Introdução
O objeto deste estudo foram as transformações de conhecimentos e práticas de agentes comunitários de saúde na área do consumo prejudicial de drogas, a partir de processo educativo que objetivou problematizar as concepções e práticas voltadas para o consumo prejudicial de drogas na atenção básica em saúde e oferecer subsídios para as práticas nessa área.
O estudo tomou como pressuposto que o modelo dominante na atenção básica, de cunho biomédico e curativo, se coaduna com o modelo da “guerra às drogas”, de cunho moralista, e dessa forma não oferece subsídios para ações voltadas à transformação das situações de consumo prejudicial de drogas, nos territórios de abrangência de unidades básicas de saúde.
A operacionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) vem se pautando pela reestruturação da atenção básica, cujo modelo principal, de acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde, encerra-se na Estratégia de Saúde da Família (ESF), que tem como princípios: adscrição da clientela, territorialização, diagnóstico da situação de saúde da população e planejamento baseado nas necessidades de saúde da realidade local (Brasil, 2012).
Historicamente pautados no modelo biomédico, os processos de trabalho na ESF estão organizados por programas, com a finalidade de extensão de cobertura a grupos de risco e atenção a demandas relativas a problemas de saúde já instalados. Nessa perspectiva, têm ficado à margem da atenção segmentos como os jovens, para os quais se destinam poucas ações específicas, relacionadas principalmente a metas de diminuição da gravidez na adolescência e das doenças sexualmente transmissíveis. Também ficam à margem problemas como o envolvimento prejudicial com drogas, cuja presença é marcante nos territórios periféricos de atuação da ESF (Calipo e Soares, 2008; Coelho, 2012).
A Política Nacional de Atenção Básica de 2012 ensaia dar algum encaminhamento a essa deficiência propondo que a nova política agregue ações voltadas para escolares do ensino público básico através de mais um programa, o Programa Saúde na Escola, repetindo a velha fórmula programática, desta vez propondo integrar trabalhadores da saúde e educação, a partir da adesão de gestores ao programa (Brasil, 2012). Nessa direção, também foram introduzidos na ficha diária, que contabiliza a produção na atenção básica do médico e da enfermeira, marcadores de atendimento a usuários de álcool e de outras drogas no sentido de induzir práticas nessa área (Brasil, 2012).
Muito se tem dito sobre a necessidade de inovar de forma a fomentar a transformação das práticas de atenção básica, em resposta a necessidades de saúde (Duarte, 2012). O fato é que até o presente os trabalhadores na atenção básica e particularmente os agentes comunitários de saúde, que diariamente convivem com os problemas relacionados ao consumo de drogas, sentem-se despreparados para lidar com eles, sem conseguir localizar a essência desse despreparo (Coelho, 2012).
Os problemas com a formação de profissionais para atuar na área de drogas vêm sendo bem documentados na literatura há vários anos. Anderson (2009) concluiu que há necessidade de formação e treinamento de profissionais de saúde, que se encontram pouco aptos a lidar com o problema. Brown e colaboradores (2013) observaram que a maioria dos cursos de graduação e residência em medicina nos Estados Unidos não aborda a temática. Outro estudo apontou que em média 80% dos cursos de odontologia dos Estados Unidos e Canadá abordam o tema das drogas, no entanto apenas as substâncias legais (álcool, tabaco e psicotrópicos) são referidas nos currículos, sendo que o único ângulo tratado é o de dependência (Huggett, 2011).
Nos cursos de enfermagem, a situação não é diferente, com deficiência comprovada de formação nessa área, o que vem gerando propostas de formação complementar (Burns e col., 2012). A importância da detecção e do acompanhamento do uso abusivo de álcool e outras drogas na atenção básica foi tema da pesquisa de Souza e Ronzani (2012), cujos resultados problematizam capacitações para enfermeiros (como o Supera – Sistema para Detecção do Uso Abusivo e Dependência de Substâncias Psicoativas: Encaminhamento, Intervenção Breve, Reinserção Social e Acompanhamento) e sugerem a necessidade de discussão permanente sobre a temática, o que possibilitaria reflexão sobre as experiências cotidianas e traria elementos para transformação das práticas.
