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O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica

The ethnographic method in health researches: an anthropological thinking

Resumos

O artigo tem como objetivo refletir sobre as possíveis contribuições teórico-metodológicas das ciências sociais para as pesquisas na área da saúde, dada a crescente incorporação de metodologias qualitativas, em especial do método etnográfico, nessas pesquisas. O ponto de partida dessa reflexão são três pressupostos teórico-conceituais fundamentais à consolidação do método etnográfico em sua origem, concomitantemente à própria afirmação da ciência antropológica, entendendo que na compreensão do que seja a prática etnográfica, também se compreenda a importância da análise antropológica na explicação dos diferentes fenômenos socioculturais, dentre eles a saúde, o adoecimento e as estratégias de tratamento ou de cura. Esses pressupostos - etnocentrismo, relativismo e cultura - marcaram de tal forma a pesquisa e a produção de conhecimento antropológicos, que método e teoria se tornaram indissociáveis. Pensar na possibilidade de reiteração e reposição constante dessa indissociabilidade, em um movimento dialético da experiência concreta com as teorias apreendidas, pode ser uma das principais contribuições das ciências sociais, em particular da antropologia, para as pesquisas na área da saúde. A ausência dessa reflexão parece colocar em risco o compromisso dessa possível interface com o rigor teórico-metodológico na produção e divulgação do conhecimento científico, pela redução e simplificação do método à técnica. Por outro lado, essa mesma indissociabilidade leva-nos a indagar sobre as possíveis contribuições da incorporação do método etnográfico em pesquisas na área da saúde ao conhecimento antropológico.

Antropologia; Cultura; Pesquisa Qualitativa; Metodologia


The article aims to reflect on the possible theoretical and methodological contributions of social science research in health, given the increasing incorporation of qualitative methodologies, particularly ethnography, this research. The starting point for this discussion are three theoretical and conceptual keys to the consolidation of the ethnographic method in its origin, in conjunction with the very assertion of anthropological science, assuming that by understanding what is the ethnographic practice, we also understand the importance of the anthropological explanation of the different socio-cultural phenomena, among them health, illness and strategies for treatment or cure. These assumptions - ethnocentrism, relativism and culture - marked so the research and production of anthropological knowledge, theory and method that have become inseparable. Thinking of repetition and constant replenishment of inseparability in a dialectical movement of concrete experience with learned theories can be a major strength of the social sciences, particularly anthropology, for research in health. The absence of this reflection seems to risk the compromise that can interface with the theoretical and methodological rigor in the production and dissemination of scientific knowledge, the reduction and simplification of the technique. On the other hand, this same inseparability leads us to inquire about possible contributions of the incorporation of ethnographic method in research in the health of anthropological knowledge.

Anthropology; Culture; Qualitative Research; Methodology


PARTE I - II ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica

1 Texto elaborado a partir de apresentação no II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, junho de 2009.

1 1 Texto elaborado a partir de apresentação no II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, junho de 2009.

The ethnographic method in health researches: an anthropological thinking

Eunice Nakamura

Doutora em Antropologia. Professora Adjunta I do Departamento de Saúde, Educação e Sociedade - UNIFESP. Campus Baixada Santista. Endereço: Rua Governador Pedro de Toledo, 3, ap. 51, CEP 11045-551, Boqueirão, Santos, SP, Brasil. E-mail: eunice_nakamura@hotmail.com

RESUMO

O artigo tem como objetivo refletir sobre as possíveis contribuições teórico-metodológicas das ciências sociais para as pesquisas na área da saúde, dada a crescente incorporação de metodologias qualitativas, em especial do método etnográfico, nessas pesquisas. O ponto de partida dessa reflexão são três pressupostos teórico-conceituais fundamentais à consolidação do método etnográfico em sua origem, concomitantemente à própria afirmação da ciência antropológica, entendendo que na compreensão do que seja a prática etnográfica, também se compreenda a importância da análise antropológica na explicação dos diferentes fenômenos socioculturais, dentre eles a saúde, o adoecimento e as estratégias de tratamento ou de cura. Esses pressupostos - etnocentrismo, relativismo e cultura - marcaram de tal forma a pesquisa e a produção de conhecimento antropológicos, que método e teoria se tornaram indissociáveis. Pensar na possibilidade de reiteração e reposição constante dessa indissociabilidade, em um movimento dialético da experiência concreta com as teorias apreendidas, pode ser uma das principais contribuições das ciências sociais, em particular da antropologia, para as pesquisas na área da saúde. A ausência dessa reflexão parece colocar em risco o compromisso dessa possível interface com o rigor teórico-metodológico na produção e divulgação do conhecimento científico, pela redução e simplificação do método à técnica. Por outro lado, essa mesma indissociabilidade leva-nos a indagar sobre as possíveis contribuições da incorporação do método etnográfico em pesquisas na área da saúde ao conhecimento antropológico.

