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A política de saúde no governo Lula

The health policy in Lula's government

Resumos

O ensaio faz uma reflexão sobre a política de saúde nos oito anos de governo do Presidente Lula, identificando-se uma mudança de foco na agenda governamental, passando-se da ênfase exclusiva na implementação gradativa do SUS no primeiro mandato para as condições de vida e os determinantes da saúde no segundo, bem como de sua articulação com o desenvolvimento. Considera-se que políticas de saúde de um governo não podem ser avaliadas apenas setorialmente, sendo necessário examinar passos, traços e produtos do governo que têm repercussões na saúde da população e na organização do sistema de serviços. O argumento central é que o governo Lula foi mais inovador na sua atuação sobre os condicionantes da saúde do que no aspecto endógeno da política de saúde; no âmbito setorial, os avanços foram incrementais e qualitativos, no processo contínuo e difícil de implantação dos princípios do SUS em um contexto de despolitização da questão da saúde e de um debate restrito ao financiamento sem que sejam colocados na agenda pública os problemas estruturais do sistema de saúde.

Avaliação; Governo Lula; Política de saúde


The essay reflects on the health policy implemented in the eight years of President Lula's government, identifying a change of focus in the governmental agenda: from the exclusive emphasis on the gradual implementation of SUS (Brazil's National Health System) in the first term of office to life conditions and health determinants in the second one. It argues that the health policies of a government cannot be evaluated only by a sectorial perspective; it is necessary to examine the government's steps, orientations and products that have repercussions on the population's health and on the organization of the services system. The central proposition is that Lula's government was more innovative concerning interventions on health determinants than regarding the endogenous aspect of the health policy. In the sectorial scope, the progresses were incremental and qualitative, in the continuous and difficult process of implementing the principles of SUS in a context of depoliticization of the health issue and of a debate focusing only on financing, without including in the public agenda the structural problems of the health system.

Evaluation; Lula's government; Health Policy


PARTE III - ARTIGO DE OPINIÃO

Telma Maria Gonçalves Menicucci

Doutora em Ciências Humanas: Sociologia e Política. Professora Adjunta do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço: Rua Groenlândia, 77, apto. 401, CEP 30320-060, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: telmenicucci@fafich.ufmg.br

RESUMO

O ensaio faz uma reflexão sobre a política de saúde nos oito anos de governo do Presidente Lula, identificando-se uma mudança de foco na agenda governamental, passando-se da ênfase exclusiva na implementação gradativa do SUS no primeiro mandato para as condições de vida e os determinantes da saúde no segundo, bem como de sua articulação com o desenvolvimento. Considera-se que políticas de saúde de um governo não podem ser avaliadas apenas setorialmente, sendo necessário examinar passos, traços e produtos do governo que têm repercussões na saúde da população e na organização do sistema de serviços. O argumento central é que o governo Lula foi mais inovador na sua atuação sobre os condicionantes da saúde do que no aspecto endógeno da política de saúde; no âmbito setorial, os avanços foram incrementais e qualitativos, no processo contínuo e difícil de implantação dos princípios do SUS em um contexto de despolitização da questão da saúde e de um debate restrito ao financiamento sem que sejam colocados na agenda pública os problemas estruturais do sistema de saúde.

Palavras-chave: Avaliação; Governo Lula; Política de saúde.

ABSTRACT

The essay reflects on the health policy implemented in the eight years of President Lula's government, identifying a change of focus in the governmental agenda: from the exclusive emphasis on the gradual implementation of SUS (Brazil's National Health System) in the first term of office to life conditions and health determinants in the second one. It argues that the health policies of a government cannot be evaluated only by a sectorial perspective; it is necessary to examine the government's steps, orientations and products that have repercussions on the population's health and on the organization of the services system. The central proposition is that Lula's government was more innovative concerning interventions on health determinants than regarding the endogenous aspect of the health policy. In the sectorial scope, the progresses were incremental and qualitative, in the continuous and difficult process of implementing the principles of SUS in a context of depoliticization of the health issue and of a debate focusing only on financing, without including in the public agenda the structural problems of the health system.

Keywords: Evaluation; Lula's government; Health Policy.

Na conjuntura de término do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que marcou profundamente a trajetória do Brasil, tanto em relação ao desenvolvimento econômico quanto em relação ao desenvolvimento social, em função dos resultados positivos observados em diferentes setores, avaliações sobre seu governo permeiam o debate público, seja na esfera política ou na acadêmica.

Esse ensaio se insere nesse debate e pretende fazer uma reflexão sobre a política de saúde nos oito anos de governo do Presidente Lula. Considerando que há inúmeras maneiras e enfoques para analisar um governo a partir de suas políticas específicas, bem como diversos níveis de abrangência, é necessário precisar a perspectiva e o escopo adotados. Para essa reflexão, parto de algumas questões gerais:

• Quais os compromissos explícitos nos programas de governo em relação à saúde antes das eleições presidenciais de 2002 e de 2006 e qual o grau de cumprimento desses compromissos?

