseqüentemente na qualidade de vida da população (Brasil, 2004b, p. 16).

Segundo Oliveira e Rocha (2001), nos programas de saúde da mulher e do adolescente, as questões sobre saúde reprodutiva se estreitam, concentrando preocupações com concepção, anticoncepção, aborto, parto, mortalidade materna, prevenção do câncer do colo uterino, doenças sexualmente transmissíveis (DST), síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) e, inclusive, mortalidade infantil, tornando a luta por direitos reprodutivos símbolo de um fortalecimento da emancipação da mulher. Ainda, saindo da academia e dos movimentos feministas, as discussões sobre gênero e saúde sexual e reprodutiva foram legitimadas e passaram a fazer parte da agenda política.

No início dos anos 1980, a regulamentação sobre o alojamento conjunto, pela Portaria 18 do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) do Ministério da Saúde (MS), estabeleceu a obrigatoriedade do alojamento conjunto em sua rede assistencial. Na medida em que proporcionava maior contato entre a mãe e o recém-nascido para o incentivo ao aleitamento materno, também apontava o início de uma série de transformações no campo assistencial da saúde. Embora fosse ainda restrita a abrangência populacional dessa medida, nascia nesse momento a percepção sobre a necessidade de amparo legal como premissa inicial para efetivação de práticas humanizadas no parto e puerpério.

Em 1983, uma das maiores conquistas do movimento feminista é a formulação, pelo MS, do Programa de Ação Integral à Saúde da Mulher (PAISM), sendo um programa inédito até então, não voltado apenas ao binômio mãe-filho, mas à atenção à saúde da mulher em sua totalidade. O PAISM nasce no processo de discussão do movimento sanitário, fundamentado na necessidade de reestruturação do Sistema Nacional de Saúde, tendo como prioridade a atenção primária e a integralidade da atenção à saúde (Brasil, 1983). Nesse sentido, a proposta do PAISM considerava a necessidade de articulação das ações de pré-natal, assistência ao parto e puerpério, além da prevenção ao câncer e doenças sexualmente transmissíveis, assistência ao adolescente, a menopausa e a anticoncepção (Almeida, 2005).

No âmbito das relações de mercado, o grande marco de amparo à saúde da mulher e da criança é a Constituição de 1988, mesmo já tendo alguns direitos adquiridos há anos na Consolidação das Leis do Trabalho, tais como: a garantia de proteção e conforto das mulheres no ambiente de trabalho e o direito à creche e a pausas para amamentar no ambiente de trabalho - Consolidação das Leis do Trabalho: Art. 389: § I, II; Art. 396: parágrafo único- (Brasil, 1943). Na Constituição Federal de 1988 diversos artigos fundamentam e constituem a base dos direitos reprodutivos. Dentre eles, destacam-se: o direito das presidiárias de permanecerem com seus filhos durante o período de amamentação; a proteção à maternidade e à infância; a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; a licença-paternidade, nos termos fixados em lei; a assistência gratuita aos filhos e dependentes, desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas; a proteção especialmente à gestante; e ao planejamento familiar - Constituição Federal de 1988: Art. 5: L; Art. 6; Artigo 7: XVIII, XIX, XXV; Art. 196: II; Art. 226: § 7 - (Brasil, 1988). Por um lado, impede qualquer forma de discriminação à mulher trabalhadora e, por outro, ampara e garante a independência financeira da mulher no momento reprodutivo e provê o mecanismo básico de sobrevivência da mãe e do recém-nascido, a renda. É válido salientar também que a garantia dos direitos sociais e reprodutivos constados na legislação brasileira rompe, no âmbito legal, com concepções acerca do papel exclusivamente reprodutor da mulher, ampliando o entendimento sobre a cidadania feminina.

Somando esforços pela construção de uma nova agenda de discussão acerca da saúde no Brasil, o Movimento de Reforma Sanitária coadunou forças originárias de outros movimentos, não ligados diretamente à questão da saúde, para incorporar um novo modo de entender a saúde coletiva como um conceito ampliado, propondo a inclusão do direito à saúde como direito de cidadania e o direito de acesso aos serviços de saúde como benefício social (Costa, 1988). Pela forte mobilização social, em 1986 retoma-se a 8ª. Conferência Nacional de Saúde envolvendo não apenas a tecno-burocracia, mas uma ampla participação dos setores sociais, os quais fundamentaram o ideário de um sistema único de saúde público, descentralizado, universal, integral, equânime e dependente da participação social. Todos esses princípios fundamentaram a carta magna na Constituinte de 1988, em que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado definitivamente (Andrade e col., 2001). Nesse momento, ocorria o principal entrelaçamento da rede de proteção e assistência à mulher e à criança que nos anos consecutivos se intensificou.