Palavras-chave: Antropologia; Cultura; Pesquisa Qualitativa; Metodologia.

ABSTRACT

The article aims to reflect on the possible theoretical and methodological contributions of social science research in health, given the increasing incorporation of qualitative methodologies, particularly ethnography, this research. The starting point for this discussion are three theoretical and conceptual keys to the consolidation of the ethnographic method in its origin, in conjunction with the very assertion of anthropological science, assuming that by understanding what is the ethnographic practice, we also understand the importance of the anthropological explanation of the different socio-cultural phenomena, among them health, illness and strategies for treatment or cure. These assumptions - ethnocentrism, relativism and culture - marked so the research and production of anthropological knowledge, theory and method that have become inseparable. Thinking of repetition and constant replenishment of inseparability in a dialectical movement of concrete experience with learned theories can be a major strength of the social sciences, particularly anthropology, for research in health. The absence of this reflection seems to risk the compromise that can interface with the theoretical and methodological rigor in the production and dissemination of scientific knowledge, the reduction and simplification of the technique. On the other hand, this same inseparability leads us to inquire about possible contributions of the incorporation of ethnographic method in research in the health of anthropological knowledge.

Keywords: Anthropology; Culture; Qualitative Research; Methodology.

Introdução

A crescente incorporação em pesquisas na área da saúde de métodos qualitativos, no geral originados nas Ciências Sociais e Humanas, coloca aos cientistas sociais que atuam na interface com a saúde, em especial na formação de profissionais, tanto no nível de graduação como na pós-graduação, a necessidade de uma postura crítica em dois planos: quanto à observação de certos pressupostos na utilização de métodos qualitativos e na produção do conhecimento científico mediante a utilização de referencial teórico-conceitual apropriado.

Se, por um lado, o processo de disseminação dos métodos qualitativos aponta para uma necessidade de a área da saúde buscar novos referenciais teórico-metodológicos que deem conta de seus objetos, por outro lado, isso nos leva a indagar se os pesquisadores têm se preocupado de fato com os pressupostos teórico-conceituais que fundamentam tais métodos, e não simplesmente com a aplicação de técnicas (Nakamura, 2009). A origem dessa indagação baseia-se na compreensão de que metodologia é o conhecimento crítico dos limites e das possibilidades do processo científico, em que a questão técnica encontra-se vinculada à discussão teórica (Martins, 2004), ou seja, implica a produção de conhecimento.

Ao refletir sobre a produção do conhecimento científico no âmbito dos métodos e técnicas qualitativos de pesquisa, Martins (2004) ressalta que "fazer ciência" implica não apenas o compromisso do pesquisador com alguns pressupostos a serem considerados no processo científico, mas fundamentalmente a expressão de uma qualidade essencial à sua utilização. Dentre os pressupostos apontados pela autora, referidos mais especificamente à sociologia, cuja fronteira com outras disciplinas das ciências sociais, no entanto, é na maioria das vezes difusa, destaca-se a análise intensiva e em profundidade de microprocessos, a flexibilidade quanto às técnicas de coleta de dados e a heterodoxia na análise dos dados. Soma-se a eles a qualidade mencionada, a "capacidade integrativa e analítica" do pesquisador, desenvolvida a partir de sua "capacidade criadora e intuitiva". Trata-se, nesse caso, da capacidade intuitiva "resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador", ou seja, de sua "competência teórica e metodológica" (Martins, 2004, p. 292-293).

Na antropologia, qualidade semelhante do pesquisador e igualmente essencial é apresentada por Oliveira (1998, p. 18) como "faculdades do entendimento", as quais consistem na integração entre percepção (da realidade empírica) e pensamento (teórico), que conduz ao "ato cognitivo" propriamente dito, de natureza epistêmica, a partir do qual se torna possível a construção do saber.

