Adesão e terapias antirretrovirais: avanços e desafios
A invenção da terapia antirretroviral combinada (TARV), uma associação de três tipos de drogas com alta eficácia na inibição do ciclo de reprodução do vírus HIV, revolucionou o tratamento da aids e trouxe transformações significativas na vida das pessoas afetadas pela doença. Efeitos importantes se observaram na diminuição dos índices de internação hospitalar por doenças oportunistas, particularmente a redução da morbidade e mortalidade das pessoas infectadas (Carvalho e col., 2003; Cordeiro e col., 2010).
Em uma estratégia de vanguarda, os novos medicamentos estiveram disponíveis no Brasil em 1996, por meio da Lei 9.313 (Brasil, 1996), que regulamenta o acesso gratuito aos antirretrovirais no Sistema Único de Saúde (SUS). O surgimento dessas terapias, associado à política de distribuição universal e gratuita pelo Estado brasileiro, fez mudar o perfil da doença. Antes dos anos 1990 existiam apenas intervenções paliativas destinadas a tratar as doenças decorrentes do quadro de HIV/aids. A debilidade física própria da doença impossibilitava às pessoas infectadas manter suas atividades rotineiras, interrompendo seus papéis sociais e condenando-as a uma “morte social”, sem contar a brevidade de seu tempo de vida (Jordan e col., 2000; Seidl, 2001; Sontag, 1989). O acesso universal aos medicamentos no Brasil propiciou à aids passar de agravo de alta letalidade para um perfil de doença crônica controlável. Em um estudo etnográfico sobre a resposta brasileira à aids, Biehl (2007) perfila um quadro do sistema de valores e o contexto político e econômico que norteiam a política de controle de aids no pais. O autor indaga as condições que têm permitido a sustentabilidade do acesso universal às TARV e, de certo modo, como essa resposta constitui um bem público.
A partir das perspectivas de vida abertas pelas TARV, surgem também possibilidades de manutenção ou reinvenção dos papéis sociais e dos projetos de vida das pessoas afetadas pela aids. Uma boa adesão é essencial para o sucesso terapêutico do tratamento; ao contrário, a não adesão no plano individual ameaça sua efetividade e apresenta um risco de disseminação de cepas virais resistentes a determinados esquemas terapêuticos, tornando mais difícil o controle da epidemia (Jordan e col.; 2000; Bangsberg e col. apud Nemes, 2009). Muito embora existam avanços relevantes na qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/aids, continua a ser bastante complexo o seguimento adequado da TARV e dos efeitos decorrentes do seu uso prolongado e ininterrupto, considerando, além disso, outros fatores como envelhecimento e gravidez, assim como a existência de evidências limitadas no que tange à adesão entre algumas populações mais vulneráveis (Carvalho e col., 2003; Nachega e col., 2012; Ghidei e col., 2013; Scanlon e Vreeman, 2013).
Diversos estudos apontam as dificuldades de adesão às terapias e os fatores associados a uma baixa adesão ou abandono do tratamento, assim como os fatores que influenciam positivamente a observância do tratamento.1 Do ponto de vista biomédico o conceito de adesão à terapia antirretroviral se associa ao ato de seguir a prescrição médica, no que diz respeito à quantidade e ao horário dos medicamentos prescritos (Adão e Merighi, 2000; Lignani Júnior e col., 2001). Entretanto, além dessa definição, que levanta fortemente a ideia de que o paciente deve “obedecer” o médico, o termo adesão pode ser entendido, de forma mais compreensiva, como sendo não só o seguimento da prescrição médica, mas também envolvendo a dimensão subjetiva do paciente com relação às orientações médicas (Lignani Júnior e col., 2001; Cardoso e Arruda, 2004).
Reconhece-se hoje que aderir à medicação e ao tratamento como um todo é um processo complexo, que envolve fatores de diferentes ordens: organizacionais, relacionados ao acesso e atendimento nos serviços de saúde, socioeconômicos, emocionais e afetivos, além daqueles associados aos efeitos fisiológicos.
Determinantes sociais da saúde, tais como renda familiar baixa (Carvalho e col., 2003), menor escolaridade e falta de informação sobre os riscos da não adesão, são questões associadas a menores taxas de seguimento do tratamento (Carvalho e col., 2003; Bonolo e col., 2010; Nemes e col., 2000; Lignani Júnior e col., 2001). Estudos de cunho psicológico apontam que as pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) são particularmente vulneráveis a processos depressivos e esses, por sua vez, têm se associado a falhas no seguimento do tratamento (Nemes e col., 2000; Slama e col.,2006). O medo da discriminação e todo o imaginário de morte e culpa que a aids pode suscitar interfere na sua autoestima e, não raro, leva ao isolamento social (Souza e Vietta, 2004).