A partir da década de 1990, com a aprovação das leis orgânicas da saúde n°. 8.080 e n°. 8.142, torna-se visível a forma como o SUS seria operacionalizado, por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde embasadas na participação e controle social. (Carvalho e Santos, 2006). O final da década de 1980 era apenas o início de uma série de mudanças significativas que ocorreriam na reorientação do modelo assistencial médico-privatista vigente. Por isso, as ações de saúde permaneciam ainda incipientes devido à lógica de financiamento do sistema voltada apenas à produtividade dos serviços.

Em 1990, a aprovação do estatuto da criança e do adolescente também previa tanto a atenção à gestante quanto ao recém-nascido no sistema público de saúde. Pretendia assegurar à gestante, através do SUS, o atendimento antes e após o parto, proporcionar condições adequadas ao aleitamento materno, aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade e manter alojamento conjunto possibilitando ao neonato a permanência junto à mãe - Estatuto da criança e do adolescente: Art. 8; 9; 10 - (Brasil, 1990). Seqüencialmente, corroborando para a humanização do atendimento materno-infantil, o MS lança, em 1992, a portaria GM/MS n°. 1016, tornando obrigatória a implantação do alojamento conjunto durante todo o período de internação da gestante e do recém-nascido em todos os hospitais vinculados ao SUS. Ainda no âmbito da assistência, em 1994 o MS lança a iniciativa de Hospitais Amigos da Criança por meio de duas portarias: uma assegurando pagamento de 10% a mais sobre assistência ao parto a Hospitais Amigos da Criança vinculados ao SUS, e outra estabelecendo os critérios para o credenciamento dos hospitais como Amigos da Criança (Brasil, 1994).

Na década de 1990, com base na legislação de saúde vigente, o estado brasileiro, no intuito de pôr em prática as regulamentações legais de promoção da saúde e controle social, projeta a execução de diversos programas e estratégias direcionados especificamente aos cuidados materno-infantis. Na tentativa de reduzir as altas taxas de mortalidade infantil, especialmente na região nordeste do país, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) foi implantado, inicialmente no Estado do Ceará, em 1991. Já em 1994, na tentativa de reorganização do modelo assistencial de saúde, iniciam-se as ações do Programa de Saúde da Família (PSF), tendo como objeto de atenção a família, o que não era realçado pelo PACS (Oliveira e Rocha, 2001).

Com a implantação das Normas Operacionais Básicas (NOB), em especial das NOB-SUS 93 e 96, iniciou-se um importante processo de descentralização do acesso à atenção básica com a ampliação das responsabilidades dos municípios ao definir o processo de regionalização da assistência (Brasil, 1996). Nesse sentido, a municipalização da gestão do SUS vem se estruturando num espaço privilegiado de reorganização das ações e dos serviços básicos, fortalecido pelo Programa Saúde da Família (PSF), que é o eixo estruturante para a organização e qualidade da atenção à saúde, onde as questões voltadas à saúde da mulher se integram ao SUS e, seguindo suas diretrizes, não mais de maneira centralizada e verticalizada como no passado (Brasil, 2002, 2004a). Contudo, ao mesmo tempo em que os programas e estratégias são formulados e executados, os avanços ultrapassam os anos 1990 e chegam aos anos 2000, reforçando ainda mais os nós do entrelaçamento político-legal dessa rede de proteção à saúde materno-infantil.

O Programa Nacional de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PNHPN) foi criado e implantado através da Portaria nº 569 de 1/6/2000 (Brasil, 2000), com o objetivo primordial de reduzir as altas taxas de mobi-mortalidade materna, perinatal e neonatal no país. Baseia-se no direito inalienável da cidadania, portanto, direito ao acesso, por parte das gestantes e dos recém-nascidos, à assistência à saúde nos períodos pré-natal, parto, puerpério e neonatal, tanto na gestação de baixo como de alto risco, através da organização adequada dos serviços de saúde, assegurando a integralidade da assistência e com investimentos e custeios necessários. (Brasil, 2005)

A principal estratégia do PNHPN é fazer com que a assistência prestada à gestante e ao recém-nascido (RN) seja com qualidade e humanizada. Para tanto, é necessário concentrar esforços nos três níveis de gestão: federal, estadual e municipal, em sua operacionalização.

