Introdução
A primeira Constituição Republicana do Brasil criou um sistema federativo que descentralizou o poder político e econômico, dando autonomia aos estados. São Paulo, que no período era líder na economia cafeeira, defendeu essa descentralização, pois a proposta favorecia o governo paulista a agir de forma destacada na federação, mantendo e ampliando os projetos que o interessavam economicamente, em especial os ligados à cafeicultura (Luna; Klein, 2019).
A elite paulista, formada pelos barões do café e seus aliados, era um grupo coeso, com experiência em negócios e na agricultura, e com uma estreita relação com o Partido Republicano Paulista e autoridades municipais. A capacidade de obtenção de crédito por conta das influências dessa elite sobre o governo proporcionou ao estado paulista ampliar os serviços e infraestruturas, das quais se destacaram a implantação e expansão de ferrovias, bancos e casas comissárias, comércio de importação e exportação, comércio atacadista e varejista, construção civil, indústrias e comunicações (Gunn, 1992; Luna; Klein, 2019).
Os créditos e os investimentos públicos ampliaram a malha ferroviária, dando condições para a expansão das fazendas e das produções de café para a zona oeste do estado (Losnak, 2017; Luna; Klein; Summerhill, 2014).2, possibilitando também ao estado promover a política imigratória, fomentando estratégias como subvenção de passagens, assistência e hospedagem,3 que garantiriam mão de obra suficiente em um período de escassez, após medidas abolicionistas tomadas a partir da década de 18504 (Udaeta, 2013).
Essas políticas pautadas nas subvenções implantadas após 1870 elevaram a densidade demográfica paulista, chegando a triplicar o número de habitantes no estado entre os anos de 1872 e 1900 (Ribeiro, 1993).5 Os imigrantes que aportaram em Santos eram, em sua grande maioria, originários do norte da Itália, uma região de tradição agrícola e com alto índice de pobreza. Sem condições de sustento, muitos imigrantes aceitavam temporariamente as precárias condições de trabalho nas fazendas, destinando-se após curto período para os centros urbanos na busca de melhores condições de vida e trabalho (Lanna, 2012). O problema é que não havia por parte do governo paulista planejamentos urbano e sanitário adequados para receber os imigrantes que se instalavam nas cidades, ficando a população imersa em um ambiente insalubre, propício à disseminação de enfermidades, a exemplo da febre amarela.
Neste contexto de adoecimento da mão de obra, o governo passou a implantar medidas mais severas para combater as epidemias. Em fins do século XIX foi criado o Código Sanitário e foi reestruturada a antiga e simples Inspetoria de Higiene, instalando um grande aparato formado por laboratórios e institutos de pesquisa que, em conjunto com a Hospedaria dos Imigrantes, buscava controlar os programas de saúde pública mediante uma crescente imigração (Ribeiro, 1993). A estrutura de assistência individual, no entanto, não foi prioritária nos projetos governamentais pois, conforme Telarolli Junior (1996), o governo se limitou ao controle de doenças infectocontagiosas por meio de suas instituições. Isso porque, conforme Sanglard (2008), ao estado caberia intervir somente em situações calamitosas - o que, dentro do campo da assistência, significava atuar somente em períodos de epidemias. Desta forma, o governo estadual transferiu aos próprios cidadãos, aos médicos e às instituições privadas6 a responsabilidade pelos tratamentos das enfermidades não infectocontagiosas.
Com esse modelo de gestão, o governo estadual apoiou financeiramente algumas instituições que realizavam atendimentos aos pobres, desvalidos e imigrantes. Essa prática, que ocorria desde o período imperial, se intensificou após a Proclamação da República, acompanhando o aumento dos atendimentos aos enfermos na mesma proporção em que se elevava as taxas populacionais (Silva, 2010).7
A relação entre o estado e as instituições de assistência privada foi objeto de estudo de diversos pesquisadores principalmente nos últimos 10 anos. Dentre eles, destacamos os trabalhos de Sanglard e Ferreira (2018) com pesquisas sobre o Rio de Janeiro; a tese de Tomaschewski (2014) sobre as Irmandades no estado do Rio Grande do Sul; o artigo de Souza (2011) sobre a rede de assistência no estado da Bahia e, em particular, os trabalhos de Silva (2010, 2011), que estudou as Irmandades em São Paulo e sua relação com o governo paulista. Nesses estudos podemos observar que a maioria das instituições de assistência, principalmente as filantrópicas, possuía uma função pública, mesmo sendo de caráter privado.
Mesmo com esse importante e crescente referencial que apontou a participação do estado nas questões relativas à assistência médica individual, percebemos que ainda não foram abordadas de forma mais ampla as políticas públicas do governo paulista acerca dessas instituições.8 A bibliografia sobre o estado paulista indicou que havia um aporte financeiro que era repassado para as instituições filantrópicas e caritativas, mas não analisou quanto era repassado para as todas as instituições privadas, o quanto o valor dos subsídios representava para o orçamento do estado, quem eram as instituições que recebiam essas verbas e como ocorria a parceria entre o estado e as instituições privadas.
