Introdução
No início dos anos 1980, a epidemia ocasionada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (HIV/aids1) incidiu sobre a sexualidade e algumas formas de vivê-la. Com isso, a epidemia empurrou para o espaço público sexualidades e práticas sexuais tidas como dissidentes e pervertidas, uma vez que afrontavam a ordem moral da família monogâmica, nuclear, tradicional, heteronormativa e procriadora (Watney, 1997).
Na interpretação da ala conservadora da sociedade da época (notadamente a norte-americana, na qual a primeira pessoa infectada foi identificada), a aids surge como um castigo, numa reação à curta liberalização sexual, às contestações decorrentes do Maio de 1968, ao Movimento Feminista e ao Movimento dos Homossexuais (Camargo Jr., 1995; Watney, 1997; Green, 2000).
Naquele contexto de ausência de verdades sobre o HIV/aids, a produção discursiva sobre a temática ganhou corpo, principalmente na mídia em geral e na “corrida científica” em busca de explicações, de culpados e de tecnologias biomédicas capazes de aplacar a ação do vírus (Daniel; Parker, 1990; Patton, 1990; Camargo Jr., 1995; Czeresnia, 1995; Watney, 1997). Sendo assim, o HIV/aids acionou no imaginário social a metáfora do combate, tão comum nas narrativas médicas ocidentais (Sontag, 1989). No campo de batalha, o inimigo estava bem delimitado e trazia uma “marca de nascença”: o homem gay, não obstante existissem alvos secundários, como os profissionais do sexo (Patton, 1990).
Diante desse cenário, o pânico sexual criado em torno da aids se espraiou para o mundo, produzindo uma crise social, política e sanitária que imbricava elementos como a morte (biológica e civil), a doença, os fluidos corporais (sêmen e sangue, principalmente), a sexualidade, a família, a moral cristã, a medicina, a mídia etc. Como consequência disso, no campo das Ciências Sociais e Humanas, a epidemia contribuiu para alavancar os estudos sobre sexualidade e comportamento sexual (Vance, 1995), a partir do estudo das diversas facetas da experiência de pessoas que vivem com HIV/aids (PVHA). Destacam-se aqui algumas dessas produções, sem a pretensão de sermos exaustivos na análise.
A aids como tema do dia nos meios de comunicação em massa e o consequente pânico sexual foram analisados criticamente por diversos autores, na perspectiva de que tais produções discursivas diziam mais sobre os valores e a ordem social hegemônica do que sobre os aspectos biológicos, epidemiológicos, psicológicos, sociais da aids (Patton, 1990; Watney, 1997; Camargo Jr., 1995; Biancarelli, 1997; Spink et al., 2001; Soares, 1998). O estigma tem sido abordado em inúmeras pesquisas como traço marcante da experiência de PVHA e as estratégias de enfrentamento e administração, tais como: manter o status sorológico em segredo; selecionar as pessoas que poderiam conhecer sua condição e atuar como cuidadores; e, entre casais sorodiscordantes, o segredo sobre a sorologia do(a) parceiro(a) permite manter as relações familiares, de vizinhança, no trabalho (Maksud, 2012; Pollak; Schiltz, 1987; Seffner, 1995; Weitz, 1990; Zukoski; Thorburn, 2009). O ativismo em HIV/aids, sobretudo nas décadas iniciais da epidemia, exerceu papel fundamental tanto na ressignificação de identidades soropositivas, na construção de espaços de biossocialidade e, notadamente, na atuação política das organizações não governamentais (ONGs) e associações (Silva, 1999; Valle, 2008; 2015; Pelúcio, 2009; Petrarca; Ribeiro, 2015; Follér, 2010; Barros; Vieira-da-Silva, 2016; Pereira; Nichiata, 2011). A relação entre sexualidade, homossexualidades e HIV/aids também foi consideravelmente investigada (Weitz, 1990; Pelúcio; Miskolci, 2009; Guimarães; Terto Jr.; Parker, 1992; Parker, 1997).