Por outro lado, a disponibilidade de redes sociais de apoio esteve associada positivamente a menores chances de ter depressão. A presença da família, dos amigos, das instituições de saúde e de grupos organizados e a crença por parte do indivíduo de que ele é cuidado, estimado e que pertence a esses grupos podem ter papel significativo sobre a continuidade da terapia (Seidl, 2001; Slama e col., 2006; Cardoso e Arruda, 2004; Fernandes e col., 2010). Sabe-se que a dimensão do cuidado para os pacientes com doenças crônicas vem dando uma guinada importante nas formas de atenção, inclusive as modalidades em formato domiciliar praticadas pelos membros mais próximos dos pacientes (Das e Das, 2007). Experiências narradas por Kleinman (2008, 2012) reconhecem a importância de compreender significados, valores, eventos de vida, idade e outros contextos que, do ponto de vista heurístico, devem ser considerados para a configuração de um marco cultural e histórico nos processos de adoecimento.
Diante da identificação de questões que a vivência prolongada com o HIV/aids suscita e da complexidade do processo de adesão como um todo, surgem iniciativas psicoeducativas e de organização social, que chamamos aqui de “grupos de mútua ajuda de pessoas vivendo com HIV/aids”. Esse tipo de arranjo social pode tomar diferentes nomes — “grupos de adesão”, “grupos de mútua ajuda”, “grupos de convivência”, “grupos de interação”, “grupos de amizade” e procedimentos de trabalho. Relata-se que os primeiros grupos de mútua ajuda surgiram no início da década de 1990 (Galvão, 2002) e têm sua origem nos serviços de saúde, de organizações da sociedade civil ou congregação de redes pessoais de pessoas afetadas. Essas modalidades grupais vêm sendo consideradas ações estratégicas de adesão à medicação antirretroviral e recomendadas pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2007).
Ao mesmo tempo, têm sido reconhecida sua importância como espaços de insights que auxiliam profissionais da saúde a reconhecer os fatores que permeiam a vivência com HIV/aids (Paiva, 2000). Em pesquisa realizada entre 2000 e 2001 com serviços de saúde, 18,3% dos serviços pesquisados informaram conduzir rotineiramente “grupos de adesão”. No entanto, pouco se sabe sobre o funcionamento e aporte desses grupos, bem como ainda não há avaliação disponível sobre sua efetividade, custos e cobertura dessa tecnologia no Brasil (Nemes, 2009). Em âmbito nacional, alguns poucos estudos encontrados trazem elementos para a análise das interações grupais entre pessoas vivendo com HIV/aids.2
O olhar antropológico sobre os grupos de mútua ajuda
Do ponto de vista das ciências sociais, Katz (1981) — nos anos 1970 e 1980 — descreve a emergência e proliferação de grupos de mútua ajuda na América do Norte e Europa. A rápida expansão e a diversidade de subtipos desses grupos — grupos de homossexuais, de mães solteiras, de portadores de doenças físicas ou distúrbios psicológicos — começou a interessar aos investigadores das estruturas e relações sociais e das políticas públicas. Diante dessa diversidade, Katz e Bender (apud Katz, 1981) descreveram características comuns ao funcionamento desses diversos grupos. Para esses autores, são estruturas pequenas e voluntárias que enfatizam a interação face a face, visando atingir um objetivo que, em geral, é promover mudanças na condição experimentada pelos frequentadores. São grupos formados por pares, no sentido de partilharem alguma situação em comum e orientados por uma causa, compartilhando concepções de mundo e valores. Comparativamente a outras instituições, os grupos são estruturas pouco burocratizadas e pouco hierarquizadas. Godbout (1999), retomando a tríade dar-receber-retribuir, desenvolvida por Mauss (2003), aponta que o ato de identificar, compartilhar e fazer circular experiências entre pessoas acometidas por uma mesma condição exerce papel terapêutico. O autor estuda os alcoólicos anônimos, considerados pioneiros no modelo de grupos de mútua ajuda, inspirando a forma de funcionamento de iniciativas mais recentes.
Este estudo vem somar-se aos atuais debates sobre adesão às terapias, ao mesmo tempo em que se propõe a contribuir para um melhor entendimento dos resultados produzidos no âmbito dos grupos de mútua ajuda entre PVHA e as possíveis contribuições dessas interações grupais para o processo de adesão e continuidade do acompanhamento médico, bem como para vivência, de forma geral, da soropositividade. Ademais, busca entender o funcionamento dessas iniciativas grupais e registrar o tipo de relações que se tecem entre profissionais de saúde e pessoas que vivem com aids, bem como as relações entre essas últimas.
