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Nem essência, nem aparência: a produção de corpos, “normalidades” e liberdades mediadas pelas tecnociências

Neither essence nor appearance: the production of bodies, “normalities” and freedoms mediated by technosciences

Resumo

Este artigo investiga em que medida certos corpos materializam as normas a partir de intervenções das tecnociências contemporâneas. Trata-se de um estudo qualitativo em que foram construídas três narrativas de pessoas que vivenciaram transformações corporais drásticas por meio de restrições alimentares, atividades físicas excessivas ou cirurgias bariátricas. Essas histórias foram tensionadas com literatura antropológica sobre o corpo e com as elaborações de teóricas feministas, especialmente Judith Butler e Donna Haraway, de forma a fomentar um debate a respeito dos efeitos individuais e coletivos da autoprodução de novas subjetividades. Evidencia-se, finalmente, que, no processo de materialização da “normalidade”, as fronteiras entre a natureza e a técnica são borradas e os corpos podem se abrir tanto para novos constrangimentos como para novos projetos de liberdade em que nem suas supostas essências nem suas aparências estão mais em jogo.

Palavras-chave:
Corpo; Biopoder; Normalidade; Tecnologia; Obesidade

Abstract

In this article, we investigate to what extent some bodies materialize the norms from interventions of contemporary technosciences. It is a qualitative study in which three narratives of people who experienced drastic bodily transformations through dietary restrictions, excessive physical activities or bariatric surgeries were constructed. These stories were juxtaposed with anthropological literature about the body and with the elaborations of feminist theorists, especially Judith Butler and Donna Haraway, in order to foster a debate about the individual and collective effects of the self-production of new subjectivities. Finally, it is evident that, in the process of materializing “normality”, the boundaries between nature and technique are blurred and bodies can open up to new constraints as well as to new projects of freedom, in which neither their supposed essences, nor their appearances are at stake anymore.

Keywords:
Body; Biopower; Normalities; Technology; Obesity

Introdução

As transformações possibilitadas pelas tecnociências contemporâneas impactaram, de forma decisiva, a maneira como vivemos, nos percebemos e nos relacionamos com os outros. O corpo, nesse caso, teve seus limites redefinidos e passou a ocupar o centro de nossas existências. Igualado a um objeto de consumo, ele se tornou algo pronto para ser manipulado e transformado através de vasto aparato tecnológico ofertado pelo mercado em um contexto de crescente “maleabilidade de si” (Le Breton, 2003LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.). Se, em momentos sócio-históricos anteriores, as pessoas se preocupavam com a harmonia entre corpo, alma e sociedade, atualmente, o foco recai em um contínuo trabalho sobre uma imagem que já não conta com suportes simbólicos tradicionais (Sibilia, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.). Tal empreendimento encontra sua potência em uma gestão individual que seja capaz de trazer à tona toda a potencialidade de uma superfície, que se constitui como principal forma de apresentação de si (Ortega; Zorzanelli, 2010ORTEGA, F.; ZORZANELLI, R. Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).

Esse fenômeno não se restringe ao corpo individual - subjetivo e material -, mas também envolve o corpo simbólico e político - normativo -, bem como a relação entre essas dimensões. Scheper-Hugues e Lock (1987SCHEPER-HUGUES, N.; LOCK, M. The mindful body: a Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology. Medical Anthropological Quaterly, Hoboken, v. 1, n. 1, p. 6-41, 1987., p. 6) reforçam esse ponto a partir da noção de “corpo consciente” (mindful body) e seus desdobramentos: o corpo individual, experienciado enquanto fenômeno; o corpo social, concebido como símbolo das relações entre natureza, cultura e sociedade; o corpo político, enquanto artefato regulado política e socialmente.