Com a “maturidade” da epidemia, outros objetos têm emergido na produção científica sobre HIV/aids pelas Ciências Sociais e Humanas, a saber: a experiência de viver com o HIV como uma condição de longa duração (Burchardt, 2010; Abadia-Barrero, 2002; Serra et al., 2013; Cunha, 2012). Por outro lado, as investigações sobre práticas sexuais (como barebacking2), o uso de aplicativos para busca de parceiros e outras formas de roteiros sexuais têm demonstrado as ações dos sujeitos frente à noção de risco cunhada pela epidemiologia e os dispositivos3 de controle de suas sexualidades (Santos, Iriart, 2007; Silva; Iriart, 2010; Hull et al., 2016). Conforme se pode observar, esta literatura se coaduna a outros campos de conhecimento (epidemiologia, saúde pública, psicologia, medicina) no intuito de compreender como operaram os determinantes sociais, econômicos, culturais e subjetivos dessa epidemia.
Nessa perspectiva, o presente artigo busca aportar ao debate socioantropológico aspectos sobre os relacionamentos sexuais e amorosos de PVHA no atual contexto de cronicidade da infecção e de restrição discursiva sobre a epidemia. Inácio (2016) denomina de restrição discursiva sobre a epidemia o processo de arrefecimento da aids e do HIV nos discursos culturais mais contemporâneos - na Literatura, no Cinema, nas mídias em geral. Faz isso ao analisar o campo de desinteresse social e estético no qual o tema aids foi lançado, na medida em que se ampliaram as estratégias biomédicas e epidemiológicas de enfrentamento da epidemia (medicamentos, testagem rápida e outras) e que a infecção pelo vírus adentrou o rol dos adoecimentos e sofrimentos de longa duração.
Parte-se do pressuposto de que nos últimos vinte anos está em curso um contínuo processo de positivação das PVHA, que se caracteriza pelo deslocamento da aids como doença fatal para uma condição4sem cura, mas com tratamento (Cunha, 2012, grifos da autora). Nesse processo, recai sobre a pessoa a responsabilidade pelo cuidado de si e do outro, ou seja, o imperativo da adesão ao tratamento antirretroviral e da adoção de práticas sexuais consideradas seguras pela política de saúde - leia-se, usar preservativos nas relações sexuais e evitar práticas dissidentes (Zago; Santos, 2013; Cunha, 2012).
Sendo assim, na medida em que o tratamento do HIV/aids possibilita qualidade e ampliação da expectativa de vida e faculta à pessoa vivenciar a condição na intimidade de seu corpo, pode fazer do segredo e do silêncio elementos em torno dos quais se constroem sua experiência com o HIV/aids. Nessa perspectiva, o que se questiona é como as PVHA que mantêm (ou mantiveram) sua condição sorológica em segredo produzem e significam (ou produziam/significavam) estratégias para revelá-la e as formas de enfrentamento das reações dos parceiros amorosos e/ou sexuais diante da revelação.
A partir de narrativas breves em forma de comentários às postagens sobre experiências sexuais e amorosas de PVHA, do autor “soropositivo”5 de um blog, este artigo objetiva compreender os significados atribuídos às estratégias para a revelação da condição sorológica e as formas de enfrentamento das reações dos parceiros amorosos e/ou sexuais a partir dessa atitude. Nessa perspectiva, essas narrativas adquirem dimensão mais ampla, pois na escrita (virtual) de si os seguidores do blog reconstroem discursivamente um conjunto de valores, de representações e de imaginários sociais da aids que, em última instância, se entrecruzam e modelam os agenciamentos desses sujeitos em busca de parcerias e relacionamentos sexuais e/ou amorosos.
Metodologia
Trata-se de estudo qualitativo de tipo documental (Prior, 2011), cujo objeto empírico foi os comentários dos seguidores nas postagens feitas pelo autor de um blog sobre HIV/aids. A escolha deste blog se deve ao fato de ser um dos principais no Brasil a abordar a temática do HIV e manter postagens regulares, bem como um grupo de seguidores assíduos. Assim, o blog foi entendido como um documento que fornece ricas descrições de práticas, costumes e percepções sociais do processo saúde-doença, assim como, rupturas e continuidades nas suas representações ao longo do tempo (Arruda, 2013). O blog também caracteriza-se como espaço público e protegido pelo anonimato virtual. Esse documento revela uma escrita de si que atende a uma necessidade coletiva de compartilhamento de saberes e experiências entre pessoas com condições semelhantes de vida.
