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Estudo comparativo das inovações sobre condições crônicas na atenção primária em Porto Alegre, RS, Brasil e Ferrara, Itália

Resumo

Este estudo visa comparar os principais desafios referentes às inovações na atenção às condições crônicas percebidos por profissionais de atenção primária de Porto Alegre, Brasil, e Ferrara, Itália. Trata-se de pesquisa exploratória descritiva de abordagem qualitativa realizada em unidades da atenção primária, cujos dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com profissionais da Unidade Sanitária Local de Ferrara e grupos focais e entrevistas semiestruturadas com trabalhadores do Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre. Os dados foram discutidos por meio de análise temática. Colocando em análise os dois casos, destaca-se como desafios, a resistência tanto dos profissionais, quanto dos usuários diante das práticas inovadoras, dificuldades na gestão do cuidado e deficiência no processo de formação, que ainda não prepara o profissional para o novo modelo de atenção. Conclui-se que estes desafios influenciam claramente no dia a dia dos serviços e desestimulam a incorporação de práticas inovadoras no cuidado das pessoas com condições crônicas.

Palavras-chave:
Doença Crônica; Atenção Primária à Saúde; Saúde da Família

Abstract

This study compares the main challenges related to innovations in health care concerning chronic conditions perceived by primary care professionals from Porto Alegre, Brazil, and Ferrara, Italy. This is a descriptive exploratory study with a qualitative approach performed in primary care units whose data were collected through semi-structured interviews with professionals from the Local Sanitary Unit of Ferrara and focus groups and semi-structured interviews with workers of the Community Health Service of the Grupo Hospitalar Alegre Conceição of Porto Alegre. Data were discussed using thematic analysis. By analyzing both cases, the main challenges of both professionals and users are innovative practices, difficulties in the organization and management of care, and inefficient training process, which still does not prepare the professional for the new health care model. We conclude that these challenges influence the daily routine of these professionals and discourage the incorporation of innovative practices in the care of people with chronic conditions.

Keywords:
Chronic Disease; Primary Health Care; Family Health

Introdução

As condições crônicas constituem um dos maiores problemas de saúde pública e têm gerado elevado número de mortes prematuras, perda de qualidade de vida, além de impactos econômicos para famílias, comunidades e a sociedade em geral. No Brasil e na Itália, as condições crônicas também se constituem como um problema de saúde de grande magnitude e correspondem a 72% e 92% das causas de mortes, respectivamente (WHO, 2014WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Noncommunicable diseases country profiles 2014. Genebra, 2014.).

Assim, a implantação de modelos de atenção que respondam adequadamente às condições crônicas faz-se necessária. Diante desta nova agenda, muitos países vêm reformulando seus sistemas de saúde nos últimos anos, redirecionando-os a uma estrutura integrada, com foco no fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) e no cuidado aos crônicos. Porém, devido à dificuldade da quebra de paradigma de condutas normativas e da construção de um trabalho interprofissional observadas nos serviços de saúde, este trabalho teve por objetivo comparar os desafios referentes às inovações na atenção às condições crônicas, percebidos por profissionais da APS em duas cidades: Porto Alegre (Brasil) e Ferrara (Itália).

Deste modo, este estudo foi realizado em dois espaços diferentes: no Serviço de Saúde Comunitária (SSC) que integra o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) em Porto Alegre e nas Casas da Saúde da Unidade Sanitária Local (AUSL) de Ferrara, com a intenção de buscar o reconhecimento entre suas semelhanças e diferenças. Os espaços foram escolhidos porque passam por um momento de fortalecimento dos cuidados primários e por introduzirem novas ferramentas do manejo de crônicas.

Desta forma, para melhor compreensão das inovações na atenção às condições crônicas, apresentamos, na sequência, mudanças no cuidado às pessoas com condições crônicas, referente à APS dos dois países. O SSC/GHC inova no uso de tecnologias de atenção à saúde, investindo em mudanças fundamentadas em modelos internacionais e no Modelo de Atenção às Condições Crônicas (MACC). Desde 2011, estão sendo introduzidas neste serviço novas ferramentas no manejo de crônicas nas unidades de saúde, como as consultas sequenciais e coletivas por equipe multidisciplinar, e a utilização de instrumentos de autocuidado apoiado e a estratificação conforme riscos e vulnerabilidades. Já a AUSL de Ferrara investe em tecnologias para o cuidado dos crônicos baseada em modelos internacionais e no plano nacional específico para o combate às condições crônicas do Ministério da Saúde italiano. Também tem focalizado na medicina de iniciativa e nos percursos assistenciais integrados, considerado novas abordagens organizacionais para adequar as respostas assistenciais frente ao aumento das condições crônicas (Mondini, 2015MONDINI, P. La “sanità d’iniziava” e lo sviluppo del nursing nelle cure primarie. Salute e Territorio, Pisa, n. 204, n. 527-530, 2015.).

