Introdução
A água é o solvente universal da biosfera, sendo considerado um dos elementos fundamentais para a existência humana, pois permite que incontáveis reações ocorram na natureza. Suas funções no abastecimento público, industrial e agropecuário, na preservação da vida aquática, na recreação, na geração de energia, no transporte e na diluição de despejos demonstram sua relevância vital (Guilherme; Silva; Otto, 2000).
Essa substância compõe importante meio de transmissão de doenças. Fatos históricos demonstram que algumas das epidemias mais generalizadas que já flagelaram as populações humanas tiveram sua origem em sistemas de distribuição de água (Branco, 1991).
Aliadas à falta de água potável estão à má distribuição, a contaminação do recurso hídrico e a construção de fossas assépticas próximas aos poços rasos. Atualmente, cerca de 1,4 bilhão de pessoas não têm acesso à água limpa, e, a cada oito segundos, morre uma criança por doença relacionada com a contaminação da água, como disenteria e cólera. Cerca de 80% das enfermidades no mundo são contraídas por causa da poluição da água (Leite et al., 2003).
Barcellos et al. (2006) estudaram a qualidade da água na zona rural de Lavras-Minas Gerais e observaram a contaminação fecal nos mananciais, inclusive nos subterrâneos e subsuperficiais. Eles enfatizaram a necessidade da busca de conhecimentos da realidade sanitária no meio rural, caracterizada por populações com menor acesso às medidas de saneamento. A água para consumo humano deve obedecer a padrões mínimos, referentes à composição química aceitável, bem como a limites máximos de contaminação microbiana.
O abastecimento de água é realizado de forma desigual entre a zona urbana e rural. As principais fontes de abastecimento de água no meio rural são os poços rasos, nascentes, córregos e rios, constituindo-se em fontes susceptíveis à contaminação.
A Política Federal de Saneamento Básico (Brasil, 2007) apresenta diversos objetivos, dentre os quais proporcionar condições adequadas de salubridade ambiental às populações rurais e às populações tradicionais. Entretanto, não é o que se observa na prática.
Na zona rural do município de Barra do Bugres, Estado de Mato Grosso, está localizado o Assentamento Quilombola “Vão Grande”, formado por cinco comunidades quilombolas (São José de Baixio, Morro Redondo, Gruta Camarinha, Retiro e Vaca Morta). Estas são compostas por filhos(as), netos(as) e bisnetos(as) dos primeiros habitantes que chegaram em meados do século XIX à região (Silva, 2014).
As condições de saneamento são precárias no Assentamento Vão Grande. Não há infraestrutura de coleta de esgoto e fornecimento de água tratada. As famílias utilizam a água proveniente de minas e dos mananciais superficiais, sendo o rio Jauquara a principal fonte.
Neste sentido, o objetivo deste trabalho foi avaliar a qualidade da água consumida pelas famílias das comunidades Baixio e Morro Redondo, situadas no Assentamento Vão Grande, por meio de parâmetros microbiológicos.
Procedimentos metodológicos
O trabalho fez parte do projeto de extensão “BB água limpa”, desenvolvida por uma equipe multidisciplinar que envolvia profissionais das áreas de ciências agrárias, ciências exatas e da terra, engenharias e ciências da saúde de diferentes instituições. O projeto foi desenvolvido em uma comunidade quilombola denominada Assentamento “Vão Grande”, inserido no município de Barra do Bugres, a 150 quilômetros da capital do Estado. O assentamento foi fundado no período da escravidão, quando o local era utilizado pelos fugitivos provenientes dos estados de Goiás e Minas Gerais. As terras foram regularizadas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) somente no ano de 1998, quando as famílias receberam incentivos, tais como crédito habitação, infraestrutura básica, fomento, entre outros. Estas comunidades estão a 75 quilômetros de distância da cidade de Barra do Bugres e foram reconhecidas como Comunidades Quilombolas entre os anos de 2005 e 2010, pela Fundação Palmares. Atualmente, o assentamento possui 28 lotes, com 24 hectares cada unidade. No entanto, as famílias ramificaram, aumentando o número de moradias.