Neste artigo objetivamos preencher essas lacunas por meio da análise dos planos orçamentários de São Paulo entre 1891 e 1910, do conjunto de leis e decretos estaduais, dos Relatórios da Secretaria do Interior e de artigos jornalísticos, contribuindo assim para a historiografia sobre a assistência pública e privada no estado de São Paulo. Em termos conceituais, usaremos os pressupostos de Sanglard e Silva (2010), que definem a “assistência pública” como o conjunto de instituições públicas e privadas, laicas e religiosas, que fundaram hospitais, asilos, creches, orfanatos, hospícios, policlínicas para cuidarem de doentes, pobres, crianças, idosos e doentes mentais. Para nossa análise, consideramos instituições de assistência pública aquelas que aparecem nos planos orçamentários com as denominações: “Santa Casa”, “Hospitais”, “Maternidade”, “Dispensários”, “Lazaretos”, “Sanatórios”, Policlínicas”, “Sociedades Beneficentes”, “Asilos”, “Albergues”, “Casas Pias”, “Orfanatos”, “Abrigos” e “Conferência S. V. de Paulo”.
Além da introdução e considerações finais, o artigo foi dividido em três partes. A primeira busca apresentar brevemente como o governo se aproximou das instituições particulares, em especial das filantrópicas, para auxiliá-las na questão da assistência pública. Na segunda identificamos as instituições privadas que receberam verbas do governo e os valores destinados a elas. Ainda nessa segunda parte, a fim de entendermos o que a verba de subvenções representava no plano orçamentário estadual, usaremos como base comparativa os valores destinados ao Serviço Sanitário, órgão responsável pelo saneamento e combate das enfermidades infectocontagiosas. Esse órgão, criado e administrado pelo poder público, além de possuir uma equipe diretamente ligada à diretoria, detinha também vários institutos sobre a sua gestão, como o Serviço Geral de Desinfecção, o Instituto Bacteriológico, o Laboratório de Análises Químicas e Bromatológicas, o Instituto Vacinogênico, o Laboratório Químico e Farmacêutico e os Hospitais de Isolamento. De acordo com Ribeiro (1993), Telarolli Junior (1996) e Mota e Marinho (2013), o Serviço Sanitário foi um importante órgão governamental que conseguiu controlar e combater algumas enfermidades mais preocupantes da época como a febre amarela, a varíola e a peste bubônica. Na terceira parte analisamos a atuação governamental nas campanhas de combate ao tracoma, uma enfermidade oftálmica contagiosa endêmica em São Paulo desde a década de 1880. Nas primeiras décadas do século XX, o governo estadual tentou implantar uma rede própria de atendimentos para assistir os enfermos não só de tracoma, mas também de outras doenças como a ancilostomose, malária e febre tifoide, além de realizar vacinações. Por meio da história do tracoma e dos discursos parlamentares, conseguimos analisar as ações governamentais para a implantação e manutenção dos postos de atendimento instalados em vários pontos do estado e como se dava a parceria entre o governo e as instituições privadas.
A pobreza, a imigração, a doença e a assistência
Em fevereiro de 1836, a província de São Paulo aprovou o “Compromisso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia da Imperial Cidade de S. Paulo” com a Lei n. 2 assinada pelo Presidente da Província José Cesário de Miranda Ribeiro. De acordo com o texto da lei, a Irmandade teria a obrigação de manter as casas dos expostos, o hospital da pobreza e os lázaros que fossem por ela estabelecidos (São Paulo, 1836).
Pautada nos princípios desse primeiro Compromisso, a Irmandade instalou, em pouco mais de meio século, hospitais em mais de 35 municípios atendendo a cidade portuária do estado, a capital e diversos municípios do interior (Koury, 2004). O processo de instalação dos primeiros hospitais em Santos e em São Paulo são considerados por Silva (2011, p. 65) “uma das primeiras formas de atenção à saúde verificadas em São Paulo”.9
Com a expansão das cidades e a maior circulação de pobres nas ruas, o conceito de assistência foi adquirindo nova conotação. O “pobre de Deus”, que deveria ser assistido pelas instituições filantrópicas e de caridade, começou a ser visto como o pobre que incomoda, que traz desconforto para a sociedade e que deveria portanto ser moralizado, educado e tratado (Sanglard; Ferreira, 2018; Sanglard; Silva, 2010). Assim, cuidar do abandonado e tratar o pobre enfermo que se avolumava nos centros urbanos tornou-se um amplo projeto que exigia esforços além das instituições filantrópicas e caritativas. Nesse contexto, o governo passou a sofrer pressões para criar alternativas relativas às questões da assistência.