Diante deste contexto, tornam-se relevantes estudos comparativos que possibilitem a reflexão sobre determinadas problemáticas em diferentes contextos, a fim de contribuir para a identificação de problemas comuns e para a troca de conhecimentos sobre como enfrentá-los. Além disso, têm como finalidade proporcionar elementos para que os serviços venham a desenvolver novas maneiras de cuidar das pessoas com condições crônicas em seus territórios de responsabilidade.

Método

Esta pesquisa qualitativa de cunho comparativo foi realizada em Ferrara, província da região da Emilia Romagna, Itália, em 2017, e, posteriormente, em Porto Alegre/RS, 2018, por conta de um doutorado-sanduíche de um dos autores. Os dados foram comparados, tendo em vista que os dois serviços realizam importantes mudanças na atenção em saúde em condições crônicas.

O estudo se concretizou nas unidades de saúde do SSC/GHC, referência em saúde para 105 mil pessoas e nas Casas da Saúde da AUSL de Ferrara, considerada referência para 354 mil pessoas. Em Ferrara, o estudo ocorreu nas três Casas da Saúde em funcionamento no período da pesquisa. A Casa da Saúde é uma unidade de saúde próxima do que no Brasil se conhece por Unidade Básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Em Porto Alegre, a pesquisa foi realizada em quatro unidades de saúde do SSC/GHC.

A coleta de dados realizada em Ferrara foi entre abril e setembro de 2017. A dificuldade de os profissionais encontrarem espaços para o diálogo, pela falta de uma cultura de trabalho em equipe, impediu a realização das discussões focais, assim a coleta de dados foi baseada em observação participante e entrevistas semiestruturadas com profissionais/gestores das Casas da Saúde. Em Porto Alegre, a coleta realizou-se entre julho e dezembro de 2018 e foi baseada em observação participante, discussões focais com as equipes de saúde e entrevistas semiestruturadas com integrantes do Centro de Estudos e Pesquisas em Atenção Primária (Cepaps/GHC). Em Ferrara foram entrevistados 11 profissionais e em Porto Alegre foram realizadas quatro discussões focais com as equipes de saúde, uma em cada unidade e entrevistados três integrantes do Cepaps/GHC.

Para a análise dos dados, valeu-se da análise temática de Minayo (2010)MINAYO, M. C. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2010., que se desdobra em três momentos: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos com sua interpretação. A pré-análise consistiu na transcrição fiel dos grupos focais e entrevistas gravadas, leituras do material e organização dos dados.

Sendo assim, essa análise foi realizada utilizando a construção de categorias obtidas por meio da leitura exaustiva e profunda das entrevistas e grupos focais, identificando as semelhanças, os elementos e ideias, chegando aos seguintes núcleos de sentidos: resistência diante das práticas inovadoras; desafios na gestão do cuidado e formação profissional. Numa última etapa, buscamos desvendar o conteúdo do tema, o que nos permitiu ampliar a compreensão dos contextos (Minayo, 2010MINAYO, M. C. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.), e os desafios referentes às inovações na atenção às condições crônicas destes serviços de saúde na atenção primária.

A pesquisa foi aprovada pelo Centro de Saúde Internacional, vinculado à Universidade de Bolonha. No Brasil, a aprovação foi do Comitê de Ética da Unisinos e do GHC, em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, envolvendo seres humanos. Em ambos os locais, para manter o sigilo dos participantes, eles foram denominados por nomes de flores. Os entrevistados, esclarecidos sobre a divulgação do estudo, assinaram o Termo de Consentimento.

Resultados e discussão

Resistência diante das práticas inovadoras

Pela análise temática, foi destacado que tanto profissionais como usuários são resistentes diante das práticas inovadoras. Encarar a transição do modelo de atenção às condições agudas para o de condições crônicas ainda se configura como uma dificuldade e implica em obstáculos para o desenvolvimento e a consolidação destas práticas.

Tem uma valorização maior da consulta individual, em detrimento das práticas inovadoras, das atividades, dos espaços que a gente está compartilhando com outras pessoas. Eu vejo que é uma cultura, tanto da parte do profissional, como também do usuário, de ter uma resistência em participar. (Enfermeira Flor de Lótus - SSC/GHC)

A concepção enraizada na maioria dos trabalhadores de saúde é de que fazer saúde se resume a consultas individuais e procedimentos. Com isso, não valorizam as novas propostas. Um dos fatores associados a essa desvalorização é a herança do modelo hegemônico “curativista” centrado na doença, o que faz com que o modelo de atenção às condições crônicas seja pouco valorizado pelos usuários e pelos profissionais.