Para as equipes de saúde que atuam nas áreas de abrangência de unidades de saúde da família, há ainda um agravante, pois os trabalhadores se ressentem de entrar em contato com consumidores de drogas, particularmente quando as drogas são ilícitas, em função das questões sociais ligadas ao narcotráfico (Coelho, 2012).
Estudo recente concluiu que profissionais de saúde que atuam na atenção básica compreendem o uso de drogas como uma questão de ordem moral, o que dificulta sobremaneira sua atuação junto a esse grupo (Oliveira e col., 2013).
Considerações teóricas
O referencial teórico adotado neste estudo para explicar o consumo prejudicial de drogas na atualidade, e fundamentar o processo educativo analisado, explica a natureza fetichista da droga, um produto de mercado altamente lucrativo, e dessa forma define a condição de usuários de drogas como a de consumidores e não de “desviantes”, como na concepção funcionalista (Soares, 2007; Soares e Campos, 2009; Santos e Soares, 2013).
Nessa perspectiva teórica, a droga é parte de sistema complexo de produção, distribuição e consumo, que encontra fortes incentivos para ser ofertada no mercado, visto que produz cifras invejáveis, que funcionam como dinheiro mágico para o capital financeiro (Arbex Jr., 2005).
Ao mesmo tempo, drogas são demandadas nas diferentes classes sociais, pois respondem a necessidades engendradas no processo de formação da subjetividade atual (Birman, 2006), seja de enaltecimento do prazer imediato (Costa, 2004), seja para atenuar os desgastes advindos da desproteção social e da impossibilidade de perspectivar o futuro (Soares e Campos, 2009). O que não implica em desfechos semelhantes nas diferentes classes sociais já que as drogas são distintas, a repercussão é também muito diferente e os recursos acionados são também muito díspares, refletindo a desigualdade social (Soares, 2007).
Nesse quadro, o Brasil se apresenta como país “produtor, consumidor e exportador de drogas, além de oferecer novas alternativas de drogas para o mercado interno e externo” (Gehring, 2012, p. 161 ).
Tal quadro explicativo sobre a problemática do consumo atual de drogas leva a formular propostas de políticas estatais para muito além do setor saúde, que congreguem políticas de emprego, moradia e lazer, entre outras, que teriam potencial para transformar situações no âmbito dos determinantes dos desfechos prejudiciais em saúde (Soares e col., 2009).
A educação emancipatória, orientada pela pedagogia histórico-crítica, foi tomada como referência metodológica para o desenvolvimento do processo educativo. A dialética proposta por essa pedagogia procura captar a complexidade, a dinamicidade e o movimento dos elementos da totalidade social, a partir de elementos concretos das práxis dos participantes, nos seus espaços de atuação (Saviani 2003, 2005a, 2005b).
Nessa perspectiva, ações para transformar o consumo prejudicial de drogas entre jovens devem ser construídas em processo de desalienação e reconstrução de conceitos (Almeida e col., 2013). Ademais, a finalidade do processo educativo é a discussão e o posicionamento político, realizados através da problematização da realidade apresentada pelos educandos e mediada pelos educadores (Saviani, 2003, 2005a, 2005b).
O objetivo do presente estudo foi avaliar as transformações de concepções e propostas de práticas dos ACSs participantes de processo educativo acerca das ações em saúde voltadas a pessoas que consomem drogas de forma prejudicial nos espaços onde atuam na atenção básica (AB).
Método
Este estudo trata dos resultados de subprojeto que integra projeto mais amplo de pesquisa-ação sobre formação do agente comunitário de saúde para o desenvolvimento de práticas que incidam sobre o consumo prejudicial de drogas na atenção básica.
