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Tecendo redes de paz

Weaving peace networks

Resumos

O artigo apresenta o programa Tecendo Redes de Paz desenvolvido pela Área Técnica de Cultura de Paz, Saúde e Cidadania da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, responsável pela elaboração das políticas públicas articuladas de prevenção, promoção à saúde e de atenção integral às pessoas em situação de violência. O objetivo do programa é diminuir o impacto da violência e dos acidentes sobre os cidadãos da cidade de São Paulo, e contribuir para o processo de construção de uma cultura de paz e da não-violência. Em termos de estratégias, o programa investiu na formação de uma Rede de Cuidados em todas as regiões da cidade, procurando sensibilizar e capacitar os profissionais para lidar com a violência. Fortaleceu o trabalho em rede intersetorial para suscitar a criação das Redes de Paz, e contribuiu para a implantação do Sistema de Informação para a Vigilância de Violências e Acidentes - Sivva. Em termos de resultados, o programa alcançou colocar a violência como um problema de saúde pública de forma mais consolidada na Secretaria da Saúde Municipal de São Paulo, e observa-se que os trabalhadores da saúde estão interessados em participar da construção das Redes de Paz.

Violência; Trabalho em rede; Rede de cuidado; Cultura de paz; Sistema de informação; Mediação de conflitos


The article presents the program Tecendo Redes de Paz (Weaving Peace Networks), developed by the Technical Area of the Culture of Peace, Health and Citizenship of the Municipal Health Department of São Paulo, responsible for the development of the articulated public policies of prevention, health promotion and integral care for people in violence situations. The program aims to reduce the impact of violence and of accidents on the citizens of the city of São Paulo, and to contribute to the process of construction of a culture of peace and non-violence. In terms of strategies, the program invested in the formation of a Care Network in all regions of the city, trying to qualify the professionals to deal with violence. It strengthened the work in inter-sector networks in order to create the Peace Networks, and contributed to the implementation of the Information System for Violence and Accidents Surveillance (Sivva). As for results, the program successfully placed violence as a public health problem in a more consolidated way in the Municipal Health Department of São Paulo, and it has been observed that the health workers are interested in participating in the construction of the Peace Networks.

Violence; Net Work; Care Network; Culture of Peace; Information System; Mediation of Conflicts


ARTIGOS

TRABALHOS PREMIADOS

Jonas MelmanI; Maria Ermínia CilibertiII; Mariângela AokiIII; Nelson Figueira JuniorIV

IPsiquiatra. Assessor da AT Cultura de Paz. Saúde e Cidadania/SMS. Mestre pelo departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. Endereço: E-mail: jmelman@prefeitura.sp.gov.br ou melman@terra.com.br

IIPsicóloga. Assessora da AT Cultura de Paz. Saúde e Cidadania/SMS, com especialização em saúde pública pela FSPUSP. Endereço: E-mail: mciliberti@prefeitura.sp.gov.br

IIIPsicóloga. Assistente técnica da AT Cultura de Paz. Saúde e Cidadania/SMS. Endereço: E-mail: mariaoki@prefeitura.sp.gov.br

IVPsicólogo. Assessor do Centro de Desenvolvimento e Qualificação do SUS do DRS-7. Especialização em psicologia clínica pela PUC Campinas. Endereço: E-mail: figueiranj@ig.com.br

RESUMO

O artigo apresenta o programa Tecendo Redes de Paz desenvolvido pela Área Técnica de Cultura de Paz, Saúde e Cidadania da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, responsável pela elaboração das políticas públicas articuladas de prevenção, promoção à saúde e de atenção integral às pessoas em situação de violência. O objetivo do programa é diminuir o impacto da violência e dos acidentes sobre os cidadãos da cidade de São Paulo, e contribuir para o processo de construção de uma cultura de paz e da não-violência. Em termos de estratégias, o programa investiu na formação de uma Rede de Cuidados em todas as regiões da cidade, procurando sensibilizar e capacitar os profissionais para lidar com a violência. Fortaleceu o trabalho em rede intersetorial para suscitar a criação das Redes de Paz, e contribuiu para a implantação do Sistema de Informação para a Vigilância de Violências e Acidentes - Sivva. Em termos de resultados, o programa alcançou colocar a violência como um problema de saúde pública de forma mais consolidada na Secretaria da Saúde Municipal de São Paulo, e observa-se que os trabalhadores da saúde estão interessados em participar da construção das Redes de Paz.

