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Gestão participativa no SUS e a integração ensino, serviço e comunidade: a experiência da Liga de Saúde da Família, Fortaleza, CE

Participatory management in SUS through integrating education, and community service: the experience of a family health league as a project of University extension in Fortaleza - Ceará

Resumos

Fruto da experiência de duas universidades públicas e uma privada, o Projeto de Extensão Liga Saúde da Família (LSF) constitui-se numa estratégia de gestão participativa no campo da formação de profissionais da área da saúde, com base nos conceitos de educação permanente em saúde, educação popular em saúde, equipe multiprofissional e interdisciplinar, atenção primária à saúde, promoção da saúde, estratégia saúde da família, metodologias participativas de pesquisa e atuação inserida no território vivo. Este relato apresenta a experiência da integração ensino-serviço-comunidade por meio do Projeto de Extensão Liga Saúde da Família, no contexto do Sistema Municipal de Saúde Escola (SMSE), em Fortaleza-Ceará, que dialoga com a gestão participativa no Sistema Único de Saúde (SUS). Esta proposta do LSF foi implantada no SMSE a partir de uma ação apoiada pelo sistema de saúde de Fortaleza que visa potencializar os espaços de co-gestão docente-assistencial, por meio da proposta do método da roda e da tenda invertida. O protagonismo dos integrantes e da comunidade na construção das atividades do projeto e a ampliação do olhar crítico sobre a realidade social e do trabalho em saúde estão entre os maiores avanços surgidos dessa experiência. Esse projeto permitiu a integração ensino - serviço - comunidade, atendendo a uma perspectiva de gestão participativa e dialógica.

Gestão em Saúde; Atenção Primária à Saúde; Ensino; Educação; Extensão


As a result of the experience of two public universities and a private one, the Extension Project "Family Health League" (LSF) introduced a participative management strategy in the field of education of health professionals, with the support of power-ideas such as permanent education in health, popular education, multiprofessional and interdisciplinary groups, primary health attention, family health strategy, participative methodologies and practice inserted in a live territory. This report aims to introduce an experience of integrating teaching to community service through the Family Health League Extension Project (LSF), in the context of the Health-School Municipal System (SMSE) in the city of Fortaleza, Ceará, Brazil. This experience was planned in the spirit of participative management in the National Health System (SUS). The proposal of LSF emerges, in the SMSE, from a recommendation supported by the city's health system which aimed at improving co-management spaces of education and services and used the methods of circle discussion and inverted tent. The protagonism of the project members and of the community in the organization of the project's activities and the amplification of a critical view over social reality and health work are amongst the major advances which emerged from this experience. This project has made possible the integration of teaching, health service and community, from the perspective of a communicative and participative management.

Health Management; Primary Health Care; Teaching; Education; Extension


ARTIGOS

Gestão participativa no SUS e a integração ensino, serviço e comunidade: a experiência da Liga de Saúde da Família, Fortaleza, CE1 1 Este artigo foi baseado no trabalho apresentado à 3ª edição do Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, 2008, tendo recebido menção honrosa como "Experiências Exitosas".

Participatory management in SUS through integrating education, and community service. The experience of a family health league as a project of University extension in Fortaleza - Ceará

Ivana Cristina de Holanda Cunha BarretoI; Luiz Odorico Monteiro de AndradeII; Ana Ester Maria Melo MoreiraIII; Márcia Maria Tavares MachadoIV; Maria Rocineide Ferreira da SilvaV; Lúcia Conde de OliveiraVI; Walda Viana Brígido MouraVII; Cezar Wagner de Lima GóisVIII; Caio Garcia Correia Sá CavalcantiIX; Maria Marlene Marques ÁvilaX; Maria Fátima Maciel AraujoXI; Lucilane Maria Sales da SilvaXII; Maria Graça Barbosa PeixotoXIII; Carlos André Moura ArrudaXIV; André Luís Façanha da SilvaXV; Herley Medeiros LinsXVI

IDoutora em Pediatria. Pós-doutora do Département de psychopédagogie et d'andragogie - Faculté des sciences de l'éducation - Université de Montréal". Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará. Endereço: Rua Prof. Costa Mendes, 1609, 5º andar. Bairro Rodolfo Teófilo, Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: ivana_barreto@ufc.br

IIDoutor em Saúde Coletiva. Pós-doutor do "Département d'administration de la santé - Faculté de Médicine - Université de Montréal". Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará. E-mail: odorico_andrade@ufc.br

IIIMestre em Saúde Pública. Professora substituta da Universidade Federal do Ceará. Endereço: Rua Prof. Costa Mendes, 1609, 5º andar. Bairro Rodolfo Teófilo, Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: estermelo@yahoo.com.br

IVProfessora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora Pedagógica da Liga de Saúde da Família da UFC. E-mail: marciamachado@ufc.br

VDoutoranda em Saúde Coletiva. Mestre em Saúde Pública. Professora Assistente da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: rocineideferreira@gmail.com

VIDoutora em Saúde Coletiva. Professora Adjunta do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: lucia_conde@uol.com.br

VIIDoutora em Ciências da Saúde. Professora do Curso de Odontologia da Universidade Federal do Ceará e Coordenadora de Ação Social e Comunitária da Pró-Reitoria de Extensão. E-mail: walda@ufc.br

VIIIPsicólogo. Doutor em Psicologia Social. Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará. E-mail: cwlg54@gmail.com

IXMestre de Saúde Pública da UFC. Professor das Faculdades INTA. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Gestão em Saúde da Escola de Saúde Pública do Ceará - ESP/CE. E-mail: caiogcsc@yahoo.com.br

XDoutora em Saúde Coletiva. Professora adjunta do Curso de Nutrição da UECE. E-mail: marlenemarquesavila@uol.com.br

XIDoutorado em Enfermagem. Professora adjunto da Universidade Federal do Ceará. E-mail: fatima.maciel@ig.com.br

XIIDoutora em Enfermagem. Professora adjunto da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: lucilanemaria@yahoo.com.br

