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Apresentação - Medicalização do crime: indagações genealógicas

A conversão do comportamento criminal em objeto da medicina encontra-se invariavelmente presente nas principais estratégias modernas de gestão da criminalidade. O acervo de conhecimentos construídos no campo das ciências humanas e sociais permite observar a vigência da inclusão do tema nas agendas contemporâneas de pesquisa e, ao mesmo tempo, reconhecer a pertinência de abordagens sócio-históricas para interrogar as trajetórias da medicalização do crime em períodos recentes.

Assim, a indagação de problemáticas como a representada no início do século XX na figura do “menor incorrigível” e sua reatualização no diagnóstico do transtorno de oposição e desafio (TOD) revelam a instigante presença de elementos matriciais do papel institucional da psiquiatria na defesa da sociedade. De maneira similar, o que nos primórdios da psiquiatria fora codificado em termos de degeneração e perversidade, categorias outrora presentes na ideia lombrosiana de “criminoso nato”, teria deixado sedimentos históricos em doses suficientes para ainda aparecer associado à noção mais contemporânea de “transtorno de personalidade antissocial” (Mitjavila; Mathes, 2013MITJAVILA, M. R.; MATHES, P. G. A psiquiatria e a medicalização dos anormais: o papel da noção de transtorno de personalidade antissocial. In: CAPONI, S. et al. (Org.). A medicalização da vida como estratégia biopolítica. São Paulo: LiberArs, 2013. p. 87-102.).

Por outra parte, o tipo de racionalidade biopolítica que caracteriza os processos de medicalização do crime na contemporaneidade demonstra, da mesma forma que a higiene mental de começos do século XX, que a ampliação dos domínios da psiquiatria não responde apenas a impulsos expansionistas intrínsecos do saber médico e sim às suas conexões e articulações com processos mais amplos de gestão biopolítica dos comportamentos anormais.

De modo geral, pesquisas que examinaram a emergência e consolidação da criminologia a partir da segunda metade do século XIX (Darmon, 1991DARMON, P. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.; Harris, 1993HARRIS, R. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.) mostraram o caráter matricial e os desdobramentos contemporâneos do monopólio precocemente conquistado pela psiquiatria para legitimamente definir o crime e o criminoso muito além do delito, isto é, como atributos que delineiam os difusos contornos do anormal no sentido da objetivação pioneira realizada por Michel Foucault (2002FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002.) acerca da psiquiatrização do crime no âmbito europeu.

Essa posição monopólica do saber médico decorre, entre outras coisas, da confiança institucional que as sociedades modernas costumam depositar na ciência e na técnica como fontes de administração do medo, das incertezas e das ameaças (Mitjavila; Mathes, 2016MITJAVILA, M.; MATHES, P. Labirintos da medicalização do crime. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 4, p. 847-856, 2016.). O crime tende a pôr em evidência a fragilidade do tecido social para administrar comportamentos que representam um desvio normativo e, ao mesmo tempo, escapam aos esquemas institucionais de controle social. No caso específico da periculosidade criminal, os níveis de medo e de incerteza parecem conduzir as instituições para uma mesma fonte de segurança: a medicina psiquiátrica. Dessa maneira, o saber psiquiátrico vai se instituir como árbitro da periculosidade criminal por meio de um “discurso do medo, um discurso que terá por função detectar o perigo e opor-se a ele. É, pois, um discurso do medo e um discurso da moralização” (Foucault, 2002FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 44).

De certa forma, o essencialismo biologista presente nos modelos etiológicos contemporâneos sobre o crime, também caracterizados por sua orientação punitivista e socialmente individualizadora, parece, até certo ponto, reatualizar a tendência secular da modernidade que ao patologizar o crime contribui decisivamente para a naturalização e, consequentemente, para a despolitização dos fenômenos que participam na produção e reprodução social do comportamento criminal.

O dossiê que ora apresentamos tem justamente como objetivo mostrar algumas análises sobre a maneira como a medicalização do crime foi se integrando a um conjunto de saberes, práticas e instituições responsáveis pelo monitoramento e o controle sociopolítico do crime e do indivíduo criminoso nas sociedades modernas (Kemshall, 2006KEMSHALL, H. Crime and risk. In: TAYLOR-GOOBY, P.; ZINN, J. (Org.). Risk in social science. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 76-93.). Trata-se de cinco contribuições cuja divulgação é realizada como parte da execução de um projeto de pesquisa orientado à descrição e análise comparativa de processos de medicalização do crime em diferentes contextos.1 1 Projeto de pesquisa “A medicalização do crime no Brasil e no Uruguai: indagações genealógicas”, executado na Universidade Federal de Santa Catarina com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo nº 409709/2013-1 e coordenado por Myriam Mitjavila.