Palavras-chave:Violência; Trabalho em rede; Rede de cuidado; Cultura de paz; Sistema de informação; Mediação de conflitos.

ABSTRACT

The article presents the program Tecendo Redes de Paz (Weaving Peace Networks), developed by the Technical Area of the Culture of Peace, Health and Citizenship of the Municipal Health Department of São Paulo, responsible for the development of the articulated public policies of prevention, health promotion and integral care for people in violence situations. The program aims to reduce the impact of violence and of accidents on the citizens of the city of São Paulo, and to contribute to the process of construction of a culture of peace and non-violence. In terms of strategies, the program invested in the formation of a Care Network in all regions of the city, trying to qualify the professionals to deal with violence. It strengthened the work in inter-sector networks in order to create the Peace Networks, and contributed to the implementation of the Information System for Violence and Accidents Surveillance (Sivva). As for results, the program successfully placed violence as a public health problem in a more consolidated way in the Municipal Health Department of São Paulo, and it has been observed that the health workers are interested in participating in the construction of the Peace Networks.

Keywords:Violence; Net Work; Care Network; Culture of Peace; Information System; Mediation of Conflicts.

Introdução e Justificativa

Nos tempos atuais, a violência se transformou em um problema central para humanidade. Os problemas relativos às violências ganham cada vez mais visibilidade no Brasil, tornando-se uma questão importante para a saúde pública (Minayo, 1998).

Na cidade de São Paulo, entre 2000 a 2006 ocorreram 55.827 mortes decorrentes de violências e acidentes (PRO-AIM/CEInfo, 2008). Os homicídios, neste período, aparecem como primeira causa de morte, seguido dos acidentes de trânsito. De 2000 a 2006 registrou-se uma queda de 61% dos óbitos por homicídio, fato importante que merece um estudo aprofundado no sentido de identificar com mais precisão os fatores que influenciaram esse fenômeno. No período de 2000 a 2007 ocorreram nos hospitais do SUS da cidade de São Paulo 399.495 internações por acidentes e violências (SIH/CEInfo, 2008). A primeira causa dessas internações refere-se às quedas, seguida dos acidentes de trânsito e dos homicídios.

Até 2002, existiam iniciativas isoladas somente em determinados territórios da cidade e dirigidas a grupos populacionais específicos. Não se verificava uma prática de integração dessas equipes.

Nesse ano, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo criou uma Área Técnica específica para assumir a responsabilidade pela formulação das políticas integradas para minimizar o impacto da violência na saúde dos cidadãos. Inicialmente, a Área Técnica foi denominada Projeto Resgate Cidadão, depois passou a se chamar Cultura de Paz, Saúde e Cidadania da Coordenadoria de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde (Codepps/SMS) não us aspas?. Desde a sua criação, buscou analisar os indicadores do impacto da violência na vida dos cidadãos do município para elaborar políticas públicas articuladas de prevenção, promoção à saúde e de atenção integral às pessoas em situação de violência.

A Área Técnica procurou estender seus projetos para todas as regiões da cidade, estimulando a formação de equipes de referência e de articuladores locais. Entre as diferentes modalidades de violência foram priorizadas iniciativas dirigidas ao enfrentamento da violência sexual, doméstica, institucional, acidente de trânsito, homicídio e suicídio. Investir no apoio a grupos populacionais mais vulneráveis como as crianças, adolescentes, mulheres, idosos, e pessoas com deficiência física ou mentale contribuiu para a determinação de um foco no programa.

