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Uso de drogas sob a perspectiva de gênero: uma análise das histórias de vida de jovens das camadas médias no Rio de Janeiro

Resumo

O consumo de drogas por mulheres jovens tem apresentado índices cada vez mais próximos aos dos homens, chegando a atingir índices superiores dependendo da substância em análise. Levando-se em conta a escassez de pesquisas realizadas com usuárias de drogas, em especial com as pertencentes às camadas socioeconômicas mais altas, a questão central neste trabalho é o gênero no uso de drogas. Este texto é baseado em etnografia realizada em bares e boates da Zona Sul e Centro da cidade do Rio de Janeiro e de entrevistas com jovens - homens e mulheres - pertencentes às camadas médias cariocas. Argumentamos que as relações desiguais de gênero e os modelos normativos de feminilidade e masculinidade são reproduzidos na iniciação e manutenção do uso de drogas, o que evidenciará particularidades de gênero, inclusive no que diz respeito às consequências danosas à saúde e sociais do uso para as mulheres. Identificamos que o uso de drogas por jovens é feito num ir e vir de contestações e acomodações em relação às normativas de gênero, no entanto, usuárias são mais estigmatizadas e marginalizadas socialmente, dependem do homem para acesso a droga e experienciam violência de gênero por parte parceiro sexo-afetivo e nos pontos de venda de drogas.

Palavras-chave:
Drogas; Gênero; Jovens; Classe Média

Abstract

Drug use by young women has shown rates increasingly closer to those of men, or even higher depending on the substance. Considering the scarcity of research conducted with female drug users, especially those of higher socioeconomic status, this study focused on gender and drug use. Ethnographic research was conducted in bars and nightclubs in the southern and downtown regions of the city of Rio de Janeiro. We argue that unequal gender relations and normative models of femininity and masculinity are reproduced in the initiation and maintenance of drug use, revealing gender specificities, including the harmful health and social consequences of drug use for women. Although drug use by young adults alternates between challenging and accepting gender norms, female users are more stigmatized and socially marginalized, depend on men for access to drugs, and experience gender- based violence from their intimate partners and at drug sales points.

Keywords:
Drugs; Gender; Young; Middle Class

Introdução

A literatura tem indicado crescimento no consumo de drogas por mulheres, especialmente mulheres jovens1 1 A maioria das pesquisas no campo das drogas utiliza o referencial etário da Organização Mundial de Saúde que compreende adolescência o período entre os 10 e 19 anos e juventude entre os 20 e 24 anos. Em nosso estudo, adotamos a faixa etária conforme o Estatuto da Juventude: pessoas com idades entre 15 aos 29 anos. , apontando índices de uso cada vez mais próximos aos dos homens, chegando a atingir índices superiores dependendo da substância em análise, como é o caso de benzodiazepínicos, analgésicos e orexígenos (Bastos et al., 2017BASTOS, Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro et al. III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; ICICT, 2017.; ONU, 2018ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. World Drug Report. Viena: Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime, 2018.; Malbergier et al., 2012MALBERGIER, André et al. Paridade de gênero e uso de drogas: as meninas estão alcançando os meninos? Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 34, n. 1, p. 16-23, 2012. DOI: 10.1590/S1516-44462012000100005
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). No Brasil, conforme o III Levantamento Nacional Sobre Álcool e Drogas (Bastos et al., 2017BASTOS, Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro et al. III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; ICICT, 2017.), as mulheres apresentaram prevalência superior aos homens no consumo de álcool em associação com pelo menos um medicamento não prescrito. Estudos também indicam que, mundialmente, mulheres desenvolvem mais rapidamente que os homens problemas associados ao consumo de drogas em diferentes áreas da vida (INPUD, 2014INPUD - INTERNATIONAL NETWORK OF PEOPLE WHO USE DRUGS. Drug user peace initiative: a war on women who use drugs. London: INPUD Secretariat, 2014.; ONU, 2018ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. World Drug Report. Viena: Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime, 2018.).

Considerando a escassez de pesquisas realizadas com mulheres usuárias de drogas pertencentes às camadas socioeconômicas mais altas da população, este trabalho contribui para a ampliação do conhecimento ao analisar o uso de drogas nas histórias de vida de jovens com maior poder aquisitivo da cidade do Rio de Janeiro, tendo gênero como categoria de análise privilegiada. Objetivamos compreender como o padrão normativo de gênero masculino e feminino perpassa o uso de drogas, analisando fatores relacionados à iniciação e manutenção do uso, até consequências danosas para as vidas dos(as) jovens pesquisados(as). Neste estudo, utilizamos gênero como elemento constitutivo das relações sociais e forma primária de relações de poder (Scott, 1994SCOTT, Joan Wallack. Prefácio a “gender and politics of history”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 3, p. 11-27, 1994.). Esta concepção destaca o caráter sociocultural e histórico das diferenças entre os gêneros e da própria construção social da diferença sexual. As desigualdades de gênero que se estabelecem entre homens e mulheres se manifestam em diferentes aspectos da vida e, portanto, no próprio uso de drogas.