A pesquisa foi realizada no distrito de Sapopemba, município de São Paulo, com agentes comunitários de saúde de quatro unidades básicas de saúde, organizadas segundo a Estratégia Saúde da Família. Os dados deste subprojeto foram coletados antes e após processo educativo que constou de nove oficinas educativas mediadas por dois professores, dois pós-graduandos e um estudante de graduação. O instrumento para a coleta de dados, denominado de formulário pré-pós-teste, continha questões abertas. Participaram do processo educativo e preencheram os formulários 16 agentes comunitários de saúde.
A partir de experiências anteriores (Soares e Campos, 2009; Soares e col., 2009), procurou-se seguir procedimentos capazes de captar as transformações ocorridas durante o processo educativo. Dessa forma, o instrumento de avaliação constou de perguntas, que embora objetivassem averiguar objetos comuns, foram formuladas de maneira diferente no pré e no pós-teste. Dado o caráter participativo do processo educativo, procurou-se no pós-teste colocar perguntas que estimulassem a reflexão sobre as experiências trazidas pelos ACSs durante o processo educativo. As questões do pré-pós-teste versaram sobre: explicações para o consumo e tráfico de drogas; agentes envolvidos na cadeia de comercialização das drogas; mitos, preconceitos e estereótipos sobre consumidores de drogas; ações existentes na área da saúde; e propostas de ações junto a jovens.
As respostas às questões do pré-pós-teste foram analisadas de maneira transversal, ou seja, a partir das mudanças que ocorreram nas formulações dos ACSs sobre as temáticas levantadas nas questões do pré-pós-teste, as quais foram sintetizadas nas seguintes categorias empíricas: concepção de consumidores de drogas e determinantes do uso; políticas e práticas sociais para o cuidado em saúde.
Dessa forma, sem perder de vista o referencial teórico, que forneceu o quadro analítico para os achados, procurou-se observar no material discursivo escrito, a partir da prática de tematização proposta por Bardin (1977), as homogeneidades e heterogeneidades, entre a base teórica e a base empírica, conforme proposta de Maingueneau (1993), desenvolvida em pesquisa por Alexandre e Salum (1998).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP e da Prefeitura do Município de São Paulo, que permitiu a realização da pesquisa e orientou os procedimentos para a participação dos ACSs, que foram convidados pelos pesquisadores a participar do processo educativo. Eles assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e tiveram liberdade para se afastar do processo em qualquer momento. Não havia qualquer relação hierárquica entre os pesquisadores e os agentes comunitários de saúde que participaram da pesquisa.
Resultados
Concepções sobre consumidores de drogas e determinantes do uso
Antes do processo educativo, os usuários de drogas foram descritos pelos participantes como sujeitos jovens, de baixa renda e até mesmo como moradores de rua, que sofrem influência de amigos e buscam autoafirmação e satisfação pessoal. São vistos também como sujeitos curiosos, em especial sobre as drogas e que procuram no consumo a fuga da realidade. Geralmente estes jovens provêm de famílias com conflitos internos, que encontram nas drogas uma maneira de esquecer suas desavenças, sendo os pais apontados como culpados pelo uso de drogas e que negam aos filhos o apoio necessário ao enfrentamento dos problemas. Os ACSs culpabilizavam os usuários de drogas, julgando-os moralmente como pessoas sem caráter, sem força de vontade e egoístas. Percebe-se que os usuários de drogas foram rapidamente enquadrados pelos sujeitos da pesquisa em estereótipos socialmente disseminados e que repercutem na formação do senso comum nessa área.
Já no pós-teste notaram-se mudanças significativas acerca dessas concepções: o usuário passou a ser um sujeito aflito com as dificuldades advindas do modo de vida contemporâneo como a instabilidade no trabalho. Nesse sentido, o tráfico de drogas passou a ser compreendido como mercado de trabalho para aqueles que têm poucas opções dadas as condições precárias de educação e de vida em que estão inseridos. O usuário de drogas encontra no consumo e na comercialização das drogas uma forma de suprir suas necessidades pessoais e financeiras.