A perspectiva antropológica no campo da saúde considera que os conceitos de saúde e doença envolvem não somente sua dimensão orgânica, mas conjugam fatores biológicos, sociais, culturais e econômicos, percebidos de maneira diferente pelos sujeitos sociais que vivem processos de adoecimento (Uchôa e Vidal, 1994; Helman, 2006). Segundo Taïeb e colaboradores (2005), toda doença engendra indagações sobre suas causas e sentidos e estimula a organização de sistemas de cuidados como respostas: crenças religiosas, escolha do tratamento e o status socialmente legitimado do doente. Trazendo essas constatações para o fenômeno que aqui nos interessa, a aids não é, pois, apenas um processo biológico circunscrito ao corpo do doente; é também um evento cultural, submetido a uma construção simbólica que se impõe aos indivíduos (Paim, 1998). A antropologia da saúde amplia o horizonte de análise no estudo dos processos de saúde e doença, iluminando a dimensão cultural dos fenômenos biológicos e as construções simbólicas processadas pelas pessoas perante esses eventos (Good, 1994; Uchôa e Vidal, 1994; Helman, 2006). Nessa linha de aproximação, as reflexões teóricas de Kleinmam (2012, 2009), ao ter sido ele próprio um caregiver 3 em seu contexto familiar, contribuem para pensar nos aspectos que tornam esses processos relações sociais na plenitude dessa dimensão, trazendo para o cenário espaços de tensão, de conflito e de moralidades em ciclos existenciais carregados de emoção, significados e de necessidades dos pacientes, dos cuidadores, das equipes profissionais e das instituições envolvidas.
A etnografia
Com base na premissa de aceitação voluntária dos sujeitos em contribuir com o trabalho, identificamos dois grupos que atuam na cidade de Brasília: a organização não governamental Arco Íris e o Grupo de Convivência Flor de Lótus. A forma de abordagem dos dois grupos foi diferenciada. No espaço da ONG Arco Íris realizamos uma etnografia de aproximadamente três meses, por meio da observação participante das atividades desenvolvidas no âmbito do grupo. Participamos das reuniões de um dos grupos de mútua ajuda que funcionam na ONG e das chamadas “reuniões de informação”, sendo essas últimas espaços de encontros com profissionais da saúde, sob a forma de palestras e oficinas. Também conduzimos entrevistas semiestruturadas com seis participantes do grupo e quatro profissionais de saúde envolvidos, sendo uma psicóloga, uma coordenadora de projetos e duas assistentes sociais. O material analisado referente ao grupo Arco Iris compõe-se de dez entrevistas, bem como do registro escrito das narrativas e histórias recolhidas durante os encontros do grupo.
No grupo Flor de Lótus, apesar da concordância em contribuir com nossa pesquisa, não houve consentimento para a realização de uma etnografia. Diante dessa negativa, nossa relação foi mediada por um colaborador, como ele mesmo se intitulou. Nesse grupo, o roteiro da entrevista foi enviado por meio eletrônico ao nosso interlocutor, que as levou aos membros do grupo. Os roteiros de entrevistas respondidos pelos frequentadores foram devolvidos a nós pelo referido colaborador. Ao total recebemos dez entrevistas com frequentadores desse grupo e tivemos a oportunidade de um contato pessoal mais frequente com o referido facilitador, o que resultou na realização de uma entrevista.
O roteiro da entrevista foi o mesmo para os dois grupos, combinando perguntas fechadas e questões abertas. Continha, além de itens relativos ao perfil socioeconômico dos frequentadores, questões abertas que buscavam apreender suas percepções sobre possíveis mudanças, benefícios e significado da participação no grupo para a vivência com o HIV/aids e para o seguimento da terapia antirretroviral. As questões abertas visaram suscitar a memória dos entrevistados para que relembrassem partes de suas vidas relacionadas à frequentação dos grupos, levando-os a refletir sobre sua condição de antes e depois dessa participação.
Foram entrevistados frequentadores com no mínimo seis meses de participação no grupo. Todos os entrevistados tomavam a medicação antirretroviral há pelo menos um ano. As entrevistas realizadas junto aos profissionais de saúde envolvidos com os dois grupos buscavam apreender suas percepções sobre mudanças e benefícios para os frequentadores em decorrência de sua participação nos grupos.
A caracterização dos grupos
Os dois grupos estudados se organizam de maneira diferenciada e refletem identidades distintas entre eles. Os grupos inseridos no interior da ONG Arco Íris são apenas uma das atividades que a organização propõe aos participantes. Criada em 1990, a ONG desenvolve um trabalho multidimensional: além das reuniões semanais de mútua ajuda e informação, oferece apoio psicológico individualizado, atividades de lazer, inserção das pessoas em projetos de geração de renda e distribuição de cestas básicas. Os frequentadores são oriundos de classes populares e advindo de regiões mais carentes do Distrito Federal. Já o grupo Flor de Lótus, que tem sua origem no ano de 1999, é um grupo autogestionado. Há múltiplas lideranças, os próprios frequentadores propõem, planejam e organizam as atividades e facilitam as reuniões, com o apoio de colaboradores, que podem ser soropositivos ou soronegativos. Sua atividade precípua são os encontros quinzenais de PVHA no interesse de trocar de experiências, informação e construir uma rede social que extrapole os locais de encontro. Os frequentadores pertencem às camadas da população de média e alta renda. No geral, também possuem nível de escolaridade mais alto que os frequentadores do grupo Arcos Íris. Quanto ao tempo de diagnóstico da soropositividade, os dois se mostraram internamente heterogêneos, abrigando pessoas com grande diferença nessa variável.