Durante várias sessões da Assembleia Paulista, os deputados debateram formas de auxiliar financeiramente as Irmandades. Foram colocadas em discussão, votação e aprovação, emendas, aditivos, verbas provenientes de loterias e recursos dos orçamentos para reformas e manutenções prediais (Silva, 2011). Até um pouco mais da metade do século XIX, essas medidas financeiras foram paliativas, com aprovações de algumas loterias e designação de verbas para a manutenção e reforma de algumas unidades dos Hospitais da Santa Casa.
A partir dos planos orçamentos de 1874, as verbas para as Santas Casas e demais hospitais de caridade e filantrópicos se intensificaram e começaram a se tornar regulares. Nos anos finais do século XIX, os recursos passaram a ser designados para quaisquer instituições que se propusessem a prestar atendimentos gratuitos, independentemente de serem de caráter caritativo, filantrópico, associativo ou particular.
Esse novo quadro, formado pelo aumento das verbas e ampliação do escopo das instituições subvencionadas, foi consequência de dois fatores: o primeiro, relacionado à abolição dos escravos que libertou idosos, crianças, homens e mulheres sem um aparato suficiente para inseri-los de forma adequada na sociedade, e o segundo, relacionado à política imigratória que ocasionou um descontrole do aumento da população, acarretando pobreza e precárias condições de higiene e assistência (Risi Junior; Nogueira, 2002). Com relação à imigração, Luna e Klein (2019) destacam que o estado se viu também obrigado a repensar as questões sociais a partir do momento em que as greves e conflitos liderados pelos imigrantes passaram a exigir melhores condições de ensino, saúde e assistência social.
Os subsídios governamentais
Em 1909 as instituições privadas tiveram destaque no relatório anual do governador do estado de São Paulo, Albuquerque Lins. Em seu relato, o governador evidenciou a importância dessas instituições para o estado e abriu um debate sobre a necessidade de revisão dos valores e das instituições que recebiam subsídios públicos. Em suas palavras,
As diversas associações de caridade subvencionadas pelo Estado continuam a prestar os seus melhores serviços.
Pelas estatísticas a que se tem procedido por determinação legislativa, vereis que convém fazer uma distribuição mais equitativa das subvenções consignadas anualmente nas leis orçamentárias a essas associações; instituições existem que podem prescindir de auxílios; outras podem recebe-los reduzidos; algumas merecem que eles sejam aumentados, como a Santa Casa de Misericórdia desta Capital, cujos grandes encargos crescem diariamente na proporção dos assinalados serviços que presta a nossa assistência pública. (São Paulo, 1909b, p. 6)
As observações do governador remetem a um debate que vinha ocorrendo na Assembleia Legislativa, onde os deputados estavam discutindo a revisão dos subsídios orçamentários repassados a 58 instituições privadas instaladas no estado de São Paulo. Pelos discursos proferidos em diversas sessões, percebe-se que havia por parte dos políticos uma postura proativa na defesa de algumas instituições, como por exemplo, a “Sociedade Beneficente de Itapetininga”, defendida pelo deputado Júlio Prestes, com a alegação de que o auxílio fornecido pelo estado era “mínimo e insignificante, tendo-se em vista os grandes e reais serviços que ela presta a toda a zona que serve”, bem como as verbas para as Santas Casas dos municípios de Bananal, São José do Barreiro, Areias, Queluz, Pinheiros e Silveira citadas pelo deputado Oscar de Almeida, que garantiu que as Irmandades tinham “despendido escrupulosamente os auxílios votados no orçamento do nosso estado, podendo isso atestar os ilustres facultativos inspetores sanitários, que tem constantemente feito as suas visitas nos mesmos hospitais” (Câmara, 1909, p. 2).
Ao analisarmos os planos orçamentários do estado de São Paulo desde o início da República, observamos que as verbas destinadas sob a nomenclatura de “subvenções” e a lista de instituições favorecidas foram sofrendo ajustes no decorrer dos anos. Na primeira lei orçamentária de São Paulo datada em 1891, por exemplo, os auxílios e subvenções para os hospitais somavam 24:000$000.10 No orçamento do ano seguinte, a verba foi elevada para 250:000$000 e designada para a Santa Casa, para o Hospital Samaritano de São Paulo e para uma categoria de “asilos de órfãos e hospitais”. Em 1900 os valores subiram para 608:000$000 e, no orçamento de 1910, as Santas Casas receberiam o valor de 1.292:000$000 e demais hospitais e lazaretos, a verba de 293:000$000 (São Paulo, 1891, 1892, 1899, 1909a).
