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Homens e cuidados de saúde em famílias empobrecidas na Amazônia

Men and health care in impoverished families in Amazonia

Resumos

Investigamos o lugar do homem em relação aos cuidados com saúde, em famílias de baixa renda no contexto amazônico. Utilizamos 11 entrevistas com eles e suas famílias e com 21 profissionais de Saúde sobre eles e observação dos contextos em que vivem e dos processos de utilização e atendimento dos serviços. Os dados empíricos foram analisados em seu conteúdo sob a perspectiva cultural do holismo-individualismo. Verificamos que os homens cuidam predominantemente da saúde de si e da família a partir dos papéis socialmente tradicionais que lhes são atribuídos. O cuidado de si para eles é, em geral, emergencial, superficial e mediado pela mulher. Já o cuidado com os outros está voltado para o cumprimento do papel de provedor. Fogem desse padrão, homens em que predomina a cultura indígena e jovens com visão social e familiar mais moderna. Via de regra, os parentes reforçam as principais tendências culturais do comportamento masculino a respeito dos cuidados com a saúde. Os profissionais, por sua vez, tendem a desqualificar as reivindicações masculinas, buscando equivocadamente combater o machismo, e falham em reconhecer diferenças pautadas em repertórios culturais.

Homem e saúde; Cuidados da saúde na família; Programa Saúde da Família


We investigated the position of men in relation to health care in low-income families at the Amazon region. We completed 11 interviews with the men and their families and with 21 health care professionals responsible for them. We made observations of the contexts in which they live and of the use and provision of health service process. Data were analyzed from the perspective of cultural holism-individualism. We found that men tend to follow traditional social roles in managing their own and their family's health. Health care for themselves is usually emergency care, superficial and mediated by the woman. The man's care for others is primarily focused on fulfilling the role of provider. However, men dominated by indigenous culture and young men with more modern social and family views tend not to follow this pattern. As a rule, the parents reinforce the main cultural tendencies of male behaviour related to health care. The professionals, in turn, tend to dismiss male's claims, seeking mistakenly to combat sexism, and fail to recognize differences based on cultural repertoires.

Man and Health; Health Care in the Family; Health Family Program


PARTE I - ARTIGOS

Homens e cuidados de saúde em famílias empobrecidas na Amazônia

Men and health care in impoverished families in Amazonia

Denise Machado Duran GutierrezI; Maria Cecília de Souza MinayoII; Kátia Neves Lenz César de OliveiraIII,† † (In Memoriam)

IDoutora em Saúde Coletiva. Docente da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Rua Salvador, 345, apto 1601, Adrianópolis, CEP 69057-040, Manaus, AM, Brasil. E-mail: dmdgutie@uol.com.br

IIDoutora em Saúde Pública. Pesquisadora e docente da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ). Endereço: Av. Brasil, 4036 sala 700, Manguinhos, CEP 21040-361, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: cecilia@claves.fiocruz.br

IIIDoutora em Saúde Coletiva. Docente da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Avenida Rodrigo Otávio, 3000, Coroado, CEP 69077-000, Manaus, AM, Brasil. E-mail: katialenz@ufam.edu.br

RESUMO

Investigamos o lugar do homem em relação aos cuidados com saúde, em famílias de baixa renda no contexto amazônico. Utilizamos 11 entrevistas com eles e suas famílias e com 21 profissionais de Saúde sobre eles e observação dos contextos em que vivem e dos processos de utilização e atendimento dos serviços. Os dados empíricos foram analisados em seu conteúdo sob a perspectiva cultural do holismo-individualismo. Verificamos que os homens cuidam predominantemente da saúde de si e da família a partir dos papéis socialmente tradicionais que lhes são atribuídos. O cuidado de si para eles é, em geral, emergencial, superficial e mediado pela mulher. Já o cuidado com os outros está voltado para o cumprimento do papel de provedor. Fogem desse padrão, homens em que predomina a cultura indígena e jovens com visão social e familiar mais moderna. Via de regra, os parentes reforçam as principais tendências culturais do comportamento masculino a respeito dos cuidados com a saúde. Os profissionais, por sua vez, tendem a desqualificar as reivindicações masculinas, buscando equivocadamente combater o machismo, e falham em reconhecer diferenças pautadas em repertórios culturais.

Palavras-chave: Homem e saúde; Cuidados da saúde na família; Programa Saúde da Família.

ABSTRACT

We investigated the position of men in relation to health care in low-income families at the Amazon region. We completed 11 interviews with the men and their families and with 21 health care professionals responsible for them. We made observations of the contexts in which they live and of the use and provision of health service process. Data were analyzed from the perspective of cultural holism-individualism. We found that men tend to follow traditional social roles in managing their own and their family's health. Health care for themselves is usually emergency care, superficial and mediated by the woman. The man's care for others is primarily focused on fulfilling the role of provider. However, men dominated by indigenous culture and young men with more modern social and family views tend not to follow this pattern. As a rule, the parents reinforce the main cultural tendencies of male behaviour related to health care. The professionals, in turn, tend to dismiss male's claims, seeking mistakenly to combat sexism, and fail to recognize differences based on cultural repertoires.

Keywords: Man and Health; Health Care in the Family; Health Family Program.

Introdução

A participação masculina na produção de cuidados da saúde no âmbito de famílias amazonenses pobres e sua relação com os serviços é o objeto do presente texto. Refletimos, sobretudo, a respeito das articulações entre aspectos sociais e identitários.

Tomamos a família como um todo relacional complexo em que os cuidados de saúde produzidos por ela podem ser vistos à luz da participação relativa de cada um de seus membros. Destacamos uma reflexão sobre a participação do homem, entendendo que contribuímos porque a maior parte dos estudos que tratam da interface entre família e saúde focaliza sua atenção sobre a mulher como se ela fosse, quase naturalmente, o agente central dessa esfera.

