Introdução
O setor de saúde suplementar é constituído pelas operadoras de planos de assistência à saúde, pelos beneficiários, pessoas físicas usuárias dos serviços de assistência à saúde do setor, e os prestadores de serviços médicos, hospitalares, ambulatoriais, laboratoriais e similares, pessoas físicas ou jurídicas conveniadas às operadoras mediante contrato que efetuam as ações de assistência à saúde prestadas aos beneficiários (Sancovschi; Macedo; Silva, 2014).
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é a agência reguladora, vinculada ao Ministério da Saúde, responsável pelo setor de planos de saúde no Brasil. Sua missão institucional consiste em promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país.2
Na literatura encontram-se várias conceituações para regulação. Em cada definição de um conceito está implicada a perspectiva e o valor daquele que as elabora e as utiliza. Regular também significa sujeitar-se a regras, dirigir, regrar, encaminhar conforme a lei, esclarecer e facilitar por meio de disposições, regulamentar, estabelecer regras para regularizar, estabelecer ordem ou parcimônia em, acertar, ajustar, conter, moderar, reprimir, conformar, aferir, confrontar, comparar, dentre outros, de acordo com o dicionário Aurélio (Pietrobon; Prado; Caetano, 2008).
De acordo com informações do sítio institucional da ANS, pode-se afirmar que a regulação pode ser compreendida, de modo simplificado, como conjunto de medidas e ações do Governo que envolvem a criação de normas, o controle e a fiscalização de segmentos de mercado explorados por empresas para garantir o interesse público. Seus valores de atuação são: a transparência e ética dos atos, o conhecimento como fundamento da regulação, o estímulo à inovação para busca de soluções e sustentabilidade setorial e o foco no compromisso social.3
No campo da saúde, quase todos os aspectos estão sob regulação. Isto inclui pesquisa e desenvolvimento, produção de medicamentos e equipamentos, profissionais, unidades de saúde, seguros e toda uma rede heterogênea de atividades e serviços que relacionados ao setor. O surgimento das agências reguladoras ocorre como resultado do amadurecimento deste processo. Tais agências têm como função balizar a circulação de tecnologias, serviços e capitais. Seu papel ideal seria o de conciliador, que busca universalizar o acesso aos serviços de saúde, melhorar sua qualidade, controlar custos e garantir segurança aos usuários (Veras, 2014).
De maneira geral, as agências reguladoras possuem algumas funções básicas. No caso específico da ANS, estas funções podem ser resumidas em: garantir o cumprimento dos contratos entre operadoras e beneficiários, isto é, evitar que haja qualquer tipo de interferência política ou de qualquer outra natureza que afete ou impossibilite que o contrato seja cumprido, garantir a prestação regular do serviço com baixa interferência em sua prestação, e tornar-se incentivadora da qualidade do serviço prestado. Além disso, a ANS possui uma característica específica que a diferencia de outras agências reguladoras, pois lida com um bem de mérito, que não pode ser considerado mercadoria. Nessa compreensão, seu campo de atuação é a proteção, o cuidado e a conservação da vida humana, direito de todos (Gerschman et al., 2012).
Observa-se um esforço por parte da ANS, que é intensificado a partir de 2005, de influir na qualidade da atenção prestada na saúde suplementar, valorizando a integralidade das ações e a qualidade dos resultados obtidos. Um exemplo deste esforço é o Programa de Qualificação da Saúde Suplementar. Na maior parte do tempo, contudo, o foco da atenção regulatória concentrou-se no rol de procedimentos obrigatórios, no controle dos preços dos planos e, de modo mais recente, no tempo de espera do beneficiário para seu atendimento. (Silva et al., 2013).
Questões ligadas à saúde são inerentemente complexas por apresentar, conforme Almeida- Filho (2011), características como: podem ser consideradas em múltiplas situações de existência, já que atuam em diferentes planos de realidade; possuem historicidade, isto é, sua existência não termina em um momento isolado, sendo, de fato, processos não-lineares recursivos, recorrentes ou iterativos; não permitem explicações por modelos lineares de causa-efeito, dificultando, assim, predições; e questionam, transgridem e ultrapassam regras formais, sendo contingentes.