• Qual o contexto de atuação do governo?

• Da perspectiva das definições legais e do desempenho dos governos anteriores, o governo Lula apresenta inovações, continuidades ou retrocessos?

A proposta é destacar as opções que foram feitas no contexto de constrangimentos institucionais e financeiros, mas entendendo que embora os constrangimentos imponham limites às escolhas, elas sempre são feitas. Visa-se, ainda, avaliar a evolução da agenda governamental nos dois mandatos presidenciais a partir do que eu considero como uma mudança de foco no discurso e na prática concreta, passando-se da ênfase exclusiva na implementação gradativa do SUS no primeiro mandato para as condições de vida e os determinantes da saúde no segundo mandato. Temas que não são novos no campo da saúde coletiva, mas que de certa maneira tinham saído da agenda governamental, ou pelo menos perdido importância, e que assumem um papel relevante explicitamente na agenda ou no discurso de governo, particularmente a partir da posse do ministro Temporão em 2007.

Parto da ideia de que as políticas de saúde de um governo não podem ser avaliadas apenas setorialmente, ou seja, pelas ações exclusivas voltadas para o funcionamento do sistema de serviços de saúde. Há que se examinar passos, traços e produtos do governo que têm repercussões na saúde da população e na organização do sistema de serviços. Um marco de referência que justifica esse enfoque pode ser a forma com que o direito à saúde foi definido na Constituição Federal de 1988, o qual implica a garantia pelo Estado da adoção de políticas públicas que evitem o risco de agravo à saúde, devendo ser considerados, nessa perspectiva, todos os condicionantes da saúde, como meio ambiente saudável, renda, trabalho, saneamento, alimentação, educação, bem como a garantia de ações e serviços de saúde que promovam, protejam e recuperem a saúde individual e coletiva, a cargo do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse sentido, meu argumento central é que o governo Lula foi mais inovador na sua atuação sobre os condicionantes da saúde do que no aspecto endógeno da política de saúde, embora também no campo setorial apresente inovações não tão perceptíveis em uma análise focada nos aspectos mais visíveis da política de saúde.

De modo geral, no aspecto endógeno específico do setor saúde, a gestão do governo Lula foi um misto de continuidade e mudança. Foram adotadas medidas de caráter incremental no longo e complexo processo contínuo de implementação do SUS e que aparentemente não trazem nada ou muito pouco de inovações. Mas uma análise mais apurada aponta algumas inovações, seja no campo da organização da assistência, da gestão e da forma de alocação de recursos. Chamo a atenção ainda para o problema persistente do subfinanciamento do SUS, tema mais presente no debate público, e da forma de enfrentamento dessa questão no governo Lula.

Essa reflexão se justifica dada a avaliação na mídia e difundida de modo disseminado de que o governo Lula fez pouco para a saúde ou que a saúde pública no Brasil é sempre um caos. Na última campanha eleitoral, essa percepção foi reforçada pelo candidato oposicionista à presidência da república que ressaltou "seus feitos" quando ministro da saúde do governo anterior, que deixou sua marca com a regulamentação dos medicamentos genéricos; a efetiva implantação do Programa Saúde da Família (PSF); o programa de combate à aids e a quebra da patente do AZT. Em geral, sem nenhuma análise, oposicionistas e mídia atribuem os problemas da saúde à falta de gerenciamento ou à má gestão dos recursos.

Esse breve ensaio visa dar uma pequena contribuição para esse debate e foi elaborado a partir de fontes secundárias, como artigos e dados institucionais, além da percepção de dois atores qualificados e relevantes no cenário do SUS, um atualmente no âmbito municipal e outro no âmbito estadual, captada por meio de entrevistas (Sua primeira versão foi apresentada em mesa denominada Políticas Sociais no Governo Lula, ocorrida no 7º Encontro da ABCP, em 05/08/2010, em Recife, PE).

O 1º Mandato: 2003-2007

Na 1ª campanha eleitoral que elegeu Lula como Presidente do Brasil, o tema saúde não foi especialmente valorizado (Bahia e col., 2007), mas no plano de governo havia referência a propostas que seriam implantadas posteriormente e que seriam as principais inovações setoriais do primeiro mandato. Tratam-se das propostas relativas a uma política de saúde bucal, à questão das urgências/emergências, ao acesso a medicamentos com a proposta de criação da farmácia popular. O Plano incluía ainda outras propostas com caráter de continuidade, mas nem de longe menos importantes dado tratar-se de questões não equacionadas, como a ampliação do Programa de Saúde da Família (PSF), o reforço da atenção básica, o aprimoramento das relações intergovernamentais, a ampliação do acesso e a garantia da integralidade da assistência - esses dois últimos, embora integrem os princípios do SUS expressos na CF-1988, continuam sendo os grandes desafios da política de assistência à saúde no longo e difícil processo de sua construção.