No Brasil, a Política Nacional Sobre Drogas se alinha de maneira mais contundente ao paradigma proibicionista, que arbitrariamente atribui o caráter de licitude ou ilicitude a determinadas substâncias, judicializando os diferentes usos de drogas (Passos; Souza, 2011PASSOS, Eduardo Henrique; SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia e Sociedade, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011. DOI: 10.1590/S0102-71822011000100017
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). Em sua última versão, a política assume ainda mais o caráter proibicionista ao retirar a redução de danos de seu texto, focando na abstinência total como meta e nas comunidades terapêuticas, que atuam realizando internações, como o dispositivo privilegiado em saúde (Brasil, 2019BRASIL. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 abr. 2019.). Essa política de guerra às drogas se reflete no cotidiano como uma política de guerra às pessoas, em especial populações periféricas, pobres e negras, e vulnerabiliza ainda mais as mulheres, acarretando uma série de danos que vão desde as consequências da violência policial, do comércio ilegal de drogas, até o aumento exponencial do encarceramento feminino (Sestokas; Oliveira, 2018SESTOKAS, Lucia; OLIVEIRA, Nathália. A política sobre drogas é uma questão de mulheres. SUR 27, v. 15, n. 27, p. 153-166, 2018.).

Este texto é baseado em etnografia realizada em locais de sociabilidade juvenil como bares e boates da Zona Sul e Centro (Lapa) da cidade do Rio de Janeiro, com coleta de histórias de vida, seguida de entrevistas semiestruturadas com 11 jovens - homens e mulheres - com idades entre 18 e 29 anos, pertencentes às camadas sociais médias cariocas2 2 A definição de camadas médias, adotada neste estudo foi a de acesso a bens de consumo, renda mensal, nível de escolaridade, família de origem, local e tipo de residência e autoclassificação. , identificados(as) através de visitas de campo feitas a grupos de Narcóticos Anônimos (NA) na etapa inicial da pesquisa e nos locais de sociabilidade. Identificamos que as relações desiguais de gênero e os padrões normativos de feminilidade e masculinidade são reproduzidos no contexto da iniciação e manutenção do uso de drogas, evidenciando particularidades de gênero, inclusive no que diz respeito às consequências danosas para as mulheres.

Mulheres, álcool e outras drogas

Pesquisas nacionais sobre o uso abusivo de álcool por mulheres têm indicado que, muitas vezes, este uso é significado pelas usuárias como fuga de um padrão normativo de feminilidade de docilidade, domesticidade e fragilidade em detrimento à adesão a padrões normativos masculinos como agressividade, liberdade e fortaleza. Sob este aspecto, o consumo é percebido pelas usuárias como algo libertário, por outro lado, a percepção de prejuízos vinculados ao uso está relacionada ao fracasso em cumprir papéis estereotipados do gênero feminino, como os de esposa, mãe e cuidadora da família e do lar (Campos; Reis, 2010CAMPOS, Edemilson Antunes de; REIS, Jéssica Gallante. Representações sobre o uso de álcool por mulheres em tratamento em um centro de referência da cidade de São Paulo - Brasil. Interface , Botucatu, v. 14, n. 34, p. 539-550, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010005000006
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; Fernandez, 2007FERNANDEZ, Osvaldo Francisco Ribas Lobos. COCA-LIGHT? Usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de “cheiradores” de cocaína em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.; Medeiros; Maciel; Souza, 2017MEDEIROS, Katruccy Tenório; MACIEL, Silvana Carneiro; SOUSA, Patrícia Fonseca de. A mulher no contexto das drogas: representações sociais de usuárias em tratamento. Paidéia , Ribeirão Preto, v. 27, supl. 1, p. 439-447, 2017. DOI: 10.1590/1982-432727s1201709
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; Silva, 2002SILVA, Patrícia Castro de Oliveira. Alcoolismo feminino: um estudo sob a perspectiva de gênero. 2002. Dissertação (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.). As mulheres têm vergonha e culpa por episódios de intoxicação por não encontrarem consonância entre a embriaguez e o padrão normativo de gênero feminino. Tais dados não são encontrados entre homens usuários, nos quais o uso de drogas parece consoante à própria socialização de gênero masculino (Lima, 2012LIMA, Eloísa Helena de. Gênero, masculinidades, juventudes e uso de drogas: contribuições teóricas para elaboração de estratégias em educação em saúde. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João Del Rey, v. 7, n. 2, p. 279-289, 2012.; Moraes, 2008MORAES, Maristela. Modelo de atenção integral à saúde para o tratamento de problemas causados pelo álcool e outras drogas: percepções de usuários, acompanhantes e profissionais. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 121-133, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000100017
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).

Campos e Reis (2010CAMPOS, Edemilson Antunes de; REIS, Jéssica Gallante. Representações sobre o uso de álcool por mulheres em tratamento em um centro de referência da cidade de São Paulo - Brasil. Interface , Botucatu, v. 14, n. 34, p. 539-550, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010005000006
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), em pesquisa com mulheres em tratamento para o abuso de álcool em São Paulo, observaram que as representações construídas pelas entrevistadas, sintetizadas nas expressões “abuso do álcool” e “perda de controle sobre as bebidas”, acionam um sistema de acusações baseado em uma lógica regida pelas relações de gênero. Revelam os modos diferenciais do consumo de bebidas alcoólicas entre homens e mulheres, por meio dos quais elas são identificadas como “mulheres que abusam do álcool”, isto é, mulheres que não cumprem suas obrigações sociais como “mães”, “donas de casa” e “trabalhadoras”.

Fernandez (2007FERNANDEZ, Osvaldo Francisco Ribas Lobos. COCA-LIGHT? Usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de “cheiradores” de cocaína em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.), em etnografia que buscou conhecer os padrões de uso de cocaína inalada na cidade de São Paulo, concluiu que mulheres jovens e adultas vivenciam maior vulnerabilidade social se comparadas aos homens usuários, sofrendo violência nas relações sexo-afetivas estabelecidas com homens, usuários de drogas ou não.