Em relação à reflexão crítica proposta neste artigo quanto à observação de certos pressupostos teórico-conceituais e à efetiva produção do conhecimento, toma-se como caso exemplar o método etnográfico, na medida em que sua origem não pode ser dissociada da própria origem da ciência antropológica e que, portanto, na sua escolha como método para as pesquisas na área da saúde, dois conceitos fundamentais à constituição da antropologia como ciência devem ser considerados: etnocentrismo e cultura (Nakamura, 2009), além de um terceiro a ser destacado nesse processo, o relativismo, indissociável, em sua origem Boasiana, de um conceito de cultura.

Daí a importância de que, ao pretender utilizar o método etnográfico, os pesquisadores sejam convidados a conhecer um pouco da história da antropologia, dada a relação existente entre etnografia, etnologia e antropologia, como três etapas ou três momentos de uma mesma pesquisa, sendo a preferência por uma delas apenas a expressão "predominantemente voltada para um tipo de pesquisa, que não poderia nunca ser exclusivo dos dois outros" (Lévi-Strauss, 1975, p. 396). Ressalta-se, em especial, a relação estreita entre antropologia e etnografia, desde suas origens, e a correspondência entre seus pressupostos teóricos, os quais têm garantido aos pesquisadores a manifestação e reposição constante de sua "capacidade criadora e intuitiva" (Martins, 2004) ou de "atos cognitivos" (Oliveira, 1998), tão essenciais à produção do conhecimento sobre os fenômenos socioculturais, dentre eles a saúde, a doença, as formas de tratamento e de cuidado.

Ao destacar alguns pressupostos quanto à utilização de métodos e técnicas qualitativas, chama-se a atenção de pesquisadores, tanto os da área da saúde como os das ciências sociais, para possíveis riscos da incorporação e banalização desses métodos e técnicas em pesquisas na área da saúde, pela redução da complexidade que sua utilização exige.

Esse convite à reflexão retoma o debate surgido na década de 1980, apontado por Cardoso (1988), em relação ao pragmatismo atribuído às pesquisas qualitativas, ao mesmo tempo em que se "desqualificou como ocioso o debate sobre os compromissos teóricos que cada método supõe" (Cardoso, 1988, p. 95). Os riscos de tal pragmatismo, especificamente em relação ao método etnográfico, são aqui retomados como objeto de reflexão antropológica, numa tentativa de requalificar o debate teórico-metodológico em termos da reiteração e reposição constante do movimento dialético da experiência de campo com as teorias apreendidas, uma possibilidade também a novas revelações teóricas.

Pressupostos Teórico-conceituais: a constituição do método etnográfico e da antropologia

"Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem é etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou, mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento" (Geertz, 1989, p. 15).

Considerando-se a relação estreita entre esses momentos da pesquisa, podemos afirmar também que ao conhecer mais sobre a antropologia, é possível compreender melhor o que é o método etnográfico, como se originou, quais os seus princípios.

A relação entre esses dois momentos da pesquisa possibilita-nos vislumbrar o processo de construção do conhecimento científico, em que a etnografia corresponderia aos primeiros estágios da pesquisa, ao trabalho de campo orientado pela observação e descrição aprofundada dos fenômenos, complementado pela etapa de síntese consolidada na e pela antropologia (Lévi-Strauss, 1975).

Lévi-Strauss (1993) atribui a origem da "antropologia social" a Marcel Mauss, que no final da década de 1930, no século XX, teria introduzido o termo para ressaltar, nos estudos sobre as diferentes sociedades, a importância da relação entre as várias dimensões da vida social e cultural que as constituem e da observação empírica dos fatos sociais como condição imprescindível à sua compreensão.

Assim, Mauss como teórico e Malinowski como "experimentador" foram os primeiros a compreender, segundo Lévi-Strauss (1993), que não é suficiente "decompor e dissecar" os fenômenos sociais, pois estes são vividos por homens. A vida social e cultural de uma sociedade é apreendida em sua totalidade, a partir da observação de como os diferentes aspectos da vida social se expressam em situações particulares, revelando valores, comportamentos, modos de vida e visões de mundo diferentes. A síntese empírica e subjetiva operada a partir das contribuições desses autores tornou-se uma característica fundamental do conhecimento antropológico, uma garantia de que a análise pode contemplar, ou ao menos deveria, a totalidade da vida social.

