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Atenção primária no sistema de saúde: debates paulistas numa perspectiva histórica

Primary care in the health system: debates from São Paulo in a historical perspective

Resumos

Este artigo traz como objetivo central a recuperação histórica, por meio de vestígios e pistas, de dimensões que trataram da organização das práticas de saúde no Brasil, tendo a "Atenção Primária em Saúde" um lugar especial nessa contenda. Para isso, atentou-se para um momento bastante rico e complexo, quando alternativas nesse campo eram propostas, sobretudo, por profissionais da saúde que trabalhavam entre experiências também marcadas em sua "dimensão regional paulista", a partir de seus lugares e vivências institucionais. Nesse sentido, olhar para o passado como ponto de apoio para essa compreensão será de extremo valor, já que essas experiências vividas não se rompem completamente, mas estarão permanentemente sendo recuperadas, quer para que se ultrapassem certos liames conjunturais, quer para utilizá-las como ponto de referência para se pensar desdobramentos futuros do pensamento e das práticas de saúde. Cobriu-se, em especial, o período entre 1970 a 1990, com destaque à proposta da Programação em Saúde como política oficial do Estado de São Paulo para a implantação da atenção primária como projeto de extensão de acesso, primeiro nível do sistema de saúde e produção de cuidados específicos. Examinaram-se complementarmente as propostas paulistas da Ação Programática e da Defesa da Vida como formulações críticas à Programação e base de debate acerca das inovações na assistência à saúde e nas práticas profissionais.

Atenção Primária à Saúde; Sistema de saúde; História da saúde pública; Paulistanidade


The central aim of this paper was to historically retrieve the dimensions relating to the organization of healthcare practices in Brazil based on clues left in records. Primary healthcare had a special place within this context. To accomplish this, attention was focused on a very rich and complex period, during which alternatives within this field were proposed, especially by healthcare professionals whose working experiences were also marked by regional dimensions within the State of São Paulo, through their locations and institutional experiences. In this respect, looking at the past as a point of support for this understanding will be of great value, given that complete ruptures of past experiences do not occur; rather, such experiences are continually retrieved, either to go beyond certain conjectural links, or to use the experiences as points of reference for envisaging future developments in healthcare thinking and practice. The period between 1970 and 1990 was particularly covered, highlighting the Healthcare Program proposal, which was the official policy of the State of São Paulo for implementing primary care as a project for extending access at the first level of the system and for producing specific care. As a complement to this, the proposals of the State of São Paulo for Program Action and Life Protection were examined as formulations that criticized the Program and were the basis for debate on innovations in healthcare and professional practices.

Primary Healthcare; Healthcare System; History of Public Health; Belonging to the State of São Paulo


PARTE 1 - ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO ESTADO DE SÃO PAULO

André MotaI; Lilia Blima SchraiberII

IDoutor em História. Coordenador do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz da Faculdade de Medicina da USP: Museu da Faculdade de Medicina da USP, Av. Dr. Arnaldo, 455 4º andar, Cerqueira Cesar, CEP 01246-903, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: amota@museu.fm.usp.br

IIDoutora e Livre-Docente em Medicina Preventiva. Professora Associada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.: Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, sala 2170, Cerqueira Cesar, CEP 01246-903, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: liliabli@usp.br

RESUMO

Este artigo traz como objetivo central a recuperação histórica, por meio de vestígios e pistas, de dimensões que trataram da organização das práticas de saúde no Brasil, tendo a "Atenção Primária em Saúde" um lugar especial nessa contenda. Para isso, atentou-se para um momento bastante rico e complexo, quando alternativas nesse campo eram propostas, sobretudo, por profissionais da saúde que trabalhavam entre experiências também marcadas em sua "dimensão regional paulista", a partir de seus lugares e vivências institucionais. Nesse sentido, olhar para o passado como ponto de apoio para essa compreensão será de extremo valor, já que essas experiências vividas não se rompem completamente, mas estarão permanentemente sendo recuperadas, quer para que se ultrapassem certos liames conjunturais, quer para utilizá-las como ponto de referência para se pensar desdobramentos futuros do pensamento e das práticas de saúde. Cobriu-se, em especial, o período entre 1970 a 1990, com destaque à proposta da Programação em Saúde como política oficial do Estado de São Paulo para a implantação da atenção primária como projeto de extensão de acesso, primeiro nível do sistema de saúde e produção de cuidados específicos. Examinaram-se complementarmente as propostas paulistas da Ação Programática e da Defesa da Vida como formulações críticas à Programação e base de debate acerca das inovações na assistência à saúde e nas práticas profissionais.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; Sistema de saúde; História da saúde pública; Paulistanidade.

ABSTRACT

The central aim of this paper was to historically retrieve the dimensions relating to the organization of healthcare practices in Brazil based on clues left in records. Primary healthcare had a special place within this context. To accomplish this, attention was focused on a very rich and complex period, during which alternatives within this field were proposed, especially by healthcare professionals whose working experiences were also marked by regional dimensions within the State of São Paulo, through their locations and institutional experiences. In this respect, looking at the past as a point of support for this understanding will be of great value, given that complete ruptures of past experiences do not occur; rather, such experiences are continually retrieved, either to go beyond certain conjectural links, or to use the experiences as points of reference for envisaging future developments in healthcare thinking and practice. The period between 1970 and 1990 was particularly covered, highlighting the Healthcare Program proposal, which was the official policy of the State of São Paulo for implementing primary care as a project for extending access at the first level of the system and for producing specific care. As a complement to this, the proposals of the State of São Paulo for Program Action and Life Protection were examined as formulations that criticized the Program and were the basis for debate on innovations in healthcare and professional practices.

Keywords: Primary Healthcare; Healthcare System; History of Public Health; Belonging to the State of São Paulo.

A história da saúde pública de São Paulo na década de 70 está se iniciando. Nós a estamos vivendo. Nós a estamos realizando. Quais os caminhos que percorrerá? A resposta caberá não a nós, mas ao historiador do porvir.

Rodolfo Mascarenhas, 1973

Introdução

Com a divulgação da noção de atenção primária à saúde (APS) na Conferência de Alma-Ata, em 1978, a Organização Mundial de Saúde (OMS) conclamou os países a redirecionarem seu sistema de saúde para proporcionar atenção ao conjunto da população, assinalando que a viabilidade da extensão estava na adoção da estratégia da atenção primária à saúde (Ribeiro, 2007). O Brasil manifestou-se favoravelmente ao documento, com a apresentação da "Formulação de estratégias com vista a alcançar saúde para todos no ano 2000: princípios básicos e questões essenciais". Depois dessa divulgação, formal e conceitual, a APS passaria a ser referência para a formulação das propostas de política do Ministério da Saúde, instituindo, em 1980, com a VII Conferência Nacional de Saúde (CNS) e o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde), marcos que corroborariam a disposição em operacionalizar os acordos firmados (Mendes, 1993; CONASS, 2009).

Com a emergência do conceito de APS e sua articulação com a meta de saúde para todos no ano 2000 (Ribeiro, 2007; Mendes, 1993), foram reconhecidos princípios que a deslocariam, a nosso ver, de uma noção de "cuidados primários" para a de "atenção primária", fazendo corresponder à primeira o conteúdo de ações técnicas e à segunda um nível de atenção ou a porta de entrada para um sistema hierarquizado e regionalizado de saúde, o que caracterizaria uma inflexão histórica no conceito da APS. Pode-se dizer que essa expansão conceitual já vinha sendo processada desde meados da década de 1970, tendo a chamada Reforma Sanitária assumido um espaço inédito para sua consecução.