Entendemos que este estudo ganha relevância porque encontramos uma grande insuficiência de informações a respeito do papel dos homens amazônicos em seus contextos familiares, e menos ainda, quanto a seus modos e hábitos de cuidar da saúde. Conhecer como o cuidado da saúde pelo homem se efetiva na família é de grande valor para orientar a organização dos serviços e o desenvolvimento de políticas de saúde, uma vez que esses próprios serviços seguem a lógica tradicional de que saúde da família é coisa de mulher, como refere Scott (2005). Entendemos tal como Oliveira (2004) que masculinidade e feminilidade são fenômenos socioculturalmente construídos, apresentando-se, portanto, de modo mutável e relacional.

Aprofundamos as discussões de gênero a partir de estudos sobre a construção social da masculinidade e as representações e os símbolos vinculados a ela, em especial as reflexões de autores vinculados a discussões que tomam como base a dualidade cultural holismo/ individualismo. Tais estudos falam de grupos sociais que caminham para extremos opostos. De um lado, os que têm um olhar mais holista e constroem suas relações sociais em torno da hierarquia, portanto, da diferença entre os indivíduos valorizados na medida em que é mantida a unidade do todo. De outro lado, estão os que apresentam um olhar individualista porque focalizam as partes do todo, entendendo cada indivíduo como uma unidade autônoma, construindo, portanto, a possibilidade de se atingir igualdade.

Heilborn (1991) discute a convivência e interpenetração entre individualismo e holismo nas sociedades modernas e contemporâneas ocidentais, comparando a convivência cotidiana de um lar privado, marcada ainda pela hierarquia e pela ideia de complementaridade de gênero, com aquela do mundo público em que, em tese, todos seriam indivíduos iguais, com os mesmos direitos e deveres. Leal e Boff (1996) primeiro relacionam a dicotomia holismo/individualismo ao interior da categoria "classe social", identificando, na cultura da classe popular, uma ideologia mais holista em contraposição à cultura de classe média, que desenvolve sentidos e práticas mais individualistas, tal como Brandão (2006); Duarte (1988); Couto e colaboradores (2010). Mas esses autores também fazem paralelos entre o holismo e o individualismo e a formação dos universos masculino e feminino, falando de "indicadores microscópicos" dentro de uma cultura holista, identificando que o "sujeito feminino se constitui em relação ao outro [...] [porque] relacionado com a constituição e reprodução social da família e o segmento masculino surge mais individualizado a cada relacionamento amoroso, uma nova residência, outros filhos etc." (p.132).

Mesmo usando conceitos estruturalistas que têm origem nos trabalhos do antropólogo francês Louis Dumont Homo Hiearchicus (Dumont, 1997) e Homo aequalis (Dumont, 1998) sobre sociedades tradicionais e sociedades modernas, tomamos alguns cuidados preconizados por Couto e colaboradores (2010): não tomar os pobres ou os homens como um bloco monolítico, nem analisar a cultura de classe popular como independente da cultura das outras classes sociais.

Sobre o contexto específico da pesquisa, vale ressaltar que a construção social do "homem amazônico" tem recebido os impactos de processos macrossociais marcados por intensa exclusão material e simbólica das figuras formadoras seminais do homem na região, quais sejam: do indígena e do migrante nordestino (geralmente pobres). Ademais a região é marcada por maiores desigualdades sociais, como se vê em muitas pesquisas do IBGE/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) e mais intenso machismo, como um (anti)valor de grande duração. A região Norte do Brasil apresenta, juntamente com o Nordeste, os maiores índices de violência conjugal do País, tão altos como os do Norte da África e do Oriente Médio (Reichenheim e col., 2006).

Material e Método

A pesquisa que dá origem a este artigo foi realizada num bairro popular de Manaus, área urbana de ocupação espontânea constituída por população de baixa renda. Embora em local privilegiado de acesso, este bairro representa adequadamente vários outros na periferia da cidade, por suas condições de precariedade na estrutura de serviços públicos em geral, composição sociocultural e condições de pobreza de seus moradores.

Participaram da pesquisa dois conjuntos distintos: 11 grupos familiares (indicados com F) através de entrevistas grupais em domicílio e 21 profissionais (indicados com P) de duas equipes do Programa de Saúde da Família (PSF) encarregadas da cobertura do bairro. Estes profissionais foram entrevistados individualmente e contemplaram todas as categorias que vão desde agentes comunitários de saúde (ACS) a médicos. Nas entrevistas às famílias, fizemos questão de incluir todos os membros presentes, em especial, o pai. Atendendo ainda à recomendação de Dessen e Lewis (1998), procuramos também observar as interações entre os vários membros da família e sua dinâmica relacional.

No presente estudo, adotamos uma abordagem qualitativa, explorando os sentidos expressos na linguagem sobre as práticas que eles descrevem realizar. Utilizamos como instrumentos dois roteiros de entrevista semiestruturada, abrangendo questões relativas aos tópicos: estrutura e dinâmica familiar, cuidados da saúde na família e relações com os serviços de saúde.

A análise de dados foi realizada a partir da perspectiva hermenêutico-dialética, em que o investigador busca consensos e entendimentos mais gerais que configurem as representações mais típicas do grupo e, ao mesmo tempo, considera divergências, tensões e contradições dentro dos vários discursos, conforme proposta de Minayo (2008). No processo, organizamos o material recolhido de tal modo a extrair dele os núcleos de sentido e as contradições, utilizando as categorias analíticas já embutidas no roteiro de entrevista.

Discussão

O Lugar dos Homens na Família de Camadas Populares Amazônicas

A partir do discurso de ambos os grupos investigados (famílias e profissionais), identificamos que a representação do papel do pai na família se estrutura em torno de alguns núcleos de sentido: 1) homem trabalhador-provedor; 2) homem representante moral-protetor da família; 3) homem educador da prole, 4) homem que precisa desenvolver mais afetividade diante dos filhos e da esposa.