Pesquisa pioneira, realizada por Nappo et al. (2004NAPPO, Solange Aparecida et al. Comportamento de risco de mulheres usuárias de crack em relação às DST/AIDS. São Paulo: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, 2004.) com mulheres usuárias de crack em São Paulo, apontou a vulnerabilidade dessas usuárias que vendiam seus corpos para obtenção da droga. Em função da necessidade extrema de obtenção do crack, as usuárias não tinham poder de negociação para o sexo seguro e se expunham a infecções sexualmente transmissíveis, incluindo a aids.

Relatos de estupro e violência doméstica são muito mais comuns nas usuárias de drogas que nas mulheres em geral (INPUD, 2014INPUD - INTERNATIONAL NETWORK OF PEOPLE WHO USE DRUGS. Drug user peace initiative: a war on women who use drugs. London: INPUD Secretariat, 2014.). Estudos nacionais mostram que muitas das usuárias de drogas se relacionam com homens também usuários, aumentando o risco de violência. O uso de drogas feito pelas mulheres aparece como justificativa da violência praticada contra elas por companheiros e familiares (Campos; Reis, 2010CAMPOS, Edemilson Antunes de; REIS, Jéssica Gallante. Representações sobre o uso de álcool por mulheres em tratamento em um centro de referência da cidade de São Paulo - Brasil. Interface , Botucatu, v. 14, n. 34, p. 539-550, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010005000006
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; Simonelli; Pasquali; de Palo, 2014SIMONELLI, Alessandra; PASQUALI, Caterina; DE PALO, Francesca. Intimate partner violence and drug-addicted women: from explicative models to gender-oriented treatments. European Journal of Psychotraumatology, Abingdon-on-Thames, v. 5, n. 1, 2014. DOI: 10.3402/ejpt.v5.24496
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).

A literatura biomédica nos chama atenção para o telescoping effect, termo que se refere ao fato de as mulheres estabelecerem mais rapidamente um padrão de uso de drogas problemático se comparadas a homens que também apresentam prejuízos associados ao uso, ainda que tenham iniciado o consumo mais tarde que eles. Esse fenômeno não é totalmente explicado através da perspectiva organicista e demanda a realização de estudos psicossociais, de modo a ampliar sua compreensão (Greenfield et al., 2010GREENFIELD, Shelly et al. Substance abuse in women. The Psychiatric Clinics of North America, v. 33, n. 2, p. 339-355, 2010. DOI: 10.1016/j.psc.2010.01.004
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).

É preciso considerar como o fenômeno está relacionado ao gênero. Todas as dimensões de estigmatização sobre os usuários de drogas como raça, classe social e geração são perpassadas pelo gênero e resultam na maior estigmatização sobre a mulher, levando-as à adoção de estratégias para manutenção do uso que capazes de ampliar sua vulnerabilidade (Fernandez, 2007FERNANDEZ, Osvaldo Francisco Ribas Lobos. COCA-LIGHT? Usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de “cheiradores” de cocaína em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.; Greenfield et al., 2010GREENFIELD, Shelly et al. Substance abuse in women. The Psychiatric Clinics of North America, v. 33, n. 2, p. 339-355, 2010. DOI: 10.1016/j.psc.2010.01.004
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; Medeiros; Maciel; Souza, 2017MEDEIROS, Katruccy Tenório; MACIEL, Silvana Carneiro; SOUSA, Patrícia Fonseca de. A mulher no contexto das drogas: representações sociais de usuárias em tratamento. Paidéia , Ribeirão Preto, v. 27, supl. 1, p. 439-447, 2017. DOI: 10.1590/1982-432727s1201709
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). A necessidade de encobrimento do uso é maior e, por isso, muitas vezes essas mulheres não buscam tratamento quando necessário. Por outro lado, o fato de o uso de drogas não estar associado ao modelo normativo de feminilidade contribui para que profissionais de saúde não detectem problemas relacionados ao uso.

No Brasil, a maior parte das pesquisas sobre usos de drogas é realizada pelas áreas biomédicas, tendo como público-alvo homens pertencentes às camadas populares e em situação de institucionalização, seja em centros de tratamento ou unidades do sistema de segurança e justiça. Gênero, quando utilizado nessas pesquisas, aparece como categoria empírica, desvelando similitudes e diferenças nas trajetórias de uso de homens e mulheres, sem que haja uma análise crítica que observe os dados em transversalidade com outros marcadores sociais de diferença como classe social e geração. Deste modo, pesquisas como a nossa, que envolvem jovens mulheres pertencentes às camadas médias, com diferentes perfis quanto a tipos de drogas usadas e trajetórias de uso, podem contribuir para aprofundar o conhecimento acumulado e indicar novas questões.

Metodologia

Ao longo de 12 meses foi realizada uma etnografia no contexto de pesquisa de doutorado, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro3 3 Esta pesquisa foi realizada com bolsa CAPES e aprovada pelo comitê de ética sob o registro CAAE 0021.0.249.000-10. Os(as) entrevistados(as) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ainda que o processo de negociação tenha sido difícil em função da ilegalidade do uso e da especificidade do público-alvo: usuários(as) das camadas médias. Os nomes dos(as) entrevistados(as) foram substituídos por pseudônimos com o objetivo de garantir o anonimato. A aproximação inicial dos(as) jovens se deu através de visitas de campo a grupos de NA localizados em bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro devido à familiaridade da pesquisadora com grupos de mútua-ajuda por investigações anteriormente realizadas nesse campo. Posteriormente, o campo foi ampliado a partir da rede de contatos profissionais da pesquisadora. Foi enviado um e-mail com informações sobre a pesquisa, critérios de elegibilidade e contato para interessados(as). Através desta estratégia, chegamos a uma jovem que se tornou informante-chave, facilitando, via técnica de snowball, o contato com outros(as) usuários(as), para além do campo de NA.