Percebe-se na definição do que seja "antropologia social", de acordo com Lévi-Strauss (1993), a importância da relação entre a reflexão teórica do antropólogo e a pesquisa de campo, sendo possível afirmar que o pesquisador pode ser considerado um "intérprete", o mais fiel possível, da realidade vivida pelos homens em outras sociedades, grupos sociais ou culturas.

Ao referir-se à consolidação do pesquisador de campo profissional na primeira metade do século XX, "o etnógrafo como o melhor intérprete da vida nativa", em oposição ao viajante, ao missionário e ao administrador, Clifford (1998) também ressalta a importância da fusão da teoria geral com a pesquisa empírica, da análise cultural com a descrição etnográfica, embora numa perspectiva crítica acerca da "formação e desintegração da autoridade etnográfica na antropologia social do século XX" (Clifford, 1998, p. 18).

A complementaridade entre teoria e pesquisa tem sido uma preocupação recorrente na antropologia, embora não observada em seus primórdios, no século XVI. Os viajantes e informantes (administradores que vinham conhecer as colônias recém-descobertas ou missionários que procuravam levar a fé para "índios sem alma", entre outros) traziam as impressões coletadas nas sociedades recém-descobertas, sendo muitas informações filtradas pelo olhar europeu, no geral bastante preconceituoso com relação a esses outros povos.

Na busca de um conhecimento sistematizado sobre o ser humano, a nascente antropologia buscava compreender as diferentes sociedades em termos de uma classificação comparativa e evolutiva das sociedades humanas, a partir de critérios estabelecidos pelo mundo europeu "civilizado".

A essa visão de mundo, contrária à ideia de diversidade das sociedades e culturas, fundamentada em valores de uma única sociedade, denominou-se etnocentrismo, o primeiro conceito:

"A atitude mais antiga, e que se baseia indiscutivelmente em fundamentos psicológicos sólidos (já que tende a reaparecer em cada um de nós quando nos situamos numa situação inesperada), consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais: morais, religiosas, sociais, estéticas, que são as mais afastadas com as quais nos identificamos. 'Hábitos de selvagem', 'na minha terra é diferente', 'não se deveria permitir isto' etc., tantas reações grosseiras que traduzem esse mesmo calafrio, essa mesma repulsa diante de maneiras de viver, crer ou pensar que nos são estranhas" (Lévi-Strauss, 1993, p. 333).

A lógica do etnocentrismo consiste, pois, em pensar o mundo por meio de um referencial único, ou seja, tendo como referência a cultura, os valores e costumes de uma sociedade em detrimento de outra, manifestando-se por meio de julgamento de valores da cultura do outro, seu modo de pensar e agir.

O etnocentrismo que possibilitou a classificação comparativa das sociedades humanas, baseado principalmente no pensamento evolucionista, foi criticado por Franz Boas, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Boas redefiniu os fundamentos da antropologia ao considerar a humanidade formada por grupos ou culturas únicos e distintos em suas práticas e valores. As sociedades ocidentais, europeia e norte-americana deixaram de ser o padrão de "civilização" a partir do qual outras sociedades eram julgadas, sendo cada uma delas e suas culturas vistas como produto de contextos históricos particulares, expresso em um conjunto de crenças, valores e comportamentos (Greenfield, 2001; Silverman, 2005). A essa nova visão acerca das sociedades humanas denominou-se relativismo cultural, o segundo conceito.

A atitude crítica de Boas em relação ao pensamento evolucionista baseou-se na oposição sistemática à classificação das pessoas em categorias, muito comum na postura etnocêntrica, insistindo na importância de suas particularidades. Um de seus principais desafios foi questionar o rigor científico do pensamento evolucionista, tarefa realizada com base em dados etnográficos (Greenfield, 2001, p. 42-43) e por meio da elaboração teórica simultânea das noções de relativismo e cultura.