É possível fazer uma apreciação positiva do primeiro mandato, mesmo faltando recursos e ousadia para intervenções mais amplas. Nos seis primeiros meses de governo, de acordo com Teixeira e Paim (2005), muita "energia institucional" foi gasta para superar a fragmentação das ações e implantar uma nova organização do Ministério da Saúde. A reforma administrativa realizada sugeria uma ênfase na integração da atenção básica com a assistência especializada e hospitalar, destaque para recursos humanos e atenção para os insumos estratégicos e desenvolvimento científico e tecnológico, além de prioridade para a gestão democrática (idem, ibidem).

Em consonância com as propostas de campanha, foram implantadas algumas propostas inovadoras, como a Política de Saúde Bucal por meio do Programa Brasil Sorridente, considerado como a primeira política de saúde bucal mais abrangente do país com o intuito de expandir o cuidado odontológico de forma mais universal e em níveis mais complexos - entre 2002 e 2006 as equipes de saúde bucal passam de 4.260 para 14.244, atendendo a 69.700.000 pessoas, além de serem instalados cerca de 500 Centros de Especialidades e laboratórios regionais de próteses dentárias (Freitas, 2007); a Criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) para o atendimento pré-hospitalar móvel no âmbito da Política de Atenção às Urgências e Emergências; o Programa Farmácia Popular, constituído por uma rede de drogarias privadas credenciada para vender produtos com até 90% de desconto em relação ao preço de comercialização, mediante subsídio governamental.

Entre as ações incrementais, mas de relevância na perspectiva de avanços na cobertura e qualidade da atenção, destaca-se a ampliação da atenção básica através do PSF com aumento de 57% no número de equipes de saúde (Freitas, 2007); aumento dos recursos do Piso de Atenção Básica, o qual passa do valor de R$ 10,00, congelado desde 1988, para R$ 15,00 per capita; expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dando impulso à Reforma Psiquiátrica com intenção de "desospitalização" através do Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS; a tentativa de mudança do modelo de atenção à saúde, a partir de projetos que priorizam o acolhimento e a humanização.

Na área de medicamentos, destaca-se a criação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CAMED) e a fixação de normas para o controle de preços desses produtos; o apoio aos laboratórios oficiais; a isenção de ICMS para medicamentos de alto custo; o reforço aos medicamentos genéricos; além da convocação da 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica - expressão da prioridade dada ao tema na agenda governamental.

Cabe registrar a ênfase em ações voltadas para grupos específicos, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004-2007); ações voltadas para a saúde da criança e do adolescente, entre essas a tentativa de articular o Programa Saúde e Prevenção nas Escolas ao Programa Nacional de DST/AIDS, além da educação sexual nas escolas, tentando prevenir DST e gravidez na adolescência; ações para a Saúde do trabalhador, buscando implantar a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST); ações relativas à saúde da população negra, dos quilombolas, dos indígenas e dos assentados. No campo de ações focalizadas em grupos específicos, cabe ainda mencionar a aprovação, em 2003, do Estatuto do Idoso, com um capítulo específico voltado para a saúde e com uma sinalização no sentido de suprimir o processo asilar e atuar na promoção e recuperação da saúde do idoso.

Nesse aspecto, é possível uma apropriação da análise de Cohn (2005), para quem a focalização na saúde no Brasil não está referida ao foco nos mais pobres, mas assume outros sentidos; refere-se a focos específicos a serem atingidos para a solução de um determinado problema e envolve grupos sociais a partir de determinadas características particulares. Nessa perspectiva, a focalização na saúde emerge no interior de uma concepção universalista, como estratégia de implantação da universalização como um direito.

Para além dessas ações incrementais, inclusive com ampliação quantitativa de recursos e cobertura da expansão de ações voltadas para grupos específicos e de alguns programas inovadores, uma ação relevante no primeiro mandato do Presidente Lula deu-se no âmbito da gestão com a aprovação do Pacto pela Saúde. Do ponto de vista da gestão do SUS, o Pacto pela saúde, apesar de também incremental, traz mudanças qualitativas importantes. O Pacto é um conjunto de reformas institucionais pactuado entre as três esferas de governo, com o objetivo de promover inovações nos processos e instrumentos de gestão e tem três componentes: o Pacto pela Vida, que reforça no SUS o movimento da gestão pública por resultados, ao estabelecer um conjunto de compromissos e metas sanitários considerados prioritários, a ser implementado pelos entes federados; o Pacto em Defesa do SUS, que expressa um movimento de repolitização da saúde, com uma clara estratégia de mobilização social para buscar um financiamento compatível com as necessidades de saúde, o que inclui a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 pelo Congresso Nacional; o Pacto de Gestão do SUS, que valoriza a relação solidária entre gestores, definindo as diretrizes e responsabilidades de cada esfera de governo, contribuindo para o fortalecimento da gestão - entre outras coisas, cria colegiados de gestão regionais, importantes arenas federativas de articulação entre gestores com vista ao estabelecimento de relações cooperativas, fundamentais para a garantia do acesso e da integralidade da atenção. As transferências dos recursos federais também foram modificadas, passando a ser divididas em seis grandes blocos de financiamento (Atenção Básica, Média e Alta Complexidade da Assistência, Vigilância em Saúde, Assistência Farmacêutica, Gestão do SUS e Investimentos em Saúde), reduzindo drasticamente a fragmentação dos recursos e respondendo a críticas históricas dos gestores estaduais e municipais e buscando consolidar maior autonomia dos entes federados na gestão dos recursos.