Deste modo, foram realizadas observações participantes em bares e boates de aglomeração de jovens na Zona Sul (Botafogo e Laranjeiras) e no centro da cidade (Lapa); e realizadas entrevistas do tipo história de vida, seguidas de entrevistas semiestruturadas com 11 jovens, com idades entre 18 e 29 anos, sendo seis mulheres e cinco homens pertencentes às camadas médias do Rio de Janeiro. Quatro dos(as) entrevistados(as) foram acessados(as) pelas visitas à NA e sete nos locais de sociabilidade.

As concepções acerca do termo “etnografia” são diversas (Peirano, 2014PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20, n. 42, p. 377-391, 2014. DOI: 10.1590/s0104-71832014000200015
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). Neste trabalho, com Geertz (2008GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 3-21.), tomamos a etnografia como método qualitativo e interpretativo à busca de significados, nos movendo num esforço intelectual rumo a uma “descrição densa” do fenômeno em estudo. Uma produção teórico-etnográfica que investe na comunicação da situação vivida, transformando em um texto vívido e analítico a intensidade da experiência no campo (Peirano, 2014PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20, n. 42, p. 377-391, 2014. DOI: 10.1590/s0104-71832014000200015
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). Para isso, é preciso que o pesquisador estabeleça uma relação de confiança com seus interlocutores e coloque em análise suas implicações e os signos mais denunciadores de sua alteridade, aprendendo a linguagem e as normas do grupo estudado (MacRae; Simões, 2006MACRAE, Edward; SIMÕES, Julio Assis. Prohibitionist Drug Policies and the subculture of cannabis use in two Brazilian middle class urban settings. [S.I.]: Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos, 2006.). A exigência metodológica desse mergulho no campo e do estabelecimento de vínculos de confiança tornam a pesquisa etnográfica especialmente interessante para acessar populações ocultas como usuários(as) de drogas (MacRae; Simões, 2006MACRAE, Edward; SIMÕES, Julio Assis. Prohibitionist Drug Policies and the subculture of cannabis use in two Brazilian middle class urban settings. [S.I.]: Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos, 2006.).

Quanto ao perfil dos(as) entrevistados(as), cinco jovens tinham ensino superior completo, sendo três advogados(as), uma psicóloga e uma assistente social; três eram graduandos de engenharia, designer gráfico e administração; dois tinham trancado as matrículas em cursos universitários, e um tinha parado os estudos no 8º ano do ensino fundamental. Sete estavam desempregados(as) no momento da realização da entrevista. Entre os(as) empregados(as), um era professor de surf, uma vendedora, uma recepcionista de festas e um barman. Dez dos(as) onze jovens eram solteiros(as). Uma entrevistada era casada, mas, no momento da entrevista estava separada do marido, morando com a mãe. Um entrevistado morava com a namorada há menos de seis meses. Os demais moravam com os pais. Quanto à renda familiar, cinco entrevistados(as) referiram ter entre 9 e 12 salários-mínimos, três entre 18 e 20, dois entre 4 e 8, e um acima de 21.

Os(as) entrevistados(as) faziam diferentes tipos de uso de diferentes tipos de drogas: maconha, cocaína, crack, anfetaminas, ecstasy, LSD e/ou anabolizantes, sendo comum a todos(as) o uso concomitante com álcool e tabaco. De todo modo, consideramos o uso de drogas dos(as) entrevistados(as) como abusivo, classificação que não define um diagnóstico, mas um padrão de uso de drogas associado a riscos e danos tais como: perda de aula ou trabalho; briga com a família, amigos ou parceiro sexo-afetivo; envolvimento em situações de violência; tentativas de suicídio; direção sob efeito da droga. No caso específico das mulheres, riscos comuns são os de irem sozinhas aos pontos de venda, ainda que reconhecendo o perigo da ação. Ademais, todos(as) referiam que o uso que faziam não era “normal”, os(as) que frequentavam NA, além disso, se autodenominavam adictos.

Resultados e discussão

As histórias de uso de drogas dos(as) entrevistados(as) são constituídas e perpassadas por questões de gênero. Processos de experimentação e manutenção do uso são marcados pela influência de pares para os(as) entrevistados(as), pela influência da família e de parceiros amorosos. O uso de drogas surge nas falas dos(as) jovens como transgressão, mas o que observamos é um uso com caráter de adequação, no sentido de responder às expectativas tradicionais de gênero.

As jovens referiram eleger namorados ou maridos também usuários de drogas, enquanto os jovens revelaram não namorar com mulheres usuárias. Estas são percebidas como elegíveis para relações sexo-afetivas eventuais, descompromissadas, ao que eles nomeiam “rolos”.

A história de experimentação e manutenção de um uso abusivo de drogas dos entrevistados é marcado pela influência de “amigos mais velhos”. Nesse sentido, dizem que passaram a ser respeitados entre seus pares porque “andavam com gente mais velha”. Usar drogas com esses amigos era provar para si e para o outro que “é homem”, que “é o cara”. Para esses jovens, usar drogas confirmaria atributos que estão relacionados ao modelo normativo de masculinidade heterossexual.

Para as entrevistadas, o uso de álcool e tabaco foi iniciado no ambiente doméstico, sob influência de familiares ou adultos(as) de referência. O uso de outras drogas, em especial maconha e cocaína, foi impulsionado pelo desejo de impressionar o jovem em quem estariam interessadas ou para manutenção de relação amorosa em curso. O uso dessas substâncias parou com o término das relações.