Além da estruturação da vivência em grupo em forma de “encontros”, “palestras”, “oficinas”, ambos os grupos realizam atividades extramuros, nas quais “não se fala de aids”, como idas a parques, restaurantes, cinema ou à casa de um dos frequentadores.
A dimensão de um novo tempo na condição sorológica
Quando indagados se a participação no grupo de mútua ajuda havia mudado algo em sua vida pessoal e em sua relação com a doença, a grande maioria dos frequentadores — 14 dentre os 16 entrevistados — referiu mudanças positivas. Os dois entrevistados que afirmaram não haver percebido mudanças justificaram a negativa por razões distintas. Um deles afirmou sempre ter tido uma boa relação com a doença, mesmo antes de sua participação no grupo; o segundo manifestou não poder avaliar o impacto isolado do grupo em sua vida.
Dentre os 14 participantes que declararam ter experimentado mudanças após a entrada no grupo, 9 mencionaram a existência de uma demarcação temporal a partir das categorias nativas antes e depois do grupo, numa espécie de passagem operada pela vivência grupal. Na fala desses frequentadores, o antes constitui uma dimensão marcada por sentimentos de “vazio”, “solidão”, “morte”, “tristeza”, “depressão”. O depois identifica novos sentidos, tais como período de “força”, “autoestima”, “autocuidado”, “amigos”, “vida”, “informação”, novas formas de “encarar” a soropositividade.
Antes do grupo: morte eminente. Depois do grupo: força para encarar a vida (Entrevistado 10).
Antes pensava que era a única pessoa a ter o vírus, me sentia só e com grande peso, além da enorme solidão. Depois do grupo, pude ver que não sou, nem estou só e que os problemas que enfrento são, algumas vezes, idênticos aos de outras pessoas (Entrevistado 7).
O retrato da vivência do HIV/aids separada nas categorias antes e depois do grupo pode ter sido induzido pela própria questão de pesquisa colocada aos entrevistados.4 Não obstante o reconhecimento desse aspecto metodológico, foi recorrente nas entrevistas o discurso de que no começo [da doença] é mais difícil, assim como coloca Jordan e colaboradores (2000), e que a participação no grupo teve papel na passagem para uma fase mais bem vivida. Embora nosso objeto se situe em espaços coletivos, o pano de fundo das narrativas põe em relevo o que Biehl e colaboradores (2007) denominam de subjetividade individual como estratégia de existência, o que permite desvendar vidas internas e como operam as condições de existência e de significado das experiências de doença. Ainda, segundo esses autores, a trajetória das pessoas que aderem ao tratamento de forma satisfatória é uma história de superação das dificuldades ligadas à terapia, ao estigma que persiste sobre a doença, à vivência cotidiana com o vírus. Cardoso e Arruda (2004) também mencionam, em seu estudo sobre as representações sociais da soropositividade, a existência entre as pessoas consideradas aderentes de dois momentos diferenciados: o primeiro, percebido como um antes difícil, ligado à morte, e o depois, entendido como um período de maior adaptação à nova condição.
Os depoimentos e narrativas recolhidas indicam que o grupo tem sido, para a maioria dos frequentadores, um apoiador na passagem entre uma fase de sofrimento intenso para uma outra fase, de aceitação e busca de estratégias de convivência com o HIV/aids. Essa primeira constatação sugere que os grupos de interação têm influência positiva sobre a adesão às terapias. Pode-se pensar com Das (1997) que as narrativas sobre a doença são uma via de contraste entre a abordagem biomédica e a experiência e emoções íntimas dos sujeitos.
A partir das narrativas dos frequentadores e dos relatos dos facilitadores entrevistados, pudemos apreender as potenciais contribuições dos grupos e seu impacto sobre o seguimento do tratamento. Assim como constatado no trabalho de Souza e Vietta (2004), as falas dos nossos interlocutores que afirmaram que o grupo teve papel transformador em suas vidas relatam uma condição inicial de solidão, pouca ou nenhuma atividade e desesperança. A condição solitária e inativa de muitas PVHA é resultado da vigência de representações que relacionam a aids à morte e também ao estigma que paira sobre as pessoas infectadas. Desde o início da epidemia, um conjunto de representações sobre a doença tem sido estabelecido social e culturalmente e, de forma coercitiva, tem se imposto aos indivíduos (Valle, 2002; Seffner, 1995). Essas representações “[...] tem papel importante para o processo de construção identitária, na formação dos grupos e para os modos nos quais saúde e doença têm sido experimentado” (Valle, 2002, p. 187).
O predomínio da associação entre aids e morte se desdobra na vivência das situações de “morte anunciada” e “morte civil” pelas pessoas acometidas pelo vírus. A “morte anunciada” é descrita como sendo a contínua lembrança de encurtamento da vida, de fim próximo. Já a “morte civil” implica redução da cidadania, uma pressão da sociedade e do Estado no sentido de cercear as possibilidades de vida da pessoa que vive com aids (Seffner, 1995). Ademais, dentre as categorias de identidade construídas com base na aids, a do aidético (surgida no final dos anos 1980) ainda persiste e se constitui em identidade estigmatizada, nos termos de Goffman (1988). Além de ser caracterizada sobre o signo da morte, essa categoria é reduzida a sua enfermidade (Valle, 2002). Entre as PVHA é recorrente o medo da revelação da soropositividade e o retraimento diante de uma sociedade reconhecida como discriminatória, segundo revelaram algumas falas de frequentadores de ambos os grupos.