Segundo Madel Luz, no caso particular das proposições para uma nova política de saúde, em debate no cenário nacional desde a primeira metade dos anos 1980, seria necessário destacar:

[...] a divergência e, às vezes, o antagonismo dos discursos institucionais a propósito de alguns temas fundamentais. Deve ser sublinhada, entretanto, apesar disso, a novidade e a originalidade de certas práticas institucionais e a oportunidade do surgimento de outras, no domínio da participação popular em serviços de saúde durante esse período e no domínio da descentralização institucional (Luz, 1991, p. 27-28).

Se a preocupação nacional voltou-se, assim, para a democratização dos serviços, tendo na atenção primária um pilar estruturante, há que se ter igualmente um olhar regionalizado, qual seja, uma perspectiva histórica que busque identificar polos geopolíticos regionais produtores dessas "oportunidades e novidades" em certo espaço de tempo. Como se verá, para o estado de São Paulo, antecipando o que ocorreria em âmbito nacional relativamente à APS, uma "oportunidade" histórica significou uma singular "novidade" na política de saúde, com grandes repercussões na rede pública de serviços, tanto em seu aparato institucional quanto nas novas modalidades de cuidados primários oferecidos à população.

Para flagrar tudo isso, a história se valerá sempre de indícios, vestígios, pistas que nos permitirão olhar para o passado. Afinal, cada sociedade observa a necessidade de distinguir seus componentes, mas os modos de enfrentar essa necessidade variam conforme tempos e lugares (Ginzburg, 1989, p. 171). Se a história é feita de vestígios, se a recuperação do passado só pode ocorrer por aproximações não lineares, pretende-se identificar aquele passado vivido não para dizer "como foi", mas para indicar pistas que concorreram para conflagrar tanto o ineditismo das experiências quanto igualmente revelar como tecnologias empregadas foram sendo transformadas ou colocadas em debate aberto, a partir de novos critérios nascidos de perspectivas históricas novas, principalmente com o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Buscam-se essas pistas dentro de uma "experiência paulista" - de seus Centros de Saúde, nos anos de 1970 -, nas discussões polarizadas em torno da chamada Programação em Saúde, na década de 1990, e na Atenção Primária envolvida em todo esse debate.

Este texto considerará, portanto, o período histórico dos anos 1970 até metade dos anos 1990, quando, com a proposição do Programa Saúde da Família (PSF) pelo Ministério da Saúde (1994), posteriormente renomeada Estratégia Saúde da Família (1996), ocorreu uma importante reorientação da discussão em torno à atenção primária. De raízes históricas semelhantes às desta última, e baseado na experiência ampliada do Nordeste para todo o país, em 1979, do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) - programa federal de medicina simplificada, proposto em 1976, com a instituição de agentes de saúde, posteriormente denominados agentes comunitários, ao ser alçado a programa nacional em 1991 com o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (Mendes, 1993; Silva e Dalmaso, 2002; Ribeiro, 2007), o PSF em parte deslocou o foco do debate em torno da modalidade assistencial a ser produzida internamente para as unidades de saúde, o que ganhou novo ânimo político e a necessidade prática de reflexão em anos bem recentes e dos quais o presente resgate histórico é, sem dúvida, um dos produtos.

Conferências Nacionais de Saúde: propostas e reflexões para a atenção primária

As conferências de saúde, aqui lembradas na qualidade de vestígios do SUS e da APS, foram instituídas no Brasil a partir do ano de 1937, no primeiro governo de Getúlio Vargas, quando, juntamente com as conferências de educação, deveriam servir como mecanismo do governo federal para o conhecimento e a articulação de ações desenvolvidas pelos estados nessas áreas. Foram estabelecidas pela Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937, que reorganizou o Ministério da Educação e Saúde. Eram espaços estritamente intergovernamentais, de que participavam autoridades do então Ministério da Educação e Saúde e autoridades setoriais dos estados e do território do Acre. Embora estivessem previstas para serem bienais, só foram convocadas quatro anos após, em janeiro de 1941 (CONASS, 2009, p. 11).

Na primeira conferência, de 1941, debateram-se temas claramente relativos à gestão e à administração dos serviços de saúde, no âmbito de um Estado que se constituía exemplarmente com a organização sanitária estadual e municipal e a determinação das medidas para o desenvolvimento dos serviços básicos de saneamento. A segunda conferência tratou de temas como malária, segurança no trabalho e condições de prestação de assistência médica sanitária e preventiva a trabalhadores e gestantes. É importante salientar que, nesse período, em 25 de julho de 1953, foi criado o Ministério da Saúde, iniciativa que, muito mais que resolver os problemas sanitários do país, visava separar a saúde e a educação (CONASS, 2009, p. 12).

Em julho de 1963, foi convocada a terceira conferência, com um temário redirecionado para a análise da situação sanitária e a reorganização do sistema de saúde, com propostas de descentralização e de redefinição do papel das esferas de governo, além de um plano nacional de saúde. O golpe militar de 1964 inviabilizou a implementação das medidas propostas por essa conferência, mas suas deliberações alimentaram muitos debates empreendidos por movimentos sociais a partir da década de 1970.

A quarta conferência, realizada em 1967, bem como as três subsequentes, todas sob o regime militar, retomaram o caráter de espaço de debate técnico, com a participação de especialistas nos temas discutidos e das autoridades do Ministério da Saúde, do Ministério da Previdência Social e Assistência Social (MPAS) e dos estados e territórios. Contaram ainda com um painel internacional sobre a política e as realizações da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e as experiências sanitárias de Venezuela e Colômbia (CONASS, 2009, p. 12).

A quinta conferência, realizada em agosto de 1975 (CONASS, 2009), dedicou-se a discutir a implementação da Lei n. 6.229/75, que criou o Sistema Nacional de Saúde, distribuindo as atribuições entre o Ministério da Saúde e o sistema previdenciário de assistência médica. A conferência também tratou de estratégias e mecanismos de implementação do Programa de Saúde Materno-Infantil, do Programa de Controle de Grandes Endemias e do Programa de Extensão das Ações de Saúde às Populações Rurais, além da implantação do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica. Em agosto de 1977, o tema da sexta conferência (CONASS, 2009, p. 13) igualmente dedicou-se à análise de estratégias de implantação de programas governamentais: o controle das grandes endemias, a operacionalização de novos diplomas legais básicos aprovados pelo governo federal em matéria de saúde e a implantação do PIASS, concebido em ano anterior pela Secretaria de Planejamento da Presidência da República.

A sétima conferência foi convocada em 20 de setembro de 1979 e realizada em 1980, com o tema "Expansão das ações de saúde através dos serviços básicos" (CONASS, 2009), desenvolvido nos subtemas "serviços básicos de saúde e sua articulação com os demais níveis de atendimento" e "recursos humanos" para esses serviços básicos. Constituiu-se um fórum de debate para o aprofundamento da proposta dos cuidados primários, que foi estratégica na discussão sobre o reordenamento do sistema de saúde, abordando as dimensões ético-política, organizacional e técnica das práticas de saúde. Nessa conferência, foi proposta uma política social para erradicar a miséria e atenuar a pobreza, pela satisfação das necessidades básicas da população. Assim, a saúde passaria a influenciar o processo de desenvolvimento nacional, exercendo uma função social integradora (Ribeiro, 2007).

De um lado, apoiando-se na experiência técnica do PIASS, e de outro, buscando universalizar os cuidados primários para otimizar ao máximo a cobertura de serviços de saúde em todo território nacional, o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde) nasceu ousado, ainda que tenha sido reformulado quase que de imediato: tratou da regionalização e hierarquização do sistema de saúde, da participação comunitária, da integralização das ações de saúde e uso de técnicas simplificadas (medicina simplificada), para o que ampliou o uso de pessoal não médico, além de ter pretendido articular o setor público de prestação de serviços básicos com a rede ambulatorial do setor privado (Mendes,1993).

