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Ser fumante em um mundo antitabaco: reflexões sobre riscos e exclusão social

Smokers in an anti-tobacco world: reflections on risks and social exclusion

Resumos

Esta pesquisa foi realizada no contexto das atuais medidas para controle do tabagismo e teve por objetivo entender os sentidos do ato de fumar para os fumantes e a maneira como vivenciam as pressões para cessar de fumar. Com base em 50 entrevistas com diferentes segmentos de uma universidade paulista (professores, funcionários de carreira e terceirizados, alunos de graduação e de pós-graduação), a análise focalizou três aspectos: por que as pessoas fumam, a ambivalência entre o prazer de fumar e os malefícios do tabaco, e as experiências de discriminação de fumantes. Concluiu-se que, na perspectiva da Saúde Coletiva, é necessário informar o público sobre os riscos associados ao tabagismo, contrapor os danos aos efeitos sedutores da publicidade da indústria tabagística e oferecer apoio para os que desejam cessar de fumar. Entretanto, para além dessas medidas, é preciso também entender o ponto de vista dos fumantes para os quais o tabaco ainda é uma droga legalizada que produz efeitos positivos, apesar de causar dependência física e psicológica, havendo, portanto, muitos obstáculos a serem enfrentados para dar fim a esse hábito. Tal cenário de múltiplas dificuldades nos leva a indagar se fumar não se enquadraria nos estilos de vida arriscados para os quais são pertinentes as abordagens voltadas à redução de danos.

Estilos de Vida Arriscados; Tabagismo; Práticas Discursivas


This research was conducted in the context of present-day measures to curb the use of tobacco so as to explore the meanings that smokers attribute to smoking and the manner in which pressure for cessation of smoking are experienced. Based on 50 interviews carried out with different segments of a university in São Paulo, Brazil (teachers, office workers, outsourced employees, undergraduate and graduate students), the analysis focused on three aspects: why people smoke, the ambivalence between pleasure and risks associated with tobacco, and smokers' discrimination experiences. It concludes that in a public health perspective it is imperative to inform the public about risks associated with tobacco, confront ill effects with the seduction of the cigarette industry's marketing and offer means for tobacco cessation. However, it is also necessary to understand the smokers' point of view, for whom tobacco is still a legal drug that provides many positive effects but causes physical and psychological dependency; therefore, those who wish to stop smoking face many difficulties. This scenario of manifold difficulties raises the question of whether smoking can be classed as a risky lifestyle for which approaches of harm reduction might be pertinent.

Risky Lifestyles; Smoking; Discursive Practices


PARTE I - ARTIGOS

Ser fumante em um mundo antitabaco: reflexões sobre riscos e exclusão social1 1 Pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Smokers in an anti-tobacco world: reflections on risks and social exclusion

Mary Jane P. Spink

Doutora em Psicologia Social. Professora Titular na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Endereço: Rua Ministro Godói, 969, Perdizes, CEP 05015-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: mjspink@pucsp.br

RESUMO

Esta pesquisa foi realizada no contexto das atuais medidas para controle do tabagismo e teve por objetivo entender os sentidos do ato de fumar para os fumantes e a maneira como vivenciam as pressões para cessar de fumar. Com base em 50 entrevistas com diferentes segmentos de uma universidade paulista (professores, funcionários de carreira e terceirizados, alunos de graduação e de pós-graduação), a análise focalizou três aspectos: por que as pessoas fumam, a ambivalência entre o prazer de fumar e os malefícios do tabaco, e as experiências de discriminação de fumantes. Concluiu-se que, na perspectiva da Saúde Coletiva, é necessário informar o público sobre os riscos associados ao tabagismo, contrapor os danos aos efeitos sedutores da publicidade da indústria tabagística e oferecer apoio para os que desejam cessar de fumar. Entretanto, para além dessas medidas, é preciso também entender o ponto de vista dos fumantes para os quais o tabaco ainda é uma droga legalizada que produz efeitos positivos, apesar de causar dependência física e psicológica, havendo, portanto, muitos obstáculos a serem enfrentados para dar fim a esse hábito. Tal cenário de múltiplas dificuldades nos leva a indagar se fumar não se enquadraria nos estilos de vida arriscados para os quais são pertinentes as abordagens voltadas à redução de danos.

Palavras-chave: Estilos de Vida Arriscados; Tabagismo; Práticas Discursivas.

ABSTRACT

This research was conducted in the context of present-day measures to curb the use of tobacco so as to explore the meanings that smokers attribute to smoking and the manner in which pressure for cessation of smoking are experienced. Based on 50 interviews carried out with different segments of a university in São Paulo, Brazil (teachers, office workers, outsourced employees, undergraduate and graduate students), the analysis focused on three aspects: why people smoke, the ambivalence between pleasure and risks associated with tobacco, and smokers' discrimination experiences. It concludes that in a public health perspective it is imperative to inform the public about risks associated with tobacco, confront ill effects with the seduction of the cigarette industry's marketing and offer means for tobacco cessation. However, it is also necessary to understand the smokers' point of view, for whom tobacco is still a legal drug that provides many positive effects but causes physical and psychological dependency; therefore, those who wish to stop smoking face many difficulties. This scenario of manifold difficulties raises the question of whether smoking can be classed as a risky lifestyle for which approaches of harm reduction might be pertinent,

Keywords: Risky Lifestyles; Smoking; Discursive Practices.

Introdução

A história do tabaco é repleta de paradoxos. Proveniente das Américas, a erva foi inicialmente associada aos ritos pagãos dos povos da América Central e aos hábitos de "outros" não europeus que eram considerados bárbaros, mesmo quando se tratava de representantes de civilizações sofisticadas como a dos Astecas e a dos Maias (Todorov, 1993). Em meados do século XVI, o tabaco foi incluído nos tratados de botânica médica, com destaque para a obra de Nicolás Monardes, publicada em 1565, mas nem a ressignificação por meio de suas propriedades medicinais desfez a desconfiança inicial quanto ao seu estatuto. Comentando essas primeiras referências ao tabaco, a historiadora Marcy Norton firma que "nas entrelinhas da discussão de Monardes sobre o tabaco estava presente a dúvida sobre em que medida os europeus que adotavam a erva americana se tornavam também idólatras pagãos, potencialmente inspirados pelo diabo" (Norton, 2008, p. 118).

O tabaco teve (e tem) presença em ritos xamanísticos em diversas culturas afro-americanas, mas era também uma forma de sociabilidade manifestada em ocasiões como a recepção de um recém-chegado, ou em festividades. Para as elites, era um hábito refinado, fumado em cachimbos elaborados com esmero. Além disso, havia quem o fumasse enrolado em folhas de plantas diversas ou o aspirasse. Era também utilizado para aliviar a dor e o cansaço resultantes do trabalho físico extenuante e, como tal, era muitas vezes mascado. Nessa modalidade era associado aos escravos ou aos segmentos menos privilegiados das sociedades indígenas.

Tinha, ainda, propriedades medicinais, quando aplicado diretamente em cortes e afecções da pele, ou inalado para combater, por exemplo, a dor de cabeça, constando, nos herbanários da época da colonização, como erva medicinal com propriedades variadas. Sempre, porém, cercado de controvérsias, e Norton é enfática ao afirmar que "Em toda a Europa, no século XVII, particularmente na primeira metade, houve um intenso debate sobre os efeitos do tabaco na saúde" (Norton, 2008, p. 236). Imperavam, na época, os critérios adotados pelo médico grego Galeno que, seguindo Aristóteles e Hipócrates, classificava as coisas do mundo em quatro elementos: quente, frio, seco e úmido, que correspondiam, no corpo humano, aos quatro humores: o sangue, a bile amarela, a bile negra e a fleuma. Monardes, seguindo Galeno, explicava as propriedades terapêuticas do tabaco por ser "quente e seco ao segundo grau" (Norton, 2008, p. 117). Seus contemporâneos concordavam em que o tabaco era "quente" e "seco", mas discordavam quanto aos efeitos. Para aqueles que eram a favor, os efeitos purificadores do tabaco explicavam a habilidade de clarear as ideias e melhorar as funções cognitivas. Para os que eram contra seu uso, os efeitos secantes do tabaco tornavam o cérebro oco como uma cabaça, causando a deterioração de alguns sentidos, como o olfato e a audição. Havia desacordo também quanto aos seus efeitos na sexualidade, pois alguns argumentavam que o tabaco secava o esperma (diminuindo a fertilidade), e outros, ao contrário, que aumentava o sêmen.