O blog estava organizado em quatro sessões: Blog, Artigos, Diários e Notícias. Trabalhamos com as postagens realizadas na sessão “Diários”, entre março de 2011 (criação do página) e março de 2016. Neste período, o autor realizou dezoito postagens, assim distribuídas: 2011 - 01; 2013 - 03; 2014 - 05; 2015 - 06; e até março de 2016 - 03. O autor utilizava os pseudônimos ‘Jovem Soropositivo’ (JS) ou ‘Jovem Paulistano’ (JP) e afirmava ter nascido em 1984 e viver com o HIV desde 2010.
O corpus incluiu os comentários dos visitantes em quatro textos do autor do blog, que versavam, diretamente, sobre o objeto do estudo: “Tudo o que você queria saber sobre sexo oral, mas não tinha coragem de perguntar”, 07/02/2013, 87 comentários; “O dilema do soropositivo”, 18/06/2015, 172 comentários; “Onde está a camisinha?”, 11/07/2015, 134 comentários; e “Primavera e Outono”, 24/09/2015, 102 comentários. Para a composição do corpus foram realizadas as seguintes etapas: 1) identificação e localização das fontes no blog; 2) arquivo do material em formato eletrônico; 3) construção de um banco de dados com o material, contendo: título, data de publicação, número de comentários e texto copiado do blog.
O corpus foi analisado por meio da técnica de codificação temática (Flick, 2009) e compreendeu: 1) descrição breve de cada publicação de JS e os respectivos comentários: autoria (JS ou visitante), no caso dos visitantes o nickname (apelido) utilizado, data e identificação dos tópicos centrais; 2) aprofundaram-se os comentários relativos à postagem mais antiga de JS para obter a codificação dos dados, tendo como base o tema da pesquisa, os objetivos e os pressupostos teóricos; 3) análise dos comentários das outras publicações e, posteriormente, a identificação das unidades de sentido, por meio do agrupamento dos códigos comuns e incomuns. Ou seja, nessa etapa fez-se a primeira fase da interpretação, emergindo as unidades de significados; e 4) passagens do texto foram analisadas, observando-se mais detalhes. Analisado todo o corpus, produziu-se uma tabela na qual se definiram os núcleos de significados. Por fim, tendo como base os núcleos de significados gerados, foram construídas as categorias temáticas.
Foram observados os aspectos éticos estabelecidos na Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde. Nesse tipo de estudo o pesquisador analisa, mas não intervém, o que o configura como de risco mínimo, pois todas as informações já estão publicadas. Além disso, os dados utilizados são de acesso público, estão disponíveis on-line no blog e protegidos pelo anonimato virtual. Por isso, não foi possível caracterizar socialmente os visitantes. Vale ressaltar que a maioria dos seguidores do blog que tiveram seus comentários analisados são sujeitos que vivem com o HIV em segredo, o que não pode ser considerado regra. Pontua-se que as narrativas escritas no blog, quando citadas ao longo deste artigo, são identificadas por um nome fictício, de escolha aleatória dos autores, diferente do nickname utilizado on-line.
Resultados e discussão
Após análise e interpretação do material empírico, emergiram duas categorias: 1) “mas não tive coragem de contar”: o desvelar da condição sorológica; e 2) “e do nada sumiu”: as (re)ações do outro da relação. O conteúdo êmico de cada uma delas é mostrado a seguir.
“Mas não tive coragem de contar”: o desvelar da condição sorológica
Esta categoria expressa as experiências narradas pelos visitantes do blog na convivência com o segredo em torno de suas condições sorológicas e os sentimentos envolvidos na revelação, diante da possibilidade de um relacionamento amoroso. Parte-se do pressuposto de que tais relacionamentos colocam a pessoa em situação de maior proximidade com o outro, o que pode implicar intimidade. Esta, por seu turno, tensiona o segredo e produz a tentação da revelação (Simmel, 2009).