Foi quase unânime a opinião de que os grupos foram lugares de encontro de novos amigos e até de relacionamentos amorosos soroconcordantes, após um período de rupturas, isolamento voluntário e segredo. Alguns frequentadores e a maioria dos facilitadores afirmam os grupos como uma “família”, algumas vezes preenchendo o espaço de apoio e acolhimento que as pessoas não encontram em casa. De forma geral, em qualquer doença, os laços sociais ficam mais sobrecarregados, gerando rupturas e aumento do isolamento social; agravado pelo fato de que a aceitação da dor está condicionada por fatores sociais e culturais, isso pode ser um agravante do sofrimento. No caso da aids, o sofrimento torna-se mais intenso porque a dor e a condição de soropositividade são vividos na esfera privada (Castro e Silva, 2009). A primeira e mais nítida contribuição das interações grupais que destacamos é, então, a possibilidade de (re)construção de redes sociais e de um maior grau de disponibilidade de suporte social ao portador, em contraposição ao isolamento e ao esgarçamento dos laços sociais vivenciados pelas pessoas com aids. Como vimos, a disponibilidade de redes sociais de apoio (amigos, família, grupos organizados) guarda relação com um bom seguimento do tratamento antirretroviral (Slama e col., 2006).
Foi considerado como positivo pelos frequentadores não apenas o fato de o grupo proporcionar novos laços afetivos, mas também a possibilidade de conviver com iguais, poder falar a mesma língua. Para os interlocutores do Arco Íris e do Flor de Lótus, o grupo se constitui em um espaço privilegiado de diálogo sobre aspectos da soropositividade, o que normalmente não seria possível em casa, no trabalho, nas instituições religiosas e em outros espaços de socialização mencionados.
O surgimento do grupo Flor de Lótus responde a uma demanda de seus primeiros frequentadores em conviver com outras pessoas que experimentam dificuldades semelhantes que a vivência com aids impõe. Segundo o relato de nosso interlocutor, para lutar contra o vírus havia o tratamento medicamentoso; no entanto, os medicamentos não abarcavam todos os efeitos que a aids produzia na vida dessas pessoas. Com relação aos grupos de interação no interior da ONG Arco Íris, sabe-se que as organizações não governamentais, de forma geral, têm contribuído como polo articulador ou rearticulador das PVHA em novas redes sociais (Castro e Silva, 2009). Katz (1981), ao falar do surgimento de grupos de mútua ajuda de forma geral, aponta em seu bojo a percepção por parte de seus iniciadores de necessidades não satisfeitas pelas instituições sociais existentes.
Podemos inferir, de acordo com o que conhecemos sobre o modelo biomédico de atenção à saúde, que as pessoas não têm encontrado espaço para expressar a complexidade interna própria da vivência com aids nos serviços de saúde tradicionais. O campo da saúde tem sido marcado por intervenções balizadas por certo exercício do poder-saber técnico, com efeito de produção do outro que é objeto de intervenção e não um sujeito de relação. Esse outro é desprovido de singularidade, desejo, saber e história (Pinheiro e Guizardi, 2004). O interesse médico, desde a descoberta da anatomia patológica, se voltou para as estruturas internas do corpo (Foucault, 2004). A relação entre médico e paciente se estabelece à medida que esse último é portador de uma lesão, a importância do sujeito sendo secundarizada.
A segunda contribuição dos grupos que estudamos diz respeito a seu caráter educativo e informativo. Os grupos foram reconhecidos como espaços educativos e de incentivo à continuação do tratamento. As intervenções informativas de ambos os grupos giram em torno de temas como os processos físicos que acontecem com um indivíduo acometido pelo vírus, alimentação, sexualidade, direitos da pessoa vivendo com HIV, medicação e prevenção de doenças, entre outros. A socialização de informações é uma das iniciativas essenciais para a autonomia do indivíduo sobre sua trajetória de saúde. Diferentes definições o retratam como um processo em que o indivíduo firma seu controle sobre os fatores que afetam a sua saúde, aumentado as possibilidades de mudar sua trajetória (Riger apud Carvalho e Gastaldo, 2008; Teixeira, 2002). No caso das PVHA, esse processo tem relação com um bom seguimento do tratamento. Segundo Paiva e colaboradores (2000), adesão implica apropriação do tratamento por parte da pessoa infectada. O paciente aderente está comprometido com o tratamento; comprometimento esse que decorre da compreensão do que a medicação e os cuidados paralelos significam, além de sua eficácia.