Apesar da resistência inicial, em pouco tempo seu uso espalhou-se pela Europa, impulsionado por marinheiros, que cedo o adotaram, e por outros "colonialistas" - aqueles que passavam longos períodos de tempo nas colônias ou atravessavam o Atlântico com frequência (monges e comerciantes, por exemplo). Nesses primórdios, era uma erva "democrática", fumada pela elite e por trabalhadores, por homens e mulheres. No entanto, jamais foi um hábito totalmente aceito. Era contestado por sua capacidade de viciar, pela aparência ridícula daqueles que o usavam na forma de rapé e pelos potenciais malefícios à saúde.

Utilizando fontes sobre o comércio de tabaco, Norton (2008) fez uma estimativa do número de fumantes baseada na quantidade supostamente consumida por um usuário médio (uma libra e meia de tabaco por ano). O autor concluiu que cerca de 650 mil pessoas, um décimo da população de Castilha, cheiravam, fumavam ou mascavam tabaco no final do século XVII, número que aumentou para aproximadamente 2 milhões (um quarto da população) no começo do século XVIII.

Com o passar do tempo, o hábito espalhou-se mundo afora. No século XX, sua industrialização, somada ao desenvolvimento de poderosas estratégias de marketing, deu especial visibilidade aos aspectos mais positivos do hábito, como a sociabilidade e as marcas identitárias dos fumantes baseadas no gosto específico dos blends, na elegância dos cigarros mais caros, na liberdade, mensagem dirigida inicialmente às mulheres, depois ao público jovem e, paradoxalmente, associada ao mundo dos esportes (Cutait, 2007).

Porém, paralelamente, sofisticaram-se as análises sobre os efeitos perversos do tabaco (Miravitles, 2004; Carmo e col., 2005), fazendo com que o pêndulo aos poucos se fixasse nos efeitos adversos, na perspectiva dos agravos à saúde. As consequências do hábito de fumar foram temas recorrentes das Assembleias Mundiais de Saúde desde a 23ª edição, em 1970. Essas aproximações paulatinas ao tema resultaram na constituição, em 1999, de um grupo de trabalho responsável pela elaboração de um tratado internacional sobre o tabaco - a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, aprovada na 56ª Assembleia Mundial de Saúde, em 2003, e ratificada por 198 países (OPS, 1999).

No Brasil, as primeiras medidas oficiais datam de 1986, quando foi instituído o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Seguiram-se medidas diversas cerceando a publicidade, determinando a inserção de advertências nos produtos fumígenos, restringindo seu uso em espaços públicos e criando o Programa Nacional de Controle do Tabagismo, vinculado ao Instituto Nacional do Câncer (INCA). O Brasil ratificou a Convenção Quadro em 27 de fevereiro de 2004 (Brasil, 2004).

A rapidez com que se seguiram medidas de combate ao tabagismo, como legislações, campanhas sanitárias e estratégias para cessação do hábito (Spink e col., 2009), coloca em pauta uma contradição: de um lado, a sedução do fumo por seus efeitos antiansiolíticos, por propiciar a concentração e pela aproximação com a sociabilidade; de outro, os efeitos adversos à saúde que afetam igualmente fumantes e não fumantes.

Essa contradição impulsionou esta pesquisa que se fundamenta na postura ético-política de que se deve compreender o ponto de vista das pessoas que fumam. Busca, portanto, trabalhar com promoção da saúde na vertente do risco-aventura (Spink, 2007a, b), de modo a pensar o papel da Psicologia Social no que concerne aos novos excluídos - aqueles que optam por estilos de vida arriscados.

Objetivos e Procedimentos

O objetivo da pesquisa foi entender como as campanhas antitabagismo são significadas por fumantes, explorando os sentidos que o ato de fumar tem para essas pessoas e como são vivenciadas as pressões para cessar de fumar. Seguindo as teorizações propostas por Spink e Medrado (1999), a produção de sentidos é uma prática dialógica que implica linguagem em uso,

[...] é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas - na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas - constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta (p. 41).

Para isso, em 2007 foram realizadas 50 entrevistas com fumantes de diferentes segmentos da comunidade do campus principal de uma universidade comunitária paulista: professores (P), funcionários celetistas (F), funcionários terceirizados de empresa prestadora de serviços (FT), alunos de pós-graduação (APG) e alunos da graduação (AG). Foram entrevistadas 10 pessoas de cada um desses segmentos, 5 homens e 5 mulheres. No que concerne à idade, 13 das 49 entrevistas efetivamente transcritas (uma foi perdida) contavam, na época, com 50 anos ou mais; outros 13 tinham entre 31 e 49 anos, e os demais (N=23) estavam na faixa dos 20 aos 30 anos.

As entrevistas versaram sobre três aspectos da trajetória de fumantes: (1) O hábito de fumar (idade em que fumou pela primeira vez, quantidade de cigarros que fuma por dia, momentos do dia em que é particularmente importante fumar, marca preferida, razões para essa preferência e associações com cigarro); (2) Informações sobre os riscos (se considera que cigarro faz mal para as pessoas, de que fontes obteve essa informação; se pensa em parar de fumar e o que pretende fazer para que isso ocorra); (3) Considerações sobre os controles ao uso do tabaco (informações sobre locais onde é proibido fumar, considerações sobre as advertências e imagens nos maços; sobre os fumantes passivos e os direitos dos fumantes). Os itens deste roteiro orientaram a definição dos temas utilizados na análise.

As entrevistas transcritas foram convertidas em tabelas com duas colunas. Na segunda coluna, classificamos os temas e subtemas abordados no roteiro de entrevista. Para facilitar, essas tabelas foram ordenadas por temática, impressas e cortadas em tiras segundo as classificações temáticas. Criamos "caderninhos" para cada temática, que possibilitaram ter uma visão de conjunto das respostas de todos os entrevistados e (b) selecionar os entrevistados por serem representativos do conjunto ou, na direção contrária, por sua excepcionalidade.

Para a presente análise, que não esgota a riqueza e complexidade das informações coletadas, foram priorizadas as seguintes temáticas: breve discussão sobre a "carreira de fumante", com ênfase nas experiências iniciais e razões para continuar fumando; a ambivalência entre o prazer de fumar e os riscos à saúde; e o enfrentamento da discriminação aos fumantes. Os depoimentos ilustrativos estão identificados por segmento e faixa etária, características que, em um jogo de contraste, orientaram a apresentação dos dados.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, de modo a preservar o anonimato, os depoimentos estão identificados apenas pelas características dos interlocutores.

Afinal, Por que Tornar-se Fumante?

A literatura sobre tabagismo contém várias informações sobre aquilo que poderíamos denominar de "carreira de fumante", dimensões que se evidenciaram nas entrevistas realizadas. De forma sintética, as primeiras experiências estão associadas à curiosidade na infância, à busca de autoafirmação durante os anos escolares de Ensino Médio e à pressão do grupo, no caso, de adolescentes. Dos 49 entrevistados, apenas dois disseram ter feito suas primeiras experiências com tabaco após os 20 anos de idade.

Muitos dos entrevistados com 50 anos ou mais conviveram com familiares que também fumavam. Por exemplo:

Professora: Estava disponível, era reforçado positivamente, né, você fumar e assim... Minha família é uma família de fumantes. No lado da minha mãe, muita gente fuma, praticamente todos. Minha mãe fumava... Parou de fumar com uma promessa que ela fez. Mas os meus avós fumavam, sabe? Pra mim não tinha uma coisa muito errada com o cigarro, pelo contrário, ela era, era uma coisa de... começou como uma afirmação pessoal mesmo (P1♀ 50 anos ou mais).