Nas narrativas das PVHA frequentadoras do blog, o segredo se expressou pela inexistência da “coragem de contar” para pessoas com quem se mantinha relações interpessoais mais próximas e/ou íntimas. Tal experiência é modelada num contexto em que a história da aids pode ser dividida entre: a “aids de antes”, narrada de forma catastrófica, avizinhada à morte, como escreveu Helena: “confesso que, quando recebi o diagnóstico, a primeira pessoa que me veio à cabeça foi Cazuza… que eu ia emagrecer… ficar careca... que as pessoas iam me apontar na rua…”; e a “aids de agora”, que ressalta as conquistas do saber médico que foram se acumulando e permitindo crescentes níveis de intervenção sobre a realidade clínica e epidemiológica (Bastos, 2002), conforme se observa no relato de Ariel: “o HIV tornou-se uma infecção crônica que não diminui mais a expectativa de vida e cujos efeitos colaterais do tratamento são bastante toleráveis”. Nessa perspectiva, “a contemporaneidade fez da doença um segredo, um horror que instaura o silêncio como forma” (Inácio, 2016, p. 498) e que permite às PVHA livrarem-se de algumas marcas negativas da “aids de antes”, em um movimento contínuo e intenso de positivação desses sujeitos (Cunha, 2012).
Se nesse contexto da “aids de agora” (Bastos, 2002) cabe à PVHA o silêncio, este último poderia se expressar, segundo alguns dos seguidores do blog, como estratégia de enfrentamento do estigma e, ao mesmo tempo, como obstáculo à vinculação com o outro e ao viver o “para sempre” da relação amorosa, numa perspectiva romântica (Giddens, 1993), conforme compartilhado por Luiz: “há poucos dias, apareceu um garoto em minha vida, só que tenho muito medo de criar uma relação com ele, pois sempre penso que estou o enganando por eu ser hiv+ e não ter coragem de contar… Eu vivo me colocando no lugar da outra pessoa. Por exemplo, se eu não fosse positivo e alguma pessoa começasse uma relação comigo e, porventura, descobrisse que ela é hiv+ ou até mesmo se ela me contasse esse fato, eu provavelmente não reagiria bem e acredito que surtaria!”.
Diante dessas situações, entre os frequentadores do blog era comum a criação de estratégias para superar as vicissitudes colocadas pelo segredo, por exemplo, a especulação da reação do outro. Para esses sujeitos, abordar o tema HIV era um meio de sondar o impacto que seu segredo poderia exercer sobre o outro, visando à aceitação de sua condição. A partir dessa abordagem do tema HIV, a PVHA poderia se sentir encorajada, ou não, a desvelar sua condição sorológica. O relato de Dominique demostra como essa estratégia operava no âmbito do relacionamento: “durante uma conversa por telefone, abordei o tema HIV, a evolução dos tratamentos, a sorodiscordância entre casais e inúmeras outras coisas que não são mais como nas décadas de 80 e 90. Ele se mostrou curioso, interessado e surpreso com o avanço da medicina. Entretanto, ele me revelou que se tivesse HIV preferia morrer a conviver [com o vírus]. Essas palavras soaram EXTREMAMENTE PERTURBADORAS na minha cabeça, depois fui desviando o assunto lentamente. Já pensei em falar… Mas, não tive coragem de contar”.
Experiências desse tipo têm sido relatadas em estudos que analisam a divulgação do status sorológico em relações amorosas e sexuais entre pessoas sorodiscordantes. Nessas circunstâncias, as PVHA temem que a divulgação de sua condição sorológica possa “matar o humor” do relacionamento, e, a depender da reação do outro, a revelação pode trazer ao cenário afetivo e sexual lembranças indesejadas da doença e da morte (“aids de antes”) (Carballo-Diéguez et al., 2006). “Com o passar dos dias levei adiante um relacionamento sem expectativas de aceitação e resolvi acabar do nada. Eu ainda sinto algo por ele e percebo que é recíproco. Mas diante disso, não quero sofrer” (Dominique). Dessa forma, essas influências seriam capazes de transformar um relacionamento afetivo em um relacionamento contratual, com prazo de validade, diante da falta de expectativas de aceitação da condição sorológica pelo parceiro: “recentemente me envolvi com um rapaz soronegativo. Não cheguei a contar para ele sobre minha soropositividade, mas tive a intenção, sempre tenho. Foi um envolvimento de 40 dias, intenso, com sintonia; e tudo me levava a crer que seria bacana contar a ele. Já havíamos transado, sempre com camisinha” (Luiza).