Além da complexidade do próprio objeto saúde, há de se levar em consideração também as múltiplas contradições do sistema de saúde brasileiro, principalmente em seu componente privado. De acordo com Paim et al. (2011), historicamente, as políticas de saúde incentivaram o setor privado em nosso país, favorecendo a privatização da atenção à saúde, tanto pelo credenciamento de consultórios médicos, quanto pela remuneração e criação de clínicas diagnósticas e terapêuticas especializadas, hospitais, ou por meio de incentivos às empresas de planos e seguros de saúde. O componente privado do sistema saúde está imbricado com o setor público oferecendo serviços terceirizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), serviços hospitalares e ambulatoriais pagos por desembolso direto, medicamentos e planos e seguros de saúde privados. A demanda por planos e seguros de saúde privados é proveniente principalmente de trabalhadores de empresas públicas e privadas, as quais ofertam estes benefícios a seus profissionais.
A ANS obteve significativos avanços regulatórios nos aspectos econômicos e financeiros das operadoras. Porém é necessário evitar que o poder comercial destas empresas converta-se em força regulatória sobre os prestadores e usuários. Para qualificar ou requalificar a forma da lei que regula as operadoras, precisam ser incluídos critérios de lisura das operações comerciais como também quanto à prestação dos serviços de saúde. Esses parâmetros deveriam ser parte dos processos de registro das operadoras pela ANS. A regulação necessita considerar, no contrato, a especificidade dos serviços de saúde e a qualidade básica a ser prestada. Desse modo, as operadoras registradas na ANS seriam corresponsabilizadas pela qualidade dos serviços dos prestadores contratados. É preciso ressaltar que os planos privados de saúde não consistem em um seguro qualquer, e por esse motivo devem envolver cláusulas específicas que protejam os beneficiários de tais serviços (Gerschman et al., 2012).
Um dos problemas mais importantes da regulação está no risco de captura da instituição reguladora pelo mercado regulado, que pode ocasionar a mudança da missão institucional da defesa do interesse público por meio da influência negativa do setor regulado (Costa, 2008). Tal captura regulatória é um fenômeno complexo porque, como enfatiza Reiss (2012), ao mesmo tempo em que algumas contribuições entre o setor regulado e o regulador sejam úteis, já que podem existir informações que o mercado detém e que a instituição reguladora não conheça que sejam fundamentais à atividade regulatória; por outro lado, nem toda aproximação mercado-regulador é benéfica, sendo o modo da aproximação essencial para seu sucesso ou fracasso.
Neste cenário de desafios, o papel do conhecimento científico é modificado e ampliado. A inovação é fundamental para atender às necessidades de uma sociedade em constante mudança. Portanto, a regulação necessita ser ágil para garantir que o estado da arte do conhecimento científico chegue à população sem prejuízo dessa dinâmica. Existe assim um novo desafio para a produção científica e para o marco regulatório, pois o ciclo da pesquisa fundamental, produtora de conhecimento sobre problemas de significância científica que nem sempre considera as necessidades mais imediatas da sociedade, já não é tão importante. A pesquisa estratégica, que também gera conhecimento sobre problemas e necessidades específicas de saúde, porém, mostra resultados que podem proporcionar mudanças. A pesquisa no campo da saúde precisa, assim, estar em consonância com o desenvolvimento e a avaliação de produtos, intervenções e políticas. Dessa forma, a regulação e a ciência acadêmica aproximam-se para impulsionar as necessárias transformações do setor saúde (Veras, 2014).
Já existe considerável bibliografia sobre a ANS; uma rápida busca na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), efetuada em abril de 2016, retornou em trezentos e setenta e cinco registros. Assim, torna-se pertinente questionar: o que abordam essas pesquisas? Quais perspectivas são mais consideradas nestes estudos? Que resultados apontam? Nesse sentido, o objetivo principal deste estudo é analisar a produção acadêmica sobre a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Já os objetivos específicos deste estudo são: identificar os presentes temas existentes na produção acadêmica brasileira sobre o tema e discutir as possíveis semelhanças e diferenças de compreensão presentes nos estudos que serão analisados.