As principais linhas de ação do programa são:

1. realizar a primeira consulta de pré-natal até o 4°. mês de gestação;

2. garantir a realização dos seguintes procedimentos:

a. no mínimo seis consultas de pré-natal, sendo, preferencialmente, uma no primeiro trimestre, duas no segundo trimestre e três no terceiro trimestre da gestação;

b. uma consulta no puerpério, até quarenta e dois dias após o nascimento;

c. exames laboratoriais: tipagem sangüínea e fator Rh na primeira consulta; VDRL: um exame na primeira consulta e outro próximo à trigésima semana da gestação; urina rotina: um exame na primeira consulta e outro próximo à trigésima semana da gestação; glicemia de jejum: um exame na primeira consulta e outro próximo à trigésima semana da gestação; hemoglobina/hematócrito na primeira consulta;

d. oferta de testagem anti-HIV, com um exame na primeira consulta nos municípios com população acima de cinqüenta mil habitantes;

e. aplicação de vacina antitetânica até a dose imunizante (segunda) do esquema recomendado ou dose de reforço em mulheres já imunizadas;

f. atividades educativas;

g. classificação de risco gestacional a ser realizada na primeira consulta e nas consultas subseqüentes;

h. atendimento às gestantes classificadas como de risco, garantindo o vínculo e o acesso à unidade de referência para atendimento ambulatorial e/ou hospitalar à gestação de alto risco.

Em 2004, o MS elabora em parceria com diversos setores da sociedade, especialmente os movimentos de mulheres, de negros e de trabalhadoras rurais, sociedades científicas, pesquisadores e estudiosos da área, organizações não-governamentais, gestores do SUS e agências de cooperação internacional, o documento Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes, para o período compreendido entre os anos de 2004 e 2007 (Brasil, 2004b).

Esse documento abrange, na perspectiva de gênero, a integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores e procura consolidar os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com enfoque na melhoria da atenção obstétrica, no planejamento familiar, na atenção ao abortamento inseguro e no combate à violência doméstica e sexual contra a mulher. Aglutina, também, a prevenção e o tratamento de mulheres portadoras do HIV/Aids, de doenças e agravos não transmissíveis e de câncer ginecológico, ampliando as ações para a população de acordo com suas especificidades e necessidades, sendo uma proposta de construção coletiva da cidadania dos diversos parceiros para a concretização das políticas, reforçando a relevância do empoderamento das usuárias do SUS e sua participação nas instâncias de controle social.

Dentro dessas políticas específicas voltadas à saúde da mulher, o Programa Viva Mulher (Brasil, 2002) é lançado com o objetivo prioritário de ampliar o acesso da mulher aos serviços de saúde, para o controle do câncer do colo de útero e mama, por meio de ações integradas de prevenção primária. Contudo, mesmo com o enfoque do programa voltado para o controle do câncer do colo de útero e mama, há o reconhecimento sobre a necessidade do incentivo da assistência integral à saúde da mulher. Isso mostra que o Programa Viva Mulher é mais uma estratégia de proteção à saúde reprodutiva feminina, entrelaçando mais uma linha de cuidados com a saúde integral da mulher no contexto da rede de proteção à saúde materno-infantil.

Em adição, o lançamento da Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil (Brasil, 2004c) contribuiu tanto para a promoção da saúde materna quanto infantil. Pois destaca, dentro das linhas de cuidado da atenção integral da saúde da criança e redução da mortalidade infantil, as ações de saúde da mulher com uma atenção humanizada e qualificada à gestante e ao recém-nascido e o incentivo ao aleitamento materno desde a gestação até o pós-nascimento. Além disso, as principais estratégias de ação da vigilância à saúde, pela equipe de atenção básica, e da vigilância da mortalidade materna e infantil ampliam a responsabilização da gestão dos serviços de saúde no controle de doenças e agravos que podem surgir interferindo na sobrevivência da mãe e da criança. Isso aponta para uma grande evolução no âmbito das políticas públicas no Brasil, mostrando que a melhoria da qualidade de vida, e não medidas isoladas e verticalizadas, tem norteado a promoção de saúde integral materno-infantil.

Concomitantemente, com a regulamentação, em 2006, da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para lactentes e crianças de primeira infância, bicos, chupetas e mamadeiras (Brasil, 2006) e a aprovação, em 18/10/2007, do projeto de lei do senado federal nº. 281 de 10/08/2005, que aumenta o tempo da licença maternidade de 120 dias para 180 dias (Brasil, 2007), ocorre uma ampliação ainda maior pelo estado dos direitos da criança e da mulher à saúde. A primeira voltada especificamente para proteção à nutrição infantil e, a segunda, dando a possibilidade de um cuidado humanizado, oferecendo maior tempo de contato entre a mãe e o recém nascido.