O predomínio da cultura proveniente da medicina prescritiva também foi algo encontrado na pesquisa de Mássimo, Souza e Freitas (2015)MÁSSIMO, E. A. L.; SOUZA, H. N. F.; FREITAS, M. I. F. Doenças crônicas não transmissíveis, risco e promoção da saúde: construções sociais de participantes do Vigitel. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 679-688, 2015.. Segundo os autores, ainda predomina a ideia que o cuidar da saúde é ir ao médico e fazer exames regularmente. Essa representação parece vir na contramão das práticas de atenção às condições, na perspectiva da autonomia e do empoderamento. Silva et al. (2018)SILVA, L. B. et al. Avaliação do cuidado primário à pessoa idosa segundo o Chronic Care Model. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 26, e2987, 2018. em seu estudo constataram baixa qualidade do cuidado às pessoas com diabetes mellitus e/ou hipertensão na APS segundo o Chronic Care Model (CCM), indicando que a reordenação do modelo assistencial orientado para o cuidado crônico no contexto da APS parece ainda distante de seus pressupostos, cedendo lugar aos modelos biomédicos tradicionais.

O estudo comparativo de Heidemann et al. (2018)HEIDEMANN, I. T. S. B. et al. Estudo comparativo de práticas de promoção da saúde na atenção primária em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil e Toronto, Ontário, Canadá. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 4, e00214516, 2018. realizado em unidades de atenção primária de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, e Toronto, Ontário, Canadá para compreender as experiências de organização dos sistemas públicos de saúde universais também evidenciou uma atenção à saúde voltada para o modelo hegemônico, carecendo avançar para a concepção positiva da saúde e dos determinantes sociais.

Na AUSL de Ferrara, os profissionais destacaram a resistência do próprio grupo da seguinte forma: A principal dificuldade é a resistência. A Casa da Saúde tem uma grande potencialidade, mas necessita da motivação dos profissionais, de “não estarem fechados. Quando você encontra pessoas que não querem mudar, a mudança não acontece (Enfermeira Perpétua). Também chamou a atenção, ao apontarem o processo de aposentadoria de funcionários e a chegada de novos profissionais como aspecto positivo. Segundo os entrevistados, os novos funcionários chegam à Casa de Saúde com maior ânimo para a realização de propostas que desencadeiam mudanças benéficas; ao passo que os profissionais mais antigos demonstram maior resistência à implementação de ações que ocasionem mudanças na rotina.

A maior dificuldade é a mudança de mentalidade dos profissionais. Nós temos pessoas de certa idade que estão habituadas a esquemas velhos de trabalho e para superar estes esquemas precisa-se de tempo. Espero que cheguem muitas pessoas novas, com vontade de realizar mudanças. (Médico Narciso)

Salci, Meirelles e Silva (2018)SALCI, M. P.; MEIRELLES, B. H. S.; SILVA, D. M. G. V. Educação em saúde para prevenção das complicações crônicas do diabetes mellitus na atenção primária. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, e20170262, 2018., em seu estudo sobre educação em saúde para prevenção das complicações crônicas do diabetes mellitus na atenção primária, também identificaram dificuldades dos profissionais para conduzirem práticas diferente dos moldes tradicionais. Os autores observaram que as estratégias metodológicas para a prática de atividades que contemplassem ações de educação em saúde eram tímidas e modestas; não havia o envolvimento de todos os integrantes das equipes na busca por uma assistência integral, com a participação de todos os atores sociais; e não tinha um objetivo mais amplo de desenvolvimento de competências, corresponsabilização e coparticipação que visasse estimular e desenvolver nas pessoas a autonomia para o autocuidado e escolhas conscientes.

Uma revisão sistemática da literatura sobre os fatores que influenciam a implementação do CCM identificou que as principais barreiras para sua implementação são a cultura organizacional, as características estruturais, a rede de comunicação e o apoio da liderança (Kadu; Stolee, 2015KADU, M. K.; STOLEE, P. Facilitators and barriers of implementing the chronic care model in primary care: a systematic review. BMC Family Practice, Londres, v. 16, artigo 12, 2015.). Já outra revisão sistemática sobre o modelo de atenção crônica ao diabetes identificou que o uso de componentes isolados do CCM não parece ser suficiente para melhorar os resultados; no entanto, é possível que maiores benefícios possam ser obtidos por meio de intervenções que combinem os seis elementos do CCM (Baptista et al., 2016BAPTISTA, D. R. et al. The chronic care model for type 2 diabetes: a systematic review. Diabetology & Metabolic Syndrome, Londres, v. 8, artigo 7, 2016.).