O 2º Mandato: 2007-2011

O Programa de Governo para o segundo mandato do Presidente Lula (2007-2010) contém 13 pontos destinados à saúde, mas poucas inovações, reafirmando a continuidade dos programas criados no primeiro mandato e enfatizando o aprofundamento e o aperfeiçoamento dos aspectos básicos do SUS. Exceção é a ênfase no fomento à pesquisa e desenvolvimento tecnológico para a produção de hemoderivados, vacinas, medicamentos e equipamentos.

Entretanto, se o programa não tinha muito de inovador, no segundo mandato, no início de 2007, o Ministro da Saúde designado, vinculado ao movimento sanitário, apresentou um programa de trabalho ousado e polêmico, despertando a atenção dos principais veículos da mídia

a política de saúde, que vinha sendo apresentada formalmente como a preservação e a continuidade de um conjunto de diretrizes, ações e metas setoriais e enunciadas tecnicamente, estende sua jurisdição. O deslocamento do teor administrativo dos discursos que vinham embalando as proposições para as políticas de saúde cede lugar às articulações entre a epidemiologia, determinantes sociais da saúde e a política de saúde. Por essa via, a aproximação aos problemas de saúde cotidianos e a perspectiva de melhoria das condições e qualidade de vida, a saúde adquire estatuto de prioridade (Bahia e col., 2007, p. 1791-1818).

Os compromissos assumidos pelo Ministro Temporão enfatizavam a necessidade de articular a compreensão dos determinantes sociais da saúde com o conjunto de providências e ações possíveis dentro da política setorial, destacando os limites dessa política para melhorar as condições de saúde e a qualidade de vida. As proposições para as políticas de saúde se deslocam para o enfoque nas articulações entre os determinantes sociais da saúde e a política de saúde. Por essa via, a perspectiva de melhoria das condições e qualidade de vida não se limita à construção do SUS, mas ao aumento da capacidade para interferir na determinação social da doença. A 13ª Conferência Nacional de Saúde realizada em 2007, cujo eixo foi "Qualidade de Vida: Política de Estado e Desenvolvimento", expressa essa visão.

O novo ministro ousou também ao fazer menção a tabus como o abortamento inseguro e a propaganda de bebidas alcoólicas, seguida pela quebra do licenciamento de um dos medicamentos utilizados para o tratamento de pacientes HIV positivos. Além disso, buscou enfatizar a importância das ações intersetoriais para a saúde e articular esforços nesse sentido, podendo ser destacados alguns exemplos, como o fato de se passar a considerar os acidentes de trânsito como epidemia e o lançamento da Campanha de Prevenção dos Riscos de Consumo de Bebida Alcoólica.

Temporão trouxe também para o debate público a chamada "Judicialização da Saúde", ao criticar publicamente as ações na justiça para a obtenção de cobertura de procedimentos não regulamentados. Esse debate se expressou em Audiência Pública realizada na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, em setembro de 2007, e no encaminhamento de Projeto de Lei estabelecendo parâmetros para as coberturas a serem feitas pelo SUS, dado que o teor genérico do direito à saúde consagrado na Constituição de 1988 deixa brechas para interpretações jurídicas amplas, com sérios riscos para o orçamento da saúde a partir das decisões judiciais.

A agenda setorial foi ampliada com introdução de novas questões, como a proposta de alternativas para o aprimoramento da gestão das instituições públicas. Para isso, propôs um novo modelo jurídico institucional legal para os hospitais e institutos federais e encaminhou para o Congresso um Projeto de Lei que regulamenta a criação da fundação pública de direito privado.

Outra questão foi a vinculação de saúde com desenvolvimento, transcendendo a discussão das políticas de saúde para além da atenção à saúde e inserindo a saúde como um dos pilares do crescimento industrial. Passa-se, no segundo mandato do Presidente, a chamar atenção sobre o lugar estratégico das indústrias produtoras de insumos para a saúde em virtude de seus vínculos com a política de saúde e com a política industrial, tecnológica e de comércio exterior. Ao destacar o lugar dessas indústrias na composição do PIB e na geração de empregos, passa-se a destacar a competitividade e o potencial de inovação nas indústrias da saúde propondo-se que elas devam se constituir núcleos centrais da estratégia nacional de desenvolvimento do governo. A proposta de reorganização e incremento dos investimentos no complexo produtivo da saúde é vinculada ao aumento da produção de insumos estratégicos para conferir maior autonomia à política de saúde com redução da dependência tecnológica e vai redundar no "PAC da Saúde", nome atribuído ao Programa Mais Saúde. Integrando a agenda social lançada pelo Presidente em 2007, esse programa apresenta um plano detalhado de investimento e atuação de caráter prioritário do Ministério da Saúde, cujos pontos mais significativos são a reiteração do elo entre saúde e desenvolvimento socioeconômico, a necessidade de articulação da saúde com outras políticas públicas, tendo a intersetorialidade no centro da estratégia, e a percepção da importância do setor sob o ponto de vista da geração de emprego, renda e produção. No espírito geral da Agenda Social, as ações para a saúde se inserem na política de desenvolvimento voltada para aliar o crescimento econômico com o desenvolvimento e a equidade social.