Como se pode observar nas narrativas elencadas, ao mesmo tempo em que a “aids de agora” possibilitava às PVHA agenciamentos distintos daqueles que marcaram a experiência com a enfermidade no início da epidemia, uma vez que lhe faculta o direito ao segredo, insere esses sujeitos num mundo do segredo e num mundo oficial (Simmel, 2009). Neste caso, o primeiro envolve a dimensão privada, individual e íntima de quem vive com o HIV e/ou sua rede de suporte social mais próxima; o segundo diz respeito à dimensão pública, social e interacional, na qual o sujeito continua a manter a fachada pessoal da soronegatividade. Ou seja, a PVHA pode lançar mão de estratégias na vida cotidiana para navegar entre esses dois mundos, de forma a manter a coerência entre elementos da representação: papel, desempenho, fachada pessoal, controle expressivo etc. (Goffman, 2011). Além disso, destaca-se que esses mundos e representações não se opõem nem estão dicotomizados. O que há são imbricações, superposições, coexistências e capilaridades.
É importante ressaltar que parte considerável dos seguidores do blog vivia essa condição em segredo, porém essa não é uma regra compulsória. Estudos desenvolvidos junto a ONGs especializadas em HIV/aids no Rio de Janeiro demonstraram que o engajamento político e social de PVHA nessas organizações possibilitou processos de subjetivação no qual protagonismo e ativismo se colocaram como vetores de transformação de si, rompendo com narrativas marcadas pelo sofrimento, medo, estigmatização e silenciamento (Pelúcio, 2009; Valle, 2008).
Por outro lado, o mundo do segredo instaura uma contradição na condição de viver com o HIV como uma “infecção crônica”, na medida em que a restrição contemporânea dos discursos sobre a doença (Inácio, 2016) traz à tona dimensões simbólicas antes narradas como morte civil por ativistas vinculados ao movimento social em HIV/aids nos anos 1980, principalmente (Daniel, 1989). Hoje essa morte civil se atualiza na doença segredo, implicando nova forma de morte simbólica,
visto que se não mais se morre por HIV, continua-se ainda a morrer no silêncio da impossibilidade de revelação da situação sorológica das pessoas; na rejeição advinda de uma exposição pública, o que envolveria a morte dos afetos e mesmo, ainda, aspectos como vergonha, silenciamento, abandono, mesmo em se tratando da existência de tratamentos eficazes como os que há hoje (Inácio, 2016, p. 498-9).
É nesse cenário que os relacionamentos amorosos e sexuais podem assumir uma versão contratual em que as principais cláusulas são expressas, de acordo com os seguidores do blog: “faço tratamento antirretroviral, sou indetectável e evito sexo oral” (Luiza); “me preservo, uso camisinha sempre, faço tratamento, sou indetectável” (Pedro).
Por fim, a revelação ou não do segredo conforma-se como um dilema para as PVHA, como discutido na postagem “O dilema do soropositivo”, escrita por JS. As narrativas produzidas nos 172 comentários dessa publicação, e em outras postagens, demonstraram a ação criativa e os sentimentos presentes na experiência desses sujeitos que se propõem a viver um relacionamento amoroso. Há, ainda, outra forma de agência, vivida, em geral, no período inicial da vivência com o HIV: abster-se, uma vez que não se relacionar nesse âmbito implica não “mexer” no segredo. Logo, como em uma equação, não “mexer” no segredo pode resultar em não se sentir tentado a revelá-lo; não revelar possibilita não sofrer com a reação do outro, mas, por outro lado, se abstém de viver a experiência amorosa. “Não tenho coragem de contar pra quem conheço, ainda não me relacionei sexualmente com ninguém. Apesar de sempre querer coisas como namoro sério, casamento e constituir família” (Henriqueta).