XIIIMestre em Saúde Pública. Professora adjunta da Universidade Estadual do Ceará e enfermeira sanitarista da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. E-mail: gracab@saude.ce.gov.br

XIVPedagogo, Mestre em Saúde Pública, Professor adjunto I da Faculdade de Ensino e Cultura do Ceará-FAECE. E-mail: andrecaninde@yahoo.com.br

XVProfessor de Educação Física, Preceptor de Categoria (Educação Física) da Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Sobral/Ceará. E-mail: andre_facanha@hotmail.com

XVIEstudante de Medicina, monitor da disciplina Assistência Básica à Saúde 4 - Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. E-mail: herleylins@gmail.com

RESUMO

Fruto da experiência de duas universidades públicas e uma privada, o Projeto de Extensão Liga Saúde da Família (LSF) constitui-se numa estratégia de gestão participativa no campo da formação de profissionais da área da saúde, com base nos conceitos de educação permanente em saúde, educação popular em saúde, equipe multiprofissional e interdisciplinar, atenção primária à saúde, promoção da saúde, estratégia saúde da família, metodologias participativas de pesquisa e atuação inserida no território vivo. Este relato apresenta a experiência da integração ensino-serviço-comunidade por meio do Projeto de Extensão Liga Saúde da Família, no contexto do Sistema Municipal de Saúde Escola (SMSE), em Fortaleza-Ceará, que dialoga com a gestão participativa no Sistema Único de Saúde (SUS). Esta proposta do LSF foi implantada no SMSE a partir de uma ação apoiada pelo sistema de saúde de Fortaleza que visa potencializar os espaços de co-gestão docente-assistencial, por meio da proposta do método da roda e da tenda invertida. O protagonismo dos integrantes e da comunidade na construção das atividades do projeto e a ampliação do olhar crítico sobre a realidade social e do trabalho em saúde estão entre os maiores avanços surgidos dessa experiência. Esse projeto permitiu a integração ensino - serviço - comunidade, atendendo a uma perspectiva de gestão participativa e dialógica.

Palavras-chave: Gestão em Saúde; Atenção Primária à Saúde; Ensino; Educação, Extensão.

ABSTRACT

As a result of the experience of two public universities and a private one, the Extension Project "Family Health League" (LSF) introduced a participative management strategy in the field of education of health professionals, with the support of power-ideas such as permanent education in health, popular education, multiprofessional and interdisciplinary groups, primary health attention, family health strategy, participative methodologies and practice inserted in a live territory. This report aims to introduce an experience of integrating teaching to community service through the Family Health League Extension Project (LSF), in the context of the Health-School Municipal System (SMSE) in the city of Fortaleza, Ceará, Brazil. This experience was planned in the spirit of participative management in the National Health System (SUS). The proposal of LSF emerges, in the SMSE, from a recommendation supported by the city's health system which aimed at improving co-management spaces of education and services and used the methods of circle discussion and inverted tent. The protagonism of the project members and of the community in the organization of the project's activities and the amplification of a critical view over social reality and health work are amongst the major advances which emerged from this experience. This project has made possible the integration of teaching, health service and community, from the perspective of a communicative and participative management.

Keywords: Health Management; Primary Health Care; Teaching; Education; Extension.

Notas para um Diálogo

O presente relato objetiva apresentar a experiência de integração ensino - serviço - comunidade por meio do Projeto de Extensão Liga Saúde da Família (LSF) no contexto do Sistema Municipal Saúde Escola (SMSE) de Fortaleza, Ceará, que em seu arranjo dialoga com a gestão participativa no Sistema Único de Saúde (SUS). Tal objeto é fruto da experiência de duas universidades públicas e de uma de iniciativa privada que incluem pesquisadores de três grupos de pesquisa da Rede Interdisciplinar de Pesquisa e Avaliação em Sistemas de Saúde (RIPPAS) (os grupos Determinantes Sociais, Equidade e Promoção da Saúde; Educação em Sistemas de Saúde e Desenvolvimento de Tecnologia em Estratégia Saúde da Família; Comunidade de Estudos e Pesquisas sobre Políticas e Gestão em Saúde - POIÉSIS), que se associaram a três outros grupos, a saber: Laboratório de Seguridade Social e Serviço Social (LASSOSS); Laboratório de Práticas Coletivas em Saúde (LAPRACS) e Grupo Multidisciplinar de Políticas e Intervenção em Saúde e Nutrição.

Nesse trabalho, compreende-se a extensão universitária como um espaço privilegiado de diálogo do Sistema Municipal Saúde Escola de Fortaleza (Barreto e col., 2006), na perspectiva da gestão participativa. Por conseguinte, considera-se importante o processo de inserção dos estudantes de saúde nos espaços oficiais do serviço de saúde, sobretudo mediante uma base territorial comunitária e com enfoque nas necessidades sociais em saúde.

Na visão de Sousa (2000), a Extensão Universitária caracteriza-se como uma atividade fomentadora da reflexão crítica na universidade, pois é o canal que amplia a relação desta com a realidade social e a vida concreta das pessoas. Nessa perspectiva, pode fomentar a formação crítica dos futuros trabalhadores do SUS comprometidos com os princípios da Reforma Sanitária Brasileira. Tal atividade permitiria a construção do inédito-viável, segundo Freire (1987); que consiste em uma proposta de superação das condições opressoras da realidade por intermédio de uma práxis de libertação2 2 Em Freire (1996) uma práxis de libertação pressupõe uma ação-reflexão que possa transformar a realidade vivenciada. .

Nessa perspectiva, pretende-se que a formação em saúde deve adequar-se às necessidades dos usuários, do serviço e do sistema de saúde. Conforme dispõe a Constituição Federal de 1988, em seu art. 200, inciso III, compete ao SUS, além de outras atribuições, "ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde". A Lei nº 8.080 (Lei Orgânica da Saúde), que regulamenta o sistema de saúde, estabelece no parágrafo único do seu art. 14 que os serviços públicos que integram o SUS constituem campo de prática para o ensino e a pesquisa (Brasil, 2008a, 2008b).