A atenção primária através dos serviços básicos seria o núcleo e componente axial das relações integradoras dos estados na conformação de estruturas nacionais, integrando as ações dos antigos "programas especiais" e outros realizados pelos estados. Aparatos nacionais, como a Superintendência de Campanha de Saúde Pública (Sucam), o Instituto Nacional de Nutrição (INAN), e as fundações atuantes na saúde, como a Fundação Especial de Saúde Pública (FESP), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Fundação Nacional de Saúde (FNS), deveriam orientar suas atividades, em sua respectiva área de responsabilidade, de acordo com as diretrizes estabelecidas e especialmente para o desenvolvimento do Prev-Saúde.

Configurando uma atenção primária, portanto, um conjunto de sentidos entre "descentralização", "serviços básicos", "cuidados primários" e "medicina simplificada" foi sendo cunhado, designando o espaço estrutural e a modalidade funcional de assistência, que estaria na base de um sistema nacional. Com isso, a APS seria responsável tanto por uma construção de "entrada" - uma porta - que ordenasse e racionalizasse o sistema quanto pela expansão da cobertura da assistência médica e da assistência sanitária às populações brasileiras urbanas e rurais, para alcançar a "saúde para todos no ano 2000".

Contudo, em razão do desenvolvimento desigual e conflituoso das práticas assistenciais em saúde no âmbito dos estados e municípios, muitos contrastes seriam observados entre a política nacional e as realidades regionais, aproveitando, de modos também diversos, as "oportunidades e novidades" que se abriam em saúde.

Os Modelos Tecnológicos de Saúde Pública em São Paulo: uma revisão histórica

Em São Paulo, foi o médico Emílio Ribas quem primeiro impulsionou uma série de ações, a partir da introdução da microbiologia e da organização do Serviço Sanitário de São Paulo, na virada do século XIX para o XX. A importância de Emílio Ribas não só reafirmava sua vinculação às elites republicanas e cafeicultoras dirigentes como indicava sua postura centralista nos cargos que assumiria ao longo da vida. Como médico, iniciou sua carreira como inspetor sanitário na antiga Inspetoria de Profilaxia das moléstias infecciosas, combatendo diversas enfermidades pelo interior do estado. Em 1896, ainda nessa função, foi designado para chefiar a Comissão Sanitária Permanente de Campinas, onde sua luta contra diversas doenças, principalmente a febre amarela, lhe carreou a nomeação, em 16 de abril de 1898, de diretor-geral do Serviço Sanitário, cargo que ocupou durante dezenove anos (Almeida, 2003).

Aliado às campanhas de vacinação, o modelo campanhista de combate a certas epidemias em todo o Estado logrou obter algum controle sanitário. Mas o cotidiano das investidas sanitárias e a disparidade entre o ideal - da própria ciência médica e de suas exigências no espaço urbano ou rural - e os resultados obtidos pelas avaliações anteriores permitia ver que, até a década de 1920, essas ações eram limitadas: preservavam pontos fundamentais para os encaminhamentos mais urgentes, do ponto de vista político e econômico, relegando a grande maioria da população à situação de verdadeiro abandono diante de várias doenças e "finais de epidemias".

Por isso, a independência do projeto sanitário estadual paulista - proposto durante todo esse período aos órgãos federais, responsáveis pela manutenção e pelo controle da salubridade da "nação brasileira" - deve ser estudada em seu papel político de dissipar apenas as epidemias que ameaçavam determinados interesses, mas com êxito incerto (Ribeiro, 1994) e, em alguns casos, nulo. Mesmo se dizendo apta a, por si só, identificar e viabilizar uma normatividade capaz de regular o público e o privado, a corporação médica e suas primeiras instituições de saúde depararam, a partir dessa prerrogativa, retrocessos e pendências insuperáveis (Mota, 2005).

A chegada da Fundação Rockefeller e seu conjunto de ações para a rearticulação da Faculdade de Medicina de São Paulo, a partir de 1916, concorreram para a mudança do modelo tecnológico na área da saúde paulista, pela criação de um Instituto de Higiene desvinculado da Faculdade de Medicina1 1 O primeiro acordo previa a constituição de um Departamento de Higiene em 1918. Com a morte de Arnaldo Vieira de Carvalho, em 1920, a Faculdade de Medicina entrou em crise até 1924, quando o governador Carlos de Campos indicou um médico particular seu, Pedro Dias da Silva, para retomar o contrato com a fundação Rockefeller. Os primeiros anos deveriam ser voltados à constituição de um departamento de higiene, com prédio próprio, o que foi modificado com o passar dos anos para um Instituto (Marinho, 2003, p. 67-70). , inclusive com a administração de um indicado da Rockefeller, Samuel Taylor Darling, até 1925. De acordo com esse contrato, ficou o governo estadual responsável pela escolha de um local para a criação do Instituto de Higiene. A International Health Board forneceria os equipamentos necessários para seu funcionamento e, finalmente, uma bolsa de estudos para o curso de Higiene e Saúde Pública na Universidade John Hopkins a dois médicos da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, o que levou Geraldo de Paula Sousa e Francisco Borges Vieira e essa formação internacional (Campos, 2002, p. 14). Na gestão de Geraldo Paula Souza, de 1922 a 1927, o Serviço Sanitário deu prioridade à:

[...] construção dos serviços ambulatoriais gerais e permanentes, tais como a organização de uma "rede básica" de saúde pública. Reforçava, nitidamente, os serviços especializados e tendia a construir estruturas organizacionais a partir da identificação de problemas específicos do campo da saúde pública (Merhy, 1992; Campos, 2002).

Os Centros de Saúde comporiam uma rede regionalizada e seriam responsáveis pela saúde da população adscrita em cada região. Seu trabalho seria desenvolvido por um modelo voltado à educação sanitária, sendo poucas unidades implementadas em São Paulo e mantendo-se na saúde pública o modelo campanhista e de ações verticais sobre determinadas doenças (Nemes Filho, 2000, p. 77).

Assim, se havia um projeto para esses Centros de Saúde, discutidos e propagandeados, ele se resumiu, no caso paulistano, a três unidades, sendo a primeira no próprio Instituto de Higiene, a segunda no bairro do Brás e a terceira no do Bom Retiro. Pretendia-se formar um pensamento sanitário veiculando ideias de higiene e puericultura num largo espaço na imprensa escrita e radiofônica, expressando a posição educativa do Instituto, mas tendo nos Centros de Saúde os divulgadores desses pressupostos (Rocha, 2006, p. 37). Indo além, à marca da Rockefeller, de uma ciência administrativa aplicada à saúde (Castro Santos e Faria, 2010, p. 171), somaria-se um movimento dentro da corporação médica, sendo o "médico sanitarista" um especialista que deveria ter um espaço especial nos Centros de Saúde, segundo a avaliação de Geraldo de Paula Souza (Mota e Schraiber, 2009).

A chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, trouxe uma nova conjuntura a esse movimento, levado ao cabo a partir de 1934, com a nomeação de Gustavo Capanema e a transição reformista de 13 de janeiro de 1937. A centralização e a retirada de autonomia das instituições médicas e científicas, reunidas em torno de algumas instituições do governo federal, radicalizaram-se com a criação do Ministério de Educação e Saúde Pública, que deveria articular políticas para construir um aparato governamental que atuaria no território brasileiro coordenando ações em níveis federal, estadual e municipal (Hochman e Fonseca, 2000). Nesse sentido, a gestão Capanema dividiu o território brasileiro em oito regiões, cada qual com uma Delegacia Federal de Saúde, com o objetivo precípuo do domínio nacional por meio de uma centralização política e administrativa capaz de coordenar, executar e fiscalizar as ações de saúde nos estados.