Foucault (2011FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2011.), nesse sentido, destaca que a normatividade é sócio-historicamente produzida e que o controle que ela exerce sobre os corpos não se dá exatamente pela via da negatividade ou da proibição, mas através da incitação de práticas, discursos e saberes que se disseminam no tecido social e produzem subjetividades. As táticas, no entanto, já não são as mesmas encontradas pelo filósofo ao estudar as sociedades industriais, afinal, mais que introduzir tecnologias disciplinares com fins de produzir corpos dóceis, aptos à produção fabril, o que está em jogo no contemporâneo é a constituição de “consumidores”, norteados por um imperativo de gestão de si “na administração do seu próprio capital privado e na escolha das opções disponíveis no mercado para modelar seu corpo e sua alma” (Sibilia, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 16).

A moralidade que surge através da articulação entre o slogan de liberdade e a ideia de responsabilidade pela própria saúde se torna, nesse cenário, artimanha fundamental (Carrara, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. DOI: 10.1590/0104-93132015v21n2p323
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), ou seja, ao mesmo tempo em que as pessoas acreditam possuir liberdade para escolher o que farão com seus corpos, elas entendem que suas vidas serão um resultado direto dessas opções e passam a atuar de acordo com diretrizes socialmente validadas. O discurso biomédico, associado aos interesses das indústrias farmacêuticas e de outras corporações cujos objetivos não incluem necessariamente o bem-estar, ocupa posição privilegiada nesse processo, instituindo normas que norteiam uma “política da vida em si mesma” (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.). Trata-se de uma estratégia em que descrições do que são considerados hábitos de vida saudáveis se tornam imperativos para que indivíduos, em busca pela “maximização da própria saúde”, necessitem, permanentemente, de intervenções (bio)tecnológicas (Carvalho; Lima, 2016CARVALHO, S. R.; LIMA, E. M. F. A. Poderes da liberdade, governamentalidade e saberes psi: diálogos com Nikolas Rose (Parte 2). Interface, Botucatu, v. 20, n. 58, p. 797-808, 2016. DOI: 10.1590/1807-57622015.0888
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).

Dito de outro modo, na medida em que limitações biológicas do corpo humano são ultrapassadas, há o desenvolvimento de uma fantasia de “onipotência generalizada” que desestabiliza os marcos normativos da saúde e acaba incorporando, assim, novas definições. Estas, por sua vez, geram novas formas de mal-estar e novos pedidos médicos de “correções” (Le Breton, 2003LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.). Para além dos limites clássicos de saúde, as possibilidades de manipulações na busca por melhoria da aparência e da performance se tornam infindáveis, incluindo aquelas que se valem de tecnologias - tais como dietas, atividades físicas, medicamentos e intervenções cirúrgicas - que não se reduzem a instrumentos, máquinas e outros artefatos.

Preciado (2017PRECIADO, P. B. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2017.), nessa perspectiva, esclarece que a tecnologia é “um dispositivo complexo de poder e de saber que integra os instrumentos e os textos, os discursos e os regimes do corpo, as leis e as regras para maximização da vida, os prazeres do corpo e a regulação dos enunciados de verdade” (p. 154). Essa relação promíscua entre tecnologias e corpos coloca em xeque não só fronteiras que, até então, eram tidas como verdadeiras - como entre natureza e cultura, entre orgânico e artificial -, mas também o próprio estatuto do corpo no contemporâneo.

Nesse processo, não há como separar o aspecto produtivo do poder dos permanentes movimentos - individuais e coletivos - de sujeições, resistências e negociações que produzem novas formas de ser e estar no mundo. Alguns pensadores - tais como Haraway (1997HARAWAY, D. J. The virtual speculum in the New World Order. Feminist Review, Thousand Oaks, v. 55, n. 1, p. 22-72, 1997. DOI: 10.1057/fr.1997.3
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) e Butler (2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) - têm se dedicado a essa questão, destacando que não existe um corpo pré-discursivo, dotado de certa essência e que será moldado pela norma, ou seja, ao mesmo tempo em que o corpo se faz através da norma, ele também reitera o próprio regime de normatividade em um movimento que pode ser subversivo e transformador. Há, portanto, uma potencialidade de agência e de resistência dos sujeitos que não deve ser desconsiderada.