Davy et al. (2015)DAVY, C. et al. Effectiveness of chronic care models: opportunities for improving healthcare practice and health outcomes: a systematic review. BMC Health Services Research, Londres, v. 15, artigo 194, 2015. revela que a implementação do modelo foi bem-sucedida quando houve uma necessidade reconhecida pela organização e uma decisão partilhada em equipe, de melhoria contínua de qualidade que suportasse a mudança. Robusto et al. (2018)ROBUSTO, F. et al. The effects of the introduction of a chronic care model-based program on utilization of healthcare resources: the results of the Puglia care program. BMC Health Services Research, Londres, v. 18, n. 1, artigo 377, 2018. destaca ainda que a introdução do CCM se mostra eficiente para a redução de custos. Um estudo de coorte retrospectivo de base populacional realizado em Puglia, na Itália, identificou redução de dias e custos de internações em um grupo de pessoas com condições crônicas incluídas em um programa de cuidados orientados pelo CCM quando comparado com indivíduos que receberam atendimentos habituais

No que tange aos usuários, os profissionais da AUSL de Ferrara destacaram que as pessoas com condições crônicas ainda relutam em compreender a importância do protagonismo na saúde: A maior resistência dos cidadãos é entender que eles são protagonistas da sua própria saúde (Pedagoga Primavera).

Esse comportamento também prevaleceu no estudo de Raupp et al. (2015)RAUPP, L. et al. Doenças crônicas e trajetórias assistenciais: avaliação do sistema de saúde de pequenos municípios. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 615-634, 2015.. A grande maioria dos usuários não referia participar de atividades de promoção ou prevenção em saúde e procurava a unidade apenas para consultas ou procedimentos eventuais. Os resultados encontrados no estudo de Mássimo, Souza e Freitas (2015)MÁSSIMO, E. A. L.; SOUZA, H. N. F.; FREITAS, M. I. F. Doenças crônicas não transmissíveis, risco e promoção da saúde: construções sociais de participantes do Vigitel. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 679-688, 2015. revelaram que as pessoas mais aderentes à ideia de promoção da saúde são aquelas que desde muito cedo tiveram essa experiência, ou seja, aprenderam a se cuidar e a adotar hábitos saudáveis, tendo isso como um julgamento de valor introjetado precocemente em suas vidas. Segundo os autores, a adesão a modos de vida saudáveis, a disposição para o cuidado e o autocuidado são constructos sociais adquiridos ao longo da vida.

A diferença entres as doenças agudas e as crônicas é que as crônicas não podem ser curadas, somente cuidadas. Isso significa que, mesmo com um tratamento perfeito, as pessoas deverão acompanhar a doença para o resto da vida. Em outras palavras, o tratamento para as doenças crônicas não é voltado para a restauração da saúde nos termos biológicos da palavra, mas para controlar os sintomas e prevenir a progressão da doença nas fases mais severas. Por isso, o tratamento das condições crônicas deveria ser entendido como uma estratégia de prevenção terciária e quaternária, mantida ao longo da vida inteira para reduzir os efeitos crônicos do problema de saúde e a consequente excessiva medicamentalização (Tesser, 2017TESSER, C. D. Por que é importante a prevenção quaternária na prevenção? Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, artigo 116, 2017.) que são as bases para manter a autonomia.

No entanto, entende-se que não se pode perder de vista que a liberdade de escolha da pessoa é o pano de fundo de todo esse processo e, como tal, os profissionais precisam também trabalhar com suas expectativas para lidar com a resposta do sujeito. Alguns acreditam que somente usar a medicação prescrita pelo médico pode configurar o melhor tratamento, sabendo que a adoção de novos hábitos é tão importante quanto a medicação. Outras utilizam terapias populares para cuidar-se, demonstrando grande interesse por tais práticas, pautado por experiências empíricas e familiares (Ulbrich et al., 2012ULBRICH, E. M. et al. Atividades educativas para portadores de doença crônica: subsídios para a enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 33, n. 2, p. 22-27, 2012.).

Considerando a singularidade do cuidado e a necessidade de respeitar e compreender a heterogeneidade de cada pessoa e de seu entorno, além da unicidade e da multiplicidade das pessoas em seu processo de viver uma condição crônica, todos esses fatores devem ser ponderados pelos profissionais de saúde, no acompanhamento sistemático a essa população; principalmente, ao se levar em conta a importância de as pessoas com condições crônicas receberem acompanhamento de qualidade na APS (Gómez-Palencia; Castillo-Ávila; Alvis-Estrada, 2015GÓMEZ-PALENCIA, I. P.; CASTILLO-ÁVILA, I. Y.; ALVIS-ESTRADA, L. R. Incertidumbre en adultos diabéticos tipo 2 a partir de la teoría de Merle Mishel. Aquichan, Bogotá, v. 15, n. 2, p. 210-218, 2015.).