Transformar a teoria em prática é um desafio, pois, como afirma Vasconcelos (2001), foi construído um fosso cultural entre os profissionais de saúde e a comunidade. Isto tem produzido visível impacto na organização dos serviços de saúde, especialmente porque os profissionais , são de origem socioeconômica e cultural muito diferente da dos segmentos populares atendidos pela Estratégia de Saúde da Família,, trazendo, para o centro de suas práticas, preconceitos sobre o universo popular.

Diante disso um grupo de professores da UFC e da UECE, lideranças estudantis da área da saúde e integrantes da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas em Educação Popular em Saúde (ANEPS), em parceria com a gestão 2005-2008 da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, consideraram estratégico aproximar os cursos de graduação em saúde do debate da implantação municipal do SUS e da Estratégia Saúde da Família (ESF), considerando especialmente os itinerários terapêuticos percorridos pelos usuários dos serviços. É nesse contexto, de atuação comunitária, que será possível articular aos serviços de saúde as realidades e dinâmicas sociais vivenciadas pela população.

Breve Referência às Bases Teóricas e Epistemológicas do Projeto

Da Teoria Social do Aprendizado à Educação Permanente e à Educação Popular em Saúde

Segundo a ótica de alguns estudiosos da educação (Lave e Wenger, 1991), o conhecimento e, portanto, a aprendizagem, se produzem à medida que os homens coletivamente interagem com a natureza por meio do trabalho. Neste sentido, a aprendizagem não seria produto de reflexões e esforços puramente individuais, como leva a crer o senso comum, mas o resultado das relações sociais entre os homens e entre estes e a natureza.

À proporção que os indivíduos elaboram projetos e neles se engajam, independentemente do tipo de projeto, eles acabam por se adaptar aos colegas e ao ambiente. Juntas, as pessoas aprendem a colaborar coletivamente e, assim, produzem novas formas de trabalho ou atenção e novos conhecimentos. Estas práticas, se consolidadas junto à população, podem se constituir um empreendimento coletivo. Desta perspectiva é que Wenger (1998) concluiu ser o termo "comunidade de prática" o mais apropriado para descrever este coletivo de pessoas.

As comunidades de prática estão em todo o lugar e vão desde as mais informais (especialistas em informática que participam de um grupo de discussão na internet, um núcleo de alcoólicos anônimos, etc.), até as mais formalizadas e mesmo oficiais, e reguladas por lei, como os médicos, enfermeiros e demais profissionais da saúde e suas especialidades.

Em geral, as comunidades de prática desenvolvem processos para agregar novos membros, os novatos. Lave e Wenger (1991) denominaram estes processos como "aprendizagem periférica legitimada", ou seja, permitida, e às vezes, mas não necessariamente, criada pela própria comunidade. Na área da saúde e na academia, seriam exemplos de aprendizagem periférica legitimada os estágios, monitorias, cursos de graduação e especialização, bem como a participação em ligas acadêmicas e em associações científicas.

A teoria social do aprendizado oferece reflexões que justificam a criação de mecanismos coletivos de formação e desenvolvimento profissional, como é o caso da LSF.

A própria Política de Educação Permanente para o SUS, definida "como estratégia de transformação das práticas de atenção, de gestão, de formulação de políticas, de participação popular e de controle social no setor saúde" (Brasil, 2005, p.11), traz à tona a concepção de que, no cotidiano do serviço, das práticas de trabalho, também são construídos os saberes, as práticas são repensadas e modificadas ao longo desse processo de aprendizagem-ação.

Gestão Participativa

Como observado, o diálogo na LSF aponta para a sensibilização de uma gestão participativa que depende fundamentalmente de determinação política dos gestores, da academia e dos atores comunitários para democratizar as instituições, partilhando e descentralizando o poder. É nesse contexto que os grupos e instituições parceiras, responsáveis pela criação da LSF, adotaram o método de co-gestão de coletivos, sistematizado por Campos (2007) como estratégia metodológica para o referido processo. No caso do Projeto de Extensão LSF, que envolve várias instituições e organizações, a gestão participativa precisava ensejar o dialogo interno nos diferentes níveis da gestão de cada instituição e organizações participantes do processo, bem como abrir espaços de participação social e comunitária nas atividades propostas.

Esta proposta é inovadora, pois o Brasil possui uma longa história de autoritarismo. Nas palavras de Marilena Chauí (1993) o Estado brasileiro é autoritário porque a sociedade é autoritária. Dessa forma, gera-se uma cultura política que marca as relações dos sujeitos individuais e coletivos na sua ação política. Nesse processo, as políticas sociais são instrumentos de controle social e legitimação das elites no poder, as quais, historicamente, excluíram a população da participação política e, assim, suas iniciativas foram duramente reprimidas. Contudo, os movimentos sociais participam da luta pela democratização, reivindicando liberdades civis e políticas, direitos sociais e, fundamentalmente, a democratização do aparelho do Estado e a influência na gestão pública.

Nessa caminhada, o Estado na sua dimensão contraditória passa a ser um espaço de disputas. Ao mesmo tempo, representantes dos movimentos de democratização assumem posições nas diferentes esferas de governo e incrementam ações que facilitam esse processo, implementando gestões participativas. Todavia, transformar uma cultura política tradicional em uma cultura democrática requer intenso trabalho de educação permanente, tanto para os profissionais dos serviços, quanto para os que estão em processo de formação, sejam eles estudantes e/ou pessoas da comunidade.

Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família

Considerada como primeiro contato dos usuários nos serviços de saúde, especificamente nas equipes de saúde da família, a Atenção Primária à Saúde (APS) pode ser considerada como uma estratégia flexível, e capaz de fornecer atenção sobre a pessoa e não a enfermidade no decorrer do tempo. Tal estratégia garantiria uma atenção integral oportuna e sistemática em um processo contínuo, mantida por recursos humanos cientificamente qualificados e capacitados a um custo adequado e sustentável. Organizada em coordenação com a comunidade e concatenada com os demais níveis da rede sanitária, para proteger, restaurar e reabilitar a saúde dos indivíduos, das famílias e da comunidade, sua lógica transcende o campo sanitário e inclui outros setores, em um processo conjunto de produção social de saúde - através de um pacto social - que inclui os aspectos biopsicossociais e do meio ambiente, sem discriminar nenhum grupo humano por sua condição econômica, sociocultural, de raça ou sexo (Lago e Cruz, 2001).