Com a experiência do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), a partir de 1940, a agência bilateral brasileira-estadunidense, responsável pela expansão centralista varguista sobre todo o território brasileiro:

[...] encaminhou políticas sanitárias voltadas para as populações do interior, objetivando combater as grandes endemias do "sertão"; montou uma rede de unidades sanitárias e outros equipamentos; construiu a administrou escolas de enfermagem, hospitais, centros de saúde, além de sistemas de água e esgoto (Campos, 2006, p. 26).

Nesse período, o Brasil estava sob uma ditadura populista que, em vista de interesses econômicos e políticos, privilegiava diferentes espaços urbanos estratégicos e diferentes categorias profissionais. O restante da população brasileira, sem vínculo com os Institutos de Aposentadorias e Pensões (Braga e Paula, 2006, p. 52-53), criados a partir dos anos 1930, deveria pagar uma assistência médica especializada ou continuaria, como antes, a depender da assistência de serviços locais que não conseguiam atender à demanda, caso dos Centros de Saúde em São Paulo.

Essas experiências das administrações paulistas da saúde tinham, por um lado, marcas de modelos tecnológicos anteriores, frutos da política central federalista e apoiada pelos governos de São Paulo até os anos 1930, e, por outro, também concepções de saúde do modelo centralista da gestão Vargas, que, por sua vez, tinha dificuldades para impor suas diretivas.

Também a guerra civil de 1932 (Santos e Mota, 2010) impôs às instituições médicas e de saúde direcionamentos inesperados, exemplarmente com a invasão da Faculdade de Medicina e a proposta de transformar o Instituto de Higiene em quartel militar. O impacto dessas medidas pode ser constatado na cidade de São Paulo, pelo retrocesso de ações que implementara Paula Souza, enfraquecendo as instituições médico-sanitárias diante do novo governo, afastando a Fundação Rockefeller a partir da década de 1930 e finalmente desmantelando o projeto sanitário estadual paulista, pulverizado entre as décadas de 1940-1960 em diversas seções, sem nenhuma articulação ou racionalidade de gastos.

Assim, muito mais que ações paulistas, pioneiras e democratizantes da saúde pública - versão ingênua, que desconhece a história do estado -, o que apontamos é um quadro de imensa complexidade, em que o terceiro modelo de gestão tentaria não só incorporar resquícios institucionais e de modelos de gestão passados, mas sanar impasses que se foram acumulando e trazendo um grande desafio para os responsáveis por rearticular todo esse arcabouço em um novo modelo de gestão da saúde pública. Portanto, não se pretendia:

[...] que as técnicas desenvolvidas em períodos anteriores [fossem] desativadas. Nem remanescentes da política sanitária e do campanhismo, nem sobreviventes do modelo de Educação Sanitária, nem as desenvolvidas no controle da tuberculose e da hanseníase. O que ocorre é um realinhamento tecnológico, e os sentidos globais das mesmas técnicas modificam-se (Mendes-Gonçalves, 1994, p. 119).

Nesse contexto, em 10 de fevereiro de 1967, quando o então médico e sanitarista Walter S. P. Leser assumiu a Secretaria da Saúde Pública e Assistência Social, nos anos de 1964-1968 e 1975-1979, foi implementada junto a sua equipe2 2 Composta essa primeira gestão, entre outros, de Rodolfo Mascarenhas, Humberto Pascale, Toledo Pisa, Vítor Homem de Melo, Mourato Proença e Luiz Maragliano. uma profunda reforma administrativa, além de ações decisivas em áreas como a saúde mental e a vacinação3 3 Entre 1968 e 1970, foi implementada no estado uma ampla campanha de vacinação contra varíola, sarampo, poliomielite na primeira infância e tétano. . Segundo Rodolfo Mascarenhas, a situação político-institucional era propícia a mudanças administrativas da Secretaria:

[...] longa permanência na pasta, dando continuidade a sua ação; notável apoio administrativo e técnico do governador do estado; implantação do Plano do Governo para descentralização das atividades dos secretários de estado em 10 regiões; possibilidade de o chefe do Poder Executivo legislar por decreto-lei, durante o prolongado recesso da Assembleia Legislativa; assessoramento de um grupo de técnicos que já tinham tido experiência na formulação de planos anteriores de estruturação da Secretaria de Estado; relatório anterior apresentado pelos professores Hilleboe e Schaeffer; idealismo, capacidade de trabalho e tenacidade do secretário de estado (Mascarenhas, 1973, p. 443).

Dentro da reestruturação proposta, vários de-cretos fizeram firmar as seguintes balizas administrativas da Secretaria: a área de assistência social foi transferida para a recém-criada Secretaria da Promoção Social, dois colegiados passaram a assessorar o Secretário: o Conselho Estadual de Saúde, formado por líderes sociais ligados ao campo da saúde, e o Conselho Técnico, por diretores dos principais órgãos; criação das Coordenadorias de Saúde e da Comunidade, de Assistência Hospitalar, de Saúde Mental e de Serviços Técnicos Especializados; descentralização técnico-administrativa em 10 Divisões Regionais. Cada um desses órgãos deveria funcionar como uma pequena Secretaria de Estado. Às Divisões Regionais de Saúde estavam subordinados os Distritos Sanitários, estes sendo órgãos apenas de supervisão técnica; as unidades locais de saúde seriam os centros de saúde escalonados segundo sua complexidade; foi estudada a criação de carreiras ou de grupos de cargos para atender à demanda de sanitaristas. Pelo Decreto-lei de 2 de agosto de 1969, foi criada a carreira de médico sanitarista, com 622 cargos, e, em 25 de março de 1970, foram criados 208 cargos isolados de Inspetor de Saneamento (Mascarenhas, 1973, p. 444).

Quando voltou à Secretaria, em 1975, Leser retomou ações que haviam ficado estagnadas no quadriênio anterior como a elaboração e implantação dos programas básicos para os Centros de Saúde, de assistência à gestante, à criança e ao adulto. Nas pequenas comunidades, foram instalados os Postos de Atendimento Sanitário, que, vinculados aos Centros de Saúde, deveriam desenvolver atividades essenciais, com atendimento médico periódico (Mascarenhas, 1973, p. 96). Também se impulsionou a consolidação da carreira de médico sanitarista, com concurso que preencheu 300 vagas entre 1976 e 1978. Cabe ainda pontuar, entre as várias ações impetradas, o programa de suplementação alimentar a gestantes e nutrizes, a criação do Centro de Informações de Saúde, com a implantação do Sistema de Vigilância Epidemiológica para o Estado, e um conjunto de medidas voltadas para a saúde mental, considerada uma das mais problemáticas.

Para Walter Leser, a importância da retomada e da criação de novos Centros de Saúde teria sido decisiva para a Reforma em pauta:

[...] me formei com a ideia de que o sistema de saúde se ancora num Centro de Saúde, a primeira porta de atendimento, para depois eventualmente passar para um segundo nível, e até para um terceiro, de hospitalização. Na Reforma, havia a Coordenadoria de Assistência de Saúde da Comunidade que reunia os Centros de Saúde, uma Coordenadoria de Assistência Hospitalar, no segundo nível. E finalmente uma Coordenadoria de Serviços Técnicos Especializados, o nível da pesquisa (Leser, 2009, p. 349).