A mudança tanto das pessoas com condições crônicas quanto dos profissionais não é totalmente controlável, pois cada um tem seus valores, suas concepções, suas ideias. Podemos afirmar que mesmo após a implantação das inovações não são garantidas mudanças automáticas na prática do cuidado. A ruptura com o modelo curativo, pretendido pelas práticas de atenção às condições crônicas, é processual. Na realidade, em ambos os casos, verificou-se acúmulo de iniciativas, o que embora indique uma mudança na qualidade do cuidado, não configura ainda um novo modelo.

Gestão do cuidado

Identificamos que os profissionais se queixaram das regras impostas pela gestão e da necessidade de superar um passado de fragmentação, que ocorre desde a origem dos sistemas de saúde.

Não existe, dentro da gestão, a compreensão de que se nós somos um serviço de atenção primária e que na verdade o nosso indicador não é só produtividade, o nosso desfecho seria hipertensos controlados e não o número de consultas produzidas. (Psicóloga Estrelita - SSC/GHC)

Reconhece-se a importância de assegurar, nos espaços de cuidado, indicadores e atendimentos individuais para as pessoas com condições crônicas. No entanto, sua ênfase não deveria ser sobre o cumprimento das metas de atendimento de pacientes hipertensos, por exemplo, mas entender quantos estão efetivamente com a pressão arterial controlada. Observa-se também, nos discursos, que há dissonância entre o que defende o SSC/GHC, de introduzir mudanças gerenciais, permeadas por processo de cogestão, com a prática de gestão. Os sujeitos apontam para uma concepção que valoriza a hierarquização descendente da organização do serviço, reforçando a racionalização gerencial hegemônica.

Tem uma cultura que cobra bastante em termos de produtividade de consultas, às vezes até de uma forma um pouco dissociada dessa mudança do modelo de atenção. Aí eu acho que vem uma coisa da tradição dos serviços e da própria organização que ainda é fragmentada e composta por pessoas que não conversam muito entre si. Parece que, por um lado, o serviço tem um projeto que é claro, mas é só para as pessoas que coordenam isso, às vezes não chega nas equipes. (Entrevistada Begônia)

Campos (2000)CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. realizou uma crítica à racionalidade gerencial hegemônica e indicou um método para análise e cogestão dos coletivos que busca favorecer a democratização da gestão nas organizações, por meio da formação de coletivos organizados, voltados para a produção de bens ou serviços, e do incentivo à participação dos sujeitos na gestão da organização e de seus processos de trabalho. Desta forma, o conceito é particularmente rico por incidir diretamente na relação hierárquica que caracteriza historicamente a assistência à saúde, enfatizando a potencialidade produtiva e emancipatória da participação dos sujeitos.

Terra e Campos (2019)TERRA, L. S. V.; CAMPOS, G. W. S. Alienação do trabalho médico: tensões sobre o modelo biomédico e o gerencialismo na atenção primária. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, e0019124, 2019. identificaram cenário semelhante. Foram muitas as queixas, principalmente sobre a ordenação das atividades, em geral restritas ao consultório e ao tempo rígido de consulta. A maior parte da carga horária se concentrava no consultório, e a maioria dos profissionais declarou não conseguir planejar sua rotina para atuar de forma mais ampla. Este achado corrobora a afirmação de Souza (2015)SOUZA, H. S. A interpretação do trabalho em enfermagem no capitalismo financeirizado: um estudo na perspectiva teórica do fluxo tensionado. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. de que há uma tendência ao gerencialismo mesmo no sistema público, inspirado em moldes fordistas, com definição das metas e da organização do trabalho unilateralmente pela gestão.

Assim como os profissionais do SSC/GHC, os entrevistados da AUSL de Ferrara também apontaram a fragmentação do serviço de saúde. Na descrição da profissional, uma consequência importante a ser considerada são os processos mais amplos da história do Serviço Sanitário Nacional Italiano (SSN): A fragmentação é muito presente e dura de confrontar. É preciso superar esta barreira, mas é um percurso difícil, por conta de toda a organização histórica do sistema sanitário (Enfermeira Azaleia).

É preciso ressaltar que o SSN tem passado por vários processos de reforma, a partir de 1992. O sistema de saúde tem sido “empresarializado” e tem produzido a entrada da lógica do gerenciamento econômico no sistema de saúde italiano. Com o decreto legislativo nº 229, de 19 de junho de 1999, a responsabilidade do serviço de saúde passa às Regiões, as quais herdam a lógica de organização e avaliação de tipo empresarial. A unidade organizacional do serviço de saúde italiano é a AUSL (‘Azienda’ Unità di Salute Locale). A AUSL tem responsabilidade de oferta de serviços de saúde, gestão, avaliação dos serviços e vigilância sanitária e epidemiológica. Nessa estrutura fundamental do sistema, os diferentes serviços são organizados de forma verticalizada (Martino et al., 2015MARTINO, A. et al. Modelo assistencial da Casa da Saúde: reestruturando o cuidado na atenção primária na Itália. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 1, n. 3, p. 87-101, 2015.).