Na busca de uma conceituação mais ampla dessa política, definimos a ESF como um modelo de atenção primária operacionalizado por estratégias/ações preventivas, promocionais, de recuperação, reabilitação e cuidados paliativos. Tais ações, realizadas por equipes de saúde da família comprometidas com a integralidade da assistência à saúde, são focadas na unidade familiar e consistentes com o contexto social e econômico, cultural e epidemiológico da comunidade na qual a equipe está inserida(Andrade e col., 2006).

Ainda, é importante destacar que a equipe de saúde da família é composta essencialmente por um grupo interdisciplinar de profissionais envolvidos na cadeia de assistência integral e primária à saúde. Normalmente, como integrantes desta equipe, constam um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um cirurgião-dentista e quatro a seis agentes comunitários de saúde que são primariamente responsáveis pela cobertura de aproximadamente 800 famílias (3.450 indivíduos) residentes em território urbano ou rural, com limites geográficos definidos.

A decisão de implementar a ESF em Fortaleza foi coerente com os princípios doutrinários do SUS para se alcançar a universalidade de acesso, a integralidade de atenção à saúde e a descentralização do planejamento e da gestão política administrativa (Andrade e col., 2005). Hoje a formação de recursos humanos para atuação na ESF é um dos desafios à sua consolidação e à efetividade de suas ações. Para enfrentar este desafio foi criado a LSF.

Extensão Comunitária Libertadora e Psicologia Comunitária

Nossa proposta de atuação baseia-se na Extensão Comunitária Libertadora. Segundo Ximenes e col (2005), historicamente a Extensão Universitária reproduz diversos tipos e práticas de atuação. As ações possuem hegemonicamente o caráter de prestação de serviço à comunidade, desconsiderando o saber popular. Para esses autores, a EU

[...] possui um caráter político com o sentido de propiciar uma apropriação dos moradores e dos parceiros (agentes externos) que será planejado e executado conjuntamente pelos envolvidos no processo. [...] A relação entre moradores e dos parceiros (agentes externos) que é integrativa. O foco de atuação não é somente os problemas, mas sim a prevenção destes e as melhorias que podem servir a promoção da qualidade de vida. A ideologia presente é o reconhecimento da força e da capacidade dos moradores (potência transformadora) e do conflito de classes como base de transformação (Ximenes e col., 2005, p. 2086).

Na LSF, o método utilizado é a inserção comunitária que consiste em conhecer a comunidade a partir de suas atividades culturais, das reuniões comunitárias em associações locais, da caminhada com informantes-chave, para compreender as dimensões históricas, políticas, culturais, econômicas do lugar e construir laços afetivos e de confiança com os moradores (Góis, 2008). Para isto, é importante usar linguagens e posturas que permitam a aproximação com a cultura local, com vistas ao encontro entre o saber popular e o saber científico.

Metodologias Participativas de Pesquisa

A inserção das metodologias participativas de pesquisa e de atuação visa estudar de forma compartilhada os problemas sociais concretos da nossa sociedade, com o intuito de transformar a realidade social na qual estamos inseridos num processo em que todos participem de forma ativa, como sujeitos da ação. Conforme percebemos, a proposta da LSF destaca a importância de uma práxis pedagógica viva no cotidiano do trabalho em saúde, ao evidenciar que toda ação humana é um ato criativo e nos exige uma postura pedagógica de aprender fazendo ou pesquisar intervindo, ou seja, é uma ponte para a co-construção da autonomia (Brandão, 1984).

Uma leitura crítica propositiva da realidade social na qual estamos inseridos e das práticas e saberes de saúde coletiva de base comunitária nos exige uma reflexão sobre a vivência, a atividade e a participação comunitária e sobre todas as relações sociais tecidas nesse processo entre agentes internos e externos.

Na nossa ótica, a atuação dos estudantes na comunidade representa uma prática social em permanente transformação, pois se constitui a partir da dinâmica comunitária e da história de vida dos sujeitos e nos requer compreender a história, a política, a cultura e a mística popular no cotidiano do trabalho.

Historicamente a universidade guarda um distanciamento das classes populares. Isto aflige muitos estudantes e gera angústia, medo, resistência. Gera, também, a pergunta sobre como fazer. A formação é estruturada em saberes técnicos à margem da vida social e que não dialogam com outros campos de saberes, como o saber popular e as ciências sociais e humanas.

O Início do Sonho Coletivo

Para apresentar a experiência da LSF, gostaríamos de situar historicamente como foi tecido o sonho coletivo da sua criação. Essa construção iniciou-se em 2005, logo após a mudança na gestão municipal de Fortaleza, pois a equipe que assumiu a Secretaria Municipal de Saúde tinha um histórico de atuação na implantação e defesa do SUS, e mantinha uma tradição de diálogo com os movimentos sociais, inclusive com o movimento estudantil.

A secretaria de saúde reconheceu a importância estratégica de pautar as propostas de luta do coletivo de estudantes de saúde local - o Fórum de Estudantes de Saúde de Fortaleza (FESF), constituído em torno da proposta do Projeto VERSUS3 3 O Projeto VERSUS Brasil consiste em um dispositivo de mudança da graduação em saúde do Ministério da Saúde e do movimento estudantil de saúde, que objetivava aproximar estudantes universitários aos desafios inerentes à implantação do SUS. Tal projeto previa a permanência de quinze dias de vivência intensiva em um sistema municipal de saúde. Brasil - reconhecendo-os como aliados no processo de transformação do modelo assistencial à saúde de Fortaleza. A experiência relatada representou uma estratégia de gestão participativa no campo da formação, em virtude de agregar atores ainda sem interfaces de diálogo.