Após essa análise, é possível concluir que há no Brasil inúmeros esforços garantidos em lei e diversos incentivos do Governo Federal, no âmbito de gestão do SUS, para que efetivamente tais políticas rompam a barreira legal e promovam, na prática, a melhoria das condições de assistência à saúde materno-infantil. O que figura simbolicamente uma ampla rede com um emaranhado de nós que sustentam e asseguram o exercício amplo do direito à saúde. Questiona-se, portanto, se tais políticas têm alcançado seus objetivos, sendo capazes de melhorar os principais indicadores da saúde materno-infantil ao longo dos últimos anos, ou se a ampla rede político-legal pouco contribuiu para transformações significativas.

Estatísticas Brasileiras de Saúde Materno-Infantil

Considerações sobre os indicadores

A razão de mortalidade materna é um bom indicador de saúde do grupo populacional feminino. Estas taxas são úteis para estimar as iniqüidades ao se compararem áreas ou regiões de variados níveis de desenvolvimento (Laurenti e col., 2000; Brasil, 2004b; República Dominicana, 2005).

Também a mortalidade infantil, composta por óbitos neonatal e pós-neonatal (CLAP, 1992), é um coeficiente que retrata as condições de vida de uma população, sendo utilizada como indicador do nível de desenvolvimento e da qualidade de vida das nações, bem como a qualidade e organização da assistência prestada em seus diversos níveis e organização dos serviços de saúde (Bercini, 1994; Lansky e col., 2002a). Ela é também considerada um indicador sensível da adequação da assistência obstétrica e neonatal e do impacto de programas de intervenção nesta área (CLAP, 1992; Lansky e col., 2002b).

Segundo a portaria Nº. 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006, que aprova a Relação de Indicadores da Atenção Básica, a mortalidade infantil em menores de 1 ano, considerada baixa, é a proporção de 20/1000 nascidos vivos; também são pactuados o indicador de óbitos neonatais tardios em 14/1000 nascidos vivos; e a proporção de nascidos vivos cobertos por mais de 4 e mais de 7 consultas de pré-natal. A mesma também define que a razão de mortalidade materna (o número de mortes maternas por causas obstétricas diretas e indiretas por 100.000 nascidos vivos) é alta quando atinge patamares superiores a 20 óbitos por 100.000 nascidos vivos e é baixa quando se assemelha a coeficientes de países desenvolvidos, 4 a 8/ 100.000 (Brasil, 2006).

A maioria dos óbitos maternos e infantis ocorridos no país é considerada evitável, podendo ser prevenida com a melhoria da assistência ao pré-natal, ao parto e ao recém-nascido, assegurando o acesso da gestante e do recém-nascido em tempo oportuno a serviços de qualidade (Lansky e col., 2002b; Hartz e col., 1996; Novaes e col., 2004). Duchiade e colaboradores (1989) também apontam a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a qualidade da assistência e as precárias condições socioeconômicas e culturais como fatores condicionantes e/ou determinantes do elevado número de mortes.

Apresentação dos indicadores e discussão

Dados disponibilizados pelo Ministério Saúde do Brasil mostram que os indicadores de mortalidade neonatal (precoce e tardia) vêm sofrendo uma queda gradativa desde 1997, sendo provavelmente resultado do Programa de Pactuação Integrada, estabelecido entre municípios, estados e governo federal, que estabelece metas a serem alcançadas na gestão dos serviços de saúde. Outro fator a se considerar é o aumento da cobertura do Programa Saúde da Família que, em 2005, cobria 40,3% de toda a população do território brasileiro.

No que se refere aos serviços de saúde voltados para a gestante, embora as estimativas do MS mostrem uma redução da Razão de Mortalidade Materna a partir de 2000, nota-se também que a parcela de gestantes totalmente desassistidas de qualquer cuidado pré-natal permanece estabilizada ao longo do tempo (Gráfico 1). Entretanto, o percentual das gestantes que conseguem realizar sete ou mais consultas de pré-natal passou de cerca de 30%, em 1996, para próximo de 50%, em 2005.