No Brasil, a iniciativa privada também vem ganhando força. A atuação do setor privado é influenciada pela motivação de obtenção de lucro que este setor persegue, e não pela solidariedade ou pelo direito de cidadania, que são valores necessários a um modelo de proteção social que não atribua ao indivíduo toda a responsabilidade por sua saúde. Assim, sua ação mais visível será seletivamente sobre a parcela da população que tem capacidade financeira de consumir seus serviços (Cardoso et al., 2017CARDOSO, M. R. O. et al. O mix público e privado no sistema de saúde brasileiro: coexistência em evidência. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 107-118, 2017.). Ao priorizar o interesse econômico, o país coloca em risco a qualidade dos serviços para o atendimento integral das necessidades de saúde da população, com repercussões negativas no desempenho da ESF e na organização da rede básica de saúde (Facchini; Tomasi; Dilélio, 2018FACCHINI, L. A.; TOMASI, E.; DILÉLIO, A. S. Qualidade da atenção primária à saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, p. 208-223, 2018. Número especial 1.).

Outro ponto importante destacado pelos profissionais da AUSL de Ferrara é a falta de uma cultura de trabalho em equipe e a cogestão fragmentária em que os médicos se colocam fora do sistema: Os profissionais não estão habituados a trabalhar juntos, principalmente o núcleo de médicos. É difícil fazer com que eles entendam que o trabalho deles não é monosetorial, mas deve por força ampliar-se (Médica Érica).

Uma questão fundamental para ser entendida é o papel dos Médicos de Família (MdF) no SSN. Os MdF não são funcionários públicos, mas livres profissionais, podendo trabalhar isolados em seus consultórios privados ou dentro da Casa da Saúde. Quando aceitam trabalhar para dentro da estrutura, podem se recusar a trabalhar em equipe com os outros profissionais que, ao contrário, são contratualizados pelo SSN e respondem à gestão do serviço (Martino et al., 2015MARTINO, A. et al. Modelo assistencial da Casa da Saúde: reestruturando o cuidado na atenção primária na Itália. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 1, n. 3, p. 87-101, 2015.). Essas particularidades do SSN dificultam a constituição de equipes de saúde. Das três Casas da Saúde, nenhuma conseguiu constituir um trabalho em equipe verdadeiro e os médicos que aceitaram se transferir dentro das Casas da Saúde não têm modificado a forma de trabalhar.

Diferentemente da AUSL de Ferrara, no SSC/GHC existe trabalho em equipe, contudo, mesmo atuando em grupo, não há responsabilidade coletiva de todos os profissionais na organização das práticas de atenção às condições crônicas; ocorre um cumprimento individual de tarefas, demonstrando a falta de engajamento da equipe. Mesmo com a formação multiprofissional, acaba que cada um da equipe faz as suas atividades, no seu quadro, não fazem em conjunto […] e as inovações propõem que tu faça em conjunto e isso é uma dificuldade (Entrevistada Crisântemo).

Silva et al. (2016)SILVA, D. M. et al. Produção do cuidado aos casos de tuberculose: análise segundo os elementos do Chronic Care Model. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 50, n. 2, p. 239-246, 2016., em pesquisa sobre o cuidado aos casos de tuberculose, segundo os elementos do CCM nas unidades de saúde da Paraíba, notaram que as equipes de saúde têm perfil de equipes de agrupamento, com ações justapostas, caracterizadas pela fragmentação do trabalho e pela centralização das ações, em que cada profissional trabalha de forma isolada dentro de sua competência técnica. Embora exista certa comunicação entre alguns profissionais, observa-se que esta ocorre apenas como instrumentalização da técnica, como uma conduta a ser cumprida.

Diante do exposto, em ambos os casos, a forma como estão organizados os serviços e como atuam os profissionais tendem a retardar os processos de mudanças no cuidado às pessoas com condições crônicas. Na AUSL de Ferrara, o processo é inicial e, portanto, há também outros elementos e serem trabalhados, como, por exemplo, o que se refere à composição de equipes multiprofissionais e a cogestão fragmentária, em que os médicos se colocam fora do sistema. O SSC/GHC, ao contrário, é uma instituição consolidada, contudo, a falta de responsabilidade coletiva mostra que esse desafio precisa ser encarado para o aperfeiçoamento do trabalho em equipe.

Formação profissional

Identificamos que a maioria dos participantes considera que a formação ainda está centrada fortemente num modelo que privilegia o cuidado individual pautado no modelo biomédico e capacita para o desempenho tecnicista, ainda não abordando a competência com o enfoque ampliado dos problemas no cotidiano dos serviços.