Considerações metodológicas
Do ponto de vista do método, as técnicas de investigação costumam ser escolhidas desde o momento em que se recorta o objeto de pesquisa. Porém, o momento em que elas destacam-se e sua definição se torna mais crucial é quando os objetivos do estudo são definidos. Isso implica dizer que as técnicas de investigação não possuem autonomia metodológica para definir o objeto ou os objetivos de uma pesquisa. Dito de outro modo, não se pode partir de uma técnica para a construção de um objetivo ou um objeto (Fernandes; Moreira, 2013).
Nesse sentido, optou-se pela abordagem qualitativa, porque, como afirma Goldenberg (2009), nela não se busca fixar padrões nem propor generalizações. Os dados da pesquisa qualitativa têm a finalidade de entender de modo aprofundado os fenômenos sociais apoiados na relevância do aspecto subjetivo da ação social. Dessa forma, opõe-se a estudos quantitativos que são insuficientes para abranger a complexidade dos fenômenos sociais e suas singularidades.
A técnica adotada foi a análise de conteúdo temática proposta por Bardin (2011). Segundo a autora, essa técnica possui como função principal o desvendar crítico de mensagens de maneira que possibilitem inferir sobre outra realidade que não aquela da mensagem. Pode ser definida como conjunto de estratégias de caráter metodológico em constante aprimoramento, que é aplicado a conteúdos extremamente diversos. Suas principais características são o foco em mensagens (comunicações) e a natureza categorial-temática. A análise de conteúdo estrutura-se em três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados.
O presente estudo propõe-se a realizar uma análise de conteúdo temática da produção acadêmica sobre a Agência Nacional de Saúde Suplementar existente na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Esta Biblioteca4 foi criada e é mantida pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) no âmbito do Programa da Biblioteca Digital Brasileira (BDB), sendo apoiada pela Financiadora de Estudos e Pesquisas (FINEP), lançada oficialmente no final do ano de 2002, e possui o objetivo de reunir, em um único portal de busca, as teses e dissertações defendidas em todo o País e por brasileiros no exterior.
Foram analisados todos os estudos presentes no mencionado portal que abordem a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Espera-se desta forma identificar os principais temas existentes nessas produções acadêmicas bem como discutir semelhanças e diferenças de compreensão em relação à referida instituição reguladora. Para a seleção do material bibliográfico não foi realizado recorte temporal, porque interessa conhecer a evolução da produção de estudos sobre o tema. Foram incluídas as teses e dissertações que apresentaram a expressão “Agência Nacional de Saúde Suplementar” em quaisquer dos campos de busca disponíveis.
A escolha por examinar teses e dissertações justifica-se, pois, conforme Lopes e Romancini (2006), citados por Joly et al. (2010), a análise de trabalhos produzidos nos programas de pós-graduação stricto sensu das universidades é bastante útil por possibilitar caracterizar a produção científica das diferentes áreas do conhecimento em um determinado tema, mostrando diferentes olhares e abordagens. A construção destes estudos é uma etapa no processo de treinamento para as atividades científicas, especificamente, para o desenvolvimento de pesquisas. De modo geral, teses e dissertações eram relacionadas à literatura cinzenta, por conta da dificuldade de acesso e consequente visibilidade reduzida, já que esses textos estavam disponíveis somente em meio impresso, compondo o acervo de bibliotecas vinculadas ao Programa de Pós-Graduação. O aparecimento da publicação eletrônica, entretanto, muda parcialmente tal compreensão. A criação de portais de teses e dissertações, nos quais se pode acessar integralmente a produção acadêmica, permite acessibilidade a qualquer usuário da internet, intensificando a divulgação e o acesso a esses estudos.
Resultados e discussão
A busca foi realizada no portal da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), em julho de 2016, utilizando como palavra-chave “Agência Nacional de Saúde Suplementar”. A pesquisa resultou em 60 (sessenta) estudos encontrados. Desse total, foram identificadas 52 (cinquenta e duas) dissertações e 8 (oito) teses.
