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A produção do conhecimento na interface entre as ciências sociais e a saúde pública/coletiva

EDITORIAL ESPECIAL

A produção do conhecimento na interface entre as ciências sociais e a saúde pública/coletiva1 1 Este editorial especial celebra e divulga as ideias debatidas na oficina de discussão temática, intitulada "A produção do conhecimento na interface entre as Ciências Sociais e a Saúde Pública/Coletiva", promovida pelos editores e pelo conselho editorial da Saúde e Sociedade, em março de 2012. Os artigos das professoras Amélia Cohn, Maria Cecília de Souza Minayo e Regina Giffoni Marsiglia sistematizam as exposições feitas por elas na Oficina e são apresentados neste número na forma de dossiê.

Tem crescido, na sociedade contemporânea, um mal-estar geral que se traduz cada vez mais em termos de problemas de saúde. Questões de natureza eminentemente social têm sido depositadas na saúde, encontrando aí, muitas vezes, um lugar socialmente reconhecido como legítimo para sua solução. Assim tem sido com os adoecimentos crônicos ou agudos gerados pela violência do trabalho, ou o sofrimento de crianças, jovens e idosos provocados pelo desamparo social e geracional, por exemplo. Esses adoecimentos, provocados por situações tão complexas, individuais e coletivas, em vez de suscitar soluções através de políticas sociais, têm encontrado no campo das ciências da saúde a perspectiva de alguma resolução. Sob a forma da medicalização do social, esse mal-estar produzido pela sociedade contemporânea vem sendo "formulado em termos de 'saúde' e, em grande parte, em termos de 'saúde coletiva'" (Luz, 2011, p. 25).

Os limites intrínsecos das disciplinas tradicionais da saúde, ao abarcar a totalidade do fenômeno da vida, e, nela, a situação de adoecimento e sofrimento humanos por meio da biologia, da física e da química, fazem com que as ciências sociais e humanas sejam, nesse contexto e cada vez mais, solicitadas a trabalhar cooperativamente com o campo das ciências da saúde. Um cenário que vem alterando, inclusive, o próprio campo das Ciências Sociais e Humanas nos seus institutos e departamentos básicos, nos quais é possível verificar uma penetração crescente das temáticas da saúde, especialmente na produção de suas pós-graduações (Canesqui, 2011).

Entretanto, esse fenômeno não alterou o cenário no qual os cientistas sociais e humanos strictu senso, aqueles que não pertencem ao campo da saúde - , continuam a perceber essa produção como não pertencente à sua área, numa tensão permanente entre a produção das ciências sociais e humanas em saúde e a produção sobre saúde nas ciências sociais e humanas. Como diz Amélia Cohn no artigo publicado neste volume, "ainda existe uma dicotomia, na área acadêmica, entre cientistas sociais que estudam a saúde como objeto, mas militam na arena exclusiva das ciências sociais, e aqueles que fazem o mesmo, mas militam na área da Saúde Pública/Coletiva".

Nos trabalhos de Regina Giffoni Marsilgia e Maria Cecília de Souza Minayo, esse tema também foi abordado ao discutirem a produção do conhecimento na interface entre as ciências sociais e a Saúde Pública/Coletiva.

A leitura dos artigos permite identificar algumas questões similares na abordagem desse tema pelas autoras, considerando-se sempre suas diferentes e ricas contribuições. Na tensão entre a produção das ciências sociais e humanas em saúde e a produção sobre saúde nas ciências sociais e humanas, aparecem questões relativas ao objeto saúde, à multidisciplinaridade do campo da saúde e à tensão entre conhecimento teórico e sua aplicabilidade.

Todas parecem concordar quanto à complexidade do objeto saúde-doença, inteligível a todo o universo da vida e construções humanas, consistindo, por isso mesmo, em questão central das sociedades, merecendo, dessa forma, um olhar específico das ciências sociais sob as inúmeras e múltiplas configurações dos olhares dos investigadores.

A natureza desse objeto no contexto do vasto campo da saúde envolve também, como não poderia deixar de ser, multidisciplinaridade e, necessariamente, as distintas articulações entre disciplinas; não apenas entre aquelas das áreas sociais e humanas, mas entre estas e as das ciências naturais, informacionais, etc. Tarefa evidentemente complexa, ainda mais se considerando o cenário epistemológico contemporâneo de profunda diluição das fronteiras disciplinares estabelecidas no século XIX. Tais tensões são tão profundas que chegam a atingir, em algumas circunstâncias - e a depender do olhar sobre o objeto saúde e do lugar do investigador - , feição paradigmática, desestabilizando marcos científicos instituídos.