Entrevistadora: E aí, como eles reagiram quando souberam que você fumava?

Funcionária: Minha mãe acho que já sabia, né? (risos) Porque meu pai era fumante, meu avô era fumante. Ah, e tem essa também, né, estão falando que o fumante é hereditário, que existe alguma coisa no gene (?), porque eu tenho dois irmãos que fumam: o mais velho fumava e parou, pega mais de jeito nenhum; agora eu estou fumando, o outro irmão parou e voltou, então, sei lá, acho que tem alguma coisa a ver... eu sei que meu avô fumava pra caramba, e meu pai também, e minha mãe, coitada, fumava de tabelinha do meu pai, né? (F5♀, 50 anos ou mais).

Fumar era bonito, elegante e, afinal, como vários afirmaram, "todos fumavam". Era uma maneira de mostrar que já era adulto:

Funcionário: Olha, eu hoje tenho 70 anos, vou fazer dia quinze de novembro agora, 70 anos. Comecei a fumar com 17 anos.

Entrevistador: Na juventude, não tinha nem 18?

Funcionário: Não, mas fumava pouco, só quando nós íamos para os bailes, entendeu? Fim de semana...

Entrevistador: O senhor já morava na cidade?

Funcionário: Não, eu morava no interior da Bahia, no Recôncavo Baiano, perto de uma cidade (?). Sempre tinha aqueles sitião, sempre tinha festinha e até em outras cidades mais longe, distantes. Nós íamos nos bailes, nas festas e aí para poder dar coragem e chegar, naquela época era assim, nas mina, né, para bater um papo...

Entrevistador: Chamar para dançar, não é?

Funcionário: Achava que se tivesse com o cigarro no dedo já era homem, rapaz, e os próprios colegas fumavam, e os que não fumavam diziam: "Meu Deus" pensava, "só eu que não fumo" (F1♂, 50 anos ou mais).

Uma forma de afirmação:

Professora: Quer dizer, era uma forma de afirmação, de libertação, né? E, enfim, eu tinha aquele estigma de primeira da classe, né? Usava óculos. Nunca me matei de estudar, mas ia bem, então... Lá no colégio, eu morria de medo de ser considerada aquela que é a enciclopédia britânica ambulante.

Entrevistadora: A "nerd", né?

Professora: A nerd... né? E andava com uma turminha que também corria esse risco de ser considerada nerd. Aí começamos a fumar meio por conta disso. Eu lembro que o primeiro cigarro que eu fumei, eu passei muito mal, vomitei, né? (P1♀ 50 anos ou mais).

E, especialmente no caso das mulheres, um gesto de contestação apoiado pelo grupo:

Professora: Acho que foi com uns 15 anos, na verdade, circunstância: colégio!

Entrevistadora: Os amigos fumavam?

Professora: O grupo era... Era no final dos anos de 1960, 1970. Acho que era isso, colegial. E era um momento em que nós tínhamos que ser as revolucionárias, e mulher... Então, tem muito a ver com gênero, né. Quem fumava eram os homens! Então tem muito a ver isso; nós mulheres também temos o direito de fumar! Então eu acho que tem muito a ver com isso. Com os colegas do colégio, eram uns colegas que pertenciam ao grêmio, era um colégio que tinha uma participação política, que tinha uma discussão política. Então nós discutíamos as letras do Chico, do Caetano, do Gil, entre outras coisas. Fazíamos vários eventos no colégio, e fumávamos.

Entrevistadora: Então, era um... Tinha um caráter de revolução, de contestação?

Professora: De contestação! (P7♀, 50 anos ou mais).

Os de idade intermediária mencionam também que fumar era considerado bonito, chique:

Aluno de Pós-Graduação: Eu não sei como que é isso, eu comecei a fumar... acho que com uns dez anos eu já fumava, eu fumava por outra, eu penso que eu fumava por outro aspecto, não eram os mesmos de hoje. Eu fumava porque achava bonito; minha mãe fumava um cigarro longo e ela não conseguia fumar inteiro e deixava no cinzeiro a metade, e eu achava bonito fumar e ela acendia o cigarro... Mas, efetivamente, quando eu comecei a fumar, comprar o meu maço de cigarro, acho que foi com uns treze anos (APG4♂; 31-49 anos).

E, de maneira geral, os da faixa etária de 20 a 30 anos enfatizaram a influência do grupo de amigos:

Funcionário: Ó velho, o primeiro trago que eu dei mesmo eu não vou me lembrar, tá ligado, mas eu lembro como começou... assim, mais ou menos, eu comecei a fumar...

Entrevistador: Aham...

Funcionário: Eu estava na sétima, oitava série, tá ligado, e via o pessoal, sabe, na rua fumando... Os caras, meu... Sabe? ... que se destacavam assim na banca, tá ligado, aquela galera que fica na porta da escola, sabe?

Entrevistador: Sei.

Funcionário: ...que chega falando alto; aí eu peguei, assim... Aí velho, eu comecei a fumar... eu mais um amigo meu, tá ligado? Eu e o (nome) no caso, e eu lembro disso daí, cara, que a gente era bem novinho também ( F6♂; Até 30 anos ).

Aluna de Pós-Graduação: E eu lembro assim: que nas festinhas de quinze anos, algumas pessoas começaram a fumar e eu experimentei, deu aquela tonturinha, um mal-estar e tudo (APG8♀ Até 30 anos).

As razões que sustentam o hábito são diversas e abarcam os efeitos calmantes do cigarro (relaxa, conforta, tranquiliza), sua capacidade de controlar a ansiedade (tensão, estresse ou nervoso), de ajudar na concentração, de pontuar rotinas cotidianas.

Aluno de Graduação: [...] isso que eu tava falando do cigarro, tá ligado, ele faz parte de... Em alguns momentos, é muito importante, pelo menos pra mim, momentos de ansiedade, de nervosismo e tal, o cigarro dá aquela bombada dopaminérgica, você relaxa, a ansiedade diminui, e pra mim isso é importante. Infelizmente é importante (AG4♂, até 30 anos).

Entrevistador: Como é para você fumar com tanta proibição?

Funcionário Terceirizado: É normal, mas sobre o problema de fumar, não tem jeito, não, que o fumante, se ele não fumar, ele fica meio... Eu mesmo fico esquentado pra caramba, dá nervoso, dá tudo.

Entrevistador: Não tem proibição que pare você?

Funcionário Terceirizado: Não tem, não, eu carrego até o cigarro no bolso, não tem jeito, eu tenho problema de pressão alta, aí na hora que eu começo a me agitar, o cigarro tem que estar no mesmo lugar. Aí relaxa, é igualmente o alcoólatra, ele não fica tremendo? Aí tem que tomar um pra parar a tremedeira, aí é que tá. Já a bebida eu parei... Falei: "A partir de hoje eu não bebo mais". E não bebo até hoje, mas o cigarro que é (FT3♂, 31-49 anos).

Entrevistador: Em que ocasiões você fuma mais e quando fuma menos?

Professor: Terminando de escrever um livro, um artigo, eu fumo mais. Quando eu estou no computador trabalhando com coisas que eu tenho que terminar com prazos e tal, eu fumo mais, são dias em que eu fumo mais de um maço. Fumo um maço e meio. Agora na rotina, no dia a dia mesmo, quando estou trabalhando, escrevendo... eu estou sempre... Mas, geralmente, quando eu estou em um ritmo tenso de trabalho intelectual, eu fumo mais (P4♂, 31-49 anos).

Professora: [...] O que eu sinto é que eu uso muito o cigarro para pontuar o dia, entendeu? É como se fosse assim: agora é o meu momento, eu vou sentar e fumar um cigarrinho. Por exemplo, quando eu chego em casa do trabalho, que eu sento lá no meu sofá, antes de fazer qualquer coisa, pego o cigarrinho, sabe? (P1♀ 50 anos ou mais).

É importante também destacar a presença do prazer. As pessoas fumam porque gostam, fumar lhes dá prazer, o cigarro as conforta, dá tranquilidade e, conforme indicado por uma entrevistada, atualmente "é um espaço de transgressão" associado à liberdade.