Naquela ocasião, delineava-se um momento histórico em Fortaleza-CE, com a possibilidade real de protagonismo dos estudantes no processo de formulação da Política de Educação Permanente em Saúde. Após dois anos de articulação e diálogos, concretizou-se a iniciativa do Projeto Liga Saúde da Família, em parceria com a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), produzindo interface com o desenho organizacional do SMSE de Fortaleza-CE (Barreto e col., 2006).

É importante assinalar que o SMSE é composto pela gestão municipal, pelos trabalhadores de saúde, pelas instituições de ensino e pelos usuários do SUS, aproximando o modelo de gestão (que aponta para a co-gestão participativa) do modelo de atenção (ESF). Em 4 de janeiro de 2007, o SMSE foi normatizado pela Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, conforme a portaria 160/2006, publicada no Diário Oficial do Município de Fortaleza-CE.

Dessa forma, a proposta da LSF, fruto do desejo político da UFC e mediante atuação conjunta da Pró-Reitoria de Extensão, da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Fortaleza, dos estudantes, movimentos populares, professores e professoras mais próximos ao campo social da área de saúde, foi institucionalizada. A primeira edição do projeto, com início em agosto de 2007, envolveu seis cursos de graduação da UFC (Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Odontologia, Medicina e Psicologia) e o Curso de Gestão Hospitalar da Faculdade Integrada do Ceará (FIC). Durante esse processo, formalizou-se também um grupo de trabalho na Universidade Estadual do Ceará (UECE) com o objetivo de construir sua participação no projeto com base em suas especificidades. Esta se efetivou em março de 2008.

Em seguida, com a etapa de construção de viabilidades e formulação, a LSF surge como dispositivo de aprendizagem contextualizada do SMSE. A proposta emerge organicamente de uma ação apoiada pelo SMSE que visa potencializar os espaços de co-gestão docente - assistencial por meio da proposta do método da roda (Campos, 2007) e da tenda invertida (Andrade e col., 2006).

De acordo com Barreto e col. (2006), o SMSE é uma estratégia de educação permanente, destinada a transformar toda a rede de serviços de saúde existente no município em espaços de educação contextualizada e desenvolvimento profissional. Nessa perspectiva, o objetivo da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza era transformar, gradativamente, todas as suas unidades de saúde em espaços de ensino, pesquisa e assistência.

Para a construção de uma nova relação política, acadêmica e institucional, vai sendo tecida junto à UFC e à UECE uma ação na qual o mestre vai ao território do aprendiz, garantindo a autonomia dos sujeitos no processo de co-gestão e tomada de decisão. Para Campos (2007, p. 158):

O Método da Roda trabalha com a categoria de co-gestão, ou seja, com a idéia de poder compartilhado e não poder exercido de forma solitária e isolada. Rede de poder, diversos espaços de poder, mas sempre pensando-os como instâncias de poder relativo, poder parcial (2007, p.158).

Apresentando os Objetivos e os Atores do Liga Saúde da Família

Situada no contexto da extensão comunitária e na perspectiva da gestão participativa no SMSE, a proposta da LSF enfatiza a importância da atuação no cotidiano de vida das classes populares para a formação do profissional de saúde, através da produção de projetos pedagógicos que tenham espaço para a inclusão do saber popular ao saber técnico. Esta perspectiva de integração, coerente com a tradição das ciências sociais e humanas, foi buscada na participação de grupos populares locais na estruturação do desenho pedagógico e operacional do projeto. .

O objetivo geral da LSF foi desenvolver a inserção de estudantes de graduação de cursos da área de saúde na ESF de Fortaleza-CE. Assim, possibilitou a construção de uma parceria na perspectiva da gestão participativa entre universidades, serviços de saúde e comunidade, para formação profissional na APS tendo como eixo metodológico o método da roda.

Especificamente o projeto se propunha a: a) ensejar a integração entre ensino, serviço e comunidade a partir do método da roda como espaço coletivo de co-gestão; b) propiciar a vivência de trabalho em equipe multiprofissional na atenção primária para estudantes de graduação da área da saúde com base no princípio da integralidade; c) estimular o estudo e o debate sobre o SUS e a ESF; d) possibilitar aos estudantes do campo da saúde a vivência na comunidade e o aprendizado dos saberes e fazeres ali construídos; e) discutir um campo comum de conhecimento e intervenção das diversas categorias profissionais na ESF; f) discutir os núcleos específicos de conhecimento e intervenção das diversas categorias profissionais na ESF; e g) potencializar o desenvolvimento de pesquisas, especialmente as participativas, na comunidade.

A composição da LSF incluiu os seguintes atores sociais: professores universitários da área de saúde que atuavam como tutores do grupo; profissionais de saúde vinculados à SMS que atuavam como coordenadores da formação; preceptores de campo (preceptores de território) e os estudantes extensionistas. Quanto a seus integrantes, tivemos professores e pesquisadores de saúde coletiva dos seis cursos de graduação em saúde da UFC, a saber: Enfermagem, Educação Física, Farmácia, Odontologia, Medicina e Psicologia, bem como seis estudantes de cada um destes cursos, perfazendo um total de 42 extensionistas. Além destes, integraram o grupo dois professores e seis estudantes do Curso de Graduação em Gestão Hospitalar da Faculdade Integrada do Ceará. A UECE participou com 11 professores e 25 estudantes dos cursos de graduação em Enfermagem, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição e Serviço Social. Em 2009, estudantes e professores do Curso de Educação Física passaram a integrar o grupo.

Destacamos, ainda, que a SMS de Fortaleza disponibilizou profissionais de saúde especializados em saúde da família, que formaram a equipe técnica de coordenação do projeto, e preceptores que acompanharam as atividades de campo nos Centros de Saúde da Família (CSF) e na comunidade onde as equipes de estudantes estavam inseridas.