O lugar das ciências sociais e humanas em saúde também se reveste da tensão entre conhecimento teórico e sua aplicabilidade, uma dificuldade das Ciências Sociais e Humanas produzidas nos seus institutos e departamentos básicos - o desafio permanente do compromisso dessas ciências em envolver-se com a resolução dos problemas encontrados. Prática intelectual muitas vezes compreendida como menor e de baixa densidade teórica, demanda, no entanto, o esforço permanente em constituir uma área de conhecimento científico crítico.

Diante do cenário atual das ciências sociais em debruçar-se e pensar uma realidade cada vez mais opaca, como diz Amélia Cohn, talvez o esforço da aplicabilidade seja aquele que venha instigando as ciências sociais em saúde a perceberem novos problemas e abordagens de fenômenos, processos e relações sociais.

Outras questões comuns aos artigos do dossiê dizem respeito à construção metodológica do campo científico, à tensão entre técnicas quantitativas e qualitativas; à presença da empiria, e os desafios que advêm da cientificidade, na produção do conhecimento.

Nessa perspectiva, Amélia Cohn aponta, como uma premissa inaugural, a observação de que as Ciências Sociais enfrentam as consequências de ter a saúde como foco e objeto, uma vez que esta situação as delimitou como campo de conhecimento, com forte aporte no empírico e recorte específico da realidade. Observa, a partir dessa premissa, que as abordagens metodológicas oferecidas pelas ciências sociais propiciaram à Saúde Pública e Coletiva a construção de uma identidade própria, marcada pela produção multidisciplinar, fortemente empírica, voltada à intervenção na realidade da saúde. A multi e interdisciplinaridade foram atributos também destacados por Regina Marsiglia que descreve o campo como caracterizado pelas tensões epistemológicas, com características de interdisciplinaridade sem uma teoria única que explique o seu conjunto de objetos de estudo. Essa inexistência de uma teoria única é, além de esperada, desejada, uma vez que, entre outros aspectos, o campo da Saúde Pública/Coletiva, na interface ora descrita, compreende estudos e pesquisas nas grandes áreas das Ciências Sociais - Sociologia, Antropologia e Ciência Política, além de diversos subcampos - o que de saída impediria a delimitação de um único escopo teórico.

No seu artigo, Cohn assinala ainda que, no processo de captura das Ciências Sociais pela área da Saúde, criou-se a falsa dicotomia, que perdura, entre opções metodológicas qualitativas e quantitativas. Para a adequada apropriação dessas técnicas, o campo da saúde necessita discernir, de forma cuidadosa, entre os limites e possibilidades explicativas de cada uma dessas abordagens do real, e buscar uma interlocução entre ambas, que respeite - e isso é imperativo - as especificidades de cada método, sob o risco de adoção de uma miscelânea metodológica.

A herança das ciências sociais na construção do conhecimento, atributo fortemente epistemológico, também é assinalada por Cecília Minayo, ao escrever que, ao herdar este aporte epistemológico, a prática da produção do conhecimento no campo da Saúde Pública/Coletiva foi constituída de disciplinas, métodos e fronteiras próprios e marcada pela interdisciplinaridade, uma vez que as barreiras que separavam as áreas do conhecimento, no setor saúde, foram cada vez mais diluídas, e prosseguem sendo assim. Minayo alude, em seu artigo, a relevância atribuída por Giddens e Turner ao posicionamento falsamente dicotômico entre o caráter analítico e teórico das Ciências Sociais versus sua vocação empírica, dicotomia sobre a qual eles próprios não construíram um consenso, mas que, indubitavelmente, força a reflexão sobre o problema da escassez teórica e analítica, verificável em alguns trabalhos de campo.