Boas ressaltou a importância do trabalho de campo no estudo das sociedades primitivas, ao mesmo tempo em que redefiniu a noção de cultura, o terceiro conceito aqui apresentado, fortemente influenciado pelo conceito de cultura formulado por Tylor - compreendida como "um conjunto complexo, onde se ordenam todos os conhecimentos, crenças, arte, moral, direitos, costumes e todas outras aptidões ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade" (Tylor, 1871 citado por Lévi-Strauss, 1975, p. 34). Uma diferença fundamental em relação a esse conceito, entretanto, deve ser apontada a partir da redefinição dos fundamentos da antropologia proposta no pensamento de Boas. Nele, cultura não é sinônimo de civilização, mas é definida num sentido plural, enfatizando a diversidade das culturas, consideradas como contextos de comportamentos humanos apreendidos (Silverman, 2005, p. 262), de acordo, portanto, com sua perspectiva relativista.

Essa viagem empreendida por autores clássicos da antropologia permite que se compreenda como se estabeleceu a relação entre a antropologia e o método etnográfico, concomitantemente à definição de seus fundamentos teórico-conceituais e metodológicos, conforme anteriormente apontado.

Os conceitos de etnocentrismo, relativismo e cultura, apresentados como fundamentos ao método e ao conhecimento científico por ele produzido, sofreram inúmeras críticas, reformulações e adaptações aos novos contextos de pesquisa, principalmente na perspectiva hermenêutica de Geertz e na crítica à autoridade etnográfica feita pelos pós-modernos na antropologia; entretanto, na perspectiva antropológica permanece a ideia de que:

[...] etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato - a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados -, é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras [referindo-se à noção de cultura], que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (Geertz, 1989, p. 20).

Desde suas origens, falar de etnografia pressupõe considerar a ciência antropológica e vice-versa, pois se trata o tempo todo da relação intrínseca que se estabelece entre método, pressupostos teórico-conceituais e produção do conhecimento, na busca de uma compreensão a respeito dos homens, a partir de suas experiências particulares.

Ao assumir como fundamental essa relação, busca-se refletir sobre as possíveis contribuições da antropologia, também dos antropólogos, na escolha pelo método etnográfico em pesquisas na área da saúde.

Contribuições Teórico-metodológicas da Antropologia para as Pesquisas em Saúde

Saúde, doença, formas de tratamento e cura não são temas estranhos às pesquisas antropológicas, pois "têm sido estudados, direta ou indiretamente, por antropólogos desde o final do século XIX, possibilitando à ciência antropológica, por meio da descrição e da análise proporcionadas por estudos etnográficos, acumular um vasto conhecimento acerca das diferentes experiências de sociedades e grupos sociais sobre esses fenômenos" (Nakamura, 2009, p. 27).

No geral, a maioria desses estudos não tinha como objeto específico esses temas, mas por meio de outros, como a religião e a magia, puderam revelar aspectos importantes sobre os sistemas explicativos que integram saúde, doença e cura em diferentes sociedades.

Mais recentemente, verifica-se o aumento do interesse da antropologia pelos temas saúde e doença, principalmente na década de 1980, num movimento que poderia ser aqui denominado de "penetração" das ciências sociais na saúde. Destacam-se nesse processo os estudos sobre saúde e doença das classes trabalhadoras ou de grupos específicos da população; saberes e práticas populares de cura; saberes e práticas da medicina oficial; a loucura e o desvio; sexualidade; medicalização; serviços de saúde; escolhas terapêuticas, entre outros, segundo autores que sistematizaram a produção do conhecimento sobre o tema (Canesqui, 1994; Carrara, 1994; Duarte, 1998).

Na maioria desses estudos, fica evidente a utilização do método etnográfico vinculada à (necessária) produção de conhecimento antropológico, sendo o problema menos em relação aos pressupostos teórico-metodológicos e mais de ajustes necessários em relação ao método - como, por exemplo, a relação entre pesquisador e pesquisados e o questionamento da autoridade do etnógrafo (Cllifford, 1998; Geertz, 1989) - e de escolhas teóricas adequadas para dar conta dos novos objetos e contextos de pesquisa, no geral pouco comuns à disciplina.

Por outro lado, num outro movimento, o de "incorporação" (pela saúde) do método etnográfico, verifica-se um aumento considerável, principalmente nos anos 2000, de artigos que fazem referência ao método etnográfico.

Numa rápida consulta na base Scielo, utilizando-se o termo etnografia, constata-se a existência de 76 artigos publicados, dos quais 73 somente nos anos 2000. A maioria desses artigos provém da área de ciências sociais, mais especificamente da antropologia, mas 17 estão relacionados a pesquisas da área da saúde e foram publicados em periódicos das áreas de enfermagem (10), de saúde coletiva (5) e de psicologia (2).