Buscaremos, neste artigo, investigar essa questão a partir de narrativas de pessoas que experimentaram modificações corporais radicais através de certos artifícios, tais como atividades físicas exageradas, restrições alimentares autoinduzidas e cirurgias bariátricas. Para além de discussões bem estabelecidas no campo das Ciências Sociais e da Saúde Coletiva, que têm como foco a saúde e o culto ao corpo magro (Gracia Arnaiz; Comelles; Bernal, 2007GRACIA ARNAIZ, M.; COMELLES, J. M.; BERNAL, M. (Eds.). No comerás: narrativas sobre comida, cuerpo y género en el nuevo milenio. Barcelona: Icaria Editorial, 2007.; Sibilia, 2004SIBILIA, P. O pavor da carne: riscos da pureza e do sacrifício no corpo-imagem contemporâneo. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 11, n. 25, p. 68-84, 2004. DOI: 10.15448/1980-3729.2004.25.3286
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), nos perguntamos: como essas pessoas, a partir da materialização de seus corpos modelado pela ciência e pela tecnologia, se percebem em suas relações com os outros? Como elas reconfiguram seus lugares numa rede que envolve o individual e o coletivo, o subjetivo e o político, a natureza e a técnica, a representação e a intervenção? Estaríamos diante de uma mera readequação das normas ou de um jogo de forças no qual nem uma suposta “essência” nem o imperativo da perfeição estão mais em questão? Acreditamos que tais questões possam fomentar reflexões que contribuam no debate relacionado à abordagem metodológica e epistemológica do corpo na atualidade.

Perspectiva teórica-metodológica

O corpus deste trabalho é composto por três narrativas decantadas de dois projetos de pesquisa que tiveram o corpo e as práticas corporais como objeto de investigação. Ambos foram aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa institucionais (COEP-UFMG 561/2010 e CAAE-23492213.1.0000). As estratégias metodológicas, embora tenham tido suas particularidades, coincidiram em relação à abordagem qualitativa formalizada através da análise de entrevistas.

Os participantes foram intencionalmente (Minayo, 1992MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec, 1992.) escolhidos de acordo com os seguintes critérios: (1) idade maior que 18 anos; (2) diagnóstico prévio de obesidade ou anorexia; (3) experiência de transformações corporais radicais mediadas por certas tecnologias, tais como dietas, atividades físicas ou cirurgia bariátrica. Todos foram localizados a partir de indicações de profissionais de serviços especializados (públicos ou privados) ou de outros participantes. Não houve qualquer distinção em relação ao gênero, raça, etnia ou classe social. O convite para as entrevistas foi realizado por e-mail e/ou telefone através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Estas aconteceram em locais escolhidos pelos próprios entrevistados e tiveram, como norte, um roteiro semiestruturado (Minayo, 1992MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec, 1992.). A intenção dessa ferramenta foi desencadear uma narrativa fluida a respeito da experiência de cada um com o seu corpo, suas práticas e as transformações corporais, assim como os efeitos dessas mudanças em suas relações consigo mesmo e com os outros. As falas foram gravadas e transcritas pelos pesquisadores.

Considerando o objetivo central deste artigo - ou seja, conhecer as ressonâncias de intervenções tecnocientíficas no corpo individual, simbólico e político -, restringimos nossas análises a três entrevistas em que essa questão nos pareceu mais evidente. A perspectiva metodológica das narrativas, inspirada em Benjamin (2012aBENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense; 2012a. p. 213-240., 2012bBENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense; 2012b. p. 241-252.), nos guiou na construção do material empírico. Tomamos, nesse sentido, cada transcrição como um “acontecimento” desencadeado a partir de uma relação entre narrador e interlocutor-pesquisador. A narrativa, em vez de uma pronta lembrança de uma vivência (Erlebnis) passada, foi tratada como algo que pode ser, permanentemente, reconstruída na medida em que é narrada. Nesse movimento, o narrador não “informa” sobre sua vivência, mas conta sobre ela, criando a oportunidade para que o outro a escute e a transforme de acordo com suas interpretações. Essa interação, marcada pela troca, abre espaço para que a vivência isolada se transforme em experiência compartilhada (Erfahrung), carregando consigo sentidos e significados socialmente divididos.