Aluno de Pós-Graduação: É, eu fumo por gostar mesmo, eu acho gostoso, eu não penso em parar de fumar, porque, poxa, é gostoso! Eu tento fumar pouco, eu tento fumar uma quantidade que não agrida tanto o organismo (APG1♂; 31-49 anos).

Funcionária: Mas ele faz parte: você senta para assistir televisão, está com cigarro do lado...Você chega em casa, você vai estudar, vai ler um texto e está com o cigarro do lado... Pegou o cigarro... é uma beleza, é claro que deve ter alguma coisa psicológica, uma explicação para isso, mas é inacreditável. Mas você chega na sala, toma um cafezinho, pega um jornal, acende um cigarro, nossa! Estou começando o dia! É um prazer, por isso, eu acho difícil, ninguém vai parar de fumar, se continuar sentindo o prazer do fumo. Dá para contar nos dedos as vezes que o médico me falou para eu parar de fumar. Mas se você sente prazer em fumar é muito complicado, é uma coisa muito gostosa (F3♀, 31-49 anos).

Professora: Então, eu não sei se eu falei pra vocês mais uma coisa que eu já... Acho que eu falei já, também... Tá vendo que minha cabeça não tá funcionando direito mais? Que o fumar é um pouco um espaço de transgressão, entendeu? Nesse mundo todo certinho, do politicamente correto, do pensamento que você tem que ter, da adequação e não sei o quê, [fumar] ainda é um espacinho de liberdade, não é? (P1♀ 50 anos ou mais).

Convivendo com a Ambivalência

As ressonâncias históricas de paradoxos associados ao uso de tabaco que colocam lado a lado prazer e riscos se revelam nas entrevistas na forma de ambivalências.

Professor: Resumindo: bom e ruim. Bom porque como vício e como dependência você precisa daquilo e você gosta daquilo. Você não fuma, você não ficou dependente de uma coisa que te impuseram. É porque aquilo te dá algum nível de prazer; te dá algum nível de satisfação, de realização. Funciona, portanto, como uma defesa, como uma bengala para alguma questão psíquica sua e, portanto, aquilo te ajuda em algum nível. É uma ajuda precária, insisto, não é uma boa ajuda, mas as pessoas precisam de ajuda precária, porque elas podem (?). Desse ponto de vista, ele ocupa um lugar, um espaço, ele tem uma utilidade do ponto de vista pessoal. Agora, muito ruim, porque ele faz mal pra saúde, causa constrangimentos sociais, porque ele cria limitações de convívio e de circulação, então você trabalha... Ser fumante hoje é viver uma ambiguidade, é essa a ambiguidade entre o exercício de um prazer, mas um prazer que tem um custo e um preço tão alto. Então, é um hábito ambíguo, ele não é simples sem conflito, é com muito conflito, mesmo para pessoas como eu, imagino que ainda não decidiram parar de fumar (P4♂,31-49 anos).

As pessoas se sentem culpadas, ludibriadas pelo marketing que gerou a sedução do cigarro.

Professor: Ah! Aí eu gosto (?) no dia que proibirem todas as drogas. Não estou defendendo nenhuma, porque tem drogas condenadas, tem drogas que é aceita (sic), como o álcool, como o cigarro. Não tem proibição, os fabricantes podem vender e nós temos que nos sentir culpados... Eu acho que é muito contraditório (P10♂, 50 anos ou mais).

Aluna de Graduação: Mas por outro lado eu sei que não é certo, porque o vício é uma droga, que é uma puta indústria nojenta, que vai te matando aos poucos. Eles querem que mate aos poucos, e que eles estão pegando gente cada vez mais nova, então tem mais que proibir (?). Mas por outro lado, quero acender um cigarro aqui, agora, então acho que dá para ir por um lado e por outro (AG10♀, Até 30 anos).

Sobre os malefícios da dependência, os entrevistados sentem na própria pele ou antecipam seus efeitos futuros.

Entrevistadora: O que você já ouviu falar sobre os malefícios do cigarro?

Funcionária: Ah, tudo, né, desde a parte externa, a pele, o cabelo, a unha, o dente... até interna: o pulmão, câncer de garganta, entendeu? Uma série de coisas que você sabe, que você escuta, acompanha. Eu conheço amigos meus que morreram de enfisema; conheço pessoas assim. Mas é algo assim que você vai protelando, né, você vai protelando. Talvez é aquilo que te falei, com a idade chegando, eu acho que... Eu já passei dos 40, com a ideia da finitude chegando, talvez eu comece a falar, não, eu vou ter que criar vergonha e pensar alguma coisa (F3♀, 31-49 anos).

Alguns apontaram efeitos que já estão se manifestando. Entre os homens, destaca-se a falta de fôlego, sobretudo entre aqueles que se dedicavam a alguma atividade esportiva.

Professor: Mas é óbvio que com o tempo você começa a perceber que é um... que vai ter um... que começa a representar um limite, né, na sua vida. Você começa a sentir no fôlego. Hoje em dia se eu, sei lá, for jogar uma partida de futebol, eu ((faz som com a boca ufff)) não aguento. Eu já joguei muito futebol e tudo, então você começa a perceber as limitações físicas do cigarro. E eu estou para parar de fumar de novo. Eu marquei um médico para experimentar um remédio novo (risos) (P6♂, 31-49 anos).

E todos projetaram malefícios futuros, mesmo quando estes não haviam surgido ainda.

Professor: Nunca parei, ah:... já parei assim três dias, dois dias. Mas, de verdade, nunca parei. Nunca parei, nunca pensei seriamente em parar.

Entrevistador: Você acha que algum dia isso vai acontecer?

Professor: Acho!

Entrevistador: E por que seria?

Professor: Eu acho que, fundamentalmente, por uma questão de declínio físico.

Entrevistador: Ã?

Professor: De envelhecimento e achar que os efeitos do cigarro junto com os efeitos do envelhecimento, os declínios físicos vão começar a ser limitantes efetivos da minha atividade física, da minha atividade intelectual e tal. Então, eu penso que isso pode me fazer parar (P4♂, 31-49 anos).

Apesar de conhecerem os malefícios, os participantes da entrevista criaram estratégias de resistência de vários tipos. Alguns chegaram mesmo a perguntar por que tornar o cigarro vilão, quando há tantos outros agentes cancerígenos que não são alvo de políticas tão contundentes.

Professor: (tosse) Deve ser coisa de quem é viciado, né, mas acho que tem um conjunto de malefícios que não são tratados da mesma forma como o vício tão maléfico como o do cigarro. Conservantes, por exemplo, todo mundo sabe que são cancerígenos e ninguém faz propaganda, porque o mercado exige; praticamente em todos, qualquer alimento tem conservantes. Não serve nada para mim, serve para quem produz (P10♂; 50 anos ou mais).

Aluno de Graduação: Eu acho meio hipocrisia esse combate contra o tabagismo como se fosse o pior mal da humanidade, porque se você comer uma coxinha... velho, você está se contaminando tanto quanto se você estivesse fumando um cigarro, tá ligado? Se você estiver comendo um salgadinho Elma chips é pior, tá ligado? Então é hipocrisia total, igual proibição de canabis e a Pure Hemp [papel para enrolar cigarros de maconha]... Vende na padaria, tá ligado, é por aí (AG5♂, até 30 anos).

Outros questionaram os dados de pesquisas realizadas.

Professor: [...] Pesquisa sobre o câncer até onde eu conheço e as coisas do pouco que eu li diz o seguinte: o cigarro é cancerígeno, não há dúvida sobre isso. É a quantidade de cigarros necessários para tua chance de contrair câncer de pulmão, de laringe, enfim, é que são controversas. [...] Então, há pesquisas que supõem um certo consumo diário ou outras que acham que a partir de um consumo muito menor, isso que é inconclusivo. [...] Não tem ainda consenso sobre isso. Que é cancerígeno, sem dúvida. A questão é que se com meio maço, um maço ou cinco maços por dia, faz diferença (P4♂, 31-49 anos).