Espera-se que recém-nascidos de gestantes com maior número de consultas tenham mais chances de sobrevivência. Concordando com essa idéia, Silva e colaboradores (2006) encontraram, em estudo desenvolvido no nordeste brasileiro, associação estatisticamente significativa entre nascidos vivos de mães com consultas pré-natal iguais ou menores do que 6 e mortalidade infantil. Entretanto, a Organização Mundial de Saúde propôs, segundo revisão sistemática, o modelo de assistência à gestante baseado em apenas 4 consultas pré-natal e 1 pós-natal, com protocolos de procedimentos baseados em evidências científicas (WHO, 2002). Isso pressupõe que a grande quantidade de consultas pode não garantir a qualidade das mesmas, sendo mais efetiva a realização de consultas com critérios bem estabelecidos.

Um dos grandes dilemas enfrentados no SUS é, na prática, fazer valer no dia-a-dia seus princípios, em particular no que diz respeito ao acesso pautado num acolhimento de qualidade e a integralidade da assistência nos serviços prestados à população. Logo, à medida que o SUS avança, no sentido de ampliar o acesso a todos os cidadãos que necessitam dos seus serviços, no caso específico das gestantes, a integralidade não se operacionaliza de maneira que acolha essa usuária nas suas necessidades, independente do nível do sistema/serviço que vá acessar, ou seja, em todo o processo de pré-natal, parto e puerpério, o que revela uma organização inadequada do sistema de saúde. Um exemplo disso pode ser demonstrado por meio do referenciamento precário de gestantes, em trabalho de parto, a maternidades. A peregrinação das mesmas na busca por vaga em maternidades se dá de forma indigna e sem assistência, o que prejudica o momento do parto e, conseqüentemente, a saúde materno-infantil. O estudo de Leal e colaboradores (2005), com 9.633 grávidas atendidas em maternidades do Rio de Janeiro, aponta as desigualdades no atendimento, constatando que negras e pardas sofrem mais na hora do parto, têm menos alívio para as dores do parto e no atendimento médico.

Os dados percentuais de cobertura do número de consultas de pré-natal revelam uma grande lacuna existente entre as gestantes que não realizam alguma consulta, que são cerca de 8% dos nascidos vivos, e as que realizam sete ou mais consultas, cerca de 50%. Totalizam aproximadamente 32% de gestantes que realizam entre uma e seis consultas de pré-natal, revelando que não ocorre, em grande parte dos casos, um acompanhamento adequado da gestante. Talvez por esse motivo as quedas nos indicadores de mortalidade infantil neonatal não foram tão acentuadas nos últimos anos, enquanto a razão de mortalidade materna continua estacionada em patamares elevados, muito longe de alcançar os índices de países desenvolvidos (Brasil, 2006).

Sob esta ótica, nota-se que a questão do atendimento no processo de gestação e parto no SUS demarca desigualdades em saúde quando se compara a realidade entre os indicadores maternos e infantis. O gráfico 1 evidencia que o coeficiente de mortalidade materna, que era cerca de 50 óbitos maternos por 100.000 nascidos vivos em 1996, permanece inalterado 10 anos depois, em 2005. Enquanto o gráfico 2 mostra que o coeficiente de mortalidade neonatal precoce diminuiu de cerca de 16 óbitos por mil nascidos vivos, em 1997, para abaixo de 12/1000, em 2004.


Essas desigualdades parecem refletir a organização do sistema em duas realidades dicotomizadas em atendimento à saúde materno-gestacional e em saúde infantil, destacando a desconexão entre esses dois estágios que não se constituem em situações fragmentadas; a precariedade do atendimento à gestante e a valorização do atendimento à criança são marcadamente refletidas nos indicadores de saúde, mesmo com a ampla rede político-legal tecida a partir da década de 1980.

Nesse sentido, o PHPN mostra-se como um instrumento de gestão que visa à execução de medidas básicas no cotidiano dos serviços de saúde para a promoção da saúde materno-infantil. Contudo, o programa pode encontrar grandes dificuldades em sua execução e incorporação pelos serviços de novas práticas, que não devem ser restritas em si mesmas a ponto de limitar a assistência, desconsiderando outras necessidades que também surgem ou agravam-se no período de gestação, parto e puerpério. Serruya e colaboradores (2004) alertam que o PHPN tem como pressuposto a melhoria da atenção obstétrica guiada pela humanização, ampliando o acesso e garantindo a qualidade nos serviços de saúde, entretanto, não exclui outras demandas em saúde não contempladas nesta política.