“E do nada sumiu”: as (re)ações do outro da relação
Nesta categoria são destacadas as experiências dos seguidores do blog diante das reações do outro, devido ao conhecimento da condição sorológica. Em geral, os comentários analisados apontam para tais reações, principalmente, como uma “porta” que se abre e permite (ou não) a experiência amorosa. Assinala-se que a discussão do material empírico será feita com base numa sociologia do amor e da intimidade (Giddens, 1993; Bauman, 2004), que, guardadas suas diferenças teóricas, possibilitam compreender o contexto das relações contemporâneas nas quais os seguidores do blog engendram suas buscas por parcerias e relacionamentos sexuais e/ou amorosos.
Parte-se do pressuposto de que essas buscas se dão numa sociedade marcada pela fragilidade dos vínculos humanos, pelo sentimento de insegurança que ela inspira e pelos desejos conflitantes de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos (Bauman, 2004), como relatou Lúcio: “acredito no amor romântico e espero, assim como o jovem positivo, encontrar alguém. PS: jovem positivo, sei que vc [você] é heterossexual, uma pena! Mas seria possível fazer aqui no site um link para conhecermos pessoas para relacionamento sério e não sexo descartável?”. Além disso, destaca-se um conjunto de transformações sociais envolvendo a sexualidade, o amor e o erotismo que vêm se desenvolvendo e se contrapondo (ou não) ao ideal do amor romântico (Giddens, 1993), a exemplo do que narrou Jeferson: “a única coisa que queria na vida era voltar a amar e ser amado, mas da forma que as coisas evoluíram, cada dia tenho menos esperanças de ter uma vida feliz. Queria conseguir superar isso, redescobrir o amor, redescobrir o sentido da vida”.
Nesse contexto, compreende-se, a partir da interpretação do material publicado no blog, que, se por um lado, não há diferença fundante na experiência amorosa da PVHA que a distinga radicalmente daquela de pessoas soronegativas, por outro, o HIV pode produzir dobras6 no relevo da relação que requerem alguns aprofundamentos - como relatado por Pedro: “desde o diagnóstico, esta sempre foi minha dúvida: contar ou não?”.
Essas dobras são compostas por duas faces. A primeira é constituída pelo tensionamento do segredo e a tentação de sua revelação, na medida em que os contatos interpessoais se estreitam (Simmel, 2009), conforme evidenciado na categoria anterior. Aqui pode existir um momento de escolha e decisão que consiste em “contar ou não”, balizado por critérios quantitativos (tempo de relação, por exemplo) e qualitativos (natureza dos afetos, grau de envolvimento, intimidade etc.).
Para alguns seguidores do blog, em fase inicial dos relacionamentos afetivos e/ou sexuais, a revelação da condição sorológica não foi considerada necessária, haja vista o direito à privacidade: “se estou bem e indetectável, não há razão para revelar algo de tamanha intimidade em um primeiro, segundo ou até terceiro encontro” (Pedro). Para outros, diante da perspectiva de um “relacionamento amoroso” que desperte sensações de segurança, confiança e estabilidade, ou seja, deixe de ser um relacionamento de bolso (Bauman, 2004), a PVHA pode se sentir tensionada e impulsionada à revelação do segredo, como observado nos comentários a seguir: “quando a situação passa para um relacionamento amoroso fica ainda mais difícil. Não sei se eu conseguiria transar com alguém sem contar” (Giovane); “Se [eu] perceber um possível envolvimento amoroso, o quadro muda: revelar a sorologia positiva para HIV passa a ser uma questão de confiança no parceiro” (Pedro); “Eu contei ao meu namorado porque adquiri uma confiança, um apego gigantesco, um amor que cresce a cada segundo” (Rebeca).