Após leitura cuidadosa de cada um dos resumos das produções acadêmicas encontradas, foi possível identificar três grandes temas que emergiram destes estudos: aspectos econômicos da regulação, aspectos político-jurídicos da regulação e aspectos relacionados à saúde da regulação. Estes temas não se excluem e podem, inclusive, apresentar uma sobreposição, pois, em alguns casos, um mesmo estudo pode abordar dois ou até os três temas, entretanto são importantes como direcionadores da discussão, auxiliando a compreensão das diferentes nuances que compõem a realidade da ANS.
Aspectos econômicos da regulação
Costa (2015), Soares (2009), Barone (2003), Matos (2011), Cardoso (2005), Lumertz (2011), Botaro (2012), Salles (2004), Araújo (2004), Magalhães Filho (2012), Takahashi (2011), Duarte (2003), Baldassare (2014), Hashimoto (2010), Soares (2006), Cunha (2014), Macedo (2007), Ferreira (2009), Gonçalves (2001) e Mata (2011) abordam os aspectos econômicos da regulação. Embora todos esses autores discutam os fatores econômicos associados à regulação, isto não significa que se trate de visões similares sobre a regulação.
Ao contrário, diversos aspectos são detalhados em tais produções. Enquanto, por exemplo, Costa (2015) discute a descentralização da gestão orçamentária da própria ANS, Cardoso (2005) pesquisa os impactos da regulação econômica nas escolhas de práticas contábeis das operadoras de planos de saúde.
O componente econômico da regulação em saúde é de fundamental importância, uma vez que, baseando-se no referencial da economia política, a atividade regulatória implica um processo dinâmico de adaptação da produção e da demanda social, que é resultado de ajustes econômicos associados a uma determinada organização de relações sociais. Tal atividade implica coerência e compatibilidade entre oferta e demanda, com interação contínua. Assim, a regulação não se restringe a um estado de equilíbrio, que pode ser alcançado por meio de estratégias de mercado, como se defende nas ideias mais tradicionais da teoria econômica (Oliveira; Elias, 2012).
Apesar do viés econômico estar mais consolidado na regulação da ANS (Gerschman et al., 2012), inúmeros estudos encontrados ressaltam os inúmeros desafios enfrentados pela Agência neste aspecto, como a concentração do setor pela aquisição de carteiras ou até mesmo de toda a empresa por operadoras de maior porte (Lumertz, 2011), as dificuldades de operadoras menores em relação às inúmeras regulamentações da ANS (Salles, 2004) e a questão das limitações do modelo convencional de remuneração de prestadores de serviços de saúde pelas operadoras que demorou a ser foco da atenção regulatória, que é destacada em diferentes produções acadêmicas analisadas: Gonçalves (2001), Gois (2006) e Takahashi (2011).
O contexto complexo da saúde suplementar é enfatizado na pesquisa de mestrado de Baldassare (2014). O autor argumenta que no mercado privado de planos de saúde ocorre o incremento dos custos da assistência médica, a ampliação da cobertura de procedimentos, as limitações nos reajustes dos planos e o aumento das garantias de solvência exigidas pela ANS que impactam de forma significativa o desempenho econômico-financeiro das operadoras de planos de saúde.
Nessa direção, não é possível desconsiderar a própria missão institucional da ANS: promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores , e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país.5 Certamente esta defesa do interesse público não é tarefa simples, como aponta a dissertação de Cunha (2014), que examina os possíveis cenários e impactos econômicos, sociais, políticos, tecnológicos e legais resultantes da entrada de capital estrangeiro no sistema brasileiro de saúde suplementar. Apesar da citada produção acadêmica analisar especificamente a visão dos prestadores de serviços de saúde sobre o tema, é importante que se questione se a entrada de capital estrangeiro no setor representa oportunidade ou ameaça ao interesse público.
Não se trata de minimizar a importância da sustentabilidade do mercado, que precisa constantemente ser buscada, como Hashimoto (2010) em seu estudo de mestrado contribuiu ao analisar a eficiência técnica das operadoras de planos de saúde, mas estudar, como indica a dissertação de Mata (2011) caminhos possíveis de conciliar as crescentes demandas da saúde suplementar como envelhecimento populacional e consequente aumento de gastos em saúde com a solvência das operadoras.