De acordo com informações obtidas junto ao Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Econômico Social (Nepedes), 60% das famílias desenvolvem alguma atividade agrícola nos lotes destinados ao consumo interno. São famílias que vivem próximo à linha da pobreza extrema, praticando agropecuária de subsistência, de forma precária. Residem, em sua maioria, em casas de pau-a-pique, taipa, adobe e com telhados de folhagem de palmeira babaçu. A infraestrutura de saneamento básico é mínima ou inexistente, não possuem acesso a água, banheiro ou sequer foça negra. A água consumida pelos moradores dessas comunidades é ofertada de forma bruta, oriunda de minas, poços e córregos, sem qualquer tratamento. A equipe do Projeto “BB Água Limpa’” atua nesta comunidade desde 2013.
Para o desenvolvimento do projeto, foram escolhidas duas comunidades quilombolas pertencentes ao Assentamento “Vão Grande”, dentre elas a do Baixio e Morro Redondo. A comunidade do Baixio, segundo Silva (2014), é composta por dezenove famílias e cerca de 90% possui como característica relação de parentesco. Nesta comunidade, encontra-se a Escola Estadual José Mariano Bento, que atende alunos das cinco comunidades, onde acontecem também reuniões dos líderes locais.
A outra comunidade é denominada Morro Redondo, que contém 29 famílias. Nesta, o êxodo rural é comum, principalmente dos jovens, devido à falta de trabalho. Alguns vivem de agricultura de subsistência ou trabalham nas fazendas vizinhas, e a comercialização da produção não é realizada em razão do difícil acesso ao local e ao pouco incentivo à produção e escoamento, já que não há qualquer programa do governo na comunidade para impulsionar esse setor (Silva, 2014).
Inicialmente, fez-se contato prévio com a comunidade para a realização de apresentação do projeto e seus objetivos. Todas as ações na comunidade foram desenvolvidas com o consentimento das lideranças locais, respeitando seus hábitos, crenças e costumes. Para a coleta de água, foi realizado levantamento dos tipos de fontes de água utilizadas para o consumo pelos moradores, bem como escolhidos os pontos para coleta.
O rio que abastece a comunidade do Vão Grande é o Jauquara, que nasce na Província Serrana e se espraia pelas planícies da depressão do rio Paraguai, com terras ocupadas por lavouras, pastagens e exploração de calcário. A Bacia Hidrográfica do Rio Jauquara (BHRJ) possui 1.408,00 quilômetros quadrados de área territorial e a altitude varia entre 150 e 920 metros. É fonte de abastecimento de assentamentos e comunidades tradicionais (Casarin; Neves; Neves, 2008). Além da água originária do rio Jauquara, muitos moradores utilizam água de mina, que é encanada e chega até as residências.
Na comunidade Morro Redondo, foram escolhidos quatro pontos, sendo dois deles de água proveniente de mina e os outros dois coletados no rio. Procedeu-se da mesma forma na comunidade Baixio, com o acréscimo de mais um ponto de água de mina, totalizando cinco, para a realização das análises microbiológicas. As coletas foram realizadas mensalmente, em triplicata, em cada ponto escolhido para investigação e acompanhamento, utilizando recipientes esterilizados e acondicionados em caixas térmicas, de acordo com os padrões de higiene e controle de amostragem descrita por Macêdo (2003). A análise foi feita no período de até 24 horas após a coleta, para preservação das amostras, uma vez que os coliformes nessa condição se multiplicam rapidamente, interferindo, assim, no resultado da análise.