Para Marsiglia, que produz oportuna síntese, as Ciências Sociais foram chamadas pela saúde para discutir situações concretas e particulares, aplicadas a problemas fáticos, que além da formação de um novo campo de conhecimento nessa interface, provocaram um certo estranhamento e desconforto nos cientistas sociais, que fizeram a passagem do conhecimento estritamente teórico para prescrições concretas de ação. Em suma, o desafio de, segundo ela, usar a teoria social, produzida parcialmente em elevado patamar de abstração e generalidade, para análise de processos reais e concretos, e realidades históricas e sociais singulares.

Ainda segundo Marsiglia, desde a Reforma Sanitária até a construção do SUS - enquanto política universalista - há um novo desafio que, conforme observa Cohn, reside na inexistência de uma autonomia de agenda de pesquisa e produção de conhecimento das Ciências Sociais perante a dinâmica da saúde na formatação de uma política pública. A ausência desta autonomia tem provocado subordinação técnica ao objeto, na qual o cientista social tende a tornar-se um ideólogo na construção do saber na área; ou, ainda, uma perda da visão crítica na produção do conhecimento na interface entre Ciências Sociais e Saúde Pública/ Coletiva, como se lê no artigo de Amélia Cohn.

No que se refere aos aspectos metodológicos da delimitação dos objetos de investigação e das temáticas abordadas, Minayo assinala que as questões levantadas pelos autores brasileiros de referência no campo das Ciências Sociais e Humanas em Saúde continuam válidas, e presentes até os dias de hoje. A herança foi assimilada pelos novos autores, denominados por ela de terceira geração de cientistas sociais no campo da saúde brasileira, e se faz presente na produção científica de artigos e também na definição das opções metodológicas de abordagem do objeto, tal como relação entre estrutura e sujeito, o papel do sujeito na história, as estruturas sociais, cultura e representações sociais.

A Oficina foi motivada pela indagação sobre quais seriam os temas emergentes na saúde e que desafiam a contribuição das ciências sociais e humanas no campo da Saúde Pública/Coletiva.

Mais que temas, as autoras falaram em desafios. Marsiglia diz que os temas podem permanecer nos mesmos eixos do início dos anos 1980; considera o fato de questões que eram emergentes na época hoje serem centrais.

Para Cohn a abordagem busca de temas emergentes está na dependência muito mais da postura do olhar do cientista social diante das questões tradicionais que aí estão do que do próprio instrumental das ciências sociais. Identificar novas questões e fenômenos implica ser capaz de inovar na forma de abordagem, estar aberto para novas perspectivas do olhar sem, entretanto, renegar os clássicos na produção das ciências sociais. Ela admite, porém, que a própria agenda da Saúde Pública/Coletiva atualmente carece de criatividade, e que a política pública de saúde carece de inovação.

Minayo apresenta dados que indicam a ampliação de espaço para publicação da produção da área de ciências sociais e humanas nos veículos da saúde, destacando a necessidade de reflexão sobre o peso internacional dessas publicações.

Por dedicar-se a um objeto inteligível a todo o universo da vida e das construções humanas, e colados às realidades e contextos histórico-sociais, necessidade intrínseca à aplicabilidade do campo, as ciências sociais em saúde, no cenário contemporâneo, parecem trazer desafios não apenas ao campo da saúde como ao das ciências sociais e humanas instituídas em seus departamentos básicos. Nesse sentido é que é possível concordar com Loyola (2012) quando ela diz que o lugar das ciências sociais e humanas na saúde não poderia deixar de ser central.

Aurea Maria Zöllner Ianni, Irineu Francisco Barreto Jr, Cleide Lavieri Martins

Pelo Conselho Editorial

  • CANESQUI, A. M. Sobre a presença das ciências sociais e humanas na saúde pública. Saúde Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 14-21, 2011.
  • LOYOLA, M. A. O Lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saúde Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 9-14, 2012.
  • LUZ, M. T. Especificidade da contribuição dos saberes e práticas das ciências sociais e humanas para a saúde. Saúde Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 22-31, 2011.
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    Este editorial especial celebra e divulga as ideias debatidas na oficina de discussão temática, intitulada "A produção do conhecimento na interface entre as Ciências Sociais e a Saúde Pública/Coletiva", promovida pelos editores e pelo conselho editorial da Saúde e Sociedade, em março de 2012. Os artigos das professoras Amélia Cohn, Maria Cecília de Souza Minayo e Regina Giffoni Marsiglia sistematizam as exposições feitas por elas na Oficina e são apresentados neste número na forma de dossiê.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
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