Seguindo essa indicação, apresentaremos as narrativas no formato de textos que construímos a partir das falas dos participantes para tornar a leitura mais fluida. Nesse processo, mantivemos as singularidades de cada história, ressaltando as interpretações daquele que a vivenciou. Nomes e dados pessoais foram omitidos para manter o anonimato.

A análise das narrativas teve como referencial teórico produções antropológicas em relação ao corpo e elaborações de teóricas feministas cujas reflexões vão além das referências da Segunda Onda. Haraway (1997HARAWAY, D. J. The virtual speculum in the New World Order. Feminist Review, Thousand Oaks, v. 55, n. 1, p. 22-72, 1997. DOI: 10.1057/fr.1997.3
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) afirma, nesse sentido, que a tecnociência implica em uma “inescapável materialização do mundo”, ressaltando que, para conhecermos essa dinâmica, devemos manter o foco em corpos “ontologicamente confusos” e nas práticas que produzem corporificações específicas, deixando de lado a noção de “real” e “natural” que teve origem na Renascença. Para ela, o que importa é quais corpos (e de quem) estão em questão na nova ordem propiciada pela tecnociência e quais questões políticas e morais estão envolvidas.

Butler (2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), por sua vez, critica as concepções cristãs e cartesianas que concebem o corpo como uma matéria inerte, uma facticidade anterior ao discurso e à significação. Para ela, existem jogos de presença e ausência de significados na superfície corporal que podem ser traduzidos através de atos performativos que tentam expressar uma essência ou uma identidade que, na verdade, não existe a priori, mas que é, a cada ato, fabricada. Dito de outro modo, o corpo “não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade” (p. 193).

Butler propõe, assim, uma redefinição do conceito de matéria, refutando sua condição de local ou de superfície pré-estabelecida. Trata-se de um processo de repetição de uma norma, oriunda da vertente produtiva do poder, que, ao longo do tempo, se estabiliza, causando um efeito de fixidez e de superfície. A filósofa se distancia da vertente construtivista que, como ela destaca, nega a realidade dos corpos e suas manifestações, bem como as instabilidades inerentes a suas construções que podem ser verificadas nas possibilidades desconstitutivas dentro do próprio processo de repetição. Para ela, “não existe nenhuma referência a um corpo puro que não seja, ao mesmo tempo, uma formação adicional daquele corpo” (Butler, 2001BUTLER, J. Corpos que pesam. In: Louro, G. L. (Orgs.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 151-172., p. 164). O corpo, portanto, é constituído e, ao mesmo tempo, constitui a norma a partir de atos reiterados que a reafirmam ou a negam. Neste último caso, os corpos abjetos que habitam zonas inóspitas da vida social acabam reforçando as próprias normas regulatórias que, ao se materializarem, constituem o sujeito à força da exclusão e da abjeção (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.).

Haraway (1997HARAWAY, D. J. The virtual speculum in the New World Order. Feminist Review, Thousand Oaks, v. 55, n. 1, p. 22-72, 1997. DOI: 10.1057/fr.1997.3
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), seguindo raciocínio semelhante, defende que tanto a noção moderna de “real” e “natural” quanto a “virtualidade” propiciada pelas tecnologias da pós-modernidade são, simultaneamente, realidades materiais, corporificadas e imaginárias, uma vez que todas elas são habitadas por pessoas que aprenderam as convenções de certa época. O processo de reprodução de tais convenções, no entanto, revela que “reversos e substituições nunca são apenas substitutos ou reversos dos valores do original” (p. 35), mas reconstruções que desfazem o original e abrem caminhos para histórias inesperadas.