Um ano representativo para analisarmos as discussões e critérios para alocações de verbas para as instituições é 1906, quando o Serviço Sanitário implantou uma reforma na sua estrutura administrativa buscando centralizar as atuações de saúde pública na esfera estadual, deixando para os municípios o papel de auxiliares. Essa ação fez com que todos os relatórios referentes à “saúde pública” e à “assistência pública” dos mais de 170 municípios do estado de São Paulo ficassem centralizados na sede do Serviço Sanitário na capital, o nos que possibilitou conhecer melhor o processo de alocação das verbas orçamentárias.
Com essa reorganização, o estado de São Paulo foi dividido em 14 distritos sanitários gerenciados por Inspetores Sanitários. Dentre as atividades executadas pelos inspetores estavam a fiscalização das obras de saneamento realizadas pelos municípios e as vistorias dos estabelecimentos públicos e privados, incluindo as condições de higiene hospitalar. No final do ano de 1906, um resumo dos relatórios realizados pelos inspetores foi publicado pela Secretaria do Interior, pasta responsável pelo Serviço Sanitário. Dentre os relatos havia o registro das condições da Santa Casa instalada no município de Jaú que, de acordo com o inspetor responsável pela região, possuía enfermarias, quartos e sala de cirurgia “digna de elogios” (São Paulo, 1908b, p. 28). No município de Amparo, o hospital Beneficência Portuguesa foi indicado como “em boas condições” (p. 24). No relatório do responsável pela região de Mogi-Mirim, a Santa Casa foi descrita com amplas acomodações, mas sofria com limpeza e iluminação precária, além de possuir aparelhos sanitários “mal feitos” (p. 24) e, em Tatuí, o Hospital de Beneficência estava em condições regulares, necessitando de reformas em algumas alas (p. 19). Em relação aos Hospitais de Isolamento (os únicos com administração pública),11 a situação de conservação também variava de acordo com a localidade. Os dos municípios de Amparo e Brotas eram bem conservados, o de Jaú possuía “aparelhos sanitários defeituosos e imprestáveis” (p. 28), o de Mogi Mirim estava “pessimamente conservado […], prédio rachado de meio a meio […] ameaçando até de desmoronamento” (p. 24); e o do município de Casa Branca estava “abandonado, com paredes rachadas e o assoalho apodrecido pelas chuvas” (p. 24).
Apesar das características apontadas, não foram todos os inspetores que fizeram menção às condições sanitárias e de funcionamento das instituições de suas circunscrições. A ausência de dados é justificada pelos inspetores sob a alegação de que o relatório detalhado já havia sido entregue em separado à Secretaria da Agricultura, pasta responsável pela distribuição dos subsídios governamentais. Essa situação foi sinalizada pelo inspetor do 8º Distrito, responsável pela região de Itu, que indicou que “foram inspecionados todos os [hospitais] que recebem subvenções, conforme relatório” (São Paulo, 1908b, p. 21); e pelo inspetor do 5º Distrito, que cobria a região de Taubaté, e relatou que “foram inspecionados os estabelecimentos de caridade […] conforme os relatórios enviados para o fim da subvenção” (p. 17).
As informações dos inspetores eram compiladas pela Secretaria da Fazenda e enviadas para os deputados analisarem e decidirem sobre a ampliação, a manutenção ou a inclusão de instituições de “assistência pública” no programa orçamentário governamental, como apontado no início desta sessão.
Com a centralização dos dados no Serviço Sanitário, a Secretaria do Interior expôs, pela primeira vez no seu relatório, a relação de todas as casas de caridade e instituições de assistência que eram subvencionadas pelo governo estadual. Na lista aparecem 53 Santas Casas instaladas no estado de São Paulo e mais 43 outras instituições formadas por diversas Sociedades Beneficentes, Hospitais, Hospícios e Sanatórios, Dispensários e Instituições associadas à São Vicente de Paulo. Nessa relação, o Secretário destacou as verbas destinadas a cada instituição e o valor orçamentário total para essa categoria, designando, para o ano de 1907, o montante de 1.455:200$000.