Esse trabalho pedagógico parece ser de extrema importância na ONG Arco Íris, dado o perfil de seus frequentadores: a maioria tem baixa renda e escolaridade, o que alimenta cenários de vulnerabilidade para a baixa adesão ao tratamento (Reynolds e col., 2004). No grupo Flor de Lótus esse trabalho educativo também foi citado como contribuição importante do grupo, visto que, segundo alguns participantes, os serviços de saúde não têm sido espaços de acesso a esse tipo de informação.
Quando perguntados diretamente se percebiam algum impacto da participação no grupo sobre o uso das terapias, uma boa parte dos frequentadores relatou algum tipo de benefício. Algumas narrativas revelam uma inicial descrença ou dúvida na eficácia da medicação para o bem-estar, transformada, posteriormente, em uma concordância esclarecida em tomá-la. Frequentadores que declararam já serem bons aderentes antes de ingressarem no grupo concordaram que ele incentiva a manutenção do comprometimento com a medicação.
[...] Eu achava assim: será que esse remédio vai valer a pena mesmo? Será que num vai? Mas depois que eu entrei no grupo que eu vi que o remédio vale a pena e que se você não tomar, você morre. Pelos exemplos que eu vi aqui, de gente que não tomava e já faleceram, aqui do grupo. Então eu achei que o grupo dá uma fortificada em você, na adesão de remédio. E aqui também tem palestra sobre adesão de remédio, que remédio faz bem (Entrevistado 1).
Dentro do campo da psicologia, sabe-se que frente à situação da soropositividade alguns indivíduos respondem à doença com base no enfrentamento, entendido como a construção de respostas originais e comportamentos, aproximando-se do fator estressor e a priori estranho. Outros respondem de forma a evitar e se afastar de tudo que os faça lembrar de que são portadores do aids (Seidl, 2001; Faustino e Seidl, 2010). Sabemos que a negação da doença está relacionada a níveis de adesão abaixo dos necessários e ao abandono do tratamento; por outro lado, a proximidade e familiaridade com o HIV/aids são características das pessoas consideradas aderentes (Cardoso e Arruda, 2004; Faustino e Seidl, 2010). Nesse sentido, consideramos que a dinâmica dos grupos estudados — trabalho informativo aliado ao encontro entre pares — opera uma aproximação das pessoas com sua doença, o que pode ter efeitos positivos sobre o seguimento do tratamento. Ainda que os grupos não recusem as estratégias de enfretamento baseadas na religiosidade evocadas por alguns participantes — em que a cura e o bem-estar viriam pela fé (Seidl, 2001) — predomina, no âmbito dos grupos, o enfrentamento com foco na doença.
Em casos de não aceitação da aids, os grupos se mostraram hábeis em lidar com elementos subjetivos que dificultam o início e um bom seguimento do tratamento. O aporte mais relatado por profissionais e frequentadores dos dois grupos foi a recuperação da autoestima, de uma melhor imagem de si mesmo após a entrada no grupo. Segundo Vasconcellos e colaboradores (2003), a autoestima é um elemento que auxilia na organização de respostas contra a depressão e em favor do autocuidado, o que envolve a observação do tratamento. Acompanhamos igualmente histórias de pessoas que retomaram sonhos e trajetórias profissionais dentro do grupo, após um período de inatividade ou de renúncia a esses projetos, corroborando os resultados de Souza e Vietta (2004):
[...] fiz uma faculdade graças ao incentivo de amigos do grupo (Entrevistado 7).
Voltei a estudar com o apoio do grupo (J., numa das reuniões do grupo Arco Íris).
A participação no grupo representa para alguns frequentadores uma transformação que vai além do cuidado com a doença. Assim como assinalou Godbout (1999) a respeito do trabalho dos alcoólicos anônimos, algumas pessoas entrevistadas vivenciaram transformações comparáveis aos ritos de iniciação descritos pela antropologia. O depois sendo um período não apenas de mais cuidado com a saúde e aceitação da doença, mas também de uma nova atitude mental e novos empreendimentos pessoais, extrapolando o próprio campo de produção da saúde. Por outro lado, pode-se perceber que nesses grupos se desloca a condição de vitimização ou culpabilidade que se atribui a esses pacientes e a construção de novos processos identitários nos quais vozes individuais e vozes coletivas redimensionam a condição da soropositividade. A noção de “eventos críticos” de Veena Das e Ranendra Das (Das e Das, 2007) pode iluminar a ressignificação da vivência da aids em grupos de apoio e os momentos de ruptura a eles atribuídos a partir da vivencia do sofrimento em sua dimensão social.
Grupos de interação como espaços alternativos de produção de saúde
Além de apontar as contribuições dos grupos, é importante expor algumas considerações sobre as características da produção de saúde nas interações grupais estudadas. Essas considerações se referem, sobretudo, ao grupo Arco Íris, dentro do qual pudemos empreender um encontro etnográfico.
As reuniões de mútua ajuda são conduzidas por uma psicóloga ou uma assistente social. Em algumas reuniões existem temas predefinidos, em outras trata-se de contar a vida pessoal, de forma menos organizada. As facilitadoras introduzem o tema da reunião ou questionam os participantes sobre os acontecimentos pessoais e aqueles relacionados à enfermidade das últimas semanas. A partir daí, começam a aparecer histórias pessoais do cotidiano da vivência com a aids.