A conciliação de interesses está na base da regulação em saúde. Embora os fatores econômicos da regulação sejam estudados de maneira geral como instrumento de equilíbrio entre oferta e demanda, de modo a oferecer eficiência ao sistema com geração de resultados positivos, também pode se considerar que a regulação possa fortalecer soluções mais equitativas e justas para a população ao se procurar encontrar estratégias que se alinhem à defesa do interesse público (Vilarins; Shimizu; Gutierrez, 2012).
Aspectos político-jurídicos da regulação
Pscheidt (2014), Zanatta (2013), Fernandes (2015), Pó (2004, 2009), Fé (2003), Nunes (2013), Fabretti (2014), Lugarinho (2004), Secchin (2016), Cunha (2014), Runte (2011), Abade (2015), Duarte (2011), Oliveira (2010), Gois (2006), Freitas (2011), Lima (2015) e Santos (2006) discutem os aspectos político-jurídicos da regulação, apesar de utilizarem olhares distintos sobre tais aspectos, algumas vezes focando em aspectos gerais (Lugarinho, 2004), outras vezes debruçando-se em situações específicas, como a micropolítica do cotidiano da ANS (Runte, 2011).
A discussão da regulação está associada inerentemente a questões políticas, tais como: como é possível haver sociedades relativamente estáveis apesar da diversidade de interesses de seus integrantes. Assim, a regulação na ciência política aparece como sinônimo de ordem e equilíbrio, e a própria noção de regulação termina por se mesclar à definição de poder político, já que se constitui em maneira de conciliar de conflitos. Logo, a regulação configura-se como função fundamental do poder político, compreendido como a atividade que organiza os processos de decisão (Oliveira; Elias, 2012).
Nessa perspectiva, várias produções acadêmicas encontradas possuem esta linha de interrogação de mediação de conflitos e organização de processos decisórios. Zanatta (2013) enfatiza que a relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços é perpassada por conflitos que impactam diretamente na garantia da assistência prestada ao usuário e que a regulação da ANS deve possuir como objetivo minimizar tais conflitos. Já para Duarte (2003), a criação de agências reguladoras como a ANS está ligada a um processo de reforma do aparelho de Estado que busca ao mesmo tempo estimular a concorrência e proporcionar uma provisão adequada de bens públicos. O acirramento dos conflitos que culmina em vias judiciais também é analisado em vários estudos acadêmicos examinados: Oliveira (2010), Freitas (2011), Fabretti (2014), Abade (2015) e Fernandes (2015).
Esta significativa proporção de estudos analisando a judicialização da saúde suplementar pode indicar pouca efetividade da ANS ou também baixa visibilidade da instituição. Em sua dissertação de mestrado, Oliveira (2010) ressalta que a partir da criação da Agência houve aumento considerável no número de ações judiciais sobre o tema. Para Fabretti (2014), em seu estudo de mestrado, a atuação da ANS não tem sido suficientemente efetiva para evitar a judicialização, pois, segundo a autora, a Agência não consegue conciliar adequadamente os interesses diversos presentes na saúde suplementar. Porém Abade (2015) destaca, em sua dissertação, que somente dez por cento das decisões judiciais levaram em consideração as normatizações da citada agência reguladora, o que pode indicar uma visibilidade limitada da ANS.
Nesse sentido, Ventura et al. (2010) afirmam que uma sociedade pressupõe o conflito de interesses, e, dessa forma, a demanda judicial pode refletir disputas, ganhos ou atrasos, que se estabelecem além da esfera jurídica. A judicialização da saúde é uma ação legítima, contudo precisa ser realizada juntamente a outros tipos de ação. As demandas judiciais não podem ser vistas como principal estratégia, porque, de fato, para a justiça, devem ser empregados vários mecanismos que consigam implementar as diretrizes constitucionais.