O trabalho e o provimento financeiro são vistos pelas famílias como essencialmente ligados à figura do homem e pai. O cuidado material se expressa também no fato de construir e reparar a casa e de executar serviços que requerem maior força física _ "O pesado aqui é comigo mesmo" (F8 - Marido, 28 anos) _ bem como com o provimento de alimentação (quantidade e qualidade) com a garantia de qualidade da água pela compra de filtros, num local em que esses bens são escassos. Por esses motivos, espera-se que o homem seja forte, resistente, corajoso e inteligente.

Connell (2005), entre muitos outros, já encontrara que o trabalho está no centro da identidade masculina tradicional e hegemônica e é sua principal forma de inserção social. É através do trabalho que o homem conquista sua dignidade e o respeito de todos. Se estiver eventualmente desempregado ou faltar-lhe o emprego fixo, ele tem que se ocupar com atividades remuneradas, geralmente contratadas por tarefa ("bicos"), ou deve querer trabalhar.

O trabalho nessas famílias pobres é um valor não somente porque ele resulta no seu provimento material, mas, sobretudo por seu sentido moral de dar exemplo, ser espelho, ser honesto e digno, de forma a ser referência para os filhos e para a comunidade em que vive, como encontra Sarti (2005), entre outros. Se por algum motivo faltam ao homem as condições objetivas como provedor, então sua qualidade de corajoso e forte deve se evidenciar por outra via: manter a moral da família e protegê-la de opressores externos. Enquanto protetor do núcleo familiar, ele deve vigiar o mundo lá fora para enfrentá-lo e impedir, por exemplo, a ação de "bandidos que invadem a casa"; ou dos "maus elementos da rua que desencaminham" o crescimento saudável dos filhos. Assim, é o homem que sai para verificar o que acontece na vizinhança em situações de tumulto e perigo. "Pai é segurança, bater forte, dormir em paz, tem voz altiva [e] todos podem dormir tranquilos" (P11-ACS, 33 anos, feminino). Para que esta proteção simbólica seja valorizada pelos membros da família, a presença do homem deve de novo estar relacionada com propriedades morais: "homem caseiro", "homem de família", "homem de responsabilidade, de caráter, de boa educação, de pulso" (vários sujeitos). A função masculina, portanto, não seria a de ditar isoladamente as normas de funcionamento da família, mas supervisionar o andamento das coisas, sem se envolver necessariamente com detalhes do cotidiano. Nesse sentido seu controle e vigilância não precisam ser rígidos e a mulher deve ter liberdade e poder de negociação.

As atividades de educar, repreender, corrigir e vigiar, pedindo contas aos filhos de suas responsabilidades são, também, muito articuladas com a identidade moral masculina. Pois a mãe, de modo geral, sente-se enfraquecida em sua função de educadora quando não conta com o apoio do pai, quer reforçando sua ação disciplinadora, quer responsabilizando-se pessoalmente pela correção dos filhos. Neste sentido o homem deve ser de novo, e ainda mais, objetivo, racional, firme, inflexível e decidido.

Fica claro, então, até aqui, segundo este estudo baseado em investigação empírica, que as famílias investigadas sustentam sua representação de família ideal com base primordialmente numa visão holista, em que há claramente demarcado o papel diferenciado de gênero, sendo o do homem naturalizado em atributos preestabelecidos. Essa visão corresponde à maioria das famílias entrevistadas e abrange homens, mulheres e seus filhos.

No entanto, no mesmo grupo encontramos já - talvez pelo efeito de uma cultura cada vez mais urbana, inclusive influenciada pela mídia - famílias que apresentam uma visão mais igualitária e individualista (Duarte, 2003), que apresentam outro modelo de masculinidade em construção. Algumas já entendem que é preciso ter mais envolvimento afetivo, diálogo, comunicação e troca entre seus membros. Esse tem sido um aspecto recorrente nos estudos sobre a paternidade contemporânea (Lewis e Dessen, 1999; Gomes e Resende, 2004; Lyra e col., 2005), que mostram uma visão do universo familiar em transformação em que o ponto de vista da esposa e de cada um dos filhos conta. Observamos isso em algumas entrevistas e famílias, embora em menores proporções. Os homens descreveram esta nova visão deles falando de "amor e carinho para com os filhos e para a mulher [...] primeiras coisas que [o homem] tem que ter" (F10 - Pai, 25 anos). Uma mulher clarifica melhor o sentido da fala desse homem, dizendo que maridos e pais precisam "não brigar, não reclamar, [e sim], conversar" (F9 - Mãe, 36 anos). Algumas famílias, nas entrevistas com o grupo familiar, falaram sobre a necessidade de haver relações mais igualitárias, inclusive da participação masculina nos trabalhos domésticos e no cuidado dos filhos, embora, apenas como um aceno às mudanças que consideram necessárias em seus lares tradicionais. Essa percepção é muito importante, pois, como lembra Marx e Engels (2008) em A Ideologia Alemã, quando uma ideia nova aparece em determinada sociedade, é sinal de que fatos concretos que a corroborem já estejam acontecendo.