A adequação ao processo de assistência pré-natal constitui-se como um grande desafio na garantia de qualidade de serviços de saúde. Coutinho e colaboradores (2003) descrevem que, nos primeiros anos de implantação do PHPN, os resultados apresentaram baixas taxas de adequação de nível I (26,7%), que considerava apenas o início do pré-natal e o número de consultas; baixíssimas taxas de adequação ao nível II (1,9%), que somava ao nível I os exames básicos do PHPN; além de taxas menores ainda quanto à adequação ao nível III (1,1%), que abrangeu os exames básicos e os procedimentos clínico-obstétricos essenciais.

Quanto à qualidade dos serviços de saúde prestados à gestante antes do PHPN, Neumann e colaboradores (2003) associam a qualidade e a eqüidade da atenção ao pré-natal e ao parto, demonstrando que esses serviços de saúde apresentavam baixa qualidade quanto ao momento da realização de primeira consulta de pré-natal e realização de exames complementares, exatamente para os quartis com menor renda familiar mensal, mesmo numa das regiões mais desenvolvidas do país.

Isso reforça a idéia de que provavelmente os serviços básicos não vinham sendo prestados de maneira efetiva antes dessa política e, após a sua implantação, as dificuldades de adequação ainda persistem. Se os serviços de saúde não conseguem incorporar práticas efetivas de um programa instituído e incentivado financeiramente, como seria possível romper a barreira da gestão e avançar nas estratégias de acolhimento da gestante e da família, educação em saúde, humanização do pré-natal, parto e puerpério incorporando as estratégias de promoção da saúde em seus diversos níveis?

O parto é, sem dúvida, um dos momentos cruciais para a sobrevivência materna e infantil. No Gráfico 3 nota-se que, de 1996 para 1997, houve um aumento significativo, acima de 95%, na proporção de partos hospitalares e a queda acentuada na proporção de partos em domicílios e outros locais ignorados. Isso demonstra que a medicalização do parto no Brasil é algo incontestável, entretanto, a persistência dos elevados índices de razão de mortalidade materna, ainda em patamares elevados, leva ao questionamento inevitável de que as políticas de gênero não têm conseguido êxito tão significativo. Isso ressalta que o acesso organizado aos serviços de saúde e a qualidade no atendimento são essenciais na prevenção dessas mortes, devendo a assistência à mulher iniciar antes mesmo da gravidez, através de educação em saúde com o planejamento familiar, perpassando todas as etapas do pré-natal, trabalho de parto e parto hospitalar e prosseguindo até os primeiros momentos de vida do recém-nascido.


Considerações Finais

A saúde materno-infantil, desde o início do processo de industrialização, foi foco de atenção nos serviços de saúde pública. Decorreram-se algumas décadas, implementaram-se várias políticas de saúde voltadas à saúde materno-infantil, porém, a redução de suas taxas de morbi-mortalidade é ainda um grande desafio à saúde pública brasileira.

Mesmo com a consolidação de um sistema de saúde universal, eqüitativo, descentralizado e com assistência integral ao indivíduo e à coletividade, o SUS vem revelando que sua organização ainda é, e provavelmente será por algumas décadas, limitada, produzindo uma universalização excludente. Contudo, mesmo reproduzindo iniqüidades e desigualdades da construção histórica da sociedade brasileira, o SUS pode tornar-se um sistema mais resolutivo e de qualidade.

Considera-se que as políticas públicas geradas no seio da sociedade pelos movimentos sociais na década de 1980, que culminaram na consolidação de diversas leis e programas de saúde voltados à atenção materno-infantil, tiveram papel importante na organização dos sistemas e serviços de saúde, de modo a refletir na melhoria dos indicadores de mortalidade neonatal e no maior acesso à consulta pré-natal e ao parto hospitalar nos anos 1990 e 2000. Entretanto, a perpetuação de elevados índices de mortalidade materna ao longo dos anos ressalta a necessidade de se repensar sobre a trajetória percorrida até o presente momento quanto à implementação de políticas públicas para a melhoria da qualidade da atenção à saúde da mulher.

Finalizando, é bom refletir que, mesmo com os reconhecidos avanços vivenciados no Brasil em várias áreas da oferta de serviços públicos e nos indicadores de saúde, há ainda um longo e difícil caminho no qual a superação das iniqüidades e das desigualdades se apresenta como desafio para todos os que defendem a vida como um direito de cidadania e bem público.

Recebido em: 02/04/2007

Reapresentado em: 15/03/2008

Aprovado em: 26/03/2008

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Aceito
    26 Mar 2008
  • Revisado
    15 Mar 2008
  • Recebido
    02 Abr 2007
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