Algumas expressões de senso comum persistiram no pós-teste, como chamar o usuário de drogas de doente. Essa concepção era mais forte nos ACSs que cursavam o técnico em enfermagem, evidenciando a influência das concepções da Saúde Pública em relação a essa problemática. Apesar dessas expressões se mostrarem bem demarcadas, percebeu-se um novo sentido para as concepções sobre consumo e usuário de drogas. Tais concepções perpassam a compreensão da droga como mercadoria e o usuário como consumidor de drogas, uma vez inseridos no modo de produção.
Políticas e práticas sociais para o cuidado em saúde
No pré-teste verificou-se que muitos participantes acreditavam que as práticas de saúde voltadas ao consumo de drogas deveriam se focar em orientações aos jovens e às famílias. Para tanto, as estratégias salientadas reiteravam velhos métodos conservadores como palestras, depoimentos de ex-usuários de drogas, mas também atividades sociais como a de exibição de filmes.
Os espaços destacados para essas práticas foram escolas, unidades básicas de saúde, igrejas e bares. Além dos espaços institucionais presentes no bairro, os ambientes comerciais foram incluídos porque comercializam drogas ilícitas, além de bebidas alcoólicas.
Ações proibitivas e coercitivas como maior rigor nas leis e mais policiamento nas ruas foram mencionadas para controlar o consumo e para prevenir o uso de drogas. Apenas dois agentes mencionaram práticas sociais mais amplas como a necessidade de construção de espaços de lazer aos jovens, promoção de oficinas e cursos profissionalizantes, luta contra a desigualdade social e maior presença do Estado no território.
Por outro lado, ainda no pré-teste, quando questionados sobre suas práticas diante do usuário de drogas, os agentes acreditavam ter pouca possibilidade de atuação junto a essa população. Os discursos revelaram um trabalhador que sente medo de se expor ao consumidor de drogas. Logo, a maioria dos participantes tentava “ignorar” o consumo de droga no território e/ou o naturalizava. Como havia culpabilização do usuário de drogas, os ACSs acreditavam que as práticas de enfrentamento do problema apenas seriam viáveis na medida em que os usuários demandassem algum tipo de ajuda ou quisessem se submeter a tratamento.
No pós-teste os agentes afirmaram que as práticas de educação sobre drogas mais eficazes seriam aquelas pautadas em discussões interdisciplinares e que abordassem os determinantes sociais. As propostas de práticas foram mais críticas em relação ao papel do Estado no território, destacando-se que as melhores estratégias seriam aquelas que atraíssem os jovens e despertassem seu interesse. Para tanto, os instrumentos salientados foram: jogos educativos, oficinas, exibição e discussão de filmes, encenações teatrais, músicas e construção de espaços comunitários para lazer. Em relação às tarefas do Estado, os participantes propuseram cursos profissionalizantes e maiores oportunidades de empregos.
A partir do processo educativo, os ACSs referiram compreender as contradições entre o objeto do processo de trabalho proposto na atenção básica e a realidade do consumo de drogas no território em que atuavam. Notou-se que houve a superação do paradigma que domina as práticas de prevenção proposta pela Saúde Pública, que focaliza o problema no usuário e/ou no traficante, buscando reprimir a demanda. Revelaram acreditar em ações que fossem potentes para ir ao encontro das necessidades dos usuários, através de práticas de educação sobre drogas menos conservadoras e ingênuas, socialmente mais abrangentes – emancipatórias e críticas – e que fossem capazes de superar as práticas dirigidas pelo paradigma da “guerra às drogas”.