É necessário agir sobre a formação dos profissionais, principalmente dos médicos. A formação atual é muito fragmentada e malfeita. São necessários formação sobre a prevenção, educação sobre os estilos de vida e trabalho junto com a comunidade. Você pode ser o melhor técnico ou o melhor médico deste mundo, mas se você não envolve a comunidade, não faz sentido. (Médico Amarílis - AUSL de Ferrara).

Pesquisa realizada por Gómez-Palencia, Castillo-Ávila e Alvis-Estrada (2015)GÓMEZ-PALENCIA, I. P.; CASTILLO-ÁVILA, I. Y.; ALVIS-ESTRADA, L. R. Incertidumbre en adultos diabéticos tipo 2 a partir de la teoría de Merle Mishel. Aquichan, Bogotá, v. 15, n. 2, p. 210-218, 2015. também identificou ausência de capacitação dos profissionais de saúde, o que repercutiu em uma atenção superficial que não preparava os sujeitos para autogerirem a sua condição.

Na Itália, a formação em atenção primária à saúde sofre de um atraso dramático que repercute em muitos aspectos no papel do clínico geral. Ao contrário do que acontece no resto da Europa, América Latina, Estados Unidos e Canadá, não existe uma especialização de pós-graduação acadêmica em atenção primária, mas um curso de formação, cuja gestão é confiada à cada uma das regiões administrativas, tanto em termos de programação do número de bolsas de estudo quanto em termos de programação da oferta educativa, que se torna, portanto, heterogênea. Do mesmo modo, uma formação substancial em atenção primária durante a graduação é ainda ausente nos currículos tradicionais, com exceção de alguma experiência avançada em algumas universidades isoladas (Becchi; Aggazzotti, 2008BECCHI, M. A.; AGGAZZOTTI, G. Progetto “Insegnamento della Medicina Generale e delle Cure Primarie” nel CLM in Medicina e Chirurgia dell’Università di Modena e Reggio Emilia. Medicina e Chirurgia, Ancona, v. 42, p. 1785-1789, 2008.).

Neste sentido, a formação em Atenção Primária na Itália surge em alguns aspectos fora da definição dada pela World Organization of National Colleges (Wonca), segundo a qual “a medicina geral é uma disciplina acadêmica e científica, com seus próprios conteúdos educacionais e de investigação, uma verdadeira atividade clínica baseada em comprovações e uma especialidade clínica orientada à assistência primária (Wonca, 2011WONCA - WORLD ORGANIZATION OF NATIONAL COLLEGES. La definizione europea della medicina generale/medicina di famiglia. Bracelona: Wonca Europe, 2011.).

A Federação italiana dos médicos apoia a necessidade urgente de mudanças na formação fundamentada em outros modelos, como a medicina de iniciativa, organizada em equipes multiprofissionais e baseada no papel pró-ativo do médico. Além disso, sugere que a formação de base deve ser caracterizada por conteúdos profissionais que apoiam o médico de família para orientar e acompanhar o paciente no seu percurso assistencial, além de realizar um melhoramento do estado de saúde da população em geral (FIMMG, 2007FIMMG - FEDERAZIONE ITALIANA MEDICI DI MEDICINA GENERALE. La ri-fondazione della medicina generale. Roma, 2007.).

Assim, como os profissionais de Ferrara, os profissionais do SSC/GHC também apontaram deficiência no processo de formação, que ainda não prepara o profissional para o novo modelo de atenção:

É muito difícil que os profissionais defendam uma coisa que eles não estão formados para isso, porque tu não vai te expor a uma coisa que tu tem insegurança, e nas condições crônicas, as práticas são muito mais comportamentais. Então tem um paradoxo, a gente tem uma formação que não contempla essas novas propostas (Entrevistada Crisântemo).

A formação em saúde no Brasil ainda está estruturada no modelo disciplinar de ensino e fundamentada nas ciências biológicas como fonte principal de conhecimento. Mesmo após mais de 10 anos de existência da Lei de Diretrizes Curriculares Nacionais, Almeida Filho (2013)ALMEIDA FILHO, N. M. Contextos, impasses e desafios na formação de trabalhadores em saúde coletiva no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p. 1677-1682, 2013. aponta que a universidade brasileira, em seu regime ainda hegemônico, submete seus ingressantes a uma formação baseada em currículos fechados, menos interdisciplinares e cada vez mais especializados, pouco comprometidos com as políticas públicas de saúde e com tendência à alienação, dificultando, assim, um eficiente trabalho em equipe.