A disseminação do método etnográfico em pesquisas dessa área, assim como a análise de fenômenos contemporâneos de saúde e adoecimento por antropólogos, coloca a necessidade de refletir criticamente sobre as contribuições teórico-metodológicas do referencial antropológico a essas pesquisas, questionando-se, também, em que medida elas têm contribuído para a renovação desse conhecimento.

Um primeiro aspecto a ser destacado nessa reflexão refere-se à observação, como já citado, de alguns pressupostos inerentes ao método etnográfico: o afastamento do etnocentrismo e a relativização. Para realizar essa tarefa, duas condições essenciais são exigidas do pesquisador: contatar os pesquisados (os "nativos" das pesquisas em saúde, usuários de serviços de saúde, trabalhadores ou gestores da saúde, entre outros) e despir-se de seus preconceitos e valores para compreender os de outros. Essa última condição refere-se principalmente ao risco de que os conhecimentos adquiridos nas ciências biomédicas e a visão científica sobre saúde, doença e formas de tratamento e cura se sobreponham a outros sentidos que esses fenômenos possam adquirir para os "nativos".

Esses pressupostos irão definir a entrada do pesquisador em campo, sua atitude em relação aos pesquisados e à coleta de informações, na medida em que dizem respeito ao modo particular como sua interpretação dos fenômenos deverá se orientar pelas qualidades quanto às formas de "olhar" e "ouvir" e "domesticada" pelo esquema conceitual da disciplina (Oliveira, 1998).

Essa percepção particular dos fenômenos é complementada pelo pensamento, fundamental ao ato de "escrever", momento em que, segundo o mesmo autor, ocorre a articulação entre os dados do campo e a produção do texto etnográfico, também baseado no sistema conceitual disponibilizado pela antropologia. Esse momento refere-se a um segundo aspecto necessário à reflexão.

[...] no que tange à antropologia, como procurei mostrar, esses atos estão previamente comprometidos com o próprio horizonte da disciplina, em que olhar, ouvir e escrever estão desde sempre sintonizados com o sistema de ideias e valores que são próprios da disciplina (Oliveira, 1998, p. 32).

Se o objetivo final da "aventura antropológica" é atingir o "ato cognitivo" capaz de conduzir à elaboração do conhecimento científico, pergunta-se em que medida a "penetração" das ciências sociais na saúde e a "incorporação" (pela saúde) do método etnográfico têm possibilitado que esse objetivo seja alcançado.

A reflexão sobre as possíveis contribuições teórico-metodológicas da antropologia para as pesquisas em saúde não se esgota, portanto, nessas considerações, sendo antes um convite à continuidade do debate surgido na década de 1980 em relação ao pragmatismo atribuído às pesquisas qualitativas, simultaneamente à desqualificação do debate sobre os compromissos teóricos de cada método (Cardoso, 1988).

Em relação ao método etnográfico, assumir tal pragmatismo pode tornar-se um risco pela simplificação do método, transformado em técnica. Para evitá-lo, é urgente retomar esse debate e, nesse sentido, o esforço de reflexão talvez deva ocorrer menos em direção ao modo como outras áreas, como a da saúde, utilizam o método etnográfico e contribuem (ou não) para a produção do conhecimento antropológico, do que no interior da própria antropologia.

As "contribuições teórico-metodológicas da antropologia para as pesquisas em saúde" parecem estar bem caracterizadas nos pressupostos teórico-conceituais do método etnográfico e na possibilidade de produção do conhecimento antropológico, como norteadoras do rigor científico nas pesquisas em saúde, servindo, ao mesmo tempo, como parâmetro para que alguns riscos de simplificação sejam evitados. Outro plano de contribuições, mais pertinente às questões aqui apontadas, parece estar vinculado à capacidade dos antropólogos de realizarem uma reflexão crítica no interior da própria disciplina, revendo seus compromissos com os pressupostos teórico-metodológicos a serem observados não apenas pelos "de fora".

Alguns Desdobramentos do Exercício da Reflexão Crítica

O convite à reflexão crítica sobre a interface das ciências sociais com a saúde, em especial da antropologia e do método etnográfico, possibilitou que um pequeno passo no debate sobre os compromissos teóricos do método fosse dado. O avanço ocorreu principalmente em função de deslocamento da postura crítica em relação à observação de certos pressupostos na utilização do método etnográfico (por "outros") para uma indagação (por parte dos cientistas sociais, em particular dos antropólogos) quanto ao rigor na utilização de referenciais teórico-conceituais disponibilizados pela disciplina, também em relação à produção de (novos) conhecimentos.