Nesse grupo, vimos frequentadores e facilitadores compartilharem vivências de si mesmo e de outros sobre diferentes temas relacionados ao viver com aids e sobre temas que extrapolam a enfermidade. A sua dinâmica pedagógica envolve narrativas e exemplaridades. Como observamos nas reuniões do Arco Íris, para os participantes que expõem suas dificuldades e problemas a respeito de um tema há sempre uma mobilização do grupo para encontrar alternativas para contornar ou resolvê-los. Nesse momento, tem-se um ambiente composto por vários “terapeutas”. Essa troca faz do grupo um espaço onde todos podem ensinam e todos podem aprendem. Um lugar para encontrar soluções e saídas conjuntamente, o que sugere uma inspiração na tradição dialógica de educação de Paulo Freire (Silveira e Ribeiro, 2005). Em suma, utiliza os recursos e as experiências dos próprios participantes no enfrentamento da doença, num espaço de dádivas e reciprocidades.
Godbout (1999) sugere que, longe de estar restrita às sociedades antigas, a dádiva tem lugar nas sociedades contemporâneas e os grupos de mútua ajuda seriam um desses lugares onde esse “sistema de circulação de bens e serviços”, que se opõe à lógica mercantil de troca, pode ser observado. Reconhece-se no interior desses grupos o ciclo “dar-receber-retribuir” entre estranhos (no sentido de não serem parentes ou amigos a priori), sem objetivo lucrativo ou equivalência contábil nas trocas entre os pares ou entre frequentadores-facilitadores. Esse ciclo da dádiva é o produtor das relações entre os frequentadores e, ao que parece, o mantenedor da própria existência do grupo. Grupos como o Arco Íris ou os alcoólicos anônimos, citados por Godbout (1999), visam mais a solução e o diálogo sobre condições problemáticas que o prazer do vínculo. No entanto, segundo o autor, é muitas vezes no próprio vínculo que se encontra a solução, como ilustram os relatos sobre a importância percebida do suporte social e da (re)criação de redes sociais enquanto elementos produtores do autocuidado. A participação em grupos de mútua ajuda promove neoidentificações que podem funcionar como contingente de angústias para os participantes (Souza e Vietta, 2004).
As facilitadoras parecem desempenhar um duplo papel dentro do grupo. Em algumas ocasiões, se valem de seu saber-poder profissional para orientar o comportamento e a percepção dos frequentadores, marcando o lugar de separação entre o “terapeuta” e o paciente. Em outros momentos, narram situações pessoais próprias para ajudar na busca de soluções a partir de exemplaridades concretas. Houve casos ainda em que situações-problemas pessoais das facilitadoras geraram reação coletiva e mobilização do grupo para compreensão e resposta. Nesses momentos, a hierarquia facilitador-frequentador se tornava bastante fluida.
Em que pese a presença de profissionais ligados aos cuidados da saúde nos grupos pesquisados — diferentemente do caso dos grupos de AA estudados por Godbout (1999) — pode-se afirmar, ao menos no que se refere à dinâmica do Arco Iris, que a hierarquia profissional-paciente é mitigada. Não existe o tempo todo de um lado o doente, o cliente e do outro aquele que cura, o sábio. Tais papéis se alternam e pode-se dizer que a dádiva circula entre os frequentadores claramente, mas também entre esses e os facilitadores em alguns momentos. Também vale ressaltar que há momentos em que as facilitadoras exercem papel de mediadoras da conversa entre os participantes, reforçando e promovendo pontos levantados por eles, visando claramente orientar comportamentos. No entanto, há outros momentos em que as trocas — e a dádiva — circulam sem a interferência ou participação das profissionais em questão.
O sujeito doente, pouco presente no encontro médico tradicional, retoma importância junto com sua fala no processo de produção de saúde no interior do grupo, o que, acredita-se, facilita a criação de vínculos de confiança e a compreensão das necessidades de cada participante (Silveira e Ribeiro, 2005). Nesse grupo também pudemos perceber que na relação estabelecida entre facilitadores e frequentadores há espaço para a afetividade. Sorrisos, abraços, conversas informais sobre temas cotidianos entre facilitadores e frequentadores foram uma constante enquanto convivemos com o grupo.
Em oposição ao modelo de produção de saúde das instituições de atendimento da área — reducionista e fragmentador — a dinâmica dos grupos de mútua ajuda privilegia uma concepção mais holística do ser humano, levando em conta sua experiência pessoal da doença. Para a compreensão do trabalho dos grupos que aqui são objeto de estudo, o enfoque de Kleinman (1980) sobre a experiência individual da doença traz importantes subsídios. Os conceitos de disease e illness contribuem para o entendimento das dimensões objetiva e subjetiva da doença. Atribui-se o termo disease à doença tal como a concebe a medicina moderna: uma anormalidade no funcionamento de órgãos ou sistemas orgânicos. Já illness se refere à experiência e percepção do paciente sobre a doença. Esse conceito atenta para os significados que o indivíduo atribui aos sintomas experimentados e lembra que o meio cultural exerce forte influência na interpretação desses sinais. A dinâmica dos grupos estudados consegue abarcar a experiência pessoal da vivência com o vírus da aids — a illness — as percepções sobre a doença e o tratamento. A pessoa soropositiva não é só um “tomador de medicamento”. Interessa à dinâmica dos grupos o que os frequentadores acham da medicação, se conseguem tomá-la conforme estabelecido pelo médico e como convivem com a aids.