Apresentaremos, a seguir, três das “histórias inesperadas” com as quais nos deparamos em nossas investigações. As narrativas, embora falem por si mesmas, terão seus pontos de encontro e de desencontro, posteriormente, tensionados com o referencial teórico exposto para sustentar a discussão.

“O que eu queria era ser normal, passar despercebida...”

Simone fazia dieta desde pequena devido ao excesso de peso. Acreditava que vários fatores relacionados a sua história de vida a levaram a engordar, além da ansiedade e da compulsão por comida: “E eu me sentia horrível, péssima, assim... Como mulher eu não existia, como pessoa também não. Era difícil... fazer amigos, não era difícil manter os que eu já tinha.”

O peso colocava empecilhos à locomoção e à vida social. Eram os amigos que iam até sua casa. Simone se percebia “imensa”: não passava em roleta de ônibus, nem encontrava assentos apropriados em teatros e cinemas, algo que a impossibilitava de frequentar esses lugares. Na primeira faculdade, não encontrava grupos para fazer trabalhos, não era chamada para festas etc. Além de ser “gorda”, era bolsista e tinha que estudar muito para acompanhar os colegas. Definitivamente, não estava satisfeita consigo mesma:

Eu ia pra faculdade pra comer, eu matava aula e ia comer... foi piorando e aí engordei 30 kg. [...] Eu tentei regime com um nutricionista só, quando eu era pequena, depois fui pro endocrinologista e tomei aqueles milhões de remédios e fórmulas... todas! [...] aí emagrecia 5 kg, parava de tomar os remédios e engordava 15.

Entre os motivos que a levaram à cirurgia, a baixa autoestima e, sobretudo, a saúde foram os principais. Apesar de não ter qualquer doença decorrente da obesidade, Simone estava certa de que isso aconteceria a qualquer momento e, por isso, não viveria muito. Ela se via como um problema para família e, como defesa, acabava pensando mais nos outros que nela mesma: “Aí eu acho que isso era ruim pra mim mas, ao mesmo tempo, me fez procurar a cirurgia para resolver o problema dos outros, só que acabou que eu aprendi a olhar para mim mesma”.

Quando optou pelo procedimento, estava com 147 kg e contou com o apoio da família e dos amigos, exceto do pai. No primeiro dia do pós-operatório, Simone se arrependeu: não de ter operado, mas de ter engordado tanto. Depois de perder peso, fez novas amizades e passou a acreditar que, apesar dos episódios que experimentou preconceito, estes decorriam “muito mais da pessoa, do gordo, em si, da pessoa obesa [...]. A gente não... não acredita que as pessoas vão realmente gostar de você, vão querer interagir...”.

Nunca havia namorado e, apesar de achar que não poderia culpar apenas os outros, já que ela mesma que “se fechava” para as relações (fossem de amizade ou amorosas), chegou “[...] num ponto em que ninguém normal se interessaria mesmo”. Depois da cirurgia, teve um envolvimento amoroso, mas foi “rejeitada depois de magra”. Foi difícil, porém, entendeu que são “problemas normais, assim, de uma pessoa com uma vida afetiva”, concluindo que “a coisa vai além da aparência”.

Entre as relações familiares, a que mais se transformou foi a relação com a mãe, que começou a fazer cobranças e insinuações que antes não existiam. Um dia a mãe “confessou” que estava com ciúmes, pois, antes, a filha era totalmente dela e, após a perda de peso, estava com dificuldades de “soltá-la”.

A cirurgia de Simone deixou uma cicatriz no abdômen que ela passou a admirar, apesar de cogitar em removê-la em uma cirurgia plástica. Ela também queria colocar silicone nos seios. Poderia conseguir pelo SUS uma cirurgia para remoção da pele em outras partes do corpo, mas, como isso não a incomodava, ela preferia tentar melhorar através de exercícios físicos.