A formação dos profissionais de saúde está vivendo um período de grande crise, mas esse não é um problema exclusivo do GHC no Brasil e da AUSL de Ferrara na Itália. A Comissão Independente Global para Educação dos Profissionais da Saúde alerta que as fragilidades da formação são comuns à maior parte dos países. Dentre os principais entraves, destacam: incompatibilidade de competências para as necessidades dos usuários e da população; frágil trabalho em equipe; foco excessivamente técnico; limitação na compreensão dos contextos locais; orientação hospitalar predominante em detrimento da atenção primária; e fraca capacidade de liderança para melhorar o desempenho do sistema de saúde (Frenk et al., 2010FRENK, J. et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet, Londres, v. 376, n. 9756, p. 1923-1958, 2010.).

Para auxiliar na formação deficitária dos profissionais da saúde, é necessária a formação no serviço. Para tanto, a Educação Permanente em Saúde (EPS) torna-se uma ferramenta para a reflexão do profissional para alcançar a integralidade, com ação-reflexão-ação, tendo como intencionalidade a articulação de novos saberes na formação, a mudança de atitude, a autonomia e motivação do sujeito, qualificação e mudança das práticas do cuidado (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.194, de 28 de novembro de 2017. Dispõe sobre o Programa para o Fortalecimento das Práticas de Educação Permanente em Saúde no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 2017.). No SSC/GHC, as atividades de EPS são realizadas mensalmente nas unidades de saúde, através de discussão de casos e seminários orientados pela realidade local.

Na Itália, a estratégia utilizada para a qualificação dos profissionais é a educação continuada, contudo, da maneira como foi concebida, tende a favorecer o reconhecimento em créditos da Educazione Continua in Medicina (ECM), conforme a participação em grandes congressos de custos elevados, muitas vezes subsidiados pela indústria farmacêutica, com repercussões óbvias sobre a não neutralidade da informação (Pisacane, 2008PISACANE, A. Rethinking continuing medical education. BMJ, Londres, v. 337, a973, 2008.). A educação continuada nem sempre atende às necessidades oriundas do trabalho e tampouco modifica suas estruturas e seus processos no sentido de qualificá-los no que diz respeito ao atendimento das demandas sociais, que requerem intervenções técnico-operativas (Fernandes, 2016FERNANDES, R. M. C. Educação permanente e políticas sociais. Campinas: Papel Social, 2016.).

A EPS como dispositivo para fomentar mudanças, operando principalmente sobre a micropolítica do processo de trabalho, é necessária para gerar uma reestruturação produtiva nas Casas da Saúde. Pensando assim, através das experiências brasileiras, incluindo o GHC, o Centro de Saúde Internacional (CSI), vinculado à Universidade de Bolonha, a EPS está incentivando as Casas da Saúde da AUSL de Ferrara a fazer, com pequenos grupos multiprofissionais, uma educação permanente como estratégia de requalificação das práticas de formação, assistência e gestão.

Em ambas as realidades, os profissionais destacaram conflitos na formação dos profissionais. Conflitos marcados pela incapacidade de atualizar as metodologias e os conteúdos de ensino às profundas mudanças ocorridas nas últimas décadas, quer no âmbito social, quer no âmbito da saúde. Nesse sentido, a EPS precisa ser trabalhada e incentivada de forma constante, de modo que os resultados obtidos possam desencadear mudanças significativas nos processos de trabalho. No SSC/GHC, a EPS é experimentada desde 2008, portanto já está inserida no serviço de maneira mais forte e articulada. Diferentemente, na AUSL de Ferrara, a EPS foi proposta em meados de 2014, portanto ainda é considerada uma experiência recente.

Considerações finais

Com base neste trabalho, consegue-se visualizar desafios referentes às inovações na atenção às condições crônicas em dois serviços de atenção primária de dois países com contextos distintos. Identificou-se nos relatos de ambos locais que ainda há resistência, tanto dos profissionais quanto das pessoas com condições crônicas diante das práticas inovadoras. No que se refere a gestão do cuidado, no SSC/GHC ressaltamos o enfoque da gestão por resultados e na AUSL de Ferrara a dificuldade na composição de equipes multiprofissionais e a cogestão fragmentária, em que os médicos se colocam fora do sistema. Outro ponto a ser destacado diz respeito à fragmentação nos serviços de saúde.

Em ambas as realidades, há ainda deficiência no processo de formação dos profissionais frente às profundas mudanças ocorridas nas últimas décadas. Em contrapartida, tanto o SSC/GHC, quanto a AUSL de Ferrara, estão investindo na EPS, a fim de ampliar o engajamento e a reflexão crítica dos gestores e trabalhadores, de modo que contribua para a qualificação dos profissionais.

Constata-se, sobretudo, que estes desafios influenciam claramente no dia a dia dos serviços e desestimulam a incorporação de práticas inovadoras no cuidado de pessoas com condições crônicas. Sendo assim, espera-se que este artigo, possa potencializar novas reflexões, subsidiando dessa forma a reorientação do modelo de produção do cuidado e a consequente modificação dos processos de trabalho.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2019
  • Aceito
    22 Nov 2019
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