Ainda que as jovens signifiquem o uso de drogas como um rompimento com normas de controle dos corpos e da própria feminilidade, o uso parece se dar dentro de normas sociais de gênero nas quais às mulheres caberia agradar e cuidar do outro e das relações afetivas, ou seja, atendendo expectativas de um padrão de feminilidade hegemônica.

Experimentação e manutenção do uso: influência familiar e de parceiros amorosos

As jovens experimentaram álcool e tabaco com idades entre 7 e 10 anos, no ambiente doméstico, muitas vezes, com apoio de familiares e/ou babás, padrinhos e madrinhas. Maconha, cocaína e drogas sintéticas, com idade entre 14 e 25 anos, com namorados e “ficantes” que já eram usuários. Os entrevistados experimentaram álcool, tabaco e outras drogas com idade de 12 a 15 anos em momentos de sociabilidade com amigos.

A Pesquisa Nacional de Saúde Escolar aponta que experimentação do álcool ocorre para as meninas entre 12 a 13 anos e que a idade média para experimentação do tabaco é 16 anos para ambos os sexos (IBGE, 2015IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde do escolar: 2015. Rio de Janeiro, 2015.). Outros estudos correlacionam experimentação de drogas com idade abaixo dos 13 anos e estabelecimento de padrão abusivo de consumo (Silva, 2002SILVA, Patrícia Castro de Oliveira. Alcoolismo feminino: um estudo sob a perspectiva de gênero. 2002. Dissertação (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.; Vargas et al., 2015VARGAS, Divane de et al. O primeiro contato com as drogas: análise do prontuário de mulheres atendidas em um serviço especializado. Saúde debate , Rio de Janeiro, v. 39, n. 106, p. 782-791, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030018
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). Caso semelhante ao encontrado em nosso estudo:

Desde meus 7 ou 8 anos eu bebericava da espuminha da cerveja do copo do meu pai, da minha madrinha e acho que dá minha vó. Era nas festas, tipo Natal, Ano Novo, aniversário, essas coisas. Eles ofereciam mesmo, sabe? Achavam graça. Mas meu primeiro porre mesmo, eu tinha nove anos, foi com meu pai. Ele era alcoólatra e em toda festa ficava lá bebendo. Ele foi me dando copo de cerveja, foi dando e eu fiquei meio bêbada. Ele achou graça. (Bianca, 29 anos, usuária de álcool, tabaco e cocaína, assistente social, morando com mãe e filha de 6 anos)

A fala acima ilustra situações de experimentação ainda na infância, no ambiente doméstico e com incentivo ou aprovação familiar. Situações semelhantes não foram referidas pelos entrevistados que experimentaram estas substâncias com pares, na rua e em festas.4 4 O fato de não ter aparecido na narrativa dos entrevistados não quer dizer que não tenha ocorrido. As jovens relatavam com mais detalhes o funcionamento familiar na infância do que os rapazes, cuja narrativa focava o período de associação com pares. Um dado relacionado à socialização de gênero na qual homens se tornam homens ao incorporarem atitudes e práticas opostas as das mulheres, e vice-versa. Nossos dados ratificam a influência familiar sobre o uso de drogas das jovens mulheres (Guimarães et al., 2004GUIMARÃES, José Luiz et al. Consumo de drogas psicoativas por adolescentes escolares de Assis, SP. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 130-132, 2004. DOI: 10.1590/S0034-89102004000100018
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; Vargas et al., 2015VARGAS, Divane de et al. O primeiro contato com as drogas: análise do prontuário de mulheres atendidas em um serviço especializado. Saúde debate , Rio de Janeiro, v. 39, n. 106, p. 782-791, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030018
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), enquanto outras drogas foram experimentadas para chamar a atenção ou impressionar um parceiro sexo-afetivo:

Aí ele chegou e já anunciou que tinha trazido maconha. Aí a galera: Uhuu! Eu fiquei morrendo de medo de usar, fiquei com medo do cheiro, dos vizinhos! Mas aí eu: “pô, não vou pagar esse mico. Não vou ficar de fora, né?” [...]. Eu queria muito impressionar o carinha. (Poly, 27 anos, usuária de álcool, tabaco e maconha, advogada, desempregada, morando com a mãe)

Experimentar, continuar usando ou não usar drogas esteve estreitamente vinculado ao relacionamento amoroso.

Ele bebia pra caralho [o primeiro namorado], aí eu comecei a beber mesmo! Todo fim de semana, era muita coisa! Tipo, aí eu comecei a chapar muito com ele. Eu queria acompanhar ele, saca? Eu achava que eu ficava mais interessante, mais divertida pra ele e pros amigos dele. (Cristiane, 27 anos, usuária de álcool, tabaco, anfetaminas, cocaína, superior incompleto, desempregada, morando com pais e avó materna)

Marca a história amorosa de nossas entrevistadas o fato de o primeiro namorado ser usuário abusivo de drogas. Outro exemplo é o de Bianca, que aos 15 anos passou a fumar maconha regularmente com o primeiro namorado, “o maconheiro da escola”. O uso parou quando o relacionamento terminou e só voltou a acontecer no contexto de outro relacionamento amoroso, aos 23 anos, com um homem usuário de maconha. Os motivos narrados pelas entrevistadas para o abuso de drogas no contexto da relação amorosa foram: querer agradar e acompanhar o parceiro no uso, se sentir mais interessante para o parceiro, melhorar a qualidade da relação e garantir a manutenção da relação amorosa.