Após a coleta, as amostras foram destinadas ao laboratório de Microbiologia da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Barra do Bugres, para realização das análises, determinadas pelo método rápido-Colilert (tecnologia de substrato definido-Idexx). O Colilert utiliza tecnologia de substrato definido [Defined Substrate Technology (DST)] para detecção de coliformes totais e Escherichia coli em água. A técnica consistiu em homogeneizar 100 mL da amostra em um frasco com quantidade de substrato especificada pelo fornecedor. A mistura final foi incubada a 35-40° C, durante 24 horas. O teste empregado foi o qualitativo em triplicata, com resultados positivos para presença de coliformes totais e Escherichia coli. À medida que os coliformes se reproduzem no Colilert, utilizam ß-galactosidase para metabolizar o indicado de nutriente e alterá-lo de incolor para amarelo. A Escherichia coli utiliza ß-glucuronidase para metabolizar e criar fluorescência. Esta abordagem diminui a incidência de falso-positivos e falso-negativos (Idexx, 2008).
Após o período de incubação dos frascos contendo as amostras foram retiradas da estufa. Para a identificação da presença de coliforme total, foi observada a mudança de coloração das amostras. As que indicaram presença do coliforme apresentaram coloração em tom alaranjado escuro e aquelas que indicaram ausência de contaminação total apresentaram coloração em tom amarelo claro.
Na identificação da presença ou ausência de coliforme fecal nas amostras, foi necessária uma cabine de luz ultravioleta (UV). Os frascos contendo as amostras foram colocados sob influência da luz, e as amostras que apresentaram fluorescência durante o procedimento continham coliformes fecais; as que permaneceram neutras durante o procedimento, ou seja, continuaram com a coloração no estado normal, estavam isentas de contaminação fecal. Este procedimento foi realizado para cada amostra em triplicata, objetivando o alcance de resultados precisos. Finalizada a análise, os frascos foram esvaziados e devidamente esterilizados, as amostras foram neutralizadas, ou seja, livres de contaminação para que pudessem ser descartadas sem que provocasse interferência ou contaminassem o local de descarte.
Resultados e discussão
A contaminação detectada nas amostras analisadas, em todo o período de estudo, foi considerada preocupante, já que o índice de contaminação predominou em quase 100% das amostras. Infere-se que tal índice deve-se à falta de saneamento básico da região e também ao período de realização das coletas.
Nos meses de novembro a janeiro, em que foram verificados 100% de coliformes totais e fecais nas amostras (Figura 1), pode-se atribuir este fator à sazonalidade das chuvas na região estudada, pois, de acordo com Fenner et al. (2014), os meses de maiores incidências de precipitação na região são de novembro a fevereiro. Como a água destinada ao consumo dos moradores é proveniente de rios e minas, a chuva intensifica a contaminação pelo fato de arrastar para o corpo d’água toda a matéria orgânica em decomposição depositada nas encostas dos rios e também as fezes de animais que transitam pelo local. Cunha et al. (2010) associam o aumento da contaminação com o índice de chuvas, corroborando os dados encontrados.

Figura 1 Análise microbiológica de coliformes fecais e totais na água consumida pelas comunidades no assentamento “Vão Grande”
No mês de agosto, a porcentagem para coliforme fecal foi igual ao do mês de julho, ou seja, 77,78% acusaram presença e 22,22%, ausência (Tabela 1). Dos resultados de coliforme total, 88,89% das amostras acusaram presença e apenas 11,11%, ausência do coliforme.
Tabela 1 Porcentagem dos meses analisados para a análise microbiológica
Análise microbiológica (%) | Meses avaliados | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Jul | Ago | Set | Nov | Dez | Jan | |
Coliforme total Presença | 100 | 88,89 | 100 | 100 | 100 | 100 |
Coliforme total Ausência | 0 | 11,11 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Coliforme fecal Presença | 77,78 | 77,78 | 77,78 | 100 | 100 | 0 |
Coliforme fecal Ausência | 22,22 | 22,22 | 22,22 | 0 | 0 | 0 |
No mês de setembro, as porcentagens obtidas por meio dos resultados das análises não foram diferentes. Logo, a totalidade das amostras analisadas acusaram presença de coliforme total na água; 77,78%, presença para coliforme fecal; e 22,22%, ausência, assim como nos meses de julho e agosto.
Como pode ser observado na Figura 1, não houve coleta no mês de outubro de 2013 devido a problemas relacionados ao transporte. Portanto, não houve análise nem resultados.