A formulação dessas políticas procurou levar em consideração os determinantes históricos, sociais e culturais envolvidos no aparecimento da violência. Todavia, ao colocar na agenda a questão da violência, sabíamos que estávamos lidando com um fenômeno que se manifesta de diferentes modos e que possui múltiplas causas na sua origem. O esforço de compreendê-lo passa por um olhar mais aprofundado sobre os mecanismos de desigualdade social e exclusão social, sobre a construção sócio-histórica das relações de gênero, entre gerações e raças, e sobre o papel que as diferenças exercem em nossa sociedade.

No âmbito do programa, a violência é compreendida como um fenômeno complexo, multicausal e interdisciplinar, que coloca o desafio da construção de projetos intersetoriais, que utilizem estratégias e tecnologias múltiplas para superar a complexidade dos problemas. Entre os princípios que orientam os projetos desenvolvidos vale ressaltar a importância de garantir direitos para todos, enquanto produção de cidadania, o trabalho de rede em parceria com diferentes setores de governo e da sociedade civil, e a transformação da cultura da violência na direção de uma cultura da paz.

Os princípios da cultura de paz propostos pelo Manifesto do ano 2000 da Organização das Nações Unidas têm se revelado um importante instrumento para nortear as mudanças culturais necessárias para a superação da violência. O referido manifesto foi assinado por milhões de pessoas em todas as partes do planeta. Somente no Brasil foram colhidas um milhão de assinaturas. Todos os signatários se comprometeram a seguir em suas vidas seis diretrizes básicas: respeitar a vida, rejeitar a violência, compartilhar os recursos com os outros seres humanos, ouvir para compreender, preservar o planeta e redescobrir a solidariedade.

Esses princípios apontam na direção de repensar valores, crenças e atitudes, estimulando processos de transformações dos indivíduos, das instituições e das relações sociais, essenciais para a revitalização das práticas nos serviços de saúde.

A passagem da cultura da violência na direção de uma cultura mais pacífica e de não violência exige a desmontagem das engrenagens que garantem a legitimidade do uso da violência como instrumento para resolver conflitos. É preciso reconhecer que a violência fere a dignidade humana. Fere a dignidade da vítima, mas também fere a dignidade do agressor. Agressores e vítimas estão interligados na mesma trama. Com freqüência, observamos que muitas vítimas acabam assumindo o papel de agressores em certas circunstâncias, reproduzindo o mesmo modelo violento. Se por um lado é fácil notar a presença cotidiana da violência como meio para impor a vontade do mais forte sobre o mais frágil, também é possível perceber que existe outra escolha, e que os impasses podem ser superados por meio do diálogo e da negociação (Bohm, 2005).

Falar de paz e de não-violência neste mundo repleto de turbulências e injustiças causa estranhamento e resistências. Em geral, associamos a paz com ausência de conflitos, com uma atitude zen, tranquila e passiva frente aos conflitos. Segundo Jean Marie Muller (2006), essa resistência se deve ao fato de que confundimos violência e agressividade. A agressividade está inscrita na natureza humana. O homem é um ser instintivo e impulsivo. A agressividade corresponde à força de combatividade, de autoafirmação, constitutiva da nossa personalidade. Ela é a força de vida que "avança em direção ao outro" para aceitar e abraçar o conflito. É preciso coragem para enfrentar o desconhecido, para fazer valer nossos direitos. Se o polo prejudicado recusa o conflito, ele aceita a condição inferior e se submete, e a ordem injusta é mantida. Reabilitar o valor do conflito e da agressividade é parte fundamental dos processos de mudança. O enfrentamento é obrigatório para se atingir uma sociedade mais justa. Nesse sentido, o campo da não-violência desenvolvido por Gandhi para dar sustentação às lutas sociais e políticas emancipatórias se opõe às proposições de conformismo e à passividade frente aos problemas.