Modos de Cuidar de Si

Poucos entrevistados consideraram que homens já conquistam sua autonomia no cuidar de si, ao contrário do que constatamos na família F6 em que a avó já idosa (80 anos) comenta "Os homens não querem mais mulher, maninha. Não precisam de mulher para cuidar deles não: fazem comida, trabalham, fazem tudo!". Foi possível perceber algumas formas emergentes de autocuidado por parte do homem, como vemos em F11 (Marido, 23 anos): "É isso aí, faço exercício, faço comida saudável: verdura, cenoura...". Isso contrasta com o padrão comumente observado de aparência descuidada, homens barrigudos, com pele curtida e muitas vezes até desdentados. Pois prevalece entre os entrevistados do grupo familiar, a opinião de que "homem não se cuida". "Ele manda ela [a companheira] se cuidar, mas ele não se cuida" (P15 - ACS, 32 anos, feminino). Tal como Gomes e colaboradores (2007), entendemos então, que o autocuidado não é assumido como prática pertinente a sua identidade de gênero e não faz parte dos atributos masculinos historicamente construídos. Ao contrário, há uma associação do cuidar com o universo feminino. Mesmo na família 11, acima citada, a esposa analisa que o marido "exagera" ao fazer 500 abdominais e corridas todos os dias ao "fica[r] todo tempo naquele negócio lá [aparelhos de ginástica da praça], [e que] depois fica com o corpo todo doído." Ela ainda conta que, sem sucesso, tenta fazê-lo enxergar seu erro: "Peço: pare um pouco, para atender à necessidade do corpo". Na verdade, pudemos observar que existe nesses homens que dizem se cuidar, uma associação equivocada entre "fisiculturismo" e saúde, produzindo-se assim uma noção superficial e inócua do autocuidado e que pode se transformar em risco de adoecimento (Schraiber e col., 2005). Braz (2005), dentre outros, usando esta mesma perspectiva que aponta fragilidades de gênero na saúde, chama a atenção para o fato de que homens morrem mais, mais cedo, recorrem menos ao consultório médico, apresentam doenças mais graves e vivenciam mais episódios de emergência hospitalar.

Por sua vez, os profissionais de saúde entrevistados retratam os homens que chegam aos serviços de atenção primária, comentando sobre sua indisciplina, resistência à mudança de hábitos, de sua falta de paciência e rebeldia contra as prescrições médicas, de sua dificuldade para relaxar e de sua indiferença em relação às necessidades de saúde, quer próprias quer alheias, "não gostam de médico nem de dieta. Teimosos, não querem saber de nada!" (P5 - ACS, 34 anos, feminino). E acrescentam as dificuldades que encontram para tratá-los por sua rigidez e pouca flexibilidade para promover "mudanças em seu estilo de vida", mesmo diante de situações em que isso seria indispensável por causa de doenças cujo tratamento mais importante não são os medicamentos - embora eles sejam prescritos - e sim, novos hábitos e comportamentos.

Percebemos, pelas entrevistas, que o não cuidado consigo, por parte dos homens, geralmente está associado ao foco da função de provedor, o que requer que seja forte e corajoso. Um deles conta sobre suas ponderações ao ser advertido pela esposa de que precisava avaliar os perigos que o trabalho muito pesado significava para sua saúde: "Mas toda vez eu fico pensando, esse é serviço de homem, eu tenho que fazer meu papel de homem, eu pego o serviço, aí eu acabo me dando mal" (F11 - Marido, 23 anos). O trabalho masculino inimigo da boa saúde é retratado como aquele que "mói e quebra os ossos", do qual se chega extremamente cansado, mas que mesmo assim deve ser mantido, para que não se coloque em risco o sustento da família.

Para defender a família, ou no mínimo a honra, muitas vezes esses chefes de família recorrem a mecanismos defensivos de negação da gravidade dos agravos a sua saúde, ao que se referem como fraqueza, como vimos no relato de um participante que sofreu recentemente um sério acidente de trabalho, com afundamento craniano visível na região parietal: "É que eu me endureço, a gente sempre acha que não tem nada" (F8 - Marido, 28 anos); ou ainda de um entrevistado que tem tratado um câncer de testículo há dois anos: "Não me preocupei. Fiz de conta que eu não estava doente. Foi um caso que apareceu e a gente não pede para adoecer" (F5 - Pai, 43 anos). Nas conversas sobre saúde com as famílias, ao modo das "doenças nervosas" estudadas por Duarte (1988), também o adoecimento físico do homem evoca um importante componente moral em que se opõe o inocente que é vítima das circunstâncias, e o culpado, especialmente ligado à noção de "ser fraco".

Quando buscam ajuda ou se cuidam, esses homens o fazem de maneira pontual e emergencial, orientada para a eliminação de um sintoma agudo e específico, tal como encontraram Gomes e colaboradores (2007), entre outros, em seus estudos. Por isso, segundo os profissionais, se o acompanhamento exige realização de exames complementares e consultas de retorno, o tratamento é habitualmente abandonado assim que o homem volta a se sentir melhor e capaz de manter sua rotina, ainda que com dificuldades. "Quando melhora é que a coisa complica" diz um agente de saúde (P19 - ACS, 30 anos, masculino).

Além da constatação de que o homem usuário dos serviços de saúde se coloca como "durão" para não admitir sua dor e seu sofrimento, os profissionais apontam também que existe uma postura oposta: "Porque o homem quando adoece é bem mais mole do que a mulher, ele fica mais meigo, mais dengoso" (P6, ACS, 34 anos), mostrando que é frágil, como qualquer ser humano. Quando se sente mal, o homem das camadas populares de Manaus costuma acionar a mulher e é ela quem, geralmente, o encoraja a procurar ajuda, desencadeia o processo de marcação de consultas, acompanha-o pessoalmente, além de descrever os sintomas do marido, ir à farmácia comprar os medicamentos prescritos e supervisionar seu tratamento. Nesses casos ela reafirma seu papel de cuidadora em relação à saúde de sua família. Eles mantêm a fórmula tradicional de como ser homem e se comportar nas relações com os serviços de saúde: "Ele não pede, mas ela pede para ele" (P20 - ACS, 47 anos, feminino), ou seja, as mulheres assumem uma posição suplicante nos serviços. Desta forma, recorrer ao serviço público de saúde, garantido por sua condição de cidadania, muitas vezes é visto pelos homens, intolerantemente, como uma posição submissa. Portanto, aqui se reproduz a experiência narrada pelos profissionais de que os homens apresentam muito medo de falar das dores que sentem e de descobrir algum problema sério que os incapacite para o desempenho de suas funções (Gomes e col., 2007). Recusando-se a aceitar sua vulnerabilidade, simbolicamente considerada por eles como atributo feminino, os homens acabam por aumentá-la.