O artigo intitulado “Dispositivos de segurança, psiquiatria e prevenção da criminalidade: o TOD e a noção de criança perigosa”, de Sandra Noemi Caponi, abre o dossiê com reflexões sobre uma problemática muito atual: a tendência crescente à multiplicação dos diagnósticos psiquiátricos na infância. A proliferação desse tipo de diagnósticos se desenvolve no âmbito de uma psiquiatria preventivista que acredita se apoiar em premissas segundo as quais certas patologias psiquiátricas que se manifestam na infância, se não forem tratadas, poderão evoluir na vida adulta para transtornos psiquiátricos severos e irreversíveis, associados à criminalidade e à delinquência. A análise da autora se debruça sobre uma dessas patologias psiquiátricas diagnosticadas na infância, o TOD, com o intuito de mostrar de que maneira a medicina psiquiátrica contemporânea associa esse diagnóstico ao desenvolvimento do transtorno de personalidade antissocial na vida adulta.

Por meio de um recuo histórico que nos leva até o século XIX, o pesquisador Claude Doron analisa a construção do conceito psiquiátrico de perversão e a maneira como esse conceito é usado no campo médico-jurídico. Em seu artigo intitulado “Perversão ou perversidade? Genealogia de um debate médico-jurídico”, Doron expõe o processo de elaboração conceitual que, a partir de 1820, é desenvolvido em torno do jogo de oposições representadas pelas noções de perversidade e perversão que, por sua vez, permitem distinguir dois registros, um jurídico (perversidade) e outro de caráter médico-psiquiátrico (perversão), bem como o tratamento que ambos os conceitos recebem e suas conexões com as definições de criminalidade e de periculosidade criminal.

O terceiro dos artigos que compõem o dossiê, intitulado “A gestão da menoridade sob o Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores de São Paulo (1930-1940): encruzilhada de saberes”, de Viviane Borges e Fernando Salla, apresenta uma análise da forma como foram categorizados os menores que se encontravam sob a tutela do Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores de São Paulo (Brasil) entre 1930 e 1940. A partir de uma extensa análise de fontes documentais, os autores descrevem e analisam as formas de classificação da população assistida nesse serviço por meio de saberes jurídicos, médicos, psiquiátricos e criminológicos, assim como a utilização dessas informações para fins de legitimação de intervenções estatais no campo da infância e suas projeções sociais que chegam até o espaço familiar.

Por sua vez, María Fernanda Vásquez, em seu artigo “Degeneración, criminalidad y heredo-alcoholismo en Colombia, primera mitad del siglo XX”, analisa as relações entre medicalização do crime e patologização do consumo de álcool como prática social. A autora mostra como o discurso médico colombiano do período examinado categorizou o alcoolismo como doença ou “estado mórbido” de forma fortemente associada à criminalidade e à prevalência de doenças mentais. O artigo destaca, ademais, a importância da apropriação da teoria da degeneração e seu uso como fundamento científico para o estabelecimento de relações etiológicas entre consumo de álcool e desenvolvimento de práticas criminosas e perturbações mentais.

Encerramos o dossiê com a contribuição de Elizabeth Ortega, María José Beltrán e Myriam Mitjavila apresentada no artigo “Eugenesia y medicalización del crimen a inicios del siglo XX en Uruguay”. Nele, as autoras examinam as relações entre eugenia e medicalização do crime na sociedade uruguaia de fins do século XIX e primeiras três décadas do século XX, enfatizando as peculiaridades do caso uruguaio, caracterizado pela praticamente ausente menção à raça como causa do comportamento criminal e pela exaltação do papel disgenético e criminogênico do consumo de álcool.

Por fim, esperamos que o material que integra este dossiê possa contribuir com o debate atual, histórico e epistemológico sobre a medicalização do crime e sobre as diversas estratégias preventivas que envolvem saberes, instituições e mecanismos de controle social.

Referências

  • DARMON, P. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
  • FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • HARRIS, R. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
  • KEMSHALL, H. Crime and risk. In: TAYLOR-GOOBY, P.; ZINN, J. (Org.). Risk in social science. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 76-93.
  • MITJAVILA, M. R.; MATHES, P. G. A psiquiatria e a medicalização dos anormais: o papel da noção de transtorno de personalidade antissocial. In: CAPONI, S. et al. (Org.). A medicalização da vida como estratégia biopolítica. São Paulo: LiberArs, 2013. p. 87-102.
  • MITJAVILA, M.; MATHES, P. Labirintos da medicalização do crime. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 4, p. 847-856, 2016.
  • 1
    Projeto de pesquisa “A medicalização do crime no Brasil e no Uruguai: indagações genealógicas”, executado na Universidade Federal de Santa Catarina com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo nº 409709/2013-1 e coordenado por Myriam Mitjavila.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2018
  • Aceito
    25 Maio 2018
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