Indo além, a adesão das escolas médicas às proposições dos movimentos reformadores, Medicina Integral e Preventiva e Medicina Comunitária resultou, em São Paulo, na reordenação dos departamentos de medicina preventiva e nos serviços experimentais de saúde, marcando permanências de estruturas tecnológicas de saúde anteriores, rearticulando-se num modelo tecnológico de transição e num aparelho institucional denominado Centro de Saúde Escola (Cyrino e Schraiber, 2002, p. 38-39). Nesse sentido, as atividades de ensino em serviços se desenvolveriam a partir da experiência dos Centros de Saúde, mas consubstanciadas num modelo de gestão que tinha no ensino também metas basilares:

[...] as primeiras experiências nesse sentido constituíram-se com a instalação do Centro de Saúde Experimental da Barra Funda, ligado à Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, em 1967, do Centro de Saúde Escola de Botucatu, da Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp, em 1972, do Centro de Saúde Escola de Paulínia, em 1974, e, em 1977, firmou-se um convênio entre a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e a Universidade de São Paulo, através da Faculdade de Medicina e da Escola de Enfermagem, para a implantação do Centro de Saúde Escola do bairro do Butantã (Cyrino e Schraiber, p. 39).

Entre suas atividades, o Centro deveria servir de estágio para os alunos da área médica e de saúde, voltando-se à integração docência/assistência médica, que, por sua vez, visaria a cobrir todos os níveis da organização dos serviços - ações primárias oferecidas no Centro de Saúde por meio de medidas de manutenção da saúde e prevenção, somando-se às ações secundárias, terciárias e/ou quaternárias. Com isso, o modelo de atenção e de gestão que abrangia esses Centros de Saúde e Centros de Saúde Escola foi o da Programação em Saúde.

Esse modelo, além de instituir a direção das Unidades para o médico com formação em Saúde Pública, na mencionada carreira de médico sanitarista - a qual foi extinta em 1987 (Nemes, 1990), também primou, ao aceitar os princípios da Medicina Integral e Preventiva, pela construção de uma nova assistência à população usuária dos Centros de Saúde, pautada na proposta de uma integração médico-sanitária em busca de um modelo de assistência mais integral (Schraiber, 1990; Mendes-Gonçalves, 1994). Esta integração construiu uma articulação entre a assistência médica e aquela das ações em Saúde Pública.

É preciso destacar que, muitas vezes, este modelo é tomado como o mesmo da proposta denominada Ação Programática em Saúde, lançada cerca de 10 anos após a Programação em Saúde e, não por acaso, com uma denominação muito próxima. A confusão entre essas duas propostas decorre, muito provavelmente, do contexto histórico e do modo pelo qual a Ação Programática em Saúde foi apresentada, já que surgiu quando a Programação sofria um forte retrocesso como projeto para a atenção primária. Sua qualidade de articular a assistência sanitária com a assistência médica individual estava sendo extinta, o que de fato ocorreu, sendo substituída pelo modelo de pronto-atendimento, como se apresentará adiante. Mas, apesar dos nomes próximos, a Ação Programática é uma releitura crítica da Programação em Saúde e centrada mais na dimensão tecnológico-assistencial do que na gerencial, reorientando exatamente o caráter e propósitos de uma atenção mais integral (Nemes, 1990; Schraiber e col., 2000), o que também será considerado no próximo tópico.

A Programação em Saúde foi uma formulação completamente original no país, a considerar sua proposição em 1967 e maior implementação em 1975 em contraste com a proposição de um Sistema Nacional de Saúde, em 1975, e do programa PIASS, na extensão de cobertura à base de uma atenção primária, nos anos 1976. Além disso, a Programação não constituiu uma articulação médico-sanitária qualquer: operou um desmantelamento dos programas verticais e seus equipamentos, alguns de significativa importância como o Departamento de Profilaxia da Lepra; criou órgãos e práticas de planejamento e de epidemiologia, tal como o sistema de informação; e desenvolveu uma ampliação e diversificação da assistência médica individual, dentro das políticas de extensão de cobertura (Nemes, 1990).

Essa "horizontalização" do aparato prestador de assistência em saúde pública foi promovida no estado de São Paulo pela Programação em Saúde e substituiu, como modelo de assistência e de organização institucional, as antigas ações sanitárias voltadas para doenças específicas (a tuberculose, a hanseníase, o tracoma, entre outras), ainda que, destas ações sanitárias, tenha mantido as domiciliares e ambientais, retendo a visitadora domiciliar e os agentes de saneamento como parte das novas equipes de trabalho (Nemes, 1990). Ao mesmo tempo, a Programação ampliou as ações médicas e educativas voltadas para a higiene pré-natal e a puericultura, para o crescimento e desenvolvimento das crianças, inovando ao integrar este último conjunto de ações ao primeiro, o de ações sanitárias, nos já citados Programas de Assistência à Criança, à Gestante e ao Adulto, além dos subprogramas de assistência e controle da tuberculose e hanseníase. Ao fazê-lo, a Programação situou a assistência médica no interior desses programas e como um de seus recursos, ao lado das práticas educativas de caráter preventivo ou as de profilaxia das doenças ou saneamento ambiental, o que, nos anos 1982-1987, viria a ser completamente modificado, tendo como pano de fundo a crise financeira da medicina previdenciária de 1982 (Nemes, 1990, 2000).

Com as proposições do governo federal do Plano de Reorganização da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social (1982), das Ações Integradas em Saúde (AIS-1983) e do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS-1987), como normalização nacional para responder à mencionada crise da Previdência Social, instala-se a política e a operação prática da

[...] utilização da rede de unidades básicas da Saúde Pública como principal porta de entrada do sistema de atenção à saúde. Essas novas formulações passaram a dirigir a política de trabalho das Secretarias de Saúde que, com isso, foram alçadas a uma posição de maior poder e a um aporte muito maior de recursos. A essa nova posição correspondeu uma contrapartida: a necessidade de aumentar o volume de assistência médica na rede pública a ponto de substituir parte da assistência prestada pela medicina privada conveniada4 4 Trata-se de assistência conveniada com a Previdência Social, no sentido de suprir as insuficiências de seu aparato próprio na cobertura aos usuários da medicina previdenciária, à época, os trabalhadores urbanos e rurais, e seus familiares. (Nemes, 2000, p. 57).

Será essa a política que também no estado de São Paulo passa a presidir a organização institucional e o modelo de assistência nos centros de saúde, o que já aponta para importantes questões na dinâmica entre o âmbito regional paulista e o federal. De um lado, ocorre o alinhamento de São Paulo na política nacional mais geral, enquadrando sua Programação em Saúde na expansão do pronto-atendimento médico. De outro, em razão da leitura simplificadora da atenção primária na ampliação de cobertura de um sistema de saúde nacional - leitura até certo ponto dada pelas realidades tão diversas das várias regiões do país em termos tecnológicos, financeiros, institucionais e de recursos profissionais em saúde e que predominou na disputa de correntes políticas no interior do governo federal -, verifica-se, de um lado, uma perda, para o plano nacional, das "oportunidades e novidades" historicamente criadas pelo modelo da Programação em Saúde do estado de São Paulo, e, de outro lado, uma perda da possibilidade de aprimorar, política e tecnologicamente, a integração médico-sanitária ali formulada.

Para essa apreensão em sua dimensão histórica, Paim ponderará que a organização social dos serviços de saúde deve ser entendida justamente pela articulação entre estado e história.

[...] desse modo, é possível compreender que tanto o sistema de serviços de saúde como uma instituição concreta (uma Secretaria de Saúde) ou uma organização específica foram constituídos socialmente e que sua estabilidade, resistência à mudança ou ímpeto renovador, resultam de forças em constante dinamismo. A própria Teoria, ou mesmo a luta teórica com vistas ao método a ser adotado em uma organização, participa dessa dinâmica (Paim, 2002, p. 330).