Professora: Não, eu sei que o cigarro faz mal. Eu sei, por exemplo, que na minha família nunca ninguém fumou... Até sei que minha filha, de vez em quando, fuma aquele cigarro de cravo, mas não é fumante. Meu pai nunca fumou, minha mãe nunca fumou. Cresci numa farmácia, minha mãe era enfermeira, minha filha é médica, minha irmã é enfermeira. E, assim, sempre tive acesso a informações. E desde que passaram a publicar as informações sobre os efeitos do cigarro, claro que eu acompanho. Então sei disso, embora, muitas vezes, eu perceba que (?)... mesmo como crítica, que alguns resultados de pesquisa são de certa maneira forçados para mostrar que é o cigarro que causa, por exemplo, algumas correlações que fazem. Eu posso identificar muitas outras variáveis que estão ali presentes do que só o cigarro. Então a maneira como a imprensa e como os políticos usam esses dados não passa por um crivo. E isso, inclusive, eu acho que enfraquece a tomada de uma atitude frente à informação, mas é claro que não é por isso. Eu sei que o cigarro tem uma série de problemas (P7♀ 50 anos ou mais).

Outros, ainda, apresentam experiências pessoais para relativizar as evidências médicas.

Professor: Agora, minha avó, por exemplo, tem 92 anos e fuma desde os 30; então, ela fuma há 62 anos, ela está super bem de saúde. Agora eu acho que tem a ver com muitos outros fatores, muitas variáveis para uma pessoa fumar até os 92 estar bem e pra outras com no máximo 50 anos estar com câncer, estar com enfisema, etc.; tem muitos outros fatores (P6♂, 31-49 anos).

Aluna de Pós-Graduação: Eu sei que dá câncer, dá câncer vírgula, né? Estão falando muito, ele te mata, eu sei que quem fuma tem mais possibilidade de... Mas eu conheço várias pessoas que dizem: "Fulano largou o cigarro há 10 anos e morreu de enfisema". Ah, meu, porque vai parar de fumar, então? Ah, parou de fumar e vai morrer do mesmo jeito? Tem gente que eu conheço que nunca colocou um cigarro na boca e morreu de câncer no pulmão. Eu sei que é meio loteria, você está mais propenso a acertar na loteria; loteria do câncer (risos), entendeu? [...] Eu sempre arrumo uma desculpa para continuar fumando, na verdade (risos) (APG2 ♀, Até 30 anos).

E há quem forneceu outra explicação para os malefícios reconhecidos.

Aluna de Graduação: Não, assim, até porque eu tinha uma cunhada, irmã de um ex-namorado meu, que teve câncer e nunca fumou. Então, isso que dizem, que câncer vem do cigarro, mentira, câncer vem de células. Tem as amigas e inimigas e essas amigas veem as inimigas como amigas, aí se misturam e resulta no câncer. [...] Mal faz, mas, assim, tipo, que eu fume um maço, faz mal? Pode fazer, só que pior é aquele que fuma... (?). Eu, fumando ou não, não vou morrer? Vou morrer feliz (AG2♀, até 30 anos).

Diante desse panorama, cessar de fumar, para todos os entrevistados, era um horizonte de possibilidade. Alguns haviam parado por longos períodos de tempo e retomado o hábito por motivos diversos, como convivência com outros fumantes ou situações de tensão. Entre as mulheres, aquelas que haviam gerado filhos, ou pretendiam fazê-lo, pararam de fumar (ou diminuíram) por razões como enjoo, por achar que faria mal ao nenê ou, no caso dos homens, por solidariedade com a esposa grávida. E há também os que pararam por motivos de saúde. Vários mencionaram que haviam feito pequenas experiências, parando de fumar para provar que era possível. Tal estratégia foi usada, sobretudo, pelos mais jovens.

Aluno de Graduação: Ah, eu fazia às vezes pequenas experiências assim, tipo, ficar uns dois dias sem fumar, assim, para ter mais ou menos uma noção do meu vício, assim, tipo, ver quanto que eu ia aguentar ficar sem fumar um cigarro, assim. [...] E aí, uma coisa até acho interessante, que, por exemplo, assim, eu vi que eu até consigo ficar sem fumar. Assim, tem esses momentos que eu falei que são... que me dão mais vontade de fumar. Eu até faço uma força e seguro numa boa, assim, mas aí, com o passar dos dias, eu falo: "Ah, não, beleza, eu só queria ver mesmo e volto a fumar assim. Mas se eu tivesse que parar de fumar, esses momentos aí que eu citei que me dão mais prazer de fumar iam ser assim mais... mais difíceis, assim. No geral, as pessoas que eu, em volta assim de mim que tentaram parar de fumar ou pararam de fumar assim, por exemplo, amigo meu, assim, tipo... os caras conseguiram parar de fumar, ficaram até seis meses sem fumar, aí está na balada um dia, tal e "Ah, deixa eu dar um trago"... Aí, o cara volta a fumar de novo (AG1♂, até 30 anos).

Esses períodos de abandono do cigarro, mesmo curtos, reforçam a ideia de que é possível deixar o vício sem o auxílio de especialistas ou de medicamentos. Basta decidir, de fato. Porém, tem que "vir de dentro" ou "ter opinião", o que não condiz com a experiência daqueles que se autodenominam "viciados" ou "dependentes". Esses admitiram que necessitarão de ajuda profissional.

Os Novos Excluídos: a vida diante da discriminação

Além da convivência inevitável com os potenciais malefícios do tabaco, os fumantes de hoje se defrontam com a discriminação daqueles que não fumam. O sentimento de ser discriminado se manifestou de várias maneiras: pela reação dos outros (ser considerado viciado, imbecil), por sua exclusão de certos espaços (ou separação em outros, como os fumódromos), pela falta de apoio para parar de fumar. Muitos se ressentem da atual discriminação contra fumantes, especialmente os mais velhos que se tornaram viciados quando fumar era socialmente aceito e incentivado pela indústria.

Funcionário: É claro, se tornou uma coisa feia fumar. Eu fumo, mas tenho na minha mente que é feio. Que eu estou fazendo uma coisa que é feia. [...] E eu não discordo de quem acha que é feio, porque eu fumo e acho que é feio mesmo. Eu acho que eu não deveria fumar. Você entendeu? (F1♂, 50 anos ou mais).

Professor: Tem um pouco de se sentir... Não tem dúvida que hoje eu me sinto muito mais marginalizado do que... Vamos inverter: Quando eu comecei a fumar, era quase ao contrário, quer dizer, quem não fumava, dos adolescentes da minha idade, quem não fumava era o cara diferente, não era que era marginalizado, mas era o que estava diferente. Hoje eu sinto exatamente a situação oposta [...] (P2♂, 50 anos ou mais).

Alguns mencionaram tratar-se de moralismo.

Professora: Agora tem uma coisa que me irrita muito e que acho que até me impede um pouco de querer parar de fumar, que é de você ser avaliada moralmente porque você fuma. Isso é uma coisa que me irrita muito, acho que isso é uma coisa do nosso tempo, acho que não é só em relação ao cigarro, acho que qualquer coisa que se você tem o comportamento meio fora do rebanho, automaticamente, você é tachada moralmente de uma forma negativa (P1♀ 50 anos ou mais).

Professor: Eu não dou muita bola, na verdade. Dou bola no sentido contrário, de tentar evitar que as pessoas se incomodem. Então, tanto quanto o meu vício permite, de tentar não fumar perto de quem se incomoda muito, isso. Agora com esse tipo de coisa... Vou responder o quê? Então procuro ser indiferente a esse tipo de manifestação, a meu ver, puramente moralista. Eu não tenho nada contra o incômodo das pessoas. Mas me incomodam mais os pruridos moralistas e conservadores, quanto a esse ou qualquer outro hábito, do que o fato dela se incomodar (P4♂, 31-49 anos).