O “programa” (Katz, 1981) dos dois grupos estudados não foca unicamente a adesão à medicação, mas adesão a uma atitude de autocuidado, o que envolve o tratamento. A socialização de informações e o incentivo ao autocuidado, propiciado pelas dinâmicas dos dois grupos, dão a possibilidade ao frequentador de realizar escolhas informadas (Paiva e col., 2000). As facilitadoras do grupo Arco Íris reconhecem que o grupo abriga pessoas consideradas aderentes e outras com mais dificuldades ou relutantes para tal. O que o grupo faz é garantir acesso à informação de qualidade de forma menos impositiva que outros tipos de intervenção em saúde, estimulando uma reestruturação na forma como os frequentadores apreendem sua condição de pessoa com HIV/aids — o que envolve elementos ideológicos — e auxilia o sujeito a encontrar formas de se engajar no tratamento. Não existe solução mágica, aponta uma facilitadora do grupo Arco Íris.
A persistência do estigma no mundo lá fora e a cidadania mais onerosa que a aids impõe (Sontag, 1989) se configuram fatores limitantes para uma melhor vivência com aids e para adesão à medicação. Em todas as reuniões do grupo Arco Íris percebemos que outro ponto do “programa” (Katz, 1981) é a promoção de uma constante associação entre aids e vida, ao contrário da associação mais difundida entre aids e morte. Desconstruir as metáforas negativas que vigoram sobre a aids é incentivado pelos frequentadores mais veteranos e engajados. Juntamente com as facilitadoras, promovem a afirmação de “identidades clínicas” (Valle, 2002) mais positivas que a do aidético, como a de soropositivo e de pessoa vivendo — em oposição a morrendo — com HIV/Aids.
Não foi objetivo desta pesquisa ter uma medida exata da modificação dos comportamentos em relação aos medicamentos. Por meio dos relatos de frequentadores e facilitadores pudemos apreender os potenciais aportes dos grupos estudados para a observância do tratamento. Admitindo o modelo de atenção à saúde vigente, concordamos com Souza e Vietta (2004) ao afirmar que as pessoas vivendo com aids que estiveram nesses grupos contam com recursos extras no enfrentamento da doença. Pelos aportes que pudemos observar e analisar, acreditamos que os grupos de mútua ajuda estudados são espaços potencialmente benéficos para pessoas aderentes ou com grandes dificuldades de adesão; para os engajados e compromissados com uma nova normatividade (Cardoso e Arruda, 2004); e para os que ainda se encontram sob o impacto da negação. O convívio com a diferença de percepções, as experiências vividas, os sucessos e os desafios, os momentos difíceis parecem ser elemento mobilizador para ambos os casos. Em algumas falas, percebemos que o fato de ver os outros bem, felizes ou ver os outros mal, no hospital tem impacto sobre suas ações. Por outro lado, aqueles que já estão vivenciando uma nova normatividade são fortalecidos ao ajudar os outros e têm apoio nos momentos difíceis ao longo da vivência prolongada com a aids (Souza e Vietta, 2004).
Os grupos em questão dão conta da dinamicidade da adesão ao abrir espaço para o tratamento desses momentos difíceis, de vulnerabilidade para a não adesão ou abandono, como conflitos pessoais e problemas de saúde. Sabe-se que tanto a adesão à medicação quanto aos serviços de saúde implicam desafio permanente, de situação em situação, tanto do ponto de vista dos indivíduos como dos serviços que os apoiam (Paiva, 2000). Consideramos que a participação da pessoa vivendo com HIV/aids em grupos de mútua ajuda, logo quando do diagnóstico, pode auxiliar desde cedo na construção de uma vivência protagônica e saudável da doença, evitando, infecções oportunistas e a “queima” de esquemas de medicação logo no início.
Assim, afirmamos os grupos pesquisados como uma alternativa de produção de saúde, reforçando uma rede de suporte que se articula com as orientações obtidas nos serviços de saúde. Entendemos que a grande peculiaridade da atuação desses grupos é terem se mostrado capazes de abarcar a complexidade da vivência com aids, atuando sobre a doença não apenas como fenômeno físico, mas também enquanto fenômeno que atinge o indivíduo em seus projetos pessoais e em suas relações sociais. Iniciativas grupais como as pesquisadas são estratégias de fortalecimento de uma abordagem multidisciplinar, que supere o atendimento centrado na racionalidade clínica e a compartimentalização da atenção à pessoa vivendo com HIV/aids.