Por outro lado, identificamos importante influência dos pares sobre experimentação e manutenção do uso entre os entrevistados. Os “amigos mais velhos”, jovens com 4 ou 5 anos a mais que os entrevistados, são percebidos como referências positivas “porque conheciam todo mundo”, mas principalmente porque lhes aceitavam, valorizavam e reconheciam. Usar drogas no contexto dessas relações era, também, afirmar atributos de masculinidade.

Pô, tu vê os caras foda, todos marrentos. São os caras que mandam! São os fodões, aqueles são os caras que, os que pegam todas [...]. Porra, tu vai querer ser igual, né? Tu não vai dizer “pô, aí quero não”. Eu tenho que provar que também sou foda!”. (Gustavo, 25 anos, usuário de álcool, tabaco, maconha, cocaína e crack, cursando administração, desempregado, morando com a namorada há 4 meses)

Para os rapazes, os pares têm como função principal validar a conduta de cada um de seus membros, reafirmando os atributos de masculinidade hegemônica (Lima, 2012LIMA, Eloísa Helena de. Gênero, masculinidades, juventudes e uso de drogas: contribuições teóricas para elaboração de estratégias em educação em saúde. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João Del Rey, v. 7, n. 2, p. 279-289, 2012.; Moraes, 2008MORAES, Maristela. Modelo de atenção integral à saúde para o tratamento de problemas causados pelo álcool e outras drogas: percepções de usuários, acompanhantes e profissionais. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 121-133, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000100017
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). Para as jovens, experimentação e manutenção das drogas esteve vinculada à manutenção de aspectos do padrão normativos de gênero feminino, tais como: agradar ao companheiro e investir na manutenção das relações afetivas, acreditando serem capazes de modificar o companheiro, ajudando-o a controlar o uso de drogas e os comportamentos violentos, por exemplo. As entrevistadas se percebiam “necessárias” nessas relações.

“Mulher que usa é carro-bomba”: relações sexo-afetivas com mulheres que usam drogas

As pesquisadas referiam namorar ou serem casadas com homens usuários de drogas, os entrevistados, no entanto, relatavam não namorar ou se comprometer com mulheres usuárias de drogas. Estas se destinariam apenas às relações efêmeras, casuais, relações sexuais, sem compromisso. Compreendemos que os jovens usuários não percebiam a relação estabelecida com as jovens usuárias do mesmo modo que elas, ou seja, o que elas viam como compromisso ou namoro, para eles era “rolo” porque mulher usuária “só dá problema”, “não é confiável”, “são vagabundas”, “imprevisíveis” e capazes de causar estragos na vida dos homens como um “carro-bomba”.

[...] eu tava ficando com ela e ela fumava [maconha]. Morava sozinha, lá em Copa, numa cobertura. Pra mim, aquilo foi a tentação, né? Uma casa que eu posso usar droga. [...] e ela podia vender pra mim. Ela me fortalecia. [...] mas ela dizia que tava namorando comigo e eu pô: “nada a ver” [...] Eu tinha minha namorada. Nunca ia trocar minha namorada por ela. (Igor, 22 anos, usuário de álcool, tabaco, cocaína, Ecstasy, LSD, superior incompleto, desempregado, morando com os pais e irmãos).

A relação termina com Igor a agredindo fisicamente. O jovem diz que não queria colocar em risco seu verdadeiro “namoro”.

Os entrevistados preferem namorar não usuárias, porque, deste modo, têm quem cuide deles, quem “segure sua onda”. “Segurar a onda” diz respeito à expectativa dos jovens quanto ao papel das namoradas e esposas não usuárias no sentido de contribuir para a redução ou suspensão do consumo, ou, ao menos, contribuir para redução dos danos associados ao uso. Os pesquisados afirmam que problemas nos relacionamentos com não usuárias são bem menores em comparação aos com mulheres que usam drogas. Os entrevistados entendem que o papel de suas namoradas é, basicamente, o de subserviência e cuidado, e consideram que a jovem usuária de drogas é incapaz de cumprir esse papel. Estas são rotuladas como “problemáticas” e “putas”, evidenciando, mais uma vez, a maior estigmatização social que recai sobre mulheres usuárias.

Poly relata com indignação, episódio em que fumava maconha, numa roda de amigos, e um rapaz ao seu lado disse que para ele “toda mulher que fuma [maconha] é puta”.

[...] Coloca isso aí [em tom imperativo para a pesquisadora], porque é um absurdo cara! Eu tava doida pra falar isso. Eu nunca mais esqueci. Fiquei chocada, porque além de ser um pensamento absurdo, cara! O cara também tava fumando, porra! Além disso, pô, o cara nem aí pra mim, né? Realmente, devia pensar que eu era mesmo puta, não merecia nenhum tipo de respeito. (Poly, 27 anos, usuária de álcool, tabaco e maconha, advogada, desempregada, morando com a mãe)

As entrevistadas dizem que “a mulher que usa drogas é vista como piranha, como vagabunda, como uma ‘mulher fácil’”, tanto por mulheres não usuárias, como pelos homens, usuários ou não. Nossos dados ratificam a literatura quanto a maior estigmatização social e violência a que estão submetidas as mulheres usuárias de drogas (Fernandez, 2007FERNANDEZ, Osvaldo Francisco Ribas Lobos. COCA-LIGHT? Usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de “cheiradores” de cocaína em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.; INPUD, 2014INPUD - INTERNATIONAL NETWORK OF PEOPLE WHO USE DRUGS. Drug user peace initiative: a war on women who use drugs. London: INPUD Secretariat, 2014.).