Aspectos relacionados à saúde da regulação
Pscheidt (2014), Silva (2014), Matos (2011), Dias (2011), Frossard (2009), Botaro (2012), Koyama (2006), Martelotte (2003), Leal (2012), Hörbe (2012), Neri (2015), Barone (2008), Farias (2008), Vasconcelos (2006), Publio (2011), Rodrigues (2013), Roza (2014) e Buranelo (2016) abordam fatores associados à saúde da regulação.
Deve ser ressaltada a significativa proporção de estudos que analisaram questões de promoção da saúde e prevenção de doenças: Silva (2014), Dias (2011), Frossard (2009), Koyama (2006), Vasconcelos (2006), Rodrigues (2013), Roza (2014) e Buranelo (2016).
Em sua dissertação de mestrado, Rodrigues (2013) discorre sobre os inúmeros desafios da promoção da saúde e prevenção de doenças na saúde suplementar: tensões entre as lógicas orientadoras da promoção da saúde, a oferta de programas, o acesso, a responsabilização dos beneficiários e a indução política pela ANS. A autora destaca que embora existam dificuldades relacionadas ao modelo de oferta da promoção da saúde no setor suplementar e a orientação capitalista do setor, os programas analisados em seu estudo indicam uma nova lógica da produção de saúde no campo, a qual usa outros espaços e profissionais mesmo que de modo limitado. Dessa forma, a incorporação de programas de promoção da saúde sinaliza para o início de um processo de mudança de modelo assistencial, ainda que permeado de desafios.
A forte presença deste tema está em consonância com a própria Agenda Regulatória da ANS, que consiste em um instrumento de planejamento que contempla o conjunto de temas estratégicos e prioritários, considerados necessários para equilibrar o setor e se constituem em objeto de atuação da ANS em um período,6 que possui como um de seus eixos temáticos a Garantia de Acesso e Qualidade Assistencial.
O esforço por parte da ANS, intensificado a partir de 2005, de influir na qualidade da atenção prestada na saúde suplementar, com valorização dos resultados obtidos (Silva et al., 2013) também foi observado em algumas produções acadêmicas encontradas como: Koyama (2006), Martelotte (2003), Leal (2012), Neri (2015) e Vasconcelos (2006). Tal esforço também está presente na Agenda Regulatória da ANS.
Koyama (2006) em sua dissertação de mestrado aponta que se por um lado as operadoras apoiam o Programa de Qualificação de Operadoras da ANS e o consideram válido, por outro lado, este modelo adotado pela Agência como uma diferente perspectiva de regulação também criou uma expectativa negativa das operadoras, que muitas vezes veem a iniciativa como mais uma tarefa obrigatória e burocrática.
Em seu estudo de mestrado, Leal (2012) ressalta, porém, que, em última análise, a ANS tem como fundamento a busca por uma gestão organizacional cuja qualidade e cujos beneficiários sejam componentes essenciais para o desenvolvimento e a prestação de serviços de saúde suplementar, o que pode ser observado em seu Programa de Qualificação dos Prestadores de Serviços na Saúde Suplementar (QUALISS), de caráter voluntário.
Importante observar que tanto o Programa de Qualificação de Operadoras como o QUALISS são compostos por um sistema de indicadores que valorizam as variadas dimensões do processo de produção da saúde: a efetividade clínica, a capacidade organizacional, a relação com o paciente, dentre outros aspectos. Essa perspectiva multidimensional sobre a qualidade em saúde é apontada por Serapioni (2009) como a mais apropriada para sistemas de avaliação, uma vez que contempla as diferentes visões dos atores que estão envolvidos na situação avaliada.
Certamente a complexidade das questões de saúde (Almeida-Filho, 2011) extrapolam as estratégias de promoção da saúde e prevenção de doenças e a busca pela melhoria da qualidade em saúde; contudo é importante reconhecer que avanços estão sendo obtidos frente aos inúmeros desafios presentes nesta atividade tão múltipla de regular a saúde em nosso país.