Quadro 1 Subvenções das instituições de “assistência pública” para o ano de 1907
Instituições privadas | Localização | Verba |
---|---|---|
Santas Casas | 53 municípios | 1.137:000$000 |
Hospital Ophtálmico | Capital | 25:000$000 |
Hospital Samaritano | Capital | 12:000$000 |
Hospital Umberto 1 | Capital | 8:000$000 |
Hospital Anna Cintra | Amparo | 15:000$000 |
Hospital de Morpheticos | Espírito Santo do Pinhal, Rio Claro e Piracicaba | 13:000$000 |
Hospital de Tuberculosos | Botucatú | 5:000$000 |
Hospício dos Alienados | Piracicaba | 2:000$000 |
Sanatório S. Luiz | Piracicaba | 10:000$000 |
Asylo da Velhice | Piracicaba | 2:000$000 |
Asylo de Inválidos | Taubaté, Amparo, Santos, Campinas e Pindamonhangaba | 18:500$000 |
Asylo dos Pobres | Lorena | 6:000$000 |
Conferência, Hospital e Casa Pia S.V. de Paulo | 12 instituições | 39:700$000 |
Maternidade de S. Paulo | Capital | 60:000$000 |
Albergues Noturnos | Capital | 10:000$000 |
Instituto Pasteur | Capital | 25:000$000 |
Associação de Sanatórios Populares | Capital | 10:000$000 |
Dispensário C. Ferreira | Capital | 8:000$000 |
Dispensário C. de Souza | Capital | 3:000$000 |
Polyclinica de S. Paulo | Capital | 6:000$000 |
Sociedade de Medicina | Capital | 6:000$000 |
Sociedade Beneficente | Itapetininga, Barreto, Campinas e Mogi das Cruzes | 20:000$000 |
Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio | Capital | 5:000$000 |
Total | 1.455:200$000 |
Fonte: São Paulo (1907b)
Esses valores parecem expressivos, no entanto, precisamos de uma base comparativa para compreender melhor o que eles representavam no plano orçamentário do período. Para criar um parâmetro de análise, fizemos uma comparação com os recursos financeiros que seriam destinados ao Serviço Sanitário, de gestão pública, criado especificadamente para tratar das questões sanitárias e combater as epidemias e visto por vários autores como um dos órgãos mais importantes do governo paulista (Mota; Marinho, 2013; Ribeiro, 1993; Telarolli Junior, 1996). As verbas alocadas neste serviço eram designadas para custear os salários da sua equipe, das despesas com os laboratórios, com os custos do serviço de desinfecção, com as despesas para o serviço de estatística, com a manutenção do Hospital de Isolamento e com as verbas para manter algumas comissões sanitárias. Para o ano de 1907 temos os valores:
Quadro 2 Verba orçamentária do Serviço Sanitário para o ano de 1907
Departamentos / repartições | Verba |
---|---|
Diretoria | 383:800$000 |
Laboratório Pharmaceutico | 156:600$000 |
Instituto Bacteriológico | 45:800$000 |
Laboratório de Analyses Chimicas | 57:000$000 |
Instituto Vacciogenico | 36:600$000 |
Serviço Geral de desinfecção | 185:400$000 |
Hospital de Isolamento | 150:000$000 |
Secção Demographo-Sanitaria | 27:100$000 |
Instituto Serumtherapico | 118:920$000 |
Comissões sanitárias (Santos, Campinas, Ribeirão Preto e 20 desinfetadores em comissão no interior) | 234:000$000 |
Total | 1.395:220$000 |
Fonte: São Paulo (1906)
Fazendo a comparação das verbas alocadas no Serviço Sanitário com as verbas destinadas às instituições de assistência, percebemos que, naquele ano, os recursos destinados ao Serviço Sanitário (1.395:220$000) eram um pouco menores que os das instituições de assistência (1.455:200$000). Essa semelhança orçamentária entre a “assistência pública” e a “saúde pública” podem ser percebidas também em um período mais amplo conforme demonstrado no Quadro 3.
Quadro 3 Verba orçamentária para instituições de assistência e saúde pública
Orçamento para o ano de | 1893 | 1900 | 1903 | 1908 | 1909 |
---|---|---|---|---|---|
Serviço Sanitário | 833:000$ | 865:100$ | 940:000$ | 1.408:320$ | 1.397:520$ |
Instituições de assistência privadas | 1.302:000$ | 740:400$ | 971:000$ | 1.715:600$ | 1.849:200$ |
Fonte: São Paulo (1892, 1899, 1902, 1907a, 1908a)
Com esses dados podemos concluir que, dentro dos planos orçamentários, o governo tentava equilibrar as verbas entre o Serviço Sanitário, responsável pelo saneamento e a profilaxia das doenças infectocontagiosas, e as instituições de “assistência pública”, que ministravam os tratamentos. Verificamos assim, que os custos para auxiliar as instituições privadas eram elevados. Neste cenário nos indagamos: se as verbas de “profilaxia” e “tratamento” eram muito próximas, mostrando um equilíbrio orçamentário entre a “saúde pública” e a “assistência pública”, por que o governo não assumiu a responsabilidade administrativa das instituições de assistência como fez com o Serviço Sanitário?
A história do tracoma em São Paulo que teve intervenção governamental tanto nas medidas profiláticas quanto de tratamento aos enfermos pode nos ajudar a elucidar os motivos que levaram o governo paulista a separar as medidas de combate às epidemias e as ações de assistência médica. Para combater e tratar essa enfermidade, o governo paulista montou um aparato com ampla cobertura regional para servir de postos de atenção ao tracoma e outras doenças como a malária, a ancilostomose, a varíola e a febre tifoide. Os mais de 30 postos urbanos, instalados em diversos municípios em 1906 com uma equipe de mais de 300 integrantes, trouxeram experiências e reflexões ao governo estadual sobre a responsabilidade e os custos de manter uma estrutura própria de tratamento.