Além do Programa Mais Saúde, em linhas gerais, a agenda social contempla prioridades que têm sido definidas para a assistência à saúde, como o reforço da atenção básica por meio da expansão do PSF, da qualificação dos profissionais de nível superior do PSF, do Brasil Sorridente e do trabalho de agentes comunitários de saúde, agora acrescido de atividades a serem desenvolvidas no âmbito das escolas. Destacam-se ainda o programa Saúde na Escola; o tratamento da hipertensão e do diabetes; o planejamento familiar; a ampliação do acesso a serviços especializados; ações de investimento em infraestrutura, duplicação da cobertura do Samu; implantação de complexos reguladores, com finalidade de melhorar o acesso a internações; implantação de novas formas de compra de serviços, com contratualização com hospitais filantrópicos.

A expansão da estratégia Saúde da Família segue sendo prioridade do Ministério da Saúde. Entre 2007 e 2008 foram criadas 2.500 novas equipes de Saúde da Família; em 2008 foram criados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs) como estratégia para ampliar a abrangência e a diversidade das ações das ESF (Equipes Saúde da Família), que dispõem de estrutura física adequada para atendimento e profissionais de diferentes áreas de saúde, como médicos (ginecologistas, pediatras e psiquiatras), professores de educação física, nutricionistas, acupunturistas, homeopatas, farmacêuticos, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Na área de saúde bucal, foram acrescidas 2.569 equipes de Saúde Bucal para atenção básica e instalados 176 novos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), que oferecem ações especializadas.

A tentativa de melhorar a qualidade e a eficiência das unidades produtoras de bens e serviços e de gestão em saúde, associando a flexibilidade gerencial ao compromisso com metas de desempenho, incluía uma proposta mais polêmica de implantar o modelo de fundação estatal de direito privado em hospitais públicos federais. O Projeto de Lei Complementar nesse sentido sofreu grande resistência, inclusive do Partido dos Trabalhadores e de sindicatos, levando ao seu abandono pelo próprio Ministério da Saúde.

Mas se há uma inflexão no discurso, na prática cotidiana o Ministério da Saúde segue a lógica da racionalidade administrativa, no esforço contínuo de organização das redes assistenciais e distribuição de recursos financeiros, buscando o aprimoramento das relações e os mecanismos de transferência de recursos do Ministério da Saúde aos entes subnacionais em consonância com as demandas dos níveis subnacionais de governo. Ou seja, a produção do Ministério não reflete ainda a ampliação dos horizontes de atuação setorial e intersetorial da saúde (Bahia e col., 2007).

De certa maneira, essa atuação reflete uma despolitização do debate da saúde tanto na sociedade em geral quanto no Legislativo, na sua maior parte restrito à discussão de recursos financeiros, seja para ampliá-los ou restringi-los. No movimento sindical, preocupação maior é com a saúde do trabalhador, mas esse mesmo é um tema secundário em relação aos relativos a salário e emprego. Na agenda de movimentos sociais populares, como sugerem Bahia e colaboradores (2007), a defesa do SUS tem sido um ponto importante, como, por exemplo, na Confederação Nacional de Associação de Moradores (CONAM), que defende um Projeto de reformulação do sistema nacional de saúde pública com as seguintes propostas, de certa forma condizentes com a agenda setorial ampliada ou intersetorial:

Torná-lo preventivo das doenças, principalmente as endêmicas. O serviço de saúde pública deve proporcionar atendimento condizente com a dignidade das pessoas. Investimentos precisam ser feitos na pesquisa científica, tanto na área da saúde em si, quanto na produção e descoberta de novos medicamentos. O sistema de saúde deve estar associado a um projeto nacional de Saneamento Ambiental que venha dotar, em curto prazo, todos os municípios e localidades, com redes de abastecimento regular de água e esgotamento sanitário; macro e microdrenagem, controle de vetores, recuperação ambiental, e preservação dos recursos naturais. Os programas de saúde e de saneamento, além de elevar a qualidade de vida da população, contribuirão significativamente para o objetivo de pleno emprego (Confederação Nacional das Associações dos Moradores, 2007, apud Bahia e col., 2007, p. 1813).