Considerações finais
O presente estudo de revisão bibliográfica, elaborado a partir de abordagem qualitativa, analisou as produções acadêmicas, dissertações e teses, presentes na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) que possuíam como objeto de estudo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
É importante destacar que, por ser um estudo de revisão, há limitações inerentes a este tipo de pesquisa, entre elas o acesso a dados secundários, isto é, obtidos por outro pesquisador, e a insuficiência de ineditismo, já que analisa os resultados de outras pesquisas. Porém, neste estudo, como foram privilegiadas as dissertações e teses, muitas vezes, os resultados de tais pesquisas não foram publicados sob a forma de artigos científicos ou livros; portanto, dessa forma, o que pode ser um limite também pode representar uma potencialidade ao se proporcionar visibilidade aos estudos acadêmicos analisados.
Certamente, muitas outras questões associadas à ANS não foram analisadas neste estudo, tanto em função dos limites de cada estudo analisado, como também pela própria natureza deste trabalho, que teve por objetivo principal analisar a produção acadêmica sobre a Agência Nacional de Saúde Suplementar.
A partir da análise dos estudos acadêmicos foram identificados três grandes temas: aspectos econômicos da regulação, aspectos político-jurídicos da regulação e aspectos relacionados à saúde da regulação. Estes temas não se excluem mutuamente, mas servem como direcionadores da análise realizada.
Os três temas permitiram discutir muitos dos desafios enfrentados pela ANS, os quais estão relacionados a questões regulatórias econômicas, político-jurídicas e de saúde. Em relação aos aspectos econômicos observou-se que a maioria dos estudos adotou a abordagem clássica da economia sobre a regulação, isto é, considerando a atividade regulatória como mecanismo de equilíbrio entre oferta e demanda. Alguns estudos apontaram a necessidade de se conciliar a defesa do interesse público ao se buscar efetivar tal equilíbrio.
Os aspectos político-jurídicos da regulação ocuparam lugar de destaque na análise, uma vez que nestes aspectos estão presentes os inúmeros conflitos presentes na arena regulatória. A função da ANS como conciliadora de conflitos foi ressaltada em algumas produções analisadas, todavia foi bastante relevante em vários estudos a ênfase na judicialização da saúde suplementar, o que pode representar que a conciliação regulatória diversas vezes não foi alcançada.
A judicialização na saúde suplementar, entretanto, pode não representar a falta de efetividade da instituição reguladora, pois, mesmo tendo sido criada em 2000, o grau de conhecimento da população sobre a ANS ainda não é considerável. Assim, muitas pessoas preferem buscar o Poder Judiciário quando possuem qualquer tipo de problema, já que a denominada judicialização está presente em vários setores da sociedade, para além da saúde.
Em relação aos aspectos relacionados à saúde da regulação, as estratégias de promoção à saúde e prevenção de doenças bem como a adoção de mecanismos para a melhoria da qualidade em saúde foram pontos importantes nas produções acadêmicas analisadas. Cabe ressaltar que estes dois pontos encontram-se na Agenda Regulatória da ANS, que apresenta as prioridades da instituição para um determinado período.
Nessa direção, faz-se necessário refletir que, embora muitos desafios permaneçam, inúmeros avanços foram obtidos com a atividade regulatória da ANS. Um problema abordado em alguns estudos examinados foi a lentidão da Agência para regular determinados temas como o reajuste dos prestadores de serviços de saúde.
Importante destacar que para que sejam obtidas regulamentações adequadas são necessárias ações de planejamento, como, por exemplo, a Agenda Regulatória da ANS, que já está em sua terceira edição. Além disso, não se pode esquecer que a regulação é permeada por conflitos de interesses de diferentes tipos e a busca da conciliação destes conflitos mediadas pela Agência, muitas vezes demanda tempo para que sejam obtidas soluções que contemplem a defesa do interesse público.
A análise da produção acadêmica permitiu revelar diferenças de compreensão em relação à Agência, ora vista como instância de conciliação, ora considerada órgão burocrático e lento e também vista como instituição que incentiva práticas de promoção à saúde e prevenção de doenças e melhoria da qualidade em saúde.
Por fim, deve ser destacado que as posições expressas nesse artigo pertencem exclusivamente à autora e não refletem, necessariamente, a visão da instituição à qual está vinculada.