A campanha antitracomatosa governamental: a implantação conjunta de ações profiláticas e de tratamento
Depois de enviar uma comitiva médica ao interior de São Paulo em 1904, o governo estadual paulista tomou ciência de que os habitantes das zonas distantes da capital sofriam de uma conjuntivite altamente contagiosa denominada de tracoma ou conjuntivite granulosa. A doença, que chegou em terras paulistas com os imigrantes italianos na década de 1880, foi se alastrando concomitantemente às novas plantações de café. A zona mais a noroeste do estado, próximo a Ribeirão Preto onde foi acolhida uma grande parcela dos entrantes trabalhadores, foi uma das mais atingidas. Médicos, viajantes italianos e representantes das municipalidades estimavam que um a cada seis trabalhadores rurais estavam com tracoma ou que a doença atingia mais de 75% da população imigrante. Em dados absolutos, arriscavam projetar que as cifras eram de mais de 120 mil tracomatosos naquela região do estado (Ribeiro, 1993).
Em 1906, depois de confirmada a alta incidência de enfermos, o diretor do Serviço Sanitário Emílio Ribas iniciou um intenso trabalho para combater a doença. Com apoio médico de especialistas em oftalmologia, Emílio Ribas estruturou uma campanha e decretou, em 3 de setembro, a criação do “Serviço de Profilaxia e Tratamento do Trachoma”. Com essa iniciativa, o governo estadual buscou implantar com recursos próprios um projeto de saúde unindo a “saúde pública” - aplicando as medidas profiláticas -, e a “assistência pública” - assumindo a responsabilidade e os encargos dos tratamentos que antes eram realizados pelos hospitais privados (Luna, 1993).
Como medidas profiláticas que visavam controlar a disseminação da doença, o Serviço Sanitário instituiu vistoria médica nos portos para todos os navios que chegavam da Europa; vistoriou as escolas para afastar as crianças enfermas do ambiente escolar; e distribuiu instruções e orientações à população e aos fazendeiros com medidas de prevenção, como a lavagem das mãos e rosto com frequência e o uso individual de roupas, toalhas e roupas de cama (Luna, 1993).
Em paralelo às medidas profiláticas, o governo estruturou, montou e administrou vários postos de tratamento espalhados pelo estado de São Paulo. Desde setembro, quando a medida foi decretada, até o final daquele ano, o estado já contava com 35 médicos e mais o triplo de enfermeiros e desinfetadores para trabalharem em 25 postos. Até o final de 1908 a estrutura já alcançava 37 postos situados nas áreas urbanas do estado e mais 255 postos de tratamento nas zonas rurais (Telarolli Junior, 1996). Para que conseguisse implantar em tão curto espaço de tempo uma estrutura pública de tratamento para atender tantos municípios, o governo paulista contou com a ajuda das municipalidades. Nesse projeto, o estado arcaria com as despesas de pessoal e medicação, e os municípios, com estrutura física e algum recurso financeiro quando o orçamento municipal permitisse.
Os postos, que foram criados inicialmente para o tratamento do tracoma, foram adquirindo outras funções como a profilaxia da ancilostomose, da malária e da febre tifoide e a realização das vacinações. Campos, Marinho e Lódola (2018) indicam que alguns postos criados com o fim de combater o tracoma como o do município de Araraquara, assumiram um caráter permanente, ampliando sua atuação e funcionando independentemente de campanhas em períodos epidêmicos.
Para o tracoma, os tratamentos eram realizados de acordo com os preceitos científicos da época que previam a queima de grânulos que se formavam do lado interno da pálpebra e trocas diárias de curativos por 15 dias consecutivos. Para os casos mais graves, eram realizadas cirurgias. Com esses métodos, os médicos dos postos conseguiram realizar 201.179 curativos em um universo de 14.967 tracomatosos nos três primeiros meses de funcionamento (São Paulo, 1907b). Olhando o balanço de atendimentos do ano de 1907 percebemos a ampla atuação desses postos de tratamento financiados e administrados pelos poderes públicos:
Quadro 4 Movimento dos postos de tracoma no ano de 1907
Total de indivíduos examinados | 329.241 |
---|---|
Total de afetados de tracoma | 89.101 |
Afetados de outras doenças oculares | 23.693 |
Escolares examinados | 49.211 |
Escolares afetados de tracoma | 7.388 |
Escolares com outras doenças oculares | 1.162 |
Curativos feitos | 2.828.115 |
Operações | 1.404 |
Fonte: São Paulo (1908b)
Apesar da falta de dados que possibilitem o conhecimento do exato dispêndio das campanhas,12 percebemos pela estrutura criada e pelo Relatório da Secretaria do Interior - responsável em administrar as verbas para o serviço de combate ao tracoma -, que os custos foram bem elevados, o que justificou a extinção das comissões em 1908 com a alegação da falta de recursos destinados especialmente para esse fim (São Paulo, 1908b, 1912).