Observamos, então, que o modo masculino predominante de cuidar de si, nesse grupo, está relacionado com a posição que cada um ocupa dentro da família. A esposa, de modo especial, tende a valorizar o fato de o marido estar saudável, "Ele não é de viver doente não! Nunca procurou médico, não" (F2 - Mãe, 54 anos). Essa fala aparece no mesmo contexto em que os membros da família dizem que o homem não deve ser um "mole". No entanto, quando ele fica doente, a mulher realiza cuidados exagerados, segundo avaliam alguns profissionais, ao descrever que ela cobre o homem de atenções e cuidados até infantis, como vemos no discurso de P20 (ACS, 47 anos, feminino) "Ela tem uma pena dele, meu Deus do céu! 'Ai, meu bem, pra cá, meu bem pra cá', quando adoece". Esse comportamento, de um lado, fortalece a lógica hierárquica e machista, segundo a qual a quebra de poder do homem ameaça a autonomia da instituição familiar como um todo e, por um lado, coloca sobre os ombros da mulher a responsabilidade de ensinar seus companheiros a se cuidarem e conduzi-los ao médico, tentando convencê-los ou manipulá-los, se necessário, conforme o depoimento de uma avó de 80 anos.

Modos de Cuidar dos Outros

Os profissionais entrevistados apontaram principalmente que os homens não conseguem cuidar dos membros de sua família, pois "são mais desligados, não têm essa atenção maior com a família, de se preocupar" (P2 - ACS, 44 anos, feminino). "[Ele] nem liga para ela [esposa] não!" (P1 - ACS, 48 anos, feminino).

Na maior parte de sua vida adulta, a relação especial que os homens em análise aqui têm com a esfera do trabalho é o fator mais evocado para respaldar e justificar a ausência da atenção às pessoas de seu núcleo doméstico. Lewis e Dessen, (1999) já pontuavam este fator como algo que desvitaliza as ações de cuidado da família, ao referirem-se às pressões centrífugas decorrentes do trabalho (pela distância deste da casa, uso de horários adversos e outros fatores), mas também, falta de recompensa por atividades de cuidado. Os autores apontam ainda, que existem negociações sutis entre os parceiros na distribuição de tarefas e poderes. Por exemplo, na família F9, a mãe comenta que o pai levanta à noite para atender ao filho doente, entretanto ressalta: "mas é eu que cuido" (F9 - Mãe, 36 anos), não reconhecendo a atenção dispensada pelo homem, como vemos ratificado em estudos sobre a participação dos pais no cuidado das crianças (Crepaldi e col., 2006; Bustamante e Trad, 2005). Refletindo este terceiro fator, verificamos que, em geral, nessas comunidades há ainda um tabu de que o homem não deve cuidar do corpo dos filhos e dos doentes, pelo risco presente em suas atitudes e identidades fortemente sexualizadas e marcadas pelo espectro de abusador (Medrado, 1998). Nesse sentido a mulher é a figura que dá atenção aos doentes sem a sombra de abuso sexual. Ademais, a relação entre mãe e criança é vista, na maior parte das vezes, como compulsória e central para o bom desenvolvimento dos filhos, apontando-se de novo para a centralidade da cultura holista nas famílias estudadas.

Mas isso não quer dizer que todos os homens não cuidem dos seus. São as famílias, mais do que os profissionais, as que apresentam algumas avaliações positivas e descrições mais apuradas, provavelmente porque elas acreditam e se sustentam no potencial da cultura hierárquica. Para isso, usam a categoria preocupar-se, ideia associada também à condição de pai-provedor e protetor moral da família. Muitos homens mostram-se atentos para que nada falte e essa atenção tem uma dimensão que ultrapassa o nível do provimento material financeiro: está emoldurada pela carga afetiva que confere a sua família e aos filhos em particular, embora não se associe à noção de cuidar que requer atenção direta e permanente. Uma mãe comentou: "Ele fica doidinho se faltar alguma coisa para os meninos" (F3 - Mãe, 38 anos). A companheira, dentro desse universo holístico e hierárquico, valoriza o caráter pessoal e a relação afetiva que emanam do papel de provimento: "Ele tem sido uma ótima pessoa, um bom marido, não deixa faltar nada" (F9 - Mãe, 36 anos).

Condizente ainda com o mesmo papel social de provedor, sinalizando modos específicos e típicos de cuidar, ressaltamos algumas atitudes e ações como a compra de medicamentos prescritos, a providência de logística para que o cuidado médico seja administrado, por exemplo, transportando os doentes até o hospital em situações de emergência, levando a filha casada doente com os netos para sua própria casa e assim deixá-los sob o cuidado da esposa, ou ainda levando os bebês para pesar e tomar vacina, quando a mulher não pode fazê-lo.

Muitos dos entrevistados mencionaram seus cuidados para não permitir que os membros da família sejam maltratados no espaço público, até mesmo nos serviços de saúde: "Se ele estivesse aqui eu não estava bolando para todo lado, entrando e saindo de hospital toda hora" (F6 - Avó, 80 anos), fala de uma idosa referindo-se ao marido já falecido, queixando-se do pouco cuidado atual recebido por parte de sua filha.

Segundo os profissionais entrevistados, quando se fazem presentes no serviço de saúde, em geral, os homens desse grupo social não se mostram submissos. Assumem uma postura contestadora e denunciativa. Passam a considerar seu problema como o mais importante, exigem atenção, contestam e questionam as ordens, colocam a equipe de saúde em situações de embate e confronto, exigem atendimento imediato, não têm paciência, e por vezes, chegam a ser "ignorantes e violentos", conforme vários profissionais referiram.