Conflitos entre pessoas, grupos e organizações são inevitáveis. A diversidade é necessariamente geradora de conflitos. Não devemos fugir deles. Os conflitos são essenciais para o aprimoramento das relações entre os homens, e para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, democrática e plural.

Os serviços de saúde podem e devem contribuir para criar um ambiente que acolha as diferenças e os conflitos como parte integrante da elaboração dos processos de trabalho na equipe, assim como da construção de uma saúde pública forte, de qualidade, com o compromisso de defender a vida e a paz para todos. Para tanto é necessário estimular a produção dos vínculos e dos espaços de comunicação, rodas de conversa, capazes de estabelecer e respeitar acordos e repensar mecanismos de partilha do poder (Merhy, 2002).

Estratégias e Propósitos do Programa

O objetivo do programa é diminuir o impacto da violência e dos acidentes sobre os cidadãos da cidade de São Paulo, e contribuir para o processo de construção de uma cultura de paz e não-violência.

O estabelecimento de uma Rede de Cuidados às pessoas em situação de violência e acidentes na rede municipal de saúde é fundamental. A formação e o fortalecimento dessa Rede de Cuidados exigem investimentos na capacitação dos profissionais e na organização dos serviços de saúde no sentido de ampliar a capacidade de acolher escutar, orientar, tratar e encaminhar, quando necessário, as pessoas que estão em situação de violência. São necessários profissionais habilitados e motivados para esse atendimento.

Os profissionais da saúde, muitas vezes, mostram resistências para atender pessoas em situação de violência (Melman, 2007). Eles se sentem despreparados e inseguros para lidar com a complexidade de questões que a violência suscita. A formação universitária em nosso país ainda é muito deficiente para dar um suporte a essa prática. Os cuidadores frequentemente silenciam frente os casos de violência. Cuidam dos cortes, de ossos quebrados, de ferimentos de armas de fogo, mas geralmente não conseguem cuidar da pessoa como uma totalidade e de seu sofrimento, que é marcado pela situação da violência. Vítimas da violência sentem muito medo e vergonha de sua condição de vida. Grande parte dos indivíduos nessa condição acaba não sendo identificada e cuidada adequadamente. Muitos carregam suas feridas por anos e, sem consciência, reproduzem a mesma lógica violenta em seus relacionamentos. Vivemos em uma sociedade silenciosa em relação à violência, particularmente aquela que ocorre na vida privada das famílias. O silêncio e o isolamento contribuem para a exclusão social. O desafio da saúde é escapar dessa trama do medo, do silêncio e da omissão para buscar uma ética do cuidado que afirme o valor e a defesa da vida (Schraiber e D'Oliveira, 2007).

É igualmente importante a presença de articuladores dessa rede de cuidado que possam facilitar a comunicação e a constituição de espaços de discussão de casos, além de investir no aprofundamento do trabalho em parceria com outros setores do governo e com as organizações da sociedade civil presentes no território.

Formar Redes de Paz é um valioso instrumento para a garantia dos direitos. As Redes de Paz correspondem ao conjunto de organizações públicas e da sociedade civil organizada que se volta em seus territórios para ações articuladas de superação da violência e a construção da cultura de paz. Entre as organizações sociais de caráter público que deverão compor as redes locais, podemos citar as Delegacias de Polícia, o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a Vara da Infância, os Centros de Cidadania da Mulher, entre outras. A presença de organizações não-governamentais (ONGs) também é relevante para a força da rede de serviços territoriais, assim como o envolvimento e participação direta das comunidades.

As Redes de Paz têm um caráter essencialmente emancipatório. Por definição, devem ser abertas, democráticas, e auto-organizativas. Elas facilitam e se alimentam de comunicação e de trocas entre seus membros, abrindo novas possibilidades e gerando espaços participativos e inclusivos (Sá, 2005).