Desenho Operacional e Pedagógico do Projeto

O projeto foi realizado com desenhos operacionais e pedagógicos singulares em cada realidade (UFC e UECE), construídos a partir do diálogo entre movimento estudantil (FESF), professores universitários e técnicos da SMS de Fortaleza. Este formato garantiu a coerência com algumas idéias-força já descritas neste relato, em particular a gestão participativa, orientação que norteia o sistema de saúde municipal. Embora tanto a UFC quanto na UECE tenham adotado a gestão participativa, buscou-se garantir a autonomia das instituições e respeitar as características de professores e estudantes e o período histórico de implementação em cada universidade. Após a construção e desencadeamento da primeira fase do projeto, o núcleo central de membros, mais estável, constituído pelos professores universitários e técnicos da SMSF, manteve reuniões periódicas para planejamento e programação das atividades.

O primeiro contato com os estudantes é o processo seletivo, que se baseia em entrevista coletiva e análise de uma carta de interesses e do curriculum vitae. Concluída a seleção, há um período de estágio de vivência, quando os integrantes discutem as idéias-força que norteiam o projeto e conhecem algumas experiências de grupos populares do município de Fortaleza-CE.

Ao fim do estágio de vivência promove-se um planejamento participativo, no qual são definidos, dentre outros pontos, as principais diretrizes e o cronograma geral e por categoria das atividades do projeto. Para a composição das equipes interdisciplinares são feitas oficinas de trabalho que definem o território de atuação da cada equipe interdisciplinar de estudantes.

Em cada universidade são constituídas equipes interdisciplinares compostas por estudantes dos diferentes cursos de graduação, profissionais do SMSE que atuavam como preceptores de campo com o apoio pedagógico dos professores orientadores. Cada equipe formada passa a atuar em um território, área de inserção comunitária de referência. As atividades de campo dessas equipes acontecem durante a semana, geralmente no espaço dos Centros de Saúde da Família, e aos sábados, vivenciando o contexto comunitário da área de abrangência do serviço.

Os estudantes integrantes das equipes interdisciplinares também realizam uma roda por categoria profissional, com seus professores orientadores. Nesta oportunidade, os alunos inseridos em diferentes territórios de atuação, junto às equipes interdisciplinares, apresenta sua vivência e discute a atuação de cada categoria profissional no contexto da saúde da família. Esta atividade favorece a integração entre teoria e prática, e permite também ao grupo construir uma compreensão sobre o núcleo (teórico e prático) da atuação de cada profissão - os conhecimentos específicos úteis aoprocesso de trabalho da equipe de saúde da família.

Esta metodologia tenta propiciar momentos em que os estudantes trabalham e vivenciam a atuação em equipe interdisciplinar, e momentos de distanciamento da prática, quando eles refletem, com colegas do mesmo curso de graduação e professores, sobre a atuação específica de sua futura profissão na Estratégia de Saúde da Família.

Assim, os estudantes, à medida que participam das atividades práticas e dos momentos de reflexão, através de um processo de "aprendizagem periférica legitimada" (Lave e Wenger, 1991), vão se integrando progressiva e concomitantemente a duas comunidades de prática (Wenger, 1998):

1. A comunidade de prática interdisciplinar de saúde da família, formada pelo grupo multiprofissional que compõe a ESF: médicos, enfermeiros, odontólogos, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, educadores, técnicos de enfermagem, agentes de saúde e lideranças comunitárias. Nesta comunidade os estudantes têm contato com a realidade de vida das comunidades da periferia de Fortaleza, com sua história, sua cultura e com os métodos e rotinas de trabalho das equipes multiprofissionais de saúde da família. O repertório compartilhado é constituído pelo campo de conhecimentos comuns a todos os membros da equipe multiprofissional em saúde da família: SUS (normas, gestão, financiamento), atenção primária à saúde e ESF, saúde pública, vigilância à saúde e educação popular em saúde são os principais temas.

2. A comunidade de prática específica de cada profissão: nestas comunidades os estudantes se aproximam do perfil de atuação e de produção científica de sua categoria profissional na atenção primária à saúde. Eles vão se apropriando do jargão característico de sua profissão no interior do processo de trabalho da equipe de saúde da família, do perfil da clientela e dos tipos de problemas de saúde com os quais trabalham, bem como do modo específico como sua profissão atua neste espaço. Outras atividades significativas, que aprofundam a inserção na comunidade de prática de cada profissão são os congressos científicos.

Mensalmente, todos os integrantes do projeto se encontram em uma roda ampliada que além de ser um espaço de deliberação é também espaço para avaliação e planejamento de atividades e estudos.

Conforme assevera Brandão (1984), a equipe interdisciplinar inicia o processo de inserção comunitária, considerada uma etapa importante e de caráter transversal no projeto, por meio da técnica de investigação ação-participante. O primeiro contato com a comunidade ocorre por intermédio da identificação dos informantes-chave, dentre os quais lideranças comunitárias, lideranças espirituais, homens e mulheres envolvidos diretamente na organização da vida comunitária. Este momento deve se pautar na autenticidade, compromisso e transparência com o outro. Nesse processo, a comunidade acolhe pessoas, que se apresentam e informam sua origem institucional e o motivo de sua presença. Pela aproximação afetiva e dialógica com os informantes-chave inicia-se um processo de familiarização entre os agentes externos e internos (Montero, 2006).

A familiarização consiste em um momento de troca de identidades pessoais e coletivas, com vistas à compreensão do modo de vida do lugar, seus maiores valores culturais, suas lutas históricas, conquistas e derrotas. Além dos aspectos históricos e culturais, importa também o conhecimento da realidade social e geográfica do local, concretizada pelo ato de passear ecaminhar pela comunidade junto com os moradores locais, conhecer os espaços coletivos comunitários, as instituições governamentais e as não-governamentais.

Esse é um espaço de troca mútua entre todos os participantes, onde acontece a abertura dos agentes internos para que os agentes externos apreendam seus valores sociais e culturais. Nesse momento ocorre um levantamento da história de luta e resistência da comunidade, fazendo emergir alguns dos principais problemas da comunidade e as potencialidades presentes. Pouco a pouco, o trabalho em equipe vai sendo produzido por meio da construção de vínculos afetivos com a realidade social, do convívio com trabalhadores de saúde, técnicos dos serviços, atores comunitários, bem como com os colegas de equipe. Complementarmente, os dados demográficos, socioeconômicos e epidemiológicos acessados no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e nos Sistemas de Informação em Saúde são fontes importantes de construção da leitura ampliada da comunidade.