Essa percepção das atitudes dos homens que comparecem aos serviços de saúde pode ser avaliada de forma positiva ou negativa, segundo Leal e Boff (1996), que analisam o "micro-ethos" hierárquico. Para essas autoras, sob essa perspectiva, as mulheres mostram-se mais submissas também fora do âmbito familiar e no espaço público, enquanto o homem defende certos valores que são da lógica individualista tais como "igualdade, liberdade, autonomia" (p. 132), e têm mais capacidade de reivindicação. Por isso mesmo, diante dos serviços de saúde e de quem possa cuidar deles, quando comparecem, - pois quase sempre deixam a mulher tomar as decisões a respeito - defendem seus direitos e os de suas famílias com mais força e liberdade. No entanto, suas reivindicações, já que ancoradas numa macrovisão holística e hierárquica, tendem para o autoritarismo, o controle e a imposição aos outros de sua própria vontade.

Quando se apresentam de forma violenta nos serviços de saúde, costumam sê-lo também diante da companheira e de outros que cuidam deles em casa. Na entrevista com a família F11, ficam claras as investidas do autoritarismo masculino: o marido de 23 anos - que, portanto, bem jovem já reproduz a cultura machista - trata sua mulher como ingênua e indefesa e assume a responsabilidade de cuidar de sua alimentação e atividade física, prescrevendo-lhe determinados tipos de conduta e manipulando-a nas relações.

Há que se ressaltar, como síntese baseada nas entrevistas feitas com as famílias, que a qualidade e a intensidade do cuidado exercido pelo homem é modulado, entre outros fatores, por sua idade, sua experiência de adoecimento e sua incorporação da cultura indígena.

Verificamos que cuidam mais de si mesmos e dos parentes, os homens mais velhos e doentes. "Com a doença, eu fui conhecendo mais como é que vai fazendo, aí eu tenho planta, eu planto. É para o tratamento meu." (F5 - Pai, 43 anos). "O pai [mais velho, cuida] de todo mundo também. Quando dá tosse, ele faz cada remédio!" (F4 - Mãe, 42 anos). Nesse contexto, observamos maior reciprocidade entre homem e mulher que se aproximam e se unem, sensibilizando-se pela dor e o sofrimento um do outro e cuidando-se mutuamente. Em F1, casal em idade mais avançada, o cuidado dispensado pelo marido é apontado pela mulher de modo enfático: "Ele é o meu enfermeiro" (F1, mãe, 34 anos); referindo-se ao fato de que ele fica atento às datas de consulta e ao subministro de medicamentos. A literatura confirma que o homem a partir da terceira idade passa a desempenhar funções mais próximas da ideia de cuidado materno, dito como mais afetivo e íntimo, sem constrangimentos (Dias e Silva, 1999).

Podemos pensar que os valores da masculinidade hegemônica (Connel, 2005), tão reforçados na formação da juventude, podem se enfraquecer ou transmutar-se na maturidade ou em situações de enfermidade. Neste último caso, os homens das classes populares perdem seu status de provedor e buscam conseguir o respeito, desenvolvendo atitudes de aproximação e de mais desvelo afetivo com seus parentes. Outra hipótese para mudanças de comportamento que indicam mais cuidados com a saúde pode ser a de que alguns dos homens com enfermidades que demandam cuidados médicos ou de outros profissionais de saúde, vão assimilando, pela força da necessidade, o mundo de regras e linguagens específicas desse sistema, em que o corpo individualizado de cada um tem mais importância enquanto ser humano do que enquanto sexo e gênero.

Outro fator importante para a maior presença dos homens nos cuidados em saúde é o fato de possuírem conhecimentos sobre medicina popular de origem indígena da região amazônica, em forma de ervas e chás que administram a si mesmos e a seus familiares (F1, 41 anos; F4, 33 anos e F5, 43 anos). "Eu conheço as erva. Folha de remédio, eu pego o remédio e faço o chá" (F4 - Pai, 33 anos). "Eu planto, é para o tratamento meu." (F5 - Pai, 43 anos). "O pai [cuida] de todo mundo também, quando dá tosse, ele faz cada remédio, chá caseiro!" (F4 - Mãe, 42 anos). A cultura indígena oferece-lhes, além de técnicas, um universo simbólico em que sua ação se liga à figura do pajé curandeiro (Schweickardt, 2002), tradicionalmente reconhecido como homem apto para cuidar da saúde mediante a reprodução da lógica religioso-mágica da tribo. Esta vincula-se facilmente com a perspectiva holista da "relacionalidade", em contraposição à racionalidade da ciência biomédica focada no corpo individual (Duarte, 2003). Sobre o tema, refere-se Luciano (2006) dizendo que "uma das características mais importantes da vida indígena [...] é a visão integrada e holística das potencialidades e das necessidades materiais e espirituais dos indivíduos e das coletividades humanas em relação direta com os recursos naturais existentes" (p. 190). O cuidado oferecido por esses homens que se sentem investidos do poder de cuidar e de curar, ganha mais afetividade pela sua dimensão relacional e religiosa e não quando visto sob a ótica da ideologia igualitária e individualista.

Por fim, vale discutir ainda um fator que interfere na qualidade do modo do cuidado: a conjugação entre idade e assimilação dos valores individualistas de classe média. Observamos que alguns dos homens jovens apresentam características de mudança em relação ao papel masculino tradicional, embora de forma peculiar. O que mais ganha atenção entre eles é o fato de se disponibilizarem a compartilhar com as mulheres certas tarefas domésticas. O fato de que eles e suas famílias reconheçam que eles "ajudam mais em casa" (P5 - ACS, 34 anos, feminino), mostra que certa flexibilização do modelo hierárquico está ocorrendo, o que contribui para mais igualdade de gênero, ainda que de forma incipiente.