Ações Sobre os Condicionantes de Saúde

Entretanto, se no âmbito setorial a ampliação da agenda e do discurso não se consubstanciou em avanços mais concretos, ações do governo Lula em outras áreas setoriais são relevantes no seu impacto potencial sobre as condições e o estado de saúde da população.

No campo das intenções manifestadas no início do governo, ainda no primeiro mandato, houve o reconhecimento da gravidade dos problemas sociais e mereceram especial atenção o combate à fome e à miséria; o combate ao racismo e às desigualdades raciais; aprofundamento dos avanços na área de saúde e de assistência social; o crescimento da taxa de cobertura da previdência social; a promoção do desenvolvimento nacional; a implementação de uma política de desenvolvimento urbano; e contínua melhoria da qualidade do ensino. Para enfrentar esses desafios, o governo Lula desencadeou uma série de políticas, vinculadas a novas estruturas administrativas:

• Segurança alimentar e nutricional, tendo como objetivo central o combate à fome - coordenada pelo Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar (Mesa).

• Promoção da igualdade racial: combate ao racismo e às iniquidades raciais - coordenada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

• Promoção da igualdade de gênero - impulsionada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

• Desenvolvimento urbano, que busca assegurar oportunidades de acesso à moradia digna, à terra urbanizada, à água potável, ao ambiente saudável e à mobilidade sustentável com segurança no trânsito - coordenada pelo Ministério das Cidades.

• Racionalização de recursos públicos por meio, por exemplo, da unificação dos programas de transferência direta e condicionada de renda.

Ou seja, o foco maior foi nas políticas de inclusão social, nas suas diversas dimensões, que sugere uma busca da garantia do direito à saúde pela via de outras políticas públicas, que não apenas a garantia do acesso a ações e serviços de saúde, tal como preconizado na Constituição de 1988.

O foco nas políticas de inclusão social transparece no lançamento, pela Presidência da República, da Agenda Social, como um dos três eixos que organizam as ações prioritárias do Plano Plurianual (PPA) 2008-2011. A maioria das ações priorizadas na Agenda Social já vinha sendo implementada no primeiro mandato, mas esse novo arranjo pretende ressaltar o compromisso de ampliar a promoção da inclusão social com cidadania. Para consubstanciar tal estratégia de desenvolvimento, foi destacada a organização de algumas ações em três grandes eixos: Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Agenda Social e Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), setor que recebe, assim, mais destaque na agenda do governo Lula.

Um campo de iniciativas inovadoras com prováveis impactos na situação de saúde é a Segurança alimentar, cujo principal Programa é o Fome Zero, que tem como proposta erradicar a fome por meio de medidas estruturais e específicas e do estímulo a políticas locais por meio de um conjunto de ações que interferem nas diversas etapas do fluxo de produção, distribuição, preparo e consumo de alimentos, inclusive o apoio à agricultura familiar. O Programa Fome Zero articula vários programas de inclusão social e tem na transversalidade uma de suas características, atuando por meio de parcerias com vários ministérios (Esporte, Desenvolvimento Agrário, Meio Ambiente, Saúde, Cidades, Ciência e Tecnologia, Comunicações, Justiça, Minas e Energia, Trabalho, Turismo, entre outros), empresas públicas e sociedade civil. Entre as iniciativas apoiadas pelo Fome Zero, destacam—se o Banco de alimentos, a Cozinha Comunitária, Hortas/Lavouras Comunitárias; Compra Direta Local da Agricultura Familiar para a aquisição de produtos perecíveis e semiperecíveis; Compra Antecipada da Agricultura Familiar e Contrato de Garantia de Compra da Agricultura Familiar para a aquisição de produtos não perecíveis; Implantação e modernização de Restaurantes Públicos e Populares. Expressão da ênfase dada à questão da segurança alimentar foi a aprovação da Emenda Constitucional Nº 64, em 4/2/2010, que introduz a alimentação como direito social.

Integra o Fome Zero aquele que se tornou o carro-chefe das políticas sociais do governo Lula que é o Programa Bolsa Família - um programa ambicioso de transferência de renda com condicionalidades e que tem como objetivo combater a fome e a miséria e promover a emancipação das famílias mais pobres do país. Tendo como foco as famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, já atende hoje mais de 12 milhões de famílias em todo o território nacional1 1 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Bolsa Família. Disponível em: < http://www.mds.gov.br>. Acesso em: 15 de nov. 2010. , com efeitos de diminuição da desigualdade já apontados em diversos estudos.

Ainda no âmbito de políticas que impactam a saúde, cabe destacar a atuação na área de habitação e saneamento. A política de saneamento adquiriu centralidade política no governo Lula, o que se traduz em crescentes aportes de recursos, formalização de uma base político-administrativa e institucional de referência, inclusive com a formalização do novo marco regulatório do setor (Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007). Essa era uma reivindicação histórica dos agentes públicos e privados que atuam no setor de saneamento de forma a resolver não só os problemas relativos à política tarifária e às relações entre os agentes governamentais, mas também que estabelecesse as regras de convivência entre titulares dos serviços, a sociedade e os operadores. O volume de investimentos que a política vem recebendo nos últimos quatros anos indica que o saneamento conseguiu inserir-se no campo das políticas públicas tratadas como de caráter permanente e que não podem sofrer solução de continuidade.