Aluna de Pós-Graduação: Não sou idiota, tipo minha mãe fumando [com um cigarro na boca], dizia: "Não fuma, porque isso faz mal", entendeu? Todo fumante sabe o risco que está correndo, do mesmo jeito que quem está cheirando cocaína [...]. Eu sabia de tudo isso. É engraçado que, na década de 80, 90, era super chique, todo mundo que fumava Hollywood, Free. Era todo mundo cult, era muito legal, aí tinham as bandas de rock... Nossa! O cara era demais, ele fumava, tipo, Marlboro. Agora quem fuma não presta, entendeu? Tem que ser queimado na fogueira. A sociedade está sendo hipócrita (?) erro que ela criou com a mídia; eu sou meio apocalíptica nessas horas, de falar de publicidade; ela mesma criou esse monte de viciado e ela está condenando um monte de viciado que ela mesma criou [...] (APG2 ♀, até 30 anos).

Outros falaram de um processo mais amplo de intolerância que beira ao fascismo.

Professora: [...] Então, na verdade, há uma restrição ao fumante, há uma perseguição ao fumante que revela uma tendência autoritária e a tendência fascista que está presente na sociedade, isso que eu quero dizer. Acho que seria legal... Eu concordo com as restrições, agora isso, essa restrição tem uma série de elementos que são plausíveis, são razoáveis e tal. Agora há um tipo de pessoa que tende a culpar o fumante, aliás, o que é contrário à ideia daqueles que defendem que o tabagismo é doença, essa pessoa é doente, não é isso? Não é isso? Contraria a ideia de que tabagismo é doença, porque as pessoas tendem a perseguir como se fosse coisa de gente fraca, que não tem o que fazer, que visa prejudicar os outros. As pessoas têm uma rejeição ao fumante, mas se não fosse o fumante, seria outra coisa (P8♂, 50 anos ou mais).

Porém, todos, de uma forma ou de outra, se ressentem por serem discriminados.

Funcionária: Eu prefiro não incomodar o não fumante e também porque eu não quero ouvir o que eu já sei, entendeu? [...]. Eu tenho olhos, eu sou inteligente, eu tenho veículos de comunicação, eu tenho veículos medicinais que me falam; sei que vai interferir na minha saúde, mas, por favor, aceito que você não queira que eu fume, ou não goste de fumante, mas eu acho que você tem que respeitar a minha posição, porque não é tão fácil você parar de fumar; é fácil para quem está iniciando, mas não para quem tem mais de vinte anos, mais de vinte anos fumando, é muito difícil (F9♀, 50 anos ou mais).

Aluno de Pós-Graduação: Para as pessoas que não fumam, as pessoas que fumam estão ligadas à ignorância. Elas são muito ignorantes, não têm noção de que isso faz mal, acho que está ligado a essa imagem pejorativa de uma pessoa muito fraca, que fica dependente, fica dependente de uma fumaça que nem barato dá (risos) (APG4♂, 31-49 anos).

Aluna de Graduação: Não, acho que é mais ou menos o que ficou mesmo na entrevista; assim, me irrita muito essa nova situação de ódio ao cigarro, assim, sabe repúdio absurdo; e pessoas vêm com nojo de quem fuma como se você estivesse fazendo um mal absurdo, mais mal do que as pessoas fazem com outras coisas... Parece que, tipo, todos os atos de vida da pessoa horríveis não importa. O que importa é que ela não fuma, então, parece que ela é saudável por não fumar e quem fuma é um, sabe (AG7♀, até 30 anos).

Sobre os direitos de uns e de outros, aborrecem-se pela marginalização acarretada pela proibição, já que respeitam os não fumantes.

Entrevistadora: Então como é ser fumante diante de tantas proibições?

Funcionária: Então foi como eu te falei, você acaba se sentindo mal, excluída, e olhe lá. Nossa, mas a gente acaba dando um jeitinho e tal; mas você acaba se sentindo mal mesmo. Eu estou nessa neura aí, eu sou excluído, eu não posso isso, não posso aquilo, ai (F5♀, 50 anos ou mais).

Aluno de Pós-Graduação: Já tem isso, um padrão formado sobre o cigarro, então a campanha diminui, certo? Porque já existe espaço para fumante cada vez menor nos restaurantes; na rua, as pessoas já não gostam de você. Tenta acender o cigarro em um grupo de jovens, de pessoas com menos idade, eles vão te recriminar, eles não vão olhar o que eles fazem, mas eles vão te recriminar, já existe um padrão formado (APG3♂, 31-49 anos).

Funcionário Terceirizado: Ah, é complicado, né, porque parece que a gente tá invadindo alguma coisa que não pode, é como se estivesse usando uma droga, né, que não pode, mas você tá usando. Mas é mais forte que a gente (FT2♀, 31-49 anos).

Porém, há respeito pelos não fumantes, reconhecendo que a fumaça ingerida pode gerar malefícios.

Funcionária: Como eu havia dito antes, eu passei assim a achar certo, porque já é uma coisa estabelecida que faz mal. Pô, você não pode fazer com que outra pessoa que não fume, né, que participe disso, né; e você tem que se adequar, né? Eu sei que é desagradável; eu sei que é desagradável, o cheiro é ruim, né, é horrível. Você sente... a pessoa que não está acostumada, que não é fumante, ela fica impregnada também, é horrível, meu. Tem que respeitar, né, esses locais que restringem, que são proibidos e tal (F5♀, 50 anos ou mais).

Funcionária Terceirizada: Não, tá certo, porque eu sei que quem não fuma, e um fumante perto dele fumando, a pessoa que não fuma acaba... O cigarro faz mais mal para aquela pessoa que não fuma. O médico mesmo fala. Que nem lá em casa, eu fumei, minha filha não fuma, mas o cigarro, a nicotina faz mal mais pra ela do que pra mim, sabe? Ela não fuma, eu fumando dentro de casa vai fazer mal pra ela, pra minha neta, eu sei disso. Então assim, se eu estiver fumando e tiver uma pessoa e falar, ficar incomodada com o cheiro do cigarro, eu tenho essa consciência de pegar e apagar o meu cigarro (FT10♀, 31-49 anos).

Professor: Eu acho que os não fumantes, que eu acho que são a grande maioria e que são aqueles que fizeram a opção... que, digamos que ser não fumante não obriga ninguém que está perto de você a fumar junto contigo. Agora o fumante obriga outros a fumar junto, então direito do não fumante deve ter a primazia sobre o direito do fumante, entendeu? Porque o fumante obriga outros a sentirem sua poluição, a fumarem junto (P6, 31-49 anos).

Entretanto, muitos consideram que os não fumantes exageram quando impõem seus direitos.

Professor: Eu vejo em dois níveis. Primeiro, o que eu te falei. Eu acho que tem todo direito. Se eu fumo, você veio para minha sala, eu aceitei te receber, não é porque a sala é minha que eu sou obrigado a te... No mínimo eu vou te pedir... Acho que é uma coisa de direito, até de cidadania. Claro que, com tempo, você vai até... Quando você é fumante e fumava sem se preocupar muito, você nem percebia o quanto estava incomodando. Acho que cada vez mais eu tenho consciência de que tem que respeitar o direito do outro, né. Mas tem um segundo aspecto que é essa coisa do fumante passivo é um... a quantidade de bobagem que se escreve é um... porque, por exemplo, você veio de carro pra cá?

Entrevistador: Não!

Professor: Vamos dizer, se você tivesse vindo de carro, um carro polui duzentos caras fumando, entendeu? (P2♂, 50 anos ou mais).

Aluno de Graduação: Em certos espaços, você limitar os espaços que as pessoas podem utilizar essas substâncias... acho que... e vem muito de... Sei lá... mesmo desse terrorismo com cigarro, e da pessoa que está do seu lado achar que aquilo está matando ela, você fumando. Acho isso uma palhaçada (risos), sinceramente (AG7♀. até 30 anos).

Além disso, várias pessoas entrevistadas falam de seus direitos; inclusive do de serem viciados.

Professor: Então, eu acho que as pessoas que têm direitos... Todas as pessoas têm direitos, todas as pessoas têm direitos; então eu acho que as pessoas devem exercer os seus direitos. Exercer seus direitos é, inclusive, reconhecer o direito do outro, o direito do outro estar doente, o direito do outro ser viciado, do outro fazer coisas que você não gosta etc. (P4♂, 31-49 anos).