No mês de novembro, ocorreram alterações evidentes em razão dos fatores climáticos. Foi detectada a presença tanto de coliformes fecais quanto totais em 100% das amostras, o que se repetiu nos meses de dezembro de 2013 e janeiro de 2014. Analisando os nove pontos, em um total de seis coletas e análises, conclui-se que 88,89% das amostras nesse total de seis meses de análise acusaram a presença de coliforme fecal e 98,15% das amostras indicaram a presença de coliformes totais.
A contaminação da água analisada é evidente, o que a torna indevida para consumo. No entanto, considerando-se os fatos de a água utilizada pela comunidade ser basicamente proveniente de rios e minas, de ser em uma localidade tipicamente rural, e da presença de animais próximos aos rios ser claramente observada, a manutenção da potabilidade da água é dificultada. É preciso considerar, também, o fato de que nos últimos períodos de coleta a chuva foi constante, possibilitando, assim, que a contaminação das encostas e da mata ao redor dos rios fosse transportada até o corpo d’água.
Em relação à forma de tratamento da água destinada ao consumo, a comunidade em geral utiliza o filtro de barro para a filtragem da água, sendo que alguns não utilizam nenhum tipo de tratamento, fator que pode contribuir para o elevado índice de coliformes presentes na água. Quanto ao destino de dejetos domiciliares, a maior parte dos moradores não possui banheiro no interior das casas ou nas proximidades da residência. Segundo Silva (2007) e Amaral et al. (2003), isto contribui de forma direta para a proliferação de vetores e microrganismos que ocasionam doenças endêmicas e parasitoses.
Outro fator relacionado ao alto índice de contaminação por coliformes totais e fecais está relacionado com o fato da comunidade não ter coleta de resíduos sólidos domiciliares. O lixo é descartado em lugares inapropriados, contribuindo para a proliferação de microrganismos e vetores de doenças.
Trabalho semelhante foi realizado por Cunha et al. (2010), que avaliaram a contaminação do rio Itanhém em Teixeira de Freitas-BA, por meio da análise microbiológica, utilizando como um dos indicadores a Escherichia coli para coliforme fecal. Foram coletadas seis amostras de cada ponto. Do total de dezoito amostras, oito (44,44%) apresentaram contaminação por coliformes termotolerantes, e dessas oito, em 72,41% foi possível a identificação da espécie Escherichia coli.
Vasconcellos (2006), ao analisar a água do Rio São Lourenço, que nasce na área urbana da cidade, utilizou a análise de Número Mais Provável (NMP), confirmando que todos os pontos coletados das águas do Rio São Lourenço, segundo a resolução de nº 357 do CONAMA do ano de 2005 (estabelece um limite de 1.000 coliformes termotolerantes/100 ml em 80% das amostras analisadas), são impróprios para consumo humano ou animal, pois apresentaram concentração de coliformes acima do permitido pela legislação.
Ao término da pesquisa, foi confeccionado um relatório em que constavam os resultados, e este foi entregue à comunidade. Realizou-se reunião com os moradores das comunidades Baixio e Morro Redondo, a fim de discutir práticas acessíveis para redução da contaminação microbiológica das águas destinadas ao consumo.
Considerações finais
Com o projeto implantado na comunidade do Vão Grande, constatou-se que as condições das duas comunidades, Baixio e Morro Redondo, são precários. Os moradores não possuem acesso a serviços de saúde de qualidade, nem condições de saneamento básico adequado e nenhuma forma de assistência por parte das autoridades competentes. A água consumida pelos moradores, na maioria das vezes, não passa nem pelo processo de filtragem, e grande parte das casas não possui água encanada, banheiros ou fossas, fazendo que a água, que chega às casas diretamente dos rios, poços e minas, seja consumida sem qualquer forma de tratamento. Estes fatores podem contribuir diretamente para a dispersão e contaminação de agentes patológicos presentes na água, causando doenças. Os resultados obtidos poderão contribuir para o direcionamento de ações visando à melhoria de sua qualidade.