Como processo vivo, as configurações de cada rede nascem e se transformam como fruto de pactos coletivos para definição dos objetivos e dos princípios a serem compartilhados. Cada sujeito e cada organização são entendidos como produtores e receptores de informação que circula organicamente. As redes não precisam eliminar o ruído. Pelo contrário, os conflitos podem e devem ser acolhidos pelos participantes, na busca de novos sentidos e para o fortalecimento da própria organização em rede.

As pessoas em situação de violência e seus familiares precisam de ajuda e apresentam necessidades de diversas ordens de atenção integral à saúde, assistência social, assistência jurídica etc. Cabe aos profissionais de todos os setores envolvidos trabalharem em rede e realizarem esse esforço de integração.

A existência de um Sistema de Informação de qualidade constitui um instrumento fundamental para avaliar e monitorar o impacto da violência e acidente nos serviços de saúde, bem como fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas que atendam as necessidades da população. Melhorar a qualidade da informação pode ajudar significativamente para ampliar a capacidade de análise e diferenciação dos diferentes fatores envolvidos nos fenômenos da violência e dos acidentes, assim como pode criar condições para acompanhar o volume de atendimentos dos casos.

Está em fase de implantação o novo Sistema de Informação para a Vigilância de Violências e Acidentes - Sivva, cuja coordenação está sob responsabilidade de Dant/Covisa, e que cria condições para o estabelecimento de uma ficha única de notificação para o município que poderá ser preenchida em todos os serviços municipais conectados pela Rede Prodam por intermédio da internet. O novo sistema poderá superar algumas dificuldades atualmente observadas.

Metodologia

O projeto Redes de Paz - Construindo Alternativas à Violência nasceu com a intenção de favorecer a organização do trabalho em rede. O projeto representa um esforço de articulação de pessoas e serviços, e se apoia em reuniões de articulação nos territórios, cursos, mostra de experiências e oficinas.

Neste sentido, A Área Técnica de Cultura de Paz tem procurado estratégias para sensibilizar e capacitar os profissionais para lidar com a violência. Os cursos de capacitação procuram ampliar as habilidades dos profissionais da saúde para o cuidado de pessoas em situação de violência, despertando as potencialidades de cada um para o cuidado e para o trabalho em rede voltado à construção de uma cultura de paz. Nesses cursos, com duração média de 20 horas, os profissionais podem ter acesso a um conjunto de tecnologias para ajudá-los no cotidiano. São tecnologias dirigidas para facilitar a formação do vínculo e melhorar a qualidade da escuta, e incluem a mediação de conflitos (Sampaio e Braga Neto, 2007), técnicas de relaxamento, noções preliminares de comunicação não-violenta (Rosemberg, 2006) e de trabalho em rede. Além de aulas teóricas, os cursos criam espaços vivenciais para garantir a experimentação dessas tecnologias e a troca de experiências.

A articulação das ações coletivas envolve muita comunicação. O trabalho em rede precisa igualmente de ações de promoção e de prevenção, contribuindo para sensibilizar e conscientizar as comunidades. São evidentes os obstáculos que devemos superar para melhorar nossa capacidade de comunicação e trabalho conjunto. Em termos de política pública, ainda temos muito que aprender para trabalhar em rede. Cada setor público mostra uma tendência de privilegiar seus interesses específicos em detrimento de uma visão mais coletiva do processo. A visão dos agentes públicos tende à fragmentação e ao isolamento de suas práticas. O trabalho coletivo exige uma abertura para o diálogo e uma disciplina que não foram suficientemente incorporados em nosso funcionamento mental e relacional.

Resultados e Produtos

Nos últimos anos foram capacitados mais de 1200 profissionais da saúde. Foram envolvidos todos os segmentos profissionais: médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fonoaudiólogos, auxiliares de enfermagem, além de muitos agentes comunitários. Em algumas regiões participaram dos cursos trabalhadores da educação, da assistência social, conselheiros tutelares e técnicos de ONGs, o que ajudou a fortalecer a rede local.