De fato, se fosse para banir o fumo, então a venda deveria ser proibida.

Aluna de Pós-Graduação: Isso muito me incomoda porque, eu até entendo, acho legal que as pessoas não são obrigadas a conviver com isso, porém eu acho que todo lugar em que é proibido fumar deveria ter espaço para fumante, porque o tabaco é uma droga lícita, vendida em qualquer lugar, não há nada que proíba. Então, eu acho um contrassenso haver uma legislação que proíba você fumar em um determinado lugar e o tabaco continuar sendo vendido. Então, se não pode fumar ali porque faz mal, então não pode fumar o tabaco. Eu acho um contrassenso, eu acho um absurdo mesmo. Ou então que se tenha lugar para fumante, ou então que se proíba a venda do tabaco, né, porque se não pode, não pode em lugar nenhum. Se faz mal para quem está em um determinado espaço, faz mal também para quem está fora daquele espaço, então, não vendam mais (APG7♀, 31-49 anos).

Na perspectiva dos entrevistados, essa difícil conciliação do hábito de fumar com o respeito pelos outros exige certo manejo dos espaços de sociabilidade, não apenas na observação das proibições, mas também no exercício de relacionamentos interpessoais. O uso de tabaco nos espaços públicos segue a regra do bom-senso: em ambientes fechados (de modo geral) não pode; em espaços abertos, pode. Obviamente, essa regra deriva do lento processo de publicização dos malefícios do cigarro e da aprovação de legislações específicas, e nossos interlocutores estavam todos cientes dessas restrições. Mas, independentemente da lei, há também um preceito moral igualmente recente de "não incomodar as pessoas":

Professor: Olha, eu tenho até um controle, um superego muito forte, eu procuro nunca acender um cigarro quando eu sei que vai incomodar alguém, eu tenho até, é meio até autorrepressivo, mas eu não consigo fumar (P2♂, 50 anos ou mais).

As restrições paulatinas - iniciadas em restaurantes e estendendo-se a repartições públicas, serviços de saúde, estabelecimentos educacionais, transportes (e, em São Paulo, mais recentemente, a todos os ambientes fechados - Lei Municipal de São Paulo 14.805/08) - são, normalmente, acatadas e até mesmo bem-vindas, por terem o efeito secundário de fazer com que as pessoas diminuam o número de cigarros.

Funcionária: Eu acho ótimo! Tem uma vantagem; eu respeito, aonde eu vou, se não pode fumar, eu não fumo! Se eu tiver que permanecer em um ambiente que fique duas horas sem fumar, eu fico, entendeu? Se eu vou na casa de alguém e não pode fumar dentro do local, se eu tiver com muita vontade, eu desço, vou fumar lá fora... Então, a restrição do trabalho me favoreceu, porque teve épocas, não muito longínquas, que eu fumava um maço e meio por dia (F9♀, 50 anos ou mais).

Nos espaços privados, as regras são definidas por apresentarem três parâmetros: o cheiro do cigarro, a presença de crianças e a exposição voluntária (ou não) ao cigarro. Quanto ao cheiro, muitos entrevistados declararam não fumar nas áreas sociais da casa (sobretudo no quarto) e no carro.

Funcionário: Hoje... porque hoje eu não fumo dentro de casa, hoje quando eu vou puxar, quando vou fumar, eu desço para a garagem para ficar longe da minha filha. Porque eu lembro que quando eu acendi um cigarro na cozinha, minha filha... eu moro em um sobradinho, ela lá no quarto dizia: "Ô, o cigarro, pai!" [...] E aquilo foi me envergonhando (F1♂, 50 anos ou mais).

Funcionário: Para mim não tem problema nenhum, e eu sou até a favor de lugares que não pode fumar, até por uma coisa que muitos fumantes fazem, e eu odeio e não faço, fumar dentro de carro, tanto que no último carro que a gente comprou, a gente procurou um carro de não fumante, porque carro de fumante, por mais que você lave, fede cigarro, e é um cheiro insuportável (F7♂, até 30 anos).

No caso da presença de crianças, filhos ou netos, os problemas de saúde já existentes ou potenciais é que levam a cercear o uso de tabaco:

Professora: Sim; ele faz mal para mim e para quem está junto. Agora que eu tenho meu neto, quando meu neto vai em casa, eu não deixo que ele fique lá comigo. Então o que eu faço: eu não fumo nem na parte social da casa - eu não tenho um cinzeiro, eu não fumo no quarto, eu não fumo na sala de estar, eu não fumo na sala de jantar, sabe? (P3♀, 50 anos ou mais).

Funcionária Terceirizada: Fumamos... não quando o bebê tá lá, não, quando o bebê tá junto, a gente não fuma [...] porque ele já teve pneumonia, e o médico falou que era por causa do cigarro, porque, quando ele era novinho, eu fumava muito perto dele. Aí atacou pneumonia nele, agora a gente não fuma mais, não.

Entrevistadora: Você acha que foi isso mesmo?

Funcionária Terceirizada: Com certeza, porque o cigarro dá pneumonia (FT8♀, até 30 anos).

Note-se o que dizem os entrevistados a respeito da exposição involuntária.

Professor: Eu sou totalmente favorável à proibição do cigarro em lugares onde as pessoas não escolheram estar entre fumantes, sabe? Então, por exemplo, se você tem um pub, um bar, um restaurante que tá escrito lá, aqui tem áreas para fumantes, a pessoa entra ali, sabendo que lá tem área para fumante, certo? Então, por exemplo, onde tem não fumantes que são obrigados a conviver com fumaça alheia, eu sou a favor que seja proibido onde tem não fumantes, porque precisa ter não fumantes ali, porque em qualquer lugar público, qualquer escola, universidade, escritório fechado, eu acho que tem ser banido o cigarro. Acho que ninguém tem que conviver com fumaça involuntariamente, só voluntariamente, entendeu? (P6♂, 31-49 anos).

Porém, os espaços abertos, públicos, são considerados próprios para o uso de tabaco embora alguns depoimentos deem indicações de desavenças em torno da definição do que vem a ser espaço aberto.

Funcionário Terceirizado: Eu já procuro não fumar perto, vamos supor... eu tô numa fila de ônibus, assim, no ponto, pra mim fumar eu já pego e fumo afastado. Eu não gosto, e quem tá perto de mim e não é fumante, eu também não gosto de fumar perto. Eu saio fora, eu me afasto para poder fumar (FT3♂, 31-49 anos).

Aluna de Pós-Graduação: É. Um dia eu criei uma briga com uma menina na rua. Eu estava num lugar aberto, tipo rua, ponto de ônibus, longe da menina e acendi um cigarro. Meu, eu acho isso muita falta de respeito; eu não estou dando baforada na sua cara, no seu cabelo e não estou numa sala com você. E aí eu comecei a implicar com ela: o que que é? Tipo, meu, na boa, o ar é de graça pra todos, é só um pouquinho mais prá lá, a fumaça não estava indo pra lá e ela queria arranjar briga (risos). Queria briga, conseguiu (APG2 ♀, até 30 anos).

Considerações Nada Finais: promoção da saúde na encruzilhada entre riscos e exclusão social

A literatura especializada, sua divulgação por meio da mídia e as campanhas antitabaco não deixam a menor dúvida: o cigarro resulta da combinação de cerca de 4 mil substâncias tóxicas, 250 das quais são prejudiciais ao organismo e 50 são especificamente cancerígenas. Um coquetel químico que causa dependência nicotínica física e psicológica (Carmo e col., 2005).

Na perspectiva da Saúde Coletiva, o caminho é óbvio: é necessário informar o público sobre os riscos associados ao tabagismo, buscando evitar que as pessoas, sobretudo os jovens, se iniciem no hábito, e oferecer apoio para os que desejam cessar de fumar. Todos os entrevistados tinham conhecimento de que cigarros causam dependência, assim como dos malefícios do fumo para si e para os outros. Entretanto, para além da disponibilização de informações, é preciso trabalhar com a premissa tantas vezes referida pelas pessoas que entrevistamos: o tabaco é uma droga legalizada, porém, que vicia, causando dependência física e psicológica. Portanto, são muitos os desafios a serem enfrentadas pelos fumantes.