Limitações da Programação em Saúde: debates paulistas

A partir de 1988, a proposta da atenção primária como assistência simplificada e de baixo custo para "problemas simples" passa a ser rechaçada. Seu modelo de gestão pode ser entendido "como uma forma de relacionar os problemas e necessidades em saúde dos conjuntos sociais que vivem em espaços geográficos delimitados com os conhecimentos e recursos, institucionais e comunitários, de tal modo que seja possível definir prioridades" (Paim, 2002, p. 330).

Nas constituições anteriores, o Brasil se tinha eximido de definir a competência do Estado, daí a importância de, ao lado da Declaração de Alma-Ata e da proposta de Saúde para todos no ano 2000, ter efetivamente ocorrido no país um conjunto de movimentos sociais em torno da democratização da saúde, que culminou com a bandeira "Saúde, direito do cidadão e dever do Estado". Nessa perspectiva, mesmo a proposta "Saúde para todos no ano 2000, que originalmente poderia ter um sentido de controle social, talvez seja recuperada por uma estratégia política definida pelos trabalhadores e seus aliados históricos e recriada a partir de um novo conteúdo potencialmente transformador" (Ribeiro, 2007, p. 87).

No processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS), a necessidade de reorientar as práticas de saúde fica explicitada à medida que se definem as questões macroestruturais do sistema, pois ficam evidentes as lacunas existentes na assistência e no próprio sistema. As soluções desencadeadas pelas AIS e pelo SUDS deram início ao processo de descentralização dos serviços, mas não reorientaram as práticas profissionais, os processos de trabalho nos serviços de saúde. Ao contrário, levaram à predominância da assistência médica tradicional. Assim, na rede básica já constituída, conviveriam diferentes ações de saúde originadas nos modelos tecnológicos do período anterior - o campanhista, o médico-sanitário e o assistencial privatista -, sem que houvesse integração entre eles. Já definido constitucionalmente, o SUS precisava de bases legais e organizacionais, de modo que, depois da Constituição de 1988, as políticas de saúde deram prioridade a esses aspectos. Como alternativa às políticas oficiais, formularam-se e experimentaram-se algumas propostas em espaços restritos, dando origem aos modelos assistenciais alternativos.

Neste ponto, é necessário distinguir entre os conceitos de modelo assistencial e de modelo tecnológico. A denominação modelo tecnológico designa a reformulação dos processos de trabalho (entendidos como práticas profissionais em saúde por alguns) e modelo assistencial, a reorganização da oferta/consumo da assistência, que incide preponderantemente no polo organizacional e da economia de produção dos serviços. A adoção do conceito de modelo assistencial mais que do tecnológico, nas propostas de mudanças em saúde, significou a prioridade da dimensão organizacional, restando a reforma dos processos de trabalho como subjacente.

Embora a distinção entre modelo assistencial e tecnológico possa parecer exagero - uma vez que, na saúde, a tecnologia e seus usos produzem a assistência -, ela explicita os sentidos implicados no uso do termo "tecnológico" quando se refere a processo de trabalho. Quando se muda o processo técnico da ação profissional, modifica-se necessariamente a tecnologia do trabalho e da produção assistencial; mas se pode mudar a organização da produção assistencial sem que substantivamente sejam alteradas as técnicas dos vários trabalhos profissionais. Portanto, não é verdade que as tecnologias sejam neutras e se moldem às mudanças na organização da produção assistencial, como tampouco é verdade que apenas mudanças na organização sejam capazes de transformar a produção assistencial em termos de seu caráter público/privado, centralizado/descentralizado, autoritário/participativo, acesso ampliado/seletivo etc. (Ribeiro, 2007, p. 98).

A integralidade, a equidade, a intersetorialidade, a universalidade do acesso e a adoção do conceito ampliado de saúde como resultados de múltiplas determinações da saúde, individual ou coletiva, vão delimitar experiências que buscam definir um modelo de práticas, em novos processos de trabalho, tal que preencha as lacunas dos modelos anteriores e, assim, responda a um novo contexto social de ampliação de direitos. Nesses termos, um contexto econômico de contenção de investimentos sociais possivelmente compromete a cidadania inscrita no texto constitucional.

O período dos anos 1980-1990 foi rico em experimentações para a construção de novos modelos que dessem prioridade à rede básica: exemplarmente, os programas oficiais do Ministério da Saúde de atenção integral à saúde (da criança, PAISC, ampliado para o adolescente, da mulher, PAISM, do trabalhador, e ampliação do Programa de Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis, incorporando a Aids) e propostas alternativas como: a Oferta Organizada, a Vigilância da Saúde, o movimento das Cidades Saudáveis, a Reforma Psiquiátrica e valorização da Saúde Mental, o modelo técnico assistencial em Defesa da Vida, a Ação Programática em Saúde, entre outros.

A proposta da Ação Programática em Saúde foi formulada e apresentada pela primeira vez no II Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e no III Congresso Paulista de Saúde Pública, em 1989 (Schraiber, 1990, p. 37), portanto, em pleno contexto histórico da implantação das AIS como solução para a crise previdenciária e em resposta à quase extinção da Programação em Saúde. Consistia em uma formulação teórica e uma experiência prática de modelo tecnológico para atenção primária em saúde, tendo como referencial o "trabalho em saúde" ou uma articulação de elementos teóricos e práticos para repensar as práticas profissionais no contexto particular da unidade básica (Schraiber, 1990; Schraiber e col. 2000). Essas ações foram definidas como uma proposição para organizar o trabalho em saúde fundamentada no ideal da integralidade das ações, para o que buscou inspiração em tecnologias de base epidemiológica, privilegiando um olhar sobre coletivos sociais. Partiu da proposta assistencial da Programação em Saúde, porque foram reconhecidas as potencialidades desta, sobretudo a de colocá-la como intervenção pública e coletiva para uma rede de atenção básica, progressivamente incorporadora da assistência médica individual. Nesse sentido, buscou-se denunciar o quanto tais potencialidades foram politicamente abortadas, voltando-se a rede de centros de saúde para a configuração de ambulatórios-gerais, com "tensionamento" dos programas de saúde, cuja transformação foi direcionada para o mesmo padrão assistencial do pronto-atendimento.

Segundo a leitura dos autores da Ação Programática em Saúde, a Programação seria "um modelo operatório de prática de saúde", ou seja, uma tecnologia de trabalho construída sob "determinação histórica e social específica", com possibilidade de apresentar alternativa para o baixo impacto e os altos custos da tendência organizacional da rede de unidades sanitárias e de sua progressiva contribuição para o processo de medicalização. Essa "real possibilidade" residiria no alcance assistencial do arranjo tecnológico existente na Programação e ausente nos limites do pronto-atendimento, fundado na consulta médica clínica como produção assistencial isolada e episódica, e com isso retirando da clínica tradicional sua competência de acompanhar os casos e responsabilizar-se pelo sucesso terapêutico. A possibilidade alternativa estava dada pela articulação da consulta médica a ações educativas e de prevenção e a demais ações de caráter coletivo em saúde (vigilância epidemiológica, controle de faltosos, visitação domiciliar, busca ativa de casos, seguimento de tratamento, vacinação etc.) e a atendimentos de enfermagem5 5 Cabe aqui notar a postulação de um grande trabalho em equipe já dada nessa proposta da Programação, assim como lembrar que ela provia também atendimentos odontológicos e oftalmológicos, ainda que subordinamente aos programas. Esses são outros aspectos a se apontar da particularidade da realidade sanitária paulista frente ao panorama nacional, o que será lembrado na releitura feita para o Programa Saúde da Família, implementado em São Paulo na modalidade de Projeto Qualis, com equipes mais complexas que as propugnadas por aquele programa (Silva e Dalmaso, 2002) .