Em 2004 foi lançada também a Política nacional de habitação e o Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 continha vários programas habitacionais a serem desenvolvidos sob o comando do Ministério das Cidades, criado no 1º mandato. Destacam-se o Programa Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários, incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - carro-chefe da atuação governamental no setor de habitação popular e que teve impacto positivo em relação a serviços de acesso a água, esgotamento sanitário, banheiro no interior da moradia e adensamento excessivo, e poucos avanços em relação à regularização fundiária; e o Programa Minha Casa, Minha Vida, lançado em março de 2009.

A ênfase na habitação se expressa no volume de investimentos, que passou de 7 bilhões em 2002 para 44,2 em 2008, com aumento substancial da focalização (de 11% dos investimentos em 2002 para população na faixa de renda de até 3 salários mínimos para 31% em 2007, recuando para 27 em 2008), com correspondente recuo da faixa de mais de 5 salários mínimos - de 73% em 2002 para 38% em 2008 (IPEA, 2009a).

O lançamento do Programa Mais Saúde ocorreu no mesmo período em que o governo federal enfrentava, no Congresso Nacional, uma batalha pela renovação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) na tentativa de equacionar a histórica situação de subfinanciamento do SUS. Com a derrota, os recursos necessários à expansão das ações previstas no Programa Mais Saúde, em montante previsto de R$ 4,1 bilhões em 2008 e de R$ 5,0 bilhões em 2009, inviabilizaram-se, uma vez que das 168 ações previstas no Mais Saúde, 74 seriam financiadas pela CPMF (IPEA, 2009b). A tentativa de obtenção de mais recursos para a saúde foi direcionada, então, para a regulamentação da EC nº 29 - questão que já tinha sido colocada como prioridade desde o estabelecimento do Pacto em defesa do SUS que pretendia uma mobilização nesse sentido.

A Proposta de regulamentação da EC 29, que fixa os percentuais mínimos a serem investidos anualmente em saúde pela União, por estados e municípios, ainda tramita no Congresso Nacional. Começou a tramitar na Câmara Federal em 2004 e foi aprovada em outubro de 2007, vinculando o aumento de recursos da União para o financiamento do SUS à prorrogação da CPMF (Projeto de Lei Completar 01/2003). Com a derrubada da CPMF no Senado, o projeto nem foi votado e "virou letra morta" (Carvalho, 2008 p. 47). No início de 2008, foi aprovado no Senado o Projeto de Lei nº 121/2007, de autoria do Senador Tião Viana, encaminhado à Câmara dos Deputados, onde foi apresentado um substitutivo. Entre as modificações que o projeto sofreu, destacamos a manutenção da vinculação dos gastos da União com ações e serviços públicos de saúde à variação nominal do PIB, tal como previa o projeto original da Câmara, e condicionado à criação da Contribuição Social para a Saúde (CSS). Na proposta do Senado, havia a expectativa de um acréscimo de recursos no orçamento do Ministério da Saúde, que definia 10% da receita corrente bruta como participação dos recursos federais. Em junho de 2008 o Plenário da Câmara aprovou essa regulamentação dos gastos com a saúde e a criação da Contribuição Social para a Saúde (CSS) com alíquota de 0,1% e arrecadação totalmente direcionada ao setor. A base governista conseguiu manter no texto a criação da CSS por uma margem apertada de votos: 259 contra 159 (somente dois votos a mais que o mínimo necessário para aprovar um projeto de lei complementar). Mas permaneceram vários destaques, restando ainda um último destaque para ser votado, justamente o relativo à criação da CSS.

Os desdobramentos dessa votação são imprevisíveis, mas há indícios de que não se obtenha suporte político para ampliação de arrecadação e, portanto, de recursos para o SUS. O próprio governo Lula ameaçou vetar qualquer aumento de recursos se não estiver vinculado a aumento na arrecadação. Entretanto, a questão foi transferida para a nova presidente, Dilma Roussef, e a julgar pela movimentação da oposição será um tema que ocupará já os primeiros meses de seu mandato para se instalar uma quebra de braços entre governo e oposição em torno da criação ou não da CSS, defendida pelo primeiro e recusada pela segunda.