Com uma equipe que chegou a 59 médicos e 362 auxiliares, essa estrutura foi extinta depois de dois anos da sua criação sem que houvesse uma redução considerável de enfermos (São Paulo, 1912). A partir daquele momento, o governo decidiu ampliar os subsídios governamentais de algumas instituições de assistência, para que elas pudessem realizar os atendimentos aos tracomatosos que o estado não conseguiu sustentar.
No relatório da Secretaria do Interior de 1908-1909, o Secretário Carlos Augusto Guimarães explicou as intenções do governo estadual em optar pelo uso das instituições particulares, enfatizando que a decisão tomada tinha relação direta com as questões econômicas:
tendo em consideração que o tracoma é uma moléstia pertinaz e rebelde, […] é de toda a conveniência reorganizar o serviço, pela instituição de sanatórios departamentais, onde o doente necessitado encontre o conforto, bem como o tratamento mais conveniente e aproveitável.
Não podendo, porém, o Estado, no momento atual, criar tais institutos, por causa da grande despesa a fazer, para a qual não tem verba no orçamento […] pode ser confinado, com maior proveito para a cura da moléstia […] as casas de caridade que, mediante prévio acordo, queiram se incumbir de tão humanitária tarefa. (São Paulo, 1912, p. 15-16, grifo nosso)
Com a transferência dos tratamentos dos tracomatosos para as instituições privadas, os deputados levaram ao conselho do plenário a discussão dos valores que deveriam ser repassados do governo às instituições de assistência pública. Um dos debates ocorreu em relação às verbas destinadas ao Hospital Ophtálmico, um hospital particular criado em 1903 para atender principalmente os enfermos de tracoma. Durante a sessão ocorrida no início do mês de dezembro de 1909, o deputado Francisco Sodré, defendendo o Hospital, justificou em seu discurso que, como a Comissão de Tracoma foi extinta “da noite para o dia, diante da excessiva despesa que ela acarretava e não tendo o governo podido reconstitui-lo de novo em outros moldes mais modestos, foram muito naturalmente crescendo dia a dia os encargos do Hospital Ophtálmico” (Câmara, 1909, p. 2, grifo nosso).
Dessa forma, o deputado solicitou mais um aumento das verbas governamentais para equilibrar as despesas e impedir que o Hospital “fosse obrigado, de um momento para o outro, a rejeitar os doentes tracomatosos graves, vindos do interior do estado” (Câmara, 1909, p. 2). Ao terminar seu discurso, Francisco Sodré enfatizou que o Hospital era uma instituição necessária à saúde pública do estado. Em suas palavras,
Diante do exposto espero que a Câmara dos deputados, reconhecendo tão bem como eu esses relevantes serviços prestados à saúde pública, não deixará de aprovar a emenda que aumenta o auxílio daquele hospital, a fim de poder ele funcionar daqui em diante com toda a regularidade precisa. (Câmara, 1909, p. 2)
O Hospital, que recebia subvenção desde a sua fundação em 1903, teve sua verba elevada de 10:000$000 em 1904 para 25:000$000 em 1906, 1907 e 1908, e para o valor de 40:000$000 em 1909, quando a campanha de tracoma foi encerrada. Os constantes aumentos também foram defendidos pelo deputado Fontes Junior, que recordou os serviços prestados à sociedade ao atender gratuitamente grande número de enfermos após a extinção da Campanha.
o aumento rápido, ou antes repentino que essa verba teve no orçamento, foi justamente pelo motivo do aparecimento, em larga escala, de uma verdadeira epidemia de tracoma, que o governo do estado viu-se na contingência de recorrer ao único hospital dessa capital que podia prestar esse serviço, e assim foi aumentada a verba destinada ao Hospital Ophtalmico que aliás, presta os mais relevantes serviços, entregue como está aos cuidados de distintíssimo profissional que lá trata gratuitamente elevado número de pessoas e que muitos dos nobres deputados podem dar testemunho pessoal. (Câmara, 1913, p. 3)
Mesmo com a elevação das verbas orçamentárias para o Hospital Ophtálmico no período da extinção da comissão do tracoma, o governo não conseguiu diminuir o alastramento da enfermidade nas regiões mais a oeste do estado. Nesse cenário uma nova “Comissão provisória contra o tracoma e outras moléstias dos olhos” foi criada em 1911. Diferente da primeira iniciativa, que alcançou um quadro de 59 médicos, na segunda campanha a equipe foi bem menor, com a alocação de 16 médicos separados em duas zonas que atendiam as regiões de Ribeirão Preto e São Carlos. Os atendimentos também foram reestruturados com equipes médicas itinerantes que visitavam fazendas e realizavam atendimentos em hospitais e em diversas localidades dentro da sua circunscrição.