Em primeiro lugar, é preciso enfrentar a cessação do tabagismo, sob o ponto de vista da dependência física. Existem, hoje, estratégias variadas para auxiliar nessa tarefa, embora, em investigações complementares realizadas pela equipe que participou da pesquisa, o acesso a essas medidas nem sempre seja fácil: os produtos farmacêuticos são economicamente pouco acessíveis, e o apoio médico é disponível apenas em tese.

Funcionária: Mas, por outro lado, também tem umas coisas, por exemplo, eu fui me informar, entrei na internet e encontrei vários sites para pessoas que querem parar de fumar. Tem tratamento, onde? Lá na UNIFESP; tem outro acho que é no Einstein, longe! Que horas que vou sair para ir nessas reuniões? Eu vou faltar no trabalho? [...]. Ou então tem coisas na internet, em inglês. Tem alguns sites que eu descobri que são americanos; na hora, eu achei bom, que eu exercito o meu inglês, né? Mas você acha que, na hora do mal, você vai pensar em inglês? Você quer receber o cigarro. E outra, tem outra que o professor da (nome da universidade) falou pra gente. É um tratamento novo, novecentos reais a caixinha. Tudo bem, é por seis meses, mas você não compra aos pouquinhos, mas novecentos reais, na boa, eu não tenho grana agora. Ah, vale a pena? Vale. O problema é o seguinte, posso descer no banco e pedir um empréstimo e comprar o remédio, mas quem me garante que vai dar certo em seis meses, entendeu? É complicado (F3♀ 31-49 anos).

Em segundo lugar, para muitos, o cigarro é mais do que um hábito associado à sociabilidade. Na expressão de alguns entrevistados, é uma muleta química (ainda que inadequada) que possibilita enfrentar a ansiedade e o estresse. O apoio, nesse caso, é em longo prazo, envolvendo, por exemplo, medicamentos antiansiolíticos ou terapias variadas (com especial destaque para as cognitivo-comportamentais). Não é tarefa fácil, como afirma uma das funcionárias terceirizadas que participou da pesquisa:

Entrevistadora: E você acha que o cigarro pode lhe fazer mal no futuro?

Funcionária Terceirizada: Pelo que eu vejo falar... O meu avô morreu de câncer no estômago, só que ele fumou muito na juventude dele. Então o médico disse que isso foi efeito do cigarro, que ele tinha fumado quando era mais jovem, né, aí ele teve câncer e acabou morrendo por causa disso daí. Eu sei que mais tarde isso pode acontecer; eu tô consciente disso. Mas é difícil (parar), viu? Eu tento... Se eu pudesse arrumar um jeito de parar mesmo de fumar, eu parava. Mas parece uma coisa, eu tento parar e fico mais nervosa. Eu acabo tendo que fumar e não consigo dormir. Eu tive que entrar em tratamento, tomar calmante para conseguir dormir. Eu fiquei dois meses sem fumar, mas, nesses dois meses, eu não conseguia dormir de jeito nenhum. Todo mundo dentro de casa dormia e eu ficava igual a um zumbi pela casa, pra lá e pra cá; ficava andando, ficava andando. Me dava dor de cabeça, não consegui... Aí eu tive que tomar calmante para poder dormir. Aí o médico falou que eu não podia ficar dependente também do remédio, né? Tive que cortar o remédio e acabei voltando a fumar, não teve jeito (FT10♀ 31-49 anos).

Em terceiro lugar, como podemos observar nos depoimentos, há quem se dispõe ao risco. E, nesses casos, deve-se perguntar se não vale a pena importar para este cenário o que aprendemos com as experiências de redução de danos no caso de uso de drogas ilícitas. A redução de danos é uma estratégia de Saúde Pública que parte da premissa de que algumas pessoas optam por estilos de vida ou práticas associadas a riscos, como uso de drogas, sexo casual, prostituição. O objetivo principal dessa estratégia é mitigar o risco para a pessoa ou o dano decorrente da proibição dessas práticas.

No Brasil, a redução de danos tornou-se bastante conhecida no contexto da epidemia de Aids, sobretudo no que diz respeito ao programa de troca de seringas para usuários de drogas intravenosas. Trata-se de um conjunto de medidas que deve abranger todas as áreas de prevenção, desde o desencorajamento do uso inicial até a redução das consequências adversas do abuso de drogas para a saúde do indivíduo e para a sociedade, ou seja, da redução de danos (Mesquita, 1994).

Mais recentemente, a estratégia de redução de danos vem sendo empregada no contexto do uso de tabaco. Em artigo publicado no British Medical Journal, em 2004, Ann McNeill lista uma série de estratégias de redução de danos para fumantes que não querem ou não conseguem parar de fumar (McNeill, 2004). Contrapõe formas mais eficientes, como a redução no número de cigarros, a terapia de reposição da nicotina e os produtos orais do tabaco não fumígeno - o snus sueco, por exemplo -, com as que têm menor impacto na redução de danos, como os cigarros de baixo teor de nicotina, os alternativos ou o uso de charutos e cachimbos.

Todavia, essas medidas são encaradas com suspeita, pois, muitas vezes, são promovidas pela própria indústria de tabaco.2 2 No final do artigo de McNeill, por exemplo, os editores acrescentam uma nota sobre interesses conflituosos, informando que a autora havia recebido financiamento e hospitalidade de diferentes indústrias de tabaco. Além do mais, as estratégias de redução de danos suscitam questões controversas, porque podem ser interpretadas como aceitação da inevitabilidade dos estilos de vida arriscados. Em um mundo ideal, o imperativo moral seria o das práticas saudáveis. Entretanto, vários motivos levam os fumantes a correr riscos: o prazer, os benefícios associados à ousadia. Assim, como forma de resistir aos excessos de moralização potencialmente associados à abordagem da promoção da saúde e dos estilos de vida saudáveis, sugerimos que é importante refletir sobre diferentes e criativas maneiras de reduzir os danos.

Finalmente, para além das questões específicas do controle dos danos relacionados ao uso do tabaco, a pesquisa realizada possibilitou refletir criticamente sobre os efeitos secundários desta e de outras campanhas voltadas ao encorajamento de estilos de vida saudáveis que, às vezes, se revestem de conotações moralistas que levam à discriminação daqueles que, por razões variadas, não os adotam. Há que se considerar que as mensagens sobre o processo saúde-doença geram efeitos diversos nos níveis pessoal e coletivo. É na confluência entre esses níveis que o sentimento de discriminação emerge. No caso do tabaco, além dos sentidos negativos atribuídos ao seu uso por suas conotações de risco à saúde, somam-se outros voltados à defesa dos direitos das pessoas que não fumam, mas que sofrem os efeitos da aspiração da fumaça dos cigarros - os fumantes passivos.

Obviamente, a literatura contém inúmeros dados sobre o fumo passivo que legitimam o exercício do direito a não ter que aspirar a fumaça de cigarros. No entanto, os depoimentos coletados nesta pesquisa oferecem/indicam uma outra versão, ou seja, a de que os direitos tão alardeados nas campanhas antitabagísticas transbordam para a intolerância e discriminação que, como no caso de outros estilos de vida pouco saudáveis, incitam à discriminação e resultam no sentimento de exclusão social.

Recebido em: 31/08/2009

Reapresentado em: 11/04/2010

Aprovado em: 19/04/2010

  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. A ratificação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco pelo Brasil: mitos e verdades. Rio de Janeiro: INCA, 2004.
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  • 1
    Pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
  • 2
    No final do artigo de McNeill, por exemplo, os editores acrescentam uma nota sobre interesses conflituosos, informando que a autora havia recebido financiamento e hospitalidade de diferentes indústrias de tabaco.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Aceito
      19 Abr 2010
    • Revisado
      11 Abr 2010
    • Recebido
      31 Ago 2009
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