Paradigma está sendo usado no sentido de modelo orientador de ações no campo das drogas. Szasz, ao apresentar o livro de Wisotsky (1990), diz que a “guerra às drogas” é uma guerra dirigida a pessoas que vendem, compram e consomem drogas, marcadas como ilícitas pelos governos. Na introdução do texto, Wisotsky (1990) atribui as origens dessa guerra nos Estados Unidos, aos governos Nixon e Reagan. Dally (1995) generaliza a discussão mostrando que se trata de uma orientação seguida por governos, baseada na transmissão de ideias aterrorizantes sobre as drogas que desviam a atenção dos problemas reais e constituem justificativas para interferir em outras nações. A historiadora acredita que a “guerra às drogas” é mantida e reproduzida por médicos, políticos e trabalhadores do setor público, que ajudam a disseminar ideias erradas sobre os usuários de drogas. A própria Organização Mundial da Saúde, na opinião da autora, tende a reproduzir ideias que culpabilizam os usuários de drogas pelos problemas que cercam o consumo.
Diversos autores discutem as consequências da “guerra às drogas” na área da saúde e educação. A partir desses trabalhos, Soares e Jacobi (2000) ponderaram sobre os alicerces dessa orientação, mostrando que ela tem concepções, ideologia, métodos e objetivos particulares, que compõem um todo articulado. Trata-se de orientação que objetiva privilegiar a abstinência total de drogas como comportamento desejável, que veicula informações tendenciosas, que fomenta o menosprezo a usuários e difunde intolerância e preconceitos, utilizando métodos amedrontadores e punitivos de controle.
Os agentes comunitários de saúde mostraram que enfrentar o consumo prejudicial de drogas é na verdade reconhecer a complexidade do fenômeno e agir de forma crítica e criativa sobre ele ao invés de “medicalizá-lo”. No entanto, sentem-se despreparados e mal apoiados para atuarem nesse sentido. O Estado não está presente (como deveria estar) nos territórios mais empobrecidos, sendo a unidade básica de saúde, às vezes, a única instituição a se recorrer, inviabilizando a implementação de práticas intersetoriais que incidiriam sobre as raízes do problema e dificultando iniciativas de trabalhos educativos que apoiem a reflexão dos moradores.
Discussão
Os ACSs no início do processo educativo reproduziram o estereótipo do consumidor de drogas como um sujeito fraco, desviante, doente ou marginal. Essa última característica foi mais marcante quando o consumidor era também traficante.
Tais afirmações advêm da moderna Saúde Pública, dominantemente fundamentada na perspectiva multifatorial do processo saúde-doença, que não coloca em evidência as contradições sociais que estão na base dos desgastes dos diferentes grupos sociais, conforme submetidos a diferentes condições de reprodução social. A moderna Saúde Pública toma como objeto os problemas decorrentes da utilização de drogas por sujeitos individuais que, quando coletivizados fazem parte de grupos caracterizados como vulneráveis ou de risco. Essa vertente considera que os usuários devem arcar com os custos sociais da intolerância e da proibição, mecanismos incentivados pela “guerra ‘às drogas’” (Soares, 2007).
Tal vertente ajuda a construir e disseminar estereótipos que por sua vez penetram no dia a dia e ganham a solidez de convicções de senso comum. Esse conjunto de ideais é retroalimentado pelo sistema drogas, que cerca os usuários (Baratta, 1994), que assumem também a condição de “desviantes”, a eles atribuídos. Conforme Velho (1999), cria-se a categoria de acusação de drogado, que ajuda a solidificar esse sistema fechado, no qual a sociedade atribui todos os seus males ao acusado, já que droga enfraquece a moral.
Para agravar, sob a égide neoliberal, adotada pela moderna Saúde Pública, os direitos sociais deixaram de ser considerados como universais, conforme a Constituição de 1988, para serem concebidos como “benefícios sociais” focalizados aos “carentes”, “vulneráveis”, “em situação de risco”, de “exclusão”. Nessa óptica, saúde é perspectivada como qualidade de vida e ter saúde estaria na dependência de mudar os hábitos alimentares, contar com os benefícios da atividade física, deixar de fumar, realizar exames periódicos, comparecer à administração supervisionada de medicamento e assim por diante (Soares, 2007).