Violências e uso de drogas

As relações amorosas das entrevistadas com jovens usuários de drogas são permeadas pela violência de gênero. Cristiane e Bianca referiram diversos episódios em que foram espancadas pelos parceiros:

Mas sabe [...], claro que eu não acho certo. Não é certo! Mas eu até entendo, porque deve ser punk ter uma mulher que bebe, né? Às vezes eu extrapolava, eu sei que deve ser muito complicado pra um homem ter uma mulher que extrapola, tipo que chapa [...], aí eu acho que ele guardava aquilo e ia a fora. (Bianca, 29 anos, usuária de álcool, tabaco e cocaína , assistente social, morando com mãe e filha de 6 anos)

As entrevistadas parecem justificar as atitudes violentas dos parceiros, reconhecendo que, ao não cumprirem as expectativas tradicionais de gênero, isso se configurava um problema para eles.

Os entrevistados também revelam relações violentas estabelecidas com mulheres usuárias de drogas. Gustavo diz que sua grande paixão foi uma jovem usuária de maconha, com a qual morou por alguns meses e cujo relacionamento era permeado por violência: “Eu ficava irado de ver ela lá todo dia fumando com os amigos dela, né? Aí a gente brigava direto. Eu botava os amigos dela pra fora. Eu vi que não ia dar certo, a gente ia se matar” (Gustavo, 25 anos, adicto, cursando administração, desempregado, morando com a namorada há 4 meses).

A relação com a namorada usuária de drogas acabou de modo violento quando o jovem foi até o apartamento dela, onde moravam juntos, e a agrediu fisicamente. A narrativa demonstra a violência a qual estava submetida a namorada usuária e que identificamos nas histórias de vida de nossas entrevistadas.

Identificamos um cenário marcado pela violência sexista, que se perpetua na manutenção de relações amorosas com parceiros usuários violentos, o que é corroborado pela literatura que aponta a violência cometida pelo parceiro como fenômeno bastante presente na vida de mulheres usuárias de drogas (Simonelli et al., 2014SIMONELLI, Alessandra; PASQUALI, Caterina; DE PALO, Francesca. Intimate partner violence and drug-addicted women: from explicative models to gender-oriented treatments. European Journal of Psychotraumatology, Abingdon-on-Thames, v. 5, n. 1, 2014. DOI: 10.3402/ejpt.v5.24496
https://doi.org/10.3402/ejpt.v5.24496...
).

O uso de drogas é trazido pelas jovens como um comportamento transgressor em relação à normativa de gênero feminino, mas parece funcionar como um facilitador para a perpetuação da violência de gênero, de acordo com a qual não seguir as regras estabelecidas pelo parceiro para o uso (ou não uso) pode justificar a violência.5 5 Nesse sentido, é importante ressaltar que as histórias familiares dos(as) entrevistados(as) são perpassadas por violência de gênero no ambiente doméstico. Tema relevante que pode nos ajudar a compreender as histórias de usos de drogas desses(as) jovens e é objeto de outro texto em produção.

Acesso às drogas ilícitas: a dependência social do homem

As pesquisadas têm maior dificuldade para obtenção das drogas, ainda que possam pagar por elas. Nos locais observados, os recursos financeiros para a compra da droga geralmente vinham do grupo, através de uma “intera”, ou seja, uma mobilização em que cada qual contribui com a quantia que puder ou quiser. Porém, ainda que as jovens participassem da “intera”, geralmente eram os jovens que iam ao ponto de venda comprar a droga.

Algumas das pesquisadas já foram ao ponto de vendas comprar drogas ilícitas, mas sempre acompanhadas de homens usuários, geralmente seus namorados ou maridos. Nesse caso, são os parceiros sexo-afetivos que fazem a negociação enquanto elas observam. Muitas vezes, aguardam em local um pouco afastado, conforme sugestão do acompanhante, que entende a recomendação como um cuidado em preservar sua segurança.

Os(as) entrevistados(as) dizem que a usuária está mais vulnerável que o homem a sofrer algum tipo de violência. Em suas narrativas, referem conhecer mulheres que já foram “esculachadas na boca”, termo que diz respeito a xingamentos como “viciada”, “piranha”, “vagabunda”, ou situações em que traficantes retardam a entrega da droga, ganhando tempo para assediar as jovens, beijando-as à força, além de outros tipos de violência. Estes dados estão em acordo com a literatura que aponta a maior vulnerabilidade das usuárias a violências, entre elas, a violência sexual (INPUD, 2014INPUD - INTERNATIONAL NETWORK OF PEOPLE WHO USE DRUGS. Drug user peace initiative: a war on women who use drugs. London: INPUD Secretariat, 2014.).

Os entrevistados não relataram violência contra eles por parte dos traficantes. O medo associado à compra da droga era o de a polícia invadir a localidade e haver troca de tiros. Para os entrevistados, não havia medo de violência sexual, assédio ou humilhação, pois eles dizem que as regras “para evitar problemas” são claras: “não pode ir comprar bêbado ou doidão, porque se pagar mico na boca vai apanhar”, “não pode ir em bando”, “chegar zoando” e “pagar em moeda”. O pagamento tem que ser feito em cédulas porque os traficantes entendem que o pagamento com moedas é uma afronta pois, “eles não vão ficar contando”. Além disso, diziam que “é melhor não ir com mulher pra evitar problema” de assédio. As regras para a compra da droga são várias, mas claras e fáceis de serem cumpridas para os entrevistados. Já para as entrevistadas, parece que a única regra que é evitar comprar a droga ilícita.

Não identificamos dependência financeira das jovens em relação aos homens para compra da droga. Ao contrário, as jovens costumam custear o próprio uso e, em muitas ocasiões, o de seu parceiro sexo-afetivo, além de custear as próprias contas dos bares, táxis que pegavam para busca da droga, entre outros. Isto ocorria apesar de os parceiros, na maioria das vezes, pertencerem à mesma classe social.