O projeto ampliou as relações de parceria com diferentes áreas técnicas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo: Aids, Saúde Mental, Idoso, Medicina Tradicional, População Negra, Vigilância em Saúde, Saúde da Mulher e da Criança e do Adolescente. Também expandiu suas conexões com outras secretarias do governo municipal: educação, meio ambiente, justiça, assistência social, entre outras.

Realizou-se, por exemplo, cinco oficinas de cultura de paz para aproximadamente 300 professores da rede municipal de ensino em 2007. Numa parceria com a Secretaria do Meio Ambiente, participamos do Projeto de Ambientes Verdes e Saudáveis, que capacitou 5600 agentes comunitários da saúde. Os princípios da cultura de paz foram usados como norteadores de todo processo pedagógico do projeto. Em relação com a Secretaria da Educação, contribuímos para o desenvolvimento das iniciativas em torno das Escolas Promotoras da Saúde, que procuram levar aos alunos das escolas municipais temas relevantes da saúde pública.

Ao longo dos últimos anos, observamos o nascimento na cidade de São Paulo de inúmeros projetos do Governo Municipal que pretendem contribuir para a superação da violência e construção de uma cultura da paz. É muito importante registrar e divulgar essas iniciativas, mostrando que, apesar das dificuldades, novas propostas estão se multiplicando para minimizar o impacto do fenômeno violento e pacificar as relações em nossa cidade. Muitas vezes, os próprios servidores públicos ainda desconhecem a existência dessa ação política.

Na região norte da cidade, a partir do processo de capacitação dos trabalhadores, surgiu a proposição de organizar Núcleos de Cultura de Paz em todas as unidades de saúde. Os profissionais e gestores capacitados estão assumindo a responsabilidade de multiplicar localmente os cursos e identificar pessoas que possam assumir o papel de representante do Núcleo de Cultura de Paz em cada serviço.

Os profissionais da saúde que já trabalham no campo da violência ainda necessitam de muito apoio e informação de qualidade. Durante as oficinas e os cursos realizados, percebemos uma demanda por material educativo complementar que ajudasse no aprofundamento das questões. Igualmente constatamos que esses trabalhadores realizam um trabalho difícil e de muito valor. Contudo, esse esforço não recebe o merecido reconhecimento e divulgação.

Em 2007, foram confeccionados uma revista e um vídeo com o tema Tecendo Redes de Paz. Em parceria com outras Áreas Técnicas da Secretaria da Saúde foram elaborados três cadernos de orientação relacionados ao atendimento de criança e adolescente, mulher e idoso em situação de violência doméstica e sexual. Todos os materiais educativos foram distribuídos para cerca de 700 unidades de saúde do município.

No processo de elaboração da revista e do vídeo, valorizou-se o trabalho coletivo, o trabalho em rede. O protagonismo coletivo estava no centro das preocupações. A força das Redes de Paz reside na potência desses coletivos. A intenção era mostrar o lado positivo e as qualidades de cada iniciativa, evitando as idealizações. Tentou-se escapar da armadilha de escolher certos indivíduos como especiais ou notáveis, que assumem heroicamente a tarefa de lutar contra a violência. O projeto procurou divulgar as diversas iniciativas da Secretaria da Saúde e também de outras secretarias de governo e da sociedade civil organizada, mostrando a lucidez e o vigor das Redes de Paz na cidade.

Os produtos educativos foram bem recebidos e avaliados dentro da Secretaria da Saúde e por parte dos trabalhadores. Grande parte desse material didático foi distribuído para outras secretarias do Governo Municipal e para outros estados e municípios de todo Brasil através dos congressos e seminários do Conasems e do Cosems. A ampla distribuição desses produtos tem sido muito importante para ampliar o número de pessoas que poderão ter acesso a eles.