Como exemplo de mudanças nos costumes - mas que é exceção no universo estudado - apresentamos o caso da família recém-constituída (F10). O pai-marido está tanto afetivamente envolvido com a família como se afasta da prescrição rígida de papéis. Ele, ainda jovem (25 anos) tem participação ativa no cuidado das crianças e no revezamento com a esposa em atividades domésticas e tem um discurso - que é do casal - de solidariedade mútua e cooperação. No entanto, pudemos perceber, durante a entrevista, que neste caso, subliminarmente, existe forte competição a respeito de quem domina o conhecimento sobre saúde e doença e sobre as melhores formas de manejo dos episódios de adoecimento, o que pode ser compreendido como fazendo parte de uma lógica holista ainda muito arraigada, ou como algo novo que advém, por contradição, de um individualismo exacerbado.

Interpretações e Práticas dos Serviços de Saúde diante dos Homens e suas Famílias

Os profissionais do Programa Saúde da Família, principalmente os de menor escolaridade, incorporam majoritariamente a visão tradicional de homem e de pai, o que é posto como parâmetro para avaliar a adequação das famílias populares aos preceitos de saúde. Eles costumam reproduzir a mesma ótica essencialista que encontramos nas famílias, como ressalta Scott (2005), sobre Programas de Saúde da Família e evidencia Figueiredo (2005) em relação a serviços de saúde em geral. "Os homens são muito instintivos, eles pensam em sexo, comida, tomar cerveja e paquerar outra mulher. Não estão para poesia, não!" (P8 - Enfermeira, 42 anos). Dessa forma a profissional metaforicamente considera os cuidados de saúde aos atributos de sensibilidade, tato e arte necessários para seu exercício. Essa visão estereotipada de gênero aparece nas falas não só de profissionais de nível escolar elementar, mas também nos de nível superior. Segundo Machin e colaboradores (2011) os próprios profissionais acabam assim por reproduzir a ideia de que os ambientes dos serviços são "espaços feminilizados", o que dificulta a aproximação masculina.

Na verdade, embora predomine a visão tradicional, a ótica dos profissionais de saúde em relação aos cuidados que prestam aos homens desse grupo populacional é bastante diversificada. Há casos em que a posição é radicalmente crítica; há outros em que existe uma visão positiva; e há um terceiro grupo que tem uma posição ambígua no seu julgamento. Exemplo do primeiro caso é a fala de um agente de saúde para quem os homens que apenas trabalham, trazem o dinheiro para casa e acham que isso é tudo, desvalorizam suas famílias e as tratam como "porcos" (P19- ACS, 30 anos, masculino). A percepção que tem mais centralidade entre os profissionais, porém, é a de que existe participação masculina, nesses grupos sociais, quanto ao envolvimento nos trabalhos domésticos e aos cuidados diretos e corporais dos filhos. Mas, no cuidado oferecido a esses homens quando adoecem, os mesmos profissionais comentam que se sentem temerosos e sem parâmetros para oferecer um atendimento melhor e mais adequado. No terceiro grupo de opiniões, os profissionais sustentam uma avaliação ambígua que se alterna: ora o homem é retratado como "mole" e sem fibra e ora "durão" demais para admitir seu sofrimento. Como mais uma vez, diriam Marx e Engels (2008) em A ideologia alemã, as representações aqui expostas estão calcadas em fatos da realidade, no entanto, quando não são problematizadas, tendem a se reproduzir nas práticas sociais, como observamos a seguir.

A ação dos serviços para que os homens se cuidem ocorre, frequentemente, de maneira indireta. Dá-se numa cadeia de relações e influências em que os profissionais ensinam à mulher, que ensina ao seu companheiro. Os profissionais preferem trabalhar com elas por uma série de razões alegadas por eles: (1) porque os homens perturbam o ambiente com sua postura contestadora, o que exige maior capacidade de controle emocional por parte dos profissionais; (2) são menos capacitados para o cuidado do que as mulheres, ao terem menos conhecimento sobre doenças, formas de tratamento, administração de medicamentos, e menos atenção para cumprir horários de consulta; (3) não são sérios, na medida em que são centrados nos divertimentos com os amigos, irresponsáveis, desligados dos seus, farristas e dados aos vícios.

A estratégia dos profissionais, diante das enfermidades dos homens, especialmente nos casos de doenças crônicas é pressionar suas mulheres para que obriguem os homens a seguir as prescrições, responsabilizando-as. Isso reforça a atitude passiva deles. "Eu explico muito [para a mulher], digo: "olha, se caso teu esposo que tem pressão alta num pico de pressão ele venha a ter um derrame, quem perde é você. A sua família vai passar dificuldade, você vai perder aquela renda, o teu esposo vai falecer, e vai cuidar dos filhos dele" (P11 - ACS, 33 anos, feminino). No entanto, muitos profissionais que estimulam, por suas atitudes, as relações de dependência entre homem e mulher nos cuidados à saúde, são os mesmos que criticam o fato de eles continuarem dependentes.

Em alguns casos, os profissionais procuram tornar os homens mais ativos em seu tratamento e usam como estratégia, ridicularizar a mulher que cobre o homem de cuidados. Esse comportamento também não é saudável porque desqualifica a participação feminina e não contribui para que o diálogo possa acontecer entre a equipe, ela e o marido. No mesmo sentido, sobretudo Agentes Comunitárias de Saúde, cheias de boas intenções, por vezes tendem a incutir medo nos homens, ameaçando-os, caso não se cuidem, com histórias terríveis de adoecimento e morte. Tais atitudes e práticas, além de não produzirem as mudanças pretendidas, reforçam a sensação de insegurança e de menos-valia deles que já sofrem com tantas privações, pelas condições sociais em que vivem.