A redução de danos vai sendo incorporada pela moderna Saúde Pública, na sua versão pragmática, como práticas de mudança de comportamento; ou seja, partindo da ponderação de que o consumo de drogas é impossível de ser eliminado por completo e que os usuários de drogas têm direitos sobre seu próprio corpo, as políticas seriam pautadas na diretriz custo-benefício, indicando ações para redução dos problemas que podem surgir em decorrência do consumo, o mesmo procedimento tomado em relação a outros problemas de Saúde Pública, como as doenças crônico-degenerativas (Soares, 2007).
A concepção baseada no paradigma moralista e proibicionista da “guerra às drogas” mantém-se hegemônica, apesar de gerar violência e expor ainda mais o consumidor a problemas sociais (Rodrigues, 2003; Karam, 2003). Tal discurso é reproduzido pelos ACSs apesar de constatarem em suas práticas e vivências cotidianas que essa concepção não se aproxima de sua realidade concreta. Logo, encontram dificuldades para refletir e compreender essa contradição, gerando sentimentos de impotência, medo e insegurança em relação a seu trabalho. Tal dinâmica potencializa ainda mais os processos de alienação do trabalhador (Ribeiro e col., 2004; Santos, 2007; Trapé, 2005).
A avaliação do processo educativo capturou a contradição existente nos discursos dos agentes comunitários de saúde, que transita entre o discurso hegemônico moralista e a realidade social que se apresenta. No início do processo educativo, havia poucos questionamentos sobre a maneira de lidar com as demandas do território. As práticas de saúde dos ACSs eram pautadas nos paradigmas biomédico e de “guerra às drogas” e o consumidor era tomado como doente ou marginal. Ainda que encontrassem consumidores de drogas em suas próprias famílias ou conhecessem as famílias do bairro e suas realidades, que contradizem tais interpretações, continuavam mantendo o julgamento moral desses sujeitos no plano discursivo.
O processo educativo ofereceu um espaço de reflexão acerca do fenômeno das drogas. Foram questionadas as concepções pautadas na perspectiva da moderna Saúde Pública, a de uso de drogas como doença multicausal e a de educação para mudança de comportamento e consequente aquisição de hábitos saudáveis, com responsabilização individual pela saúde. Foi possível responder de forma crítica e coerente, a partir da compreensão da estrutura e das dinâmicas capitalistas atuais, perguntas concernentes aos consumidores de drogas, suas famílias, a posição que ocupam no território, a falta de lazer nos espaços periféricos, com consequente construção de material educativo (Soares e Campos, 2012), processo a ser discutido em outro espaço.
Esse processo tem coerência com os marcos teóricos da Saúde Coletiva, que propõem que as ações educativas tenham caráter participativo e contemplem a discussão das raízes dos problemas de saúde, compreendendo que são as formas de viver e trabalhar das pessoas nas diferentes classes que determinam os desgastes e o adoecimento (Soares, 2007). Nessa perspectiva o indivíduo deixa de ser culpabilizado por sua saúde/doença e passa a ser reconhecido como parte de uma coletividade pertencente a uma determinada classe social situada no contexto histórico, econômico e social da época. Nesse sentido os profissionais de saúde devem buscar o desenvolvimento de formas de instrumentalizar sujeitos e grupos sociais para reconhecer necessidades sociais e demandar do poder público a resposta a essas necessidades (Campos e Mishima, 2005; Soares, 2007).