A crise econômico-financeira internacional a partir do último trimestre de 2008 trouxe mais restrições à execução orçamentária da União. Apesar dessas restrições, o governo manteve o orçamento da saúde nos termos definidos na EC29, coisa que no 1º mandato nem sempre tinha ocorrido em momento em que o governo adotou uma política econômica ortodoxa que incluía grande contenção de gastos. O fluxo regular de recursos tem correspondido a incrementos no volume do gasto em saúde a cada ano (o gasto federal per capita praticamente dobra entre 2001 e 2008, passando de R$ 130,37 para R$ 256,68), sem, contudo, determinar aumento no percentual do PIB investido em saúde (gasto público total em torno de 3,60%)2 2 JORGE, E. A. Análise de conjuntura do financiamento da saúde no Brasil. Apresentado no XXVI Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, 25 a 28 de maio de 2010, Gramado, RS. Disponível em: < http://www.conasems.org.br/files/Prof_Elias_Antonio_Jorge.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2010. .

Considerações Finais

O direito à saúde implica a garantia pelo Estado da adoção de políticas públicas que evitem o risco de agravo à saúde, devendo ser consideradas todas as condicionantes da saúde, como meio ambiente saudável, renda, trabalho, saneamento, alimentação, educação, bem como a garantia de ações e serviços de saúde que promovam, protejam e recuperem a saúde individual e coletiva.

É a partir dessa concepção do direito à saúde que se pretendeu analisar a atuação do governo Lula. Se no âmbito setorial não se verificaram mudanças ou ações de maior envergadura, o saldo em relação aos determinantes da saúde foi extremamente positivo. Nesse artigo não se pretendeu listar todas as ações e resultados do governo Lula em termos de desenvolvimento econômico; ampliação do emprego, particularmente o formal; diminuição das desigualdades por meio de políticas de transferência de renda, benefícios previdenciários e aumento real do salário mínimo; ações de combate à fome e para geração de renda; e particularmente a opção explícita por um tipo de desenvolvimento que se articula com o desenvolvimento social, cuja expressão é o PAC nas suas diferentes estratégias, entre elas as que impactam as condições de vida, como as obras de infraestrutura social: habitação, saneamento, urbanização e outras. Mas pode-se dizer que o Brasil se tornou um pouco mais saudável pela via das políticas econômicas e sociais.

No âmbito setorial, os avanços foram incrementais e qualitativos, no processo contínuo e difícil de implantação dos princípios do SUS em um contexto de despolitização da questão da saúde e de um debate restrito ao financiamento sem que sejam colocados na agenda pública os problemas estruturais do sistema de saúde. Não está na agenda, por exemplo, a regulação das condições sistêmicas de financiamento e provisão de bens públicos e serviços de saúde, o que envolve a discussão da segmentação do sistema de saúde brasileiro, formado por um subsistema público e outro privado - esse também funcionando com subsídios governamentais em um quadro de notório subfinanciamento do SUS e de dificuldades para utilização da rede de serviços privados, não decorrente necessariamente de sua escassez, embora distribuída de forma desigual. Se a convivência desregulada dos dois sistemas gera ineficiência e iniquidades, tem como subproduto o subfinanciamento do "sistema dos pobres"3 3 Entrevista com Eugênio Villaça Mendes, concedida em julho de 2010. .

A questão que se coloca é a seguinte: era de se esperar uma agenda mais inovadora do governo Lula no sentido de se radicalizar a implementação dos princípios do SUS, esses mesmos uma construção de grupos historicamente vinculados às bases sociais mais importantes do governo? Essa aposta me parece, no mínimo, ingênua, pois os grandes gargalos estão relacionados a questões dificilmente solucionadas apenas pelo voluntarismo político, como as bases de financiamento no contexto geral da política de saúde dual, a relação púbico/privado, a macrorregulação, a incorporação livre de tecnologia médica com o consequente encarecimento dos atos médicos4 4 Entrevista com Helvécio Magalhães, concedida em julho de 2010. . Tratam-se de questões de conteúdo político efervescente que estão fora do debate político e apenas recentemente foram introduzidas no debate técnico e/ou acadêmico.

De modo geral, o Presidente cumpriu suas promessas de campanha, sendo malsucedido no Pacto em defesa do SUS. Mas problemas antigos permanecem, como as desigualdades nas condições de saúde e no acesso à atenção à saúde, decorrente da variação na oferta de serviços no território nacional associada à disponibilidade de recursos, e tendo como ponto de partida a desigualdade em relação ao tipo de cobertura (pública ou privada). Estrangulamentos impedem que a universalidade e equidade não sejam ainda realidade no SUS. Mas sem a repolitização da saúde e sem a construção de uma agenda radicalmente inovadora, pouco se avançará. Algo que transcende o governo e é uma tarefa política de toda a sociedade.

Recebido em: 25/01/2011

Aprovado em: 20/03/2011

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    The health policy in Lula's government
  • 1
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  • 2
    JORGE, E. A. Análise de conjuntura do financiamento da saúde no Brasil. Apresentado no XXVI Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, 25 a 28 de maio de 2010, Gramado, RS. Disponível em: <
  • 3
    Entrevista com Eugênio Villaça Mendes, concedida em julho de 2010.
  • 4
    Entrevista com Helvécio Magalhães, concedida em julho de 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      25 Jan 2010
    • Aceito
      20 Mar 2011
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