Outras vezes, falta preparo, sobretudo aos Agentes Comunitários de Saúde, em sua maioria mulheres, para lidar com certos problemas masculinos. É o que observamos no relato da P14 (ACS, 49 anos, feminino), contando o que aconteceu antes de interromper subitamente uma conversa com o usuário: "Tem um senhor na minha área que ele foi fazer o exame de próstata e ele fez um que é só de sangue. Aí disseram que para ser bem real ele teria que fazer o do toque. [...] A gente passa é vergonha. Ele me chamou quando eu ia passando e disse: 'Ah, vem cá'. E disse mesmo assim: 'rapaz, o médico passou foi o..., aí o cara veio com o dedão no meu... Eu digo, 'Deus do céu', eu morro de vergonha!". Embora, possivelmente esse homem estivesse buscando esclarecimento com essa agente, esse diálogo que deve ter sido difícil para o enfermo, esbarrou na visão tradicional e pouco esclarecida da profissional.

Observamos diferenças de visão e de comportamento, entre os profissionais de saúde com escolaridade fundamental e em relação aos de nível superior. Enquanto os primeiros têm dificuldades para serem eficazes em suas intervenções no âmbito familiar, tentando contrapor as prescrições biomédicas de cuidados primários à cultura tradicional de gênero, os segundos falham mais por não perceberem ou não levarem em conta as diferenças de referências culturais dos homens, usuários dos serviços. Vemos isso através de relatos destes sobre o incômodo moral quanto ao espaço físico nas casas dos usuários, considerado inadequado, por exemplo: "hoje está tudo desvirtuado daquilo que eu tive como educação. Tu entras na casa deles, e vê que é diferente, todo mundo morando ali junto, num cômodo só! Não tem aquela coisa de divisão, minhas coisas, meu quarto" (P21 - Médica, 36 anos). O termo "desvirtuado" utilizado por essa profissional de saúde nada mais é do que um julgamento de valor com viés de classe. No fundo, são duas visões de mundo que se contrapõem e que, a não ser com abertura de mentalidade de ambas as partes, tendem a não se encontrar.

O fato de a maioria dos profissionais entrevistados serem moradores do próprio bairro - em especial os Agentes Comunitários de Saúde - não lhe confere necessariamente uma postura compreensiva dos problemas relativos aos cuidados em saúde sob a ótica desses usuários, uma vez que o próprio treinamento de todos, inclusive dos Agentes ocorre dentro do paradigma, dos preceitos e das condutas biomédicas. Não existe preocupação com um diálogo intercultural. Prevalece a representação "nós e eles", presente nos serviços de saúde em geral, o que fere a proposta do PSF de aproveitar a proximidade e a identificação entre usuários e profissionais.

Considerações Finais

Neste estudo verificamos que os homens do bairro popular de Manaus, aqui estudados e em sua maioria, desenvolvem comportamentos e representações sobre saúde e doença a partir de conceitos ligados a papéis tradicionais masculinos, numa visão hierárquica e holista do mundo. Compreendemos que, a partir de determinadas condições como idade mais avançada, de estarem aposentados, de serem culturalmente vinculados a crenças e uso da medicina indígena e das etnias de que provêm, ou quando padecem de enfermidades prolongadas ou periódicas passam a desenvolver maior sensibilidade e a se engajarem junto com suas esposas nos cuidados próprios ou dos familiares. Fora isso, a postura masculina é de ficar na retaguarda, oferecendo à mulher condições de ser cuidadora e deixando-lhes em suas mãos os encaminhamentos de prevenção e de tratamento. Em situações comuns, os homens tendem a valorizar pouco sua saúde e de se relacionar mal com os serviços e cuidados que lhes são oferecidos. Tais atitudes encontram seu contraponto nas dificuldades dos profissionais para lidar com eles quando a) insistem e buscam ampliar a mediação das mulheres, excluindo-os da logística dos serviços, b) não buscam valorizar e potencializar o modo específico de cuidado deles, exatamente o que lhes é mais viável e aceitável dentro da cultura hierárquica e holista e, c) desqualificam suas reivindicações de direitos. É assim que os profissionais buscam combater o machismo e as posturas autoritárias dos homens, que por vezes lhes causam mal-estar e sofrimento nas relações com os homens usuários, mas acabam por reafirmar a cultura machista e rígida que rege a forma como as famílias dispensam os cuidados à saúde a seus membros.

No entanto, pudemos ver, embora minoritariamente e só em famílias em que os maridos e pais são mais jovens ou naquelas em que o homem tem doenças que requerem atenção e contato permanente dos serviços de saúde, ideias e práticas mais flexíveis próprias dos modelos igualitários e que reconhecem o papel distinto dos indivíduos e a flexibilização de papeis. É fundamental que os serviços de atenção primária à saúde estejam atentos a essas mudanças para, além de não coibi-las, fortalecê-las.

Diante disso, é importante que os serviços desenvolvam um olhar mais compreensivo da cultura dos grupos populares com os quais trabalham; que busquem enfrentar as relações tradicionais de gênero, buscando reconhecer os potenciais de mudança em direção a relações mais saudáveis, acolhedoras e sem opressão. Nesse sentido, a integração dos homens pobres nas pautas de cuidados preventivos e de tratamento é um grande desafio. Pois conforme mostram Gomes e colaboradores (2011) em pesquisa sobre a dificuldade dos homens de atender aos serviços de saúde, apontam para duas dimensões relevantes: uma estrutural que assinala o pouco investimento na organização dos serviços sob a perspectiva de gênero, o que corrobora nossos achados; e uma simbólica que não considera especificamente os temas do universo masculino.

Recebido em: 16/05/2011

Aprovado em: 05/09/2012

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      16 Maio 2011
    • Aceito
      05 Set 2012
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