Aprendizado com a Vivência

A organização da Rede de Cuidados no campo da saúde pública mobiliza muitas defesas e resistências por parte dos profissionais e dos gestores. As discussões sobre a violência como um problema de saúde pública ainda é um tema relativamente recente para os gestores dessas políticas. A cultura da violência suscita muitos medos e inseguranças em todos os cidadãos, inclusive nos trabalhadores da saúde. A subnotificação dos casos e a omissão de cuidado representam expressões das dificuldades a serem superadas. A formação acadêmica não prepara os profissionais para lidar com a violência. Sensibilizar e capacitar são prioridade e precisa de muitos investimentos.

No que se refere à produção do vídeo e da revista, exigiu muito diálogo e negociação. Pensar sobre a paz, e trabalhar em prol dela, levanta muitas questões e dúvidas. Refletir sobre as Redes de Paz demanda um outro olhar e a abertura para novas ideias, mudanças de atitudes e de comportamentos.

Trabalhar em parceria e de forma integrada com outros setores para a construção de redes é uma experiência relativamente nova, e requer capacidade de escuta para compreender e aceitar as inevitáveis diferenças, e para realizar os ajustes necessários nos projetos de interesse comum. Nesse movimento, existem vários atores em cena que apresentam uma rica diversidade de possibilidades de intervenção, de compreensão dos problemas. Essas diferenças podem gerar conflitos paralisantes, ou podem movimentar os recursos coletivos na direção da resolução dos problemas. A liberação dessa criatividade armazenada depende de nossa capacidade de dialogar e estabelecer consensos em relações de respeito e confiança.

Considerações Finais

Os resultados do programa Tecendo Redes de Paz na cidade de São Paulo, assim como a presença de outras experiências exitosas em várias cidades brasileiras, revelam que é possível a implementação de políticas públicas para superação da violência. O avanço e aprimoramento dessas políticas são fruto da capacidade de sensibilizar a população, os trabalhadores, os gestores e os políticos em geral, para reconhecer que a violência deve ser uma prioridade na agenda dos municípios e do Ministério da Saúde.

Vale lembrar que no Pacto pela Saúde de 2008, a proposta de uma atenção integral à pessoa em situação de violência foi assumida como prioritária. A elaboração dessas políticas coloca desafios para todos os atores que atuam no SUS. Sem dúvida, o reconhecimento que a violência se tornou uma questão importante para o fortalecimento do SUS, constituiu um grande avanço nos últimos anos, porém esse processo ainda é relativamente recente e precisa se consolidar.

Na mesma direção, observamos que as políticas atuais para a "humanização da atenção" propostas pelo Ministério da Saúde também têm procurado investir na qualidade da assistência por meio de uma série de dispositivos. A proposta se propõe a resgatar uma relação de cuidado mais acolhedora e responsável, centrada na defesa da vida, nas necessidades e nos direitos dos usuários, e na possibilidade de uma gestão compartilhada. Esta é com certeza uma política com potencial para modificar o quadro de violência institucional na saúde.

Uma recente pesquisa para avaliar o programa evidenciou que o estabelecimento da violência como um problema de saúde pública está mais consolidado na Secretaria da Saúde Municipal. O tema da violência está mais presente na agenda das políticas da cidade, assim como mais trabalhadores da saúde estão interessados em participar da construção das Redes de Paz.

Observa-se que os trabalhadores, tanto aqueles que se responsabilizam pelo atendimento como os gestores estão mais sensibilizados e preparados para o complexo desafio de organizar as Redes de Cuidado às pessoas em situação de violência. A resistência às notificações obrigatórias está diminuindo. O número de notificações tem aumentado gradativamente nas estatísticas. Vale ressaltar que o processo de mudança de crenças e atitudes é lento e difícil, e depende de um conjunto de variáveis, muitas de caráter subjetivo.

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  • Tecendo redes de paz

    Weaving peace networks
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009
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