Ainda que o acesso aos recursos para a compra da droga precise ser considerado, pagar a droga para o parceiro e, por sua vez, este aceitar, são ações e atitudes que revelam rompimento com normas tradicionais de gênero. Por outro lado, revela uma situação desigual de gênero em que as usuárias são exploradas financeiramente pelos homens usuários para que possam ter acesso e consumir sua droga de preferência.

Nossos dados quanto à dependência social do homem para acesso à droga encontra eco na literatura (Fernandez, 2007FERNANDEZ, Osvaldo Francisco Ribas Lobos. COCA-LIGHT? Usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de “cheiradores” de cocaína em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.). No entanto, os dados quanto à independência econômica das usuárias em relação aos homens parecem inovadores, o que certamente está associado à camada socioeconômica de pertença dos(as) entrevistados(as). Identificamos que o uso de drogas por jovens, homens e mulheres, é feito num ir e vir de contestações e acomodações em relação às normas e expectativas tradicionais de gênero feminino e masculino. No entanto, a dominação masculina (Bourdieu, 2002BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.) se mantém e pode ser observada no que poderíamos nomear de dicotomia entre a “santa” e a “puta”, presente nas narrativas dos participantes da pesquisa.

Considerações finais

A aproximação de parceiros amorosos usuários de drogas para as jovens e de amigos usuários para os rapazes significou em suas histórias de vida, busca por aceitação, valorização, pertença e o sentimento de serem necessários(as) ou importantes. No entanto, as histórias de uso são marcadas distintamente pelo gênero.

As jovens experimentaram álcool e tabaco em casa, ainda na infância, com familiares ou pessoas de referência do convívio cotidiano, enquanto outras drogas foram experimentadas com namorados e “ficantes”. Para nossas entrevistadas, usar ou não drogas esteve estreitamente vinculado ao relacionamento amoroso. Os entrevistados experimentaram todas as drogas com amigos “mais velhos”, que eram percebidos como capazes de facilitar a interação com outros jovens, mas principalmente, porque lhes aceitavam, valorizavam e reconheciam.

Nossos dados sugerem que os(as) entrevistados(as) têm expectativas distintas sobre o relacionamento afetivo com parceiros usuários de drogas, pois, apesar das jovens não se perceberem respeitadas na relação e reconhecerem sofrer violências por parte do parceiro, elas consideram que os jovens usuários de drogas são seus namorados. Os entrevistados, no entanto, não percebem relações sexo-afetivas com mulheres usuárias como namoro, este tipo de relação é reservado às não usuárias. Quanto a isso, recomendamos a realização de novos estudos, que investiguem casais concordantes e discordantes quanto ao uso de drogas, pois, neste estudo, não entrevistamos o casal.

A etnografia dos bares permitiu observar que as usuárias dependem socialmente dos homens (geralmente os parceiros) para acesso à droga ilícita, ainda que não sejam dependentes financeiramente deles. Isto ocorre devido ao medo de sofrerem violência física e/ou sexual nos pontos de venda. Nosso estudo revela que as relações desiguais de gênero e modelos tradicionais hegemônicos de feminilidade e masculinidade são reproduzidos no uso de drogas por jovens. As mulheres sofrem consequências danosas em relação à representação social do uso, tais como: maior estigmatização social, violência de gênero e dependência social do homem para acesso à droga. Consequências relacionadas à normativa tradicional de gênero, de acordo com a qual mulher não se droga.

Recomendamos que ações de atenção ao uso de drogas por jovens contemplem a perspectiva de gênero, bem como a instituição família, como instância privilegiada para estabelecimento de normas sociais saudáveis, entre elas, o uso de drogas.

Referências

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  • 1
    A maioria das pesquisas no campo das drogas utiliza o referencial etário da Organização Mundial de Saúde que compreende adolescência o período entre os 10 e 19 anos e juventude entre os 20 e 24 anos. Em nosso estudo, adotamos a faixa etária conforme o Estatuto da Juventude: pessoas com idades entre 15 aos 29 anos.
  • 2
    A definição de camadas médias, adotada neste estudo foi a de acesso a bens de consumo, renda mensal, nível de escolaridade, família de origem, local e tipo de residência e autoclassificação.
  • 3
    Esta pesquisa foi realizada com bolsa CAPES e aprovada pelo comitê de ética sob o registro CAAE 0021.0.249.000-10. Os(as) entrevistados(as) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ainda que o processo de negociação tenha sido difícil em função da ilegalidade do uso e da especificidade do público-alvo: usuários(as) das camadas médias. Os nomes dos(as) entrevistados(as) foram substituídos por pseudônimos com o objetivo de garantir o anonimato.
  • 4
    O fato de não ter aparecido na narrativa dos entrevistados não quer dizer que não tenha ocorrido. As jovens relatavam com mais detalhes o funcionamento familiar na infância do que os rapazes, cuja narrativa focava o período de associação com pares. Um dado relacionado à socialização de gênero na qual homens se tornam homens ao incorporarem atitudes e práticas opostas as das mulheres, e vice-versa.
  • 5
    Nesse sentido, é importante ressaltar que as histórias familiares dos(as) entrevistados(as) são perpassadas por violência de gênero no ambiente doméstico. Tema relevante que pode nos ajudar a compreender as histórias de usos de drogas desses(as) jovens e é objeto de outro texto em produção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2020
  • Revisado
    15 Nov 2020
  • Aceito
    19 Fev 2021
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