A outra face da dobra pode ser considerada o eventual campo de reação do outro após a revelação do segredo. Em linhas gerais, no material publicado no blog as pessoas narraram o término da relação como o evento mais recorrente e que pode se dar das seguintes formas: sumir (“fiquei traumatizado, pois a pessoa morria de amores por mim, dizia que me amava, que não viveria sem mim… E do nada sumiu!” - Heitor); alegar outros motivos para o fim do relacionamento (“tomei o maior fora e meu mundo desabou. Claro que ele jurou que o motivo era outro, mas eu sei que tudo tem a ver com a minha condição de saúde” - Noah); não manter contatos, mandar a PVHA sumir, mudar números de telefones e endereços eletrônicos (“levei [o outro] para fazer o teste, sabendo que iria dar negativo, pois nunca havia me exposto com ele. Desde então ele me mandou sumir, mudou os números de telefones, e-mails e nunca mais tive contato...” - Marcela). Essas experiências de rejeição foram relatadas, principalmente, nas seguintes postagens realizadas por JS: “Primavera e Outono” e “O dilema do soropositivo”.
Tais narrativas corroboram os fatores que influenciam a reação de rejeição da PVHA por parte do parceiro, após a divulgação da condição sorológica, identificados em estudo conduzido na África do Sul: medo de sofrer discriminação; falta de informação em relação às formas de transmissão e proteção ao HIV; desejo de proteger a si mesmo; e não querer ser estigmatizado (Simbayi et al., 2007). Nesse horizonte de possibilidades, o processo de divulgação da condição sorológica torna-se bastante estressante e angustiante, fazendo que alguns sujeitos revivam o momento do diagnóstico: “olha, Jovem, esse mês vivi a experiência de contar pra um rapaz por quem estava perdidamente apaixonada! E é bem isso: viver o dia do diagnóstico novamente!” (Marcela).
Em contrapartida, muitos comentários dos seguidores descrevem experiências de aceitação do parceiro após a revelação do segredo. Nessas situações, o amor foi apontado como o grande responsável por ultrapassar as barreiras do estigma em torno do HIV e provocar os sentimentos de compreensão e acolhimento. Essas reações são vistas como demonstrações (“prova de amor”) de afeto/amor por parte do outro da relação. “É um anjo que apareceu na minha vida na hora certa, depois de tantas tentativas frustradas! Só o amor é capaz de romper essas barreiras!” (Vanessa); “já acordei com ele chorando por preocupação comigo e, às vezes, ainda me pergunta se quero uma prova de amor... Sempre digo que a maior prova ele já me deu estando comigo” (Bruna).
Nessa concepção, as experiências desses sujeitos acabaram sendo marcadas muito mais pela força do vínculo afetivo e pela segurança emocional do que por estigmas. Em etnografia realizada junto a membros de uma ONG em HIV/aids no Rio de Janeiro, foram descritos outros agenciamentos de PVHA na busca por parceiros. Naquele contexto, a convivência com pessoas que compartilhavam uma identidade clínica em comum (ou não, pois esta não era condição sine qua non para participar da ONG) costumava facilitar, ao menos a princípio, os contatos sexuais e as buscas afetivas. Porém outros marcadores sociais de diferença, como classe social, cor/raça, gênero e orientação sexual, costumavam informar as interações sociais naquele espaço que poderia ser considerado como um “mercado microfísico”7 especializado em possíveis encontros e parcerias sexuais (Valle, 2008).
Sendo assim, nos comentários dos seguidores do blog, as pessoas com quem se relacionavam passavam a expressar qualidades de caráter que as caracterizam como “únicas” e “especiais”, ainda mais por se tratarem de indivíduos com status sorológico negativo para HIV, como se observa no depoimento de Carlos: “parece que quando se amadurece a vida vai te trazendo muros mais compridos, mais altos e obstáculos mais difíceis para que você se mostre apto no seu propósito de amar, de mostrar a si mesmo que ‘eu te amo’ não é só um discurso emocionado que se pronuncia à outra pessoa. Por enquanto a gente se denomina um casal sorodiscordante, mas nosso nível de concordância, nossa carga viral de afeto é muito alta e nossos CD4 de incompatibilidade, baixos. Temos um diagnóstico de dar inveja em muitos casais. Estamos completamente infectados pelo amor e pretendemos nunca nos curar!”.