Para esses idealizadores, naquele momento histórico, recusar as contribuições da Programação em Saúde não ajudaria na criação de opções para a crise da assistência médica e seus determinantes históricos (custo, emergência de direitos, tecnificação da prática, fragmentação em especialidades). Em contrapartida, relativamente à Programação em Saúde, a Ação Programática construiu importantes modificações, seja quanto ao modelo tecnológico, seja quanto às pretensões de alcance assistencial. Partiu da lógica de estruturação das práticas sanitárias existentes (programas de saúde) e lhes adicionou elementos que as colocam em novo patamar tecnológico, com o objetivo de desenvolver modelos condizentes com a nova dinâmica sociocultural e política da construção do SUS. Alguns aspectos são recriados e enfatizados, tal como a integração médico-+sanitária da Programação que é ampliada para uma integralidade em saúde, enquanto que outros aspectos são modificados com reorientações quanto a seu papel, como é o caso da oferta assistencial organizada apenas pelo diagnóstico técnico epidemiológico, bem como o caso das práticas de prevenção, ambos redefinidos com base na valorização das relações intersubjetivas e comunicativas no interior da prestação dos serviços assistenciais, ampliando-se a participação dos usuários em ambos os processos: o diagnóstico das necessidades de saúde da população adscrita e as práticas de prevenção.

Em contraposição à simplificação representada pela proposta do pronto-atendimento, como um nível primeiro de atenção dotado de custos inferiores à assistência hospitalar ou àquela provida pelos médicos especialistas, a Ação Programática lançará a proposta de tratar esta atenção dos Centros de Saúde, nesse momento já denominados Unidades Básicas, como atenção de alta complexidade assistencial por seu caráter integral, mesmo quando os casos clínicos que se apresentem sejam, do ponto de vista biomédico, patologias simples.

Era necessário acrescentar essas questões ao campo da Saúde Coletiva, além do debate sobre acesso e melhoria da qualidade da assistência prestada. São questões que representam o plano dos arranjos tecnológicos, isto é, situadas no "modelo operatório da estruturação institucional das práticas em saúde", o que ainda não havia sido contemplado satisfatoriamente. Essas questões certamente emergiriam quando, na perspectiva da unificação das ações decorrentes da integração institucional com as AIS e o SUDS, se introduzisse a consulta médica (estruturada puramente na dimensão individual) para conviver com as outras ações da rede pública. Essas questões não substituiriam as de ordem política e organizacional, como público/privado, acesso/restrição de oferta, atenção integral/pronto-atendimento, já anunciadas na Programação em Saúde, mas se somariam a elas. A questão principal, pois, seria definir que modelo de prática seria ofertado.

Diante disso, na proposta da Ação Programática, optou-se por aprimorar o modelo da Programação, identificando limites e possibilidades, pois assim se conheceriam seus limites tecnológicos, num processo de "politização da técnica", uma vez que a proposta de integração em saúde ia além da integração institucional ou da justaposição de uma prática clínica tradicional à prática sanitária igualmente tradicional. A integração em saúde deveria enfrentar necessariamente a forma tecnicamente reduzida de prática médica no modelo biomédico, responsável pela leitura reduzida das determinações sociais dos adoecimentos, bem como enfrentar a fragmentação do coletivo-populacional, tradicionalmente operada na epidemiologia e na prática sanitária decorrente. Tratava-se, pois, do enfrentamento da própria medicalização da assistência ofertada, seja na dimensão clínica seja na sanitária, na contraproposta da atenção integral.

Na dimensão ética, partia-se da concepção de construir um modelo que renunciasse à importação de formas acabadas para atender às necessidades de saúde, resgatando a noção da participação/emancipação dos sujeitos (profissional e usuário) e rejeitando quer a clínica como tal, quer a epidemiologia já existente, na dimensão técnica das intervenções. Seriam necessárias as tradicionais delimitações dos saberes dados, em busca de outros saberes. Para isso, os limites e potencialidades dos instrumentos já utilizados (da clínica e saúde pública) deveriam ser permanentemente atualizados, para construir novos processos de trabalho e, assim, uma possível "politização da técnica".

Assim como a clínica, a epidemiologia deveria ser permeada por construções interdisciplinares, isso porque, se no atendimento individual era preciso alcançar a família, a comunidade e o território (pelas articulações das consultas com a vigilância e outros recursos do coletivo), no diagnóstico de saúde e em sua apreensão como demanda nos serviços, também era preciso questionar os saberes práticos das experiências individuais e grupais de adoecimento e de suas prevenções. O recurso à maior participação dos usuários e à melhor comunicação usuário/serviço (ou profissional) são ferramentas valiosas naquela direção (Teixeira, 1996; Rodrigues e col., 2000).

Contudo, o maior desenvolvimento teórico dessas ferramentas escapa ao período histórico em exame (1970-1995). Tal como as demais propostas alternativas às do Ministério da Saúde e inovadoras com relação aos modelos assistenciais e gerenciais do SUS, de corte nacional ou regional, a Ação Programática também se desenvolve contemporaneamente. Se, de um lado, isso torna possível observar os desdobramentos práticos dos princípios originalmente formulados, o que permite precisar melhor, hoje, quanto a Ação Programática de fato distanciou-se da Programação em Saúde, de outro lado, torna mais difícil a leitura crítica e histórica desses desdobramentos mais atuais. Entretanto, de fato lançada na coletânea Programação em saúde hoje (Schraiber, 1990), essa obra representaria o primeiro esforço de síntese e de avaliação, inclusive em dimensão histórica, do modelo da Programação em Saúde.

É interessante salientar o caráter regional dessa produção: como as particularidades paulistas no campo médico e da saúde poderiam ajudar a compreender a própria história dos serviços de saúde em âmbito nacional. Nesse sentido, olhar o particular é rever essa interpretação, indicando que, se há originalidades, elas se constituem a partir de tensões e de inovações:

[...] algumas das condições de práticas vividas nos serviços de saúde sob o modelo da Programação, e que [nem] sequer foram percebidas como portadoras de questões nucleares para a concepção de modelos assistenciais alternativos, são condições muito próximas das que podem passar a viver os serviços de saúde pública de modo geral, no atual Sistema Unificado. Tais condições encontram, em São Paulo, a memória de seus dias de Programação (Schraiber, 1990, p. 18).

Nessa coletânea, coube a Maria Ines Baptistella Nemes a recuperação histórica da ação programática e a apresentação das particularidades paulistas no processo, ao tratar dos modelos de organização tecnológica de saúde pública no Estado. É interessante notar como os Centros de Saúde passariam a ganhar um espaço importante nesse processo: "A reforma administrativa promoveu uma desconcentração técnico-administrativa e reorganizou todos os equipamentos da Secretaria de Saúde unindo em uma unidade local, o Centro de Saúde, todas as ações executadas anteriormente por 25 serviços especializados 'verticais'" (Nemes, 1990, p. 73).

Todavia a Programação em Saúde e, em parte, também a Ação Programática teriam novas leituras. Em 1991, publica-se A saúde pública e a defesa da vida (Campos, 1991), cujo autor, mesmo assumindo sua filiação aos pressupostos dos autores da Ação Programática, "em essência na mesma corrente", considerou inadiável o reconhecimento de que grande parte desse ideário, então defendido em torno da Programação, seria insuficiente para dar conta, para além da atenção desenvolvida nos centros de saúde, de toda a rede de serviços integrante de um sistema de saúde em âmbito nacional e que se pautasse em um estilo de vida mais solidário e humano. Indo além, e fundamentado na tradição do movimento socialista e do marxismo, preconizava a necessidade de se enriquecer o arsenal de conceitos e de projetos econômicos, sociais e culturais (Campos, 1991, p. 56):

[...] há também discordâncias em torno de pontos mais operacionais, como nos temas do direito à saúde, da organização da atenção e da reforma médico-sanitária. Nesses assuntos, sinto que esses autores mais reafirmam a tradição da Medicina Social frente aos ataques do neoliberalismo do que refletem criticamente sobre o pensar e o fazer saúde dentro de uma perspectiva socialista.