Na possibilidade de consolidação dessa interface em pesquisas, concomitantemente à produção do conhecimento, a reflexão crítica em relação à incorporação de certos referenciais teórico-metodológicos originados nas ciências sociais passou a ser complementada pelo compromisso necessário, por parte dos cientistas sociais e em especial dos antropólogos, com a análise em relação ao seu papel na formação profissional e na divulgação do conhecimento científico.

No processo de formação profissional, indaga-se sobre a reiteração e reposição constantes, nesse processo, da relação dialética entre experiência de campo e reflexão teórica, como apontada por Da Matta (1981). Nas pesquisas antropológicas, os estudantes se movem em suas experiências de campo por meio dos referenciais teórico-conceituais apreendidos na disciplina, utilizam nessas experiências os "óculos teóricos", tão fundamentais ao modo particular de "olhar", "ouvir" e "escrever" sobre o mundo observado. Na área da saúde, entretanto, um grande desafio aos antropólogos no processo de formação em pesquisa, em se tratando do método etnográfico, parece estar na garantia de que esses "óculos teóricos" modulem a observação, a percepção e a interpretação do pesquisador em todas as fases da pesquisa. Trata-se, como ressaltado anteriormente, da formação necessária para garantir a apreensão de referenciais teórico-conceituais que orientem o pesquisador, evitando, assim, que tome a técnica no lugar do método. Espera-se, assim, que em estudos sobre "percepções", "representações" ou "significados" de saúde, doença e cura, os referenciais teóricos estejam claramente enunciados, segundo a complexidade exigida pelo método etnográfico, de modo a evitar que este seja reduzido à descrição de procedimentos de um conjunto de técnicas, como a observação ou as entrevistas em profundidade.

Outro compromisso a ser assumido nessa interface, não apenas pelos antropólogos, mas pelos cientistas sociais em geral, refere-se à análise crítica acerca de seus papéis na divulgação do conhecimento produzido, seja quando atuam como avaliadores ou quando buscam divulgar os resultados de seus estudos por meio de artigos. A questão que se apresenta em relação a esse aspecto refere-se ao risco de "adequação" dos textos etnográficos a critérios nem sempre familiares à disciplina, muitas vezes retirando deles aquilo que os qualifica, ou seja, o exercício criativo que caracteriza a produção do conhecimento e o pensamento antropológico: uma maneira particular de "escrever" (Oliveira, 1998).

Não se pretendeu esgotar aqui o debate teórico-metodológico da década de 1980 sobre a pesquisa qualitativa, mas retomá-lo no contexto de um possível diálogo das ciências sociais com a área da saúde, especificamente do diálogo a partir da antropologia, devido à crescente incorporação do método etnográfico nas pesquisas da área. A retomada desse debate coloca a necessidade de que os antropólogos, em particular aqueles que atuam na área da saúde, reiterem seu compromisso com a reflexão crítica acerca das possíveis contribuições da disciplina às pesquisas nessa área, especialmente no debate acerca dos aspectos teóricos a serem considerados em relação ao método, o que parece ser um debate inesgotável na disciplina, na medida em que é no movimento dialético entre teoria e método que ela se movimenta.

O método etnográfico, aqui tomado como um exemplo do processo de "incorporação" de um método das ciências sociais às pesquisas em saúde, também é um bom exemplo de como a reiteração e reposição constante do movimento dialético da experiência de campo com as teorias apreendidas são fundamentais ao rigor e à validade dos estudos qualitativos, fundamentados essencialmente nas relações estabelecidas entre dados empíricos e interpretações teóricas (Martins, 2004).

Dada a complexidade e as implicações das possíveis contribuições teórico-metodológicas das ciências sociais para as pesquisas na área da saúde, em particular do método etnográfico, este parece ser apenas o ponto de partida para a retomada de um exercício constante de debate.

Recebido em: 20/09/2010

Aprovado em: 04/10/2010

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  • 1
    Texto elaborado a partir de apresentação no II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, junho de 2009.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Set 2010
    • Aceito
      04 Out 2010
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