Essa etapa do estágio tem como um de seus resultados a produção de um relatório conjunto da equipe interdisciplinar, comunidade e serviços de saúde. Este relatório deve ser apresentado aos principais parceiros da equipe, instituições locais, informantes-chave e lideranças comunitárias, e constitui um dispositivo de problematização sobre a realidade comunitária, abrindo a discussão sobre temáticas significativas para a elaboração de um plano de atuação que seja considerado importante pela comunidade, para ser desenvolvido em parceria com a equipe do LSF.

A definição da temática pode acontecer de diversas formas: ela vai sendo tecida durante o processo de inserção comunitária da equipe. Por ser etapa decisiva, dispõe-se de tempo hábil para a elaboração e o desenvolvimento compartilhado do plano de atuação, ressaltando-se a relevância da efetiva participação da comunidade para a sustentabilidade das ações propostas. Nesse caso, os agentes externos (estudantes, professores e técnicos da saúde) são facilitadores de uma caminhada que deve ter como protagonista a própria comunidade. Esta vivência possibilita aos estudantes lidar com questões concretas de estratégias de gestão participativa.

Após o momento de consolidação da inserção comunitária, são realizadas rodas de conversa sobre elaboração de projetos sociais com todos os integrantes do projeto, onde cada equipe deverá elaborar seu projeto de atuação comunitária. Com o plano de atuação elaborado, promove-se uma oficina de apresentação das equipes com a participação de todos os atores envolvidos: estudantes, professores, facilitadores, co-facilitadores e comunidade.

A seguir, durante um período de quatro meses, os estudantes desenvolvem o plano de atuação em parceria com a comunidade e a equipe de saúde da família, até o momento de desligamento progressivo das equipes para a chegada de novos integrantes. A última etapa do projeto constará da construção das estratégias de desligamento progressivo (Góis, 1993), com a elaboração de processos de reflexão sobre a experiência vivida e a socialização junto à comunidade e à equipe.

Concluído o primeiro ano de atuação, os estudantes mais envolvidos são convidados a continuar no projeto como co-facilitadores de campo, e trabalharão no apoio ao processo de preceptoria juntamente com profissionais do SMSE. É fundamental sua participação no processo de inserção comunitária das novas equipes selecionadas.

Conforme observamos, no seu cotidiano de práticas, o projeto enfrenta alguns desafios, como a formação dos profissionais de saúde que historicamente desconsidera a possibilidade da intervenção no campo da saúde interagir com o saber construído pelo cotidiano de práticas de cuidados da comunidade. Como sabemos, a perspectiva tradicional do ensino na educação superior não inclui as estratégias didático-pedagógicas ou os modos de ensinar problematizadores, construtivistas ou concretizados mediante o protagonismo dos estudantes. Mais ainda, desconhece a importância da interação entre estudantes das diversas profissões, bem como o valor da interação entre os estudantes e as comunidades nas quais irão atuar no futuro. Portanto, contribui para o distanciamento das diversas categorias profissionais de saúde entre si e entre estas e a população.

Podemos destacar ainda a pouca flexibilidade dos currículos da área de saúde, aliada às diversas grades curriculares paralelas de cada estudante. Isto dificulta a vivência de trabalho em equipe interdisciplinar, a inserção e a participação efetiva em experiências de extensão como a LSF. Daí a relevância do planejamento conjunto das atividades, especialmente nos espaços de atuação das equipes, como também da dedicação e compromisso ético do estudante com a sua formação e com as pessoas envolvidas nos processos de trabalho.

Avanços e Desafios do Projeto Liga Saúde da Família

No mês de julho de 2008, a LSF completou um ano na UFC, encerrando as atividades da primeira turma e preparando o processo seletivo para a turma de estudantes que ingressou em agosto de 2008. Na UECE, após a discussão entre professores e técnicos do SMSE acerca das idéias-força e referenciais norteadores do projeto na instituição de ensino, realizou-se o processo seletivo de estudantes, utilizando uma metodologia de entrevistas coletivas. Houve um planejamento geral do projeto, quando se definiram as atribuições dos participantes, o cronograma de atividade geral e de categoria, as estratégias de co-gestão, e foram criadas comissões e um colegiado de coordenação do projeto, com participação docente, estudantil, da comunidade e dos serviços de saúde. Como evidenciado, há profundo envolvimento, empolgação e protagonismo de estudantes e professores na construção do projeto.

Durante os anos de 2007 e 2008, respectivamente, os integrantes da LSF da UFC e da UECE realizaram o processo de inserção comunitária, conhecendo a organização e o funcionamento dos Centros de Saúde da Família. Estimulou-se o mapeamento de equipamentos sociais juntamente com as equipes da ESF, destacando-se as caminhadas no território na companhia de agentes comunitários de saúde e pessoas da comunidade. A partir dessas caminhadas, construíram-se vínculos e aprendizado compartilhado e, conseqüentemente, as equipes teceram uma análise da situação de saúde do território. Percebemos a importância desse reconhecimento, no qual o equipamento social é também considerado uma potencialidade de saúde para a comunidade, o que amplia o debate sobre territorialização nos espaços de atuação das equipes.

Na experiência da UFC cada equipe produziu, de forma compartilhada com os diversos atores, um plano de atuação com base nas situações-limite e potencialidades que atendesse às necessidades da comunidade. Tal plano foi apresentado e discutido, no território e internamente, entre os integrantes do projeto e técnicos do SMSE.

A operacionalização desse plano, em cada território de atuação, teve a participação e o acompanhamento da comunidade e dos serviços de saúde, destacando-se o planejamento participativo das atividades e, principalmente, o processo de gestão participativa na operacionalização do plano e no cotidiano de práticas das equipes. Refletiu-se, então, uma parceria entre universidade, serviço e comunidade.