A partir das discussões mais amplas sobre o consumo de drogas e agregando elementos macroestruturais na compreensão do fenômeno, foram discutidas as agências de socialização como a família, a escola e o trabalho nos bairros periféricos e o suposto papel do Estado como garantidor dos direitos da população. Tais discussões possibilitaram aos agentes comunitários de saúde compreenderem os motivos das contradições em que vivem. No entanto, espaços de formação e reflexão para os profissionais que atuam na atenção básica não se configuram como prioridade ou prática comum de educação permanente na dinâmica de trabalho da estratégia saúde da família. Os raros espaços existentes reproduzem o paradigma biomédico, pautado em metodologias que não estimulam a crítica e tampouco a criatividade. Os profissionais não encontram espaços de reflexão que poderiam ajudá-los a desvencilhar-se das amarras ideológicas engendradas em seu processo de trabalho e formação (Coelho, 2012).
Conforme aponta Trapé (2005), os agentes tendem a reproduzir em seu cotidiano de trabalho, de forma acrítica, as ações e programas. Estes acabam reproduzindo as fórmulas da moderna Saúde Pública que responsabilizam a população por sua própria saúde e qualidade de vida, recorrendo a estratégias de convencimento, baseadas no amedrontamento. A educação em saúde oferecida na atenção básica prioriza a dimensão técnica do trabalho e ações pragmáticas.
Essa formação oferecida aos profissionais da atenção básica é baseada na educação tradicional, que se limita à transmissão de conhecimentos, do educador para o educando, através da exposição de conteúdos, estabelecendo-se uma relação pedagógica verticalizada. Além disso, os conteúdos apresentados são pautados na multicausalidade das doenças, compreensão que explica o processo saúde-doença como atributo individual (Almeida e col., 2013).
Conclusão
Identificou-se que o processo educativo proposto trouxe transformação da compreensão do problema do consumo de drogas, na medida em que os participantes passaram a incorporar elementos macroestruturais da formação social para explicar esse fenômeno. Pode-se concluir que o referencial teórico da Saúde Coletiva sobre o fenômeno do consumo de drogas possibilitou as bases para promover a ampliação da compreensão dos participantes sobre os consumidores de drogas. Forma e conteúdo do processo educativo fez sentido para os participantes.
A avaliação do processo educativo, através de pré-pós-teste, mostrou-se útil na análise das transformações ocorridas, apresentando, no entanto, clara limitação decorrente do fato de os participantes mostrarem dificuldades para expressar-se na linguagem escrita. Percebe-se que o conteúdo semântico das respostas refletiu repertório inculcado há mais longo tempo e não foi suficiente para mostrar a realidade das mudanças na maneira de conceber e agir. Em contrapartida, os participantes expressavam-se com facilidade, de forma natural e espontânea durante as oficinas educativas, o que sugere a necessidade de avaliação processual e não pontual como é o caso do pré-pós-teste. Esses instrumentos não foram capazes de captar todas as mudanças ocorridas no processo e que serão descritas em outro espaço.
Apesar de compreender de forma mais ampla o fenômeno das drogas, os participantes encontram dificuldades em transformar suas práticas cotidianas. O processo de trabalho na atenção básica dificulta o desenvolvimento de práticas criativas, mantendo a produção de práticas reiterativas instauradas pelo modelo biomédico e de “guerra às drogas”.
É importante observar também que o despreparo dos trabalhadores da atenção básica para lidar com a temática das drogas inclui o medo de se lidar com a questão nos territórios periféricos da cidade, cuja dinâmica está enredada na própria dinâmica do sistema de produção, distribuição e consumo de drogas. Conforme se viu neste espaço de formação e se reiteraram diversas vezes em outros momentos, educar para as drogas não requer discutir drogas em si, mas os valores sociais e as formas de trabalhar e de viver atuais, bem como suas repercussões sobre as nossas subjetividades. O consumo prejudicial/compulsivo de drogas é consequência das dinâmicas capitalistas atuais.
O estudo ressalta a importância de processos avaliativos na construção da educação permanente em saúde e levanta a hipótese de que, para a efetiva transformação das práticas de educação sobre drogas, faz-se necessário reorganizar o processo de produção em saúde na atenção básica e problematizar o consumo a partir das realidades sociais em que são apresentadas.