Diante do exposto, cumpre destacar que a procura por parceiros e por envolvimentos em relacionamentos narrados pelos seguidores do blog se inscrevem no contexto mais amplo das relações sociais contemporâneas (Giddens, 1993; Bauman, 2004), como assinalado anteriormente. Os relatos que se seguem, em forma de comentários, às postagens de JS dizem respeito, em alguma medida, à necessidade de produção de vínculos mais seguros, duradouros e estáveis. Talvez essa necessidade se acentue para a pessoa que vive com o HIV, haja vista que se trata de condição cujos estigmas e preconceitos recaem, diretamente, sobre aquilo que lhe é mais íntimo: sua sexualidade e práticas sexuais, ou, ainda, suas formas de gozar.
Porém, como evidenciado na categoria anterior, a experiência desses sujeitos que se propõem a viver um relacionamento amoroso é marcada pela incerteza, comum a qualquer ser humano (independente do HIV), pois, na mesma medida que pode ser o abrigo contra a solidão, a fragilidade e a insegurança, podem, também, ser a estufa na qual esses sentimentos crescem e se desenvolvem (Bauman, 2004).
Considerações finais
Esta pesquisa buscou compreender os significados atribuídos às estratégias para revelação da condição sorológica e as formas de enfrentamento das reações dos parceiros amorosos e/ou sexuais dessa revelação. Assim, o blog se mostrou como uma instância produtora de sentidos e significados concernentes às experiências com o HIV e, particularmente, às práticas sexuais e/ou afetivas diante de situações em se que julga necessária a revelação do status sorológico a potenciais parceiros. Nesse processo, a pesquisa com/sobre mídias sociais aportou contribuições ao estudo sobre experiências com adoecimentos e sofrimentos de longa duração, por se constituir em um espaço no qual as pessoas podem reconstruir discursivamente os valores, representações, experiências e imaginários sociais sobre uma condição, neste caso o HIV/aids, a partir de seus agenciamentos no universo cotidiano.
Este estudo permitiu apreender a revelação, ou não, do segredo como um dilema para as PVHA, a ação criativa e os sentimentos presentes na experiência desses sujeitos que se propõem a viver um relacionamento amoroso. Ao mesmo tempo, expôs outra forma de agência dos seguidores do blog, principalmente no período inicial da vivência com o HIV: o não envolvimento em relacionamentos amorosos e/ou sexuais, geralmente marcados pela proximidade e intimidade com o outro. Trata-se, portanto, de estratégias de enfrentamento de experiências estigmatizantes e produtoras de sofrimento emocional e social.
Nesse contexto, diagnóstico, afeto, sexo, intimidade e HIV se entrelaçam produzindo efeitos diversos no autocuidado, na segurança das práticas sexuais, na identidade e na construção de novos relacionamentos sexuais e/ou amorosos. Além disso, destacou-se o significado atribuído às reações do outro após o conhecimento da condição sorológica, apontado, principalmente, como uma porta que se abre e permite (ou não) a experiência amorosa.
Além disso, pode-se compreender que a sorologia positiva para o HIV pode ou não se constituir como um obstáculo para essas experiências amorosas e sexuais, a depender da biografia de cada sujeito, da singularidade de suas experiências e de suas posições e inserções nas tramas sociais. Por fim, cumpre destacar as limitações colocadas pela impossibilidade de contextualizar as narrativas dos seguidores do blog a partir de marcadores sociais da diferença (geração, gênero, orientação sexual, raça/etnia, classe social), bem como de assinalar as singularidades e implicações que estes suscitam. Importa dizer tais aspectos carecem de aprofundamentos teórico-metodológicos e apontam para a necessidade de novos estudos sobre a temática em mídias sociais. Apesar disso, as narrativas produziram um espaço virtual de compartilhamento de experiências, marcado pela construção de relações de ajuda mútua e pela biossocialidade.