Conforme descrito, as experiências guardam singularidades. Nesse sentido, a experiência da UECE adotou a estratégia de fomento à elaboração de um planejamento participativo nos Centros de Saúde da Família onde as equipes estão inseridas, com a participação de estudantes, profissionais de saúde e usuários do serviço. Isto "denota" a riqueza da construção compartilhada, que aponta para a gestão participativa nos espaços onde a LSF tem atuado.

Ao final do primeiro ano das atividades do projeto houve um processo de avaliação geral participativa, do qual emergiram questões importantes para reflexão e aprendizagem, que subsidiaram a tomada de decisão.

Historicamente a LSF constitui-se como uma experiência pioneira no campo do trabalho de interlocução entre universidade - serviço - comunidade na perspectiva da gestão participativa, configurando. um salto histórico nessa relação, pois colocou na mesma arena política todos os atores envolvidos no processo.

Como conseqüência da experiência vivida nos territórios e das reflexões teóricas gerais, no âmbito das equipes interdisciplinares e nos grupos de discussão por categorias, verificou-se um processo de sistematização dessas experiências, evidenciado pela elaboração e apresentação de resumos e trabalhos em eventos científicos locais e nacionais, com participação efetiva de estudantes, facilitadores e professores. Em 2008, por exemplo, a LSF foi lembrada como menção honrosa no Encontro Regional de Estudantes de Medicina, e um relato da experiência produzido por uma das equipes foi premiado no 9º. Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, ocorrido em Fortaleza-CE. Neste ano de 2009, fomos contemplados entre as quinze experiências exitosas no Prêmio Sergio Arouca de Gestão Participativa, organizado pelo Ministério da Saúde. Este é um fato bastante significativo para uma experiência recente, mas com potencialidade para fortalecer o tripé da universidade pública ao articular ensino, pesquisa e extensão.

Ressaltamos a complexidade de um projeto de extensão que busca uma identidade popular e caráter interdisciplinar, no qual estão envolvidos diversos atores com formação acadêmica e social distintas, cada um com seus anseios e motivações, interagindo e aprendendo com os desafios e dificuldades no cotidiano do fazer.

Apesar de alguns problemas operacionais do projeto, percebeu-se uma ampliação do olhar crítico e propositivo dos estudantes e o ganho na capacidade de trabalhar em equipe, diferencial identificado pelos professores em sala de aula, no cotidiano do ensino.

Como observamos, alguns estudantes aproximaram-se de movimentos sociais, tal como a ANEPS-CE, exercendo um papel protagonista também na organização do IV Encontro Nacional de Educação Popular em Saúde em Fortaleza-CE.

Observamos ainda uma maior integração entre os professores dos diversos cursos da área de saúde. Tal fato merece destaque na universidade em face da sua história de fragmentação do diálogo entre as diversas graduações em saúde. Dessa forma, o trabalho interdisciplinar foi percebido durante o processo de avaliação como um dos maiores avanços, ao lado da perspectiva de trabalho comunitário.

Como uma das instituições idealizadoras da LSF, a Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza-CE apoiou amplamente o projeto, e houve uma interface no sentido do processo ensino-aprendizagem com as diversas iniciativas do SMSE, tais como: Preceptoria de Território, Residência de Medicina de Família e Comunidade e Especialização em Saúde da Família. Ademais, na construção do projeto foi fundamental a participação de profissionais de saúde compondo a equipe técnica de coordenação juntamente com as universidades.

Outro resultado considerado relevante foi à inserção de parte dos estudantes participantes do primeiro ano do Liga Saúde da Família na UFC como co-facilitadores dos estudantes selecionados para o segundo ano do projeto. Este fato caracteriza a aproximação destes estudantes do núcleo de conhecimentos e práticas da saúde coletiva.

Mencionamos ainda como avanço a obtenção de financiamento para o projeto por meio do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde do Ministério da Saúde (PET - Saúde) em 2009, o qual proporcionou maior integração de diferentes profissionais dos Centros de Saúde da Família nas atividades do projeto.

Estivemos, nestes dois anos de caminhada, aprendendo coletivamente a construir essa experiência, descobrindo conquistas e desafios por meio da vivência no território e das reflexões teóricas, dos quais o mais importante foi a participação ativa dos diversos atores no processo de planejamento e co-gestão do projeto.

Concluindo o Relato

Segundo percebemos, o projeto possui espaços de vivência e formação pedagógica integrada e participativa. As referências pedagógicas essenciais da nossa prática são a educação popular em saúde e a educação permanente em saúde. Ambas permitem o desenho de metodologias participativas no processo de trabalho.

Dessa experiência emergiram muitos avanços. Entre estes gostaríamos de ressaltar o trabalho em equipe, o protagonismo dos integrantes e da comunidade na construção das atividades e a ampliação do olhar crítico sobre a realidade social e o trabalho em saúde. Destacamos ainda como avanço para os saberes e práticas no contexto da saúde da família a ênfase na perspectiva do trabalho comunitário.

Compreendemos o projeto como uma comunidade ampliada de aprendizagem, gerador de integração entre ensino, serviço e comunidade. Dessa forma, atende a uma perspectiva de gestão participativa e dialógica.

Recebido em: 27/04/2011

Aprovado em: 18/09/2011

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  • 1
    Este artigo foi baseado no trabalho apresentado à 3ª edição do Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, 2008, tendo recebido menção honrosa como "Experiências Exitosas".
  • 2
    Em Freire (1996) uma práxis de libertação pressupõe uma ação-reflexão que possa transformar a realidade vivenciada.
  • 3
    O Projeto VERSUS Brasil consiste em um dispositivo de mudança da graduação em saúde do Ministério da Saúde e do movimento estudantil de saúde, que objetivava aproximar estudantes universitários aos desafios inerentes à implantação do SUS. Tal projeto previa a permanência de quinze dias de vivência intensiva em um sistema municipal de saúde.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Maio 2012

    Histórico

    • Recebido
      27 Abr 2011
    • Aceito
      18 Set 2011
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