Com a abertura da nova frente de atendimentos governamentais, o deputado João Sampaio, em sessão realizada em 1913, solicitou diminuição da verba ao Hospital Ophtálmico alegando que seus serviços já não eram tão essenciais:
o aumento de subvenção de 25 para 40 contos [para o Hospital Ophtálmico] se justificava quando o governo do Estado, no intuito de realizar uma grande economia, suprimiu o serviço clínico organizado para debelar o tracoma no nosso estado, alegando-se que o Hospital Ophtalmico viria até certo ponto, com seus serviços, substituir aqueles que prestavam as comissões de tracoma”. (Câmara, 1913, p. 3, grifo nosso)
No conjunto dos discursos destacados - Secretário Carlos Augusto Guimarães e deputados Francisco Sodré e João Sampaio -, as questões financeiras tiveram relevância nos debates que cercaram a assistência médica oferecida aos tracomatosos pelo governo. Suportar uma estrutura própria de atendimentos, com instalação de postos e alocação de equipes médicas, demandaria aos cofres públicos dispêndios elevados. Com tamanho encargo, a opção foi extinguir a grande maioria dos postos instalados no interior e alocar uma equipe menor, no caso da segunda comissão, ou ajustar os valores das verbas repassadas aos hospitais privados, como feito com o Hospital Ophtálmico. Como podemos observar, há nos pronunciamentos dos representantes governamentais um consenso de que haveria uma grande economia ao estado se os tratamentos fossem alocados nas instituições privadas, mesmo que para isso, o governo tivesse que acrescer os valores das subvenções.
Considerações finais
Os interesses do setor agrário, a escravidão e a desigualdade social que imprimiram suas marcas no período imperial deixaram vestígios na República que se formava. As questões sociais, tão presentes e marcantes no período, não foram contempladas pela assistência governamental paulista através de uma estrutura própria de atendimentos, deixando para as instituições privadas a história do amparo à saúde individual.
Essas entidades que foram criadas por iniciativa não governamental recebiam do estado recursos financeiros desde tempos remotos, principalmente a Santa Casa de Misericórdia, presente no país desde o século XVI. Vários autores já estudaram a relação entre o público e o privado, como apontamos no decorrer do artigo, mas havia ainda na historiografia uma lacuna sobre a representatividade orçamentária das verbas governamentais repassadas a essas organizações. Neste artigo buscamos mensurar esse aporte financeiro público e entender como o estado mais rico da nação, com uma explosão demográfica considerável, abordou as questões de assistência médica individual na virada do século XIX para o XX.
Observamos nesta pesquisa que as atuações governamentais no campo da saúde pública estavam intrinsicamente ligadas às ideias de intervenção governamental somente em períodos epidêmicos. Para cumprir esse ideal, o governo paulista implantou e estruturou o Serviço Sanitário e montou os Hospitais de Isolamento para combater as enfermidades infectocontagiosas. Entretanto, o estado, que dependia da saúde da mão de obra imigrante para a manutenção das fazendas de café, constatou que havia a necessidade de apoiar, cada vez mais com recursos financeiros, as entidades que se propusessem a dar assistência médica gratuita. Como pudemos verificar, os valores repassados a essas instituições sofreram aumentos exponenciais no decorrer dos primeiros anos da República chegando a ultrapassar as somas destinadas ao Serviço Sanitário e suas repartições em alguns períodos.
Sem intervir diretamente na administração dessas instituições, o governo promovia fiscalizações das estruturas físicas como forma de controlar e, de certa forma, exigir condições adequadas mínimas de atendimento, sob a pena de suspensão ou anulação das verbas repassadas. Além dos subsídios promovidos pela Secretaria da Agricultura e das vistorias realizadas com a finalidade de se debater na Câmara os valores das subvenções, o estado desenvolvia tratativas com as instituições para aumentar o repasse de verbas em períodos de epidemia como foi feito com o Hospital Ophtálmico.
Os apontamentos da história do tracoma em São Paulo nos revelaram também que o governo buscou implantar postos de tratamento aos tracomatosos que acabaram atendendo outras enfermidades como a ancilostomose, a malária, a varíola e a febre tifoide. Com mais de 30 postos, o aparato criado, contudo, mostrou-se insustentável pelos altos custos sendo desmantelado após curto espaço de tempo. Analisando essa campanha, averiguamos que a extinção dos postos foi ancorada em justificativas econômicas, sendo mais vantajoso às finanças do estado optar por uma política de subvenções, apoiando um arranjo de assistência pré-existente em detrimento da criação da sua própria estrutura.