Essencialmente, Campos (1991) discordava da defesa de uma capacidade normativa na organização e no trabalho, quando o planejamento estivesse apoiado na epidemiologia, ou que o mesmo seria mais eficaz do que as ações já constitutivas da Clínica, argumento central da Ação Programática. Também polemiza a contraposição apresentada entre atenção individual e saúde pública, e destaca a necessidade de se pensar especialmente a dimensão gerencial, pouco trabalhada naquela proposta. A dimensão administrativa deveria ultrapassar os princípios de uma "administração científica no estilo de Taylor e Fayol", aplicados ao planejamento em saúde no pós-guerra e avaliados como ainda vigentes, essencialmente na proposição gerencial da Programação em Saúde.

Nesse sentido, a Programação representaria mais um modelo baseado em antigos instrumentos de planejamento do que uma experiência alternativa, quer no modo pouco extensivo de sua implantação, quer diante da força política de que se apoderaram os planos de saúde e as possibilidades que abriam para as escolhas individuais em torno a necessidades e demandas assistenciais. Para Campos (1991), teria havido uma "superestimação [...] tanto em torno da importância das técnicas da Programação, tomadas como se fossem capazes de, uma vez implantadas, gerar um modelo assistencial alternativo, como também da própria experiência paulista durante os anos setenta" (Campos, 1991, p. 58). Os programas de saúde da Secretaria do Estado de São Paulo teriam atingido apenas os próprios Centros de Saúde do governo estadual, que, em conjunto, perfariam tão somente 4% da população, o que seria um "peso insignificante" em relação ao então sistema de saúde (p. 58).

De outro lado, na vertente do financiamento exi-gido por um modelo em moldes da Programação em Saúde, Merhy e Queiroz (1993) afirmavam a impossibilidade de sua expansão para o território nacional, tendo em vista os diversos estados do país com baixa disponibilidade de recursos. Apontavam o paradoxo do conflito dessa modalidade assistencial com a expansão de cobertura, a que, afinal, a atenção primária deveria servir.

Como se pode acompanhar, há um acalorado debate, marcadamente nos anos de 1980-1990, entre "grupos próximos" com "pensamentos distintos", debate aqui trazido por se tratar de uma discussão eminentemente paulista. Além disso, tal como men-cionado em referência à Ação Programática, também a proposta Defesa da Vida passa por contí-nuo desenvolvimento ulterior, com muitos desdobramentos contemporâneos e redimensionamentos de seus primeiros postulados, como se observa já na formulação da proposta de uma Clínica Ampliada, em 1999.

Mais uma vez, são indícios de uma história da saúde pública preconizada para o Brasil, mas que parte de uma proposta concebida em São Paulo, estado que, ao mesmo tempo, se quer independente- - inclusive historicamente - de um país onde pretende implementar seus projetos. Note-se que essa discussão vem de duas escolas de medicina paulistas: a Faculdade de Medicina da USP e a Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Seus maiores propugnadores eram médicos sanitaristas que passaram por experiências anteriores de um mesmo grupo, como das lutas empreendias pela Reforma Sanitária. O que se quer retomar aqui são os indícios que cabem à História capturar, as pistas que demonstram que ela não é feita por linearidades, mas por rupturas e permanências. E, nesses termos, o "paulistanismo", essa linha político-ideológica de supor suas experiências locais incondicionalmente válidas para o âmbito nacional, parece um tópico recorrente sob nova roupagem, mesmo que seja para negá-la.

Por isso, esse debate se estenderia pelos anos seguintes, com temas da história sanitária paulista reaparecendo como um passado que não passou. Mesmo que a intenção seja a de crítica, o lugar dessas falas remete a uma perspectiva histórica do sanitarismo paulista, não se tratando de sua afirmação, o que parece em larga medida superado e criticado entre os produtores de conhecimento na área da saúde, mas, ao mesmo tempo, da permanência de uma discussão de grupo que, mesmo cindido, tem em São Paulo uma "guarida natural" para referendar a formação de parte do pensamento sanitário brasileiro, como uma linha de experiências que ora assinalam certo desgaste, ora captam energias ainda presentes para a execução de novas ações em âmbito nacional. Retomar essas experiências históricas da saúde mostra que "articular o pensamento à ação supõe revisitar alguns conceitos que permitam a construção de uma cartografia da práxis. Assim, os conceitos de necessidade de saúde, sujeito e práticas poderiam dar início a esse mapa conceitual" (Paim, 2007, p. 150).

Ainda há que reportar o momento histórico mais amplo desse debate. Quando escreveu sua Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991, o historiador inglês Eric Hobsbawm afirmou que os anos 1990 se abriam como um período de futuro irreconhecível, pois haveria então sinais de uma crise histórica. Essa crise daria ao homem daquele momento uma única alternativa para aquela sociedade em mudança: a escuridão. Dentre esses desafios para o século XXI, o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) fala da necessidade da humanidade atual aprender a ver no escuro. Nesse contexto, está a História não para trazer a luz de um caminho a ser trilhado, mas para ajudar o homem, através dos vestígios deixados pelo tempo, a tatear seu mundo pelas experiências vividas e quem sabe mover-se rumo a mudanças inesperadas da saúde também.

Recebido em: 12/05/2011

Aprovado em: 16/07/2011

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  • Atenção Primária no Sistema de Saúde: debates paulistas numa perspectiva histórica

    Primary Care in the Health System: debates from São Paulo in a historical perspective
  • 1
    O primeiro acordo previa a constituição de um Departamento de Higiene em 1918. Com a morte de Arnaldo Vieira de Carvalho, em 1920, a Faculdade de Medicina entrou em crise até 1924, quando o governador Carlos de Campos indicou um médico particular seu, Pedro Dias da Silva, para retomar o contrato com a fundação Rockefeller. Os primeiros anos deveriam ser voltados à constituição de um departamento de higiene, com prédio próprio, o que foi modificado com o passar dos anos para um Instituto (Marinho, 2003, p. 67-70).
  • 2
    Composta essa primeira gestão, entre outros, de Rodolfo Mascarenhas, Humberto Pascale, Toledo Pisa, Vítor Homem de Melo, Mourato Proença e Luiz Maragliano.
  • 3
    Entre 1968 e 1970, foi implementada no estado uma ampla campanha de vacinação contra varíola, sarampo, poliomielite na primeira infância e tétano.
  • 4
    Trata-se de assistência conveniada com a Previdência Social, no sentido de suprir as insuficiências de seu aparato próprio na cobertura aos usuários da medicina previdenciária, à época, os trabalhadores urbanos e rurais, e seus familiares.
  • 5
    Cabe aqui notar a postulação de um grande trabalho em equipe já dada nessa proposta da Programação, assim como lembrar que ela provia também atendimentos odontológicos e oftalmológicos, ainda que subordinamente aos programas. Esses são outros aspectos a se apontar da particularidade da realidade sanitária paulista frente ao panorama nacional, o que será lembrado na releitura feita para o Programa Saúde da Família, implementado em São Paulo na modalidade de Projeto Qualis, com equipes mais complexas que as propugnadas por aquele programa (Silva e Dalmaso, 2002)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      12 Maio 2011
    • Aceito
      16 Jul 2011
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