Simone, à época da entrevista, estava com 22 anos e 70 kg. Passou a cursar uma outra graduação, “reprogramou” o seu corpo e o ato de comer se tornou mais disciplinado:

[...] é a melhor sensação do mundo, porque você volta a ser normal, assim... Mais ou menos, né? [...] Era, talvez, tudo o que eu queria era ser normal, tratada como uma pessoa normal, passar despercebida [...] porque antes eu, eu passava despercebida, mas era assim, aquela coisa... Eu vi uma pessoa com anorexia falando isso uma vez, mas é realmente: o obeso, ele é enorme, mas ninguém enxerga [...]. Só que, hoje, passar despercebida quer dizer que eu tô normal, no mesmo nível [...]. Eu diria que, hoje, eu sou realizada, feliz. [...] hoje eu sou feliz e tenho momentos de tristeza como qualquer outra pessoa...

“Eu não consigo saber o que é que eu mudei”

Marcelo foi uma criança magra, mas engordou de tal forma na pré-adolescência que, aos 15 anos de idade, já era considerado uma pessoa “obesa”. Havia várias pessoas “gordinhas” em sua família, mas não como ele. Apesar de acreditar que era uma questão “fisiológica”, Marcelo atribuía a causa da sua obesidade à ansiedade e à compulsão alimentar.

Após várias tentativas, como dietas orientadas por endocrinologistas e outros recursos como os Vigilantes do Peso, ele recebeu indicação médica de cirurgia bariátrica. Estava com 145 kg e com “início de diabetes”. Apesar de achar a cirurgia “uma saída extrema”, entendeu que esta era o último recurso. O apoio dos pais, assim como o da equipe composta por endocrinologista, cirurgião, psicóloga e nutricionista, foi muito importante para ele.

Depois da cirurgia, se tornou extrovertido, relaxado, “bem zen” e satisfeito. Antes, não pensava em suas questões subjetivas, mas, depois que emagreceu, percebeu que era tímido, tinha baixa autoestima e dificuldades nas relações afetivas, algo que tentava esconder encarnando o estereótipo do “gordo bem-humorado”. Ainda assim, sustentou um namoro durante dois anos. A relação, no entanto, terminou quatro meses após a operação. Apesar do seu médico ter lhe falado, em tom de brincadeira, que o procedimento cirúrgico mudava tanto a pessoa que muitas acabavam terminando seus relacionamentos antigos, Marcelo não sabe ao certo se foi isso que o levou a tomar a decisão de romper com a namorada. Para ele, talvez, esse fato estivesse relacionado ao ciúme que ela passou a ter dele após o emagrecimento.

Ele passou a se sentir mais à vontade para sair, conhecer pessoas novas e fazer novos amigos:

O tratamento social muda muito, o jeito que as pessoas te olham, até não sei se é o jeito que eu achava que as pessoas me olhavam por causa da questão da baixa autoestima, você acaba achando que... a maneira que as pessoas te olham é sempre negativa. E, agora, muda... você acaba relevando ou então vendo de uma forma positiva, assim. Então, isso mudou bastante também, assim, a maneira de eu tratar as pessoas também, ter mais autoconfiança...

Marcelo entendia que sua baixa autoestima o induzia a uma interpretação “negativa” de si: “mas eu não consigo saber o que é que eu mudei. Ou eu acho que as pessoas me veem de uma maneira diferente ou se realmente viam de uma maneira diferente antes da cirurgia”. A relação com a família e com os antigos amigos continuou sendo boa, os amigos, no entanto, já não podem mais fazer as “piadas” que faziam quando ele era gordo.

Quatro meses antes da entrevista, Marcelo afirmou ter chegado ao “peso ideal”: 73 kg. Nesse processo, uma das maiores dificuldades foi adequar a percepção subjetiva do corpo a sua materialidade: “[...] é uma questão de se adequar mesmo a uma realidade que muda muito rápido e a sua cabeça acaba não acompanhando tanto”. Teve que reaprender a comer ao longo do pós-operatório, algo que ele considera uma espécie de ritual de passagem para sua “nova vida”.

À época da pesquisa, com 20 anos, Marcelo começou a “expandir suas áreas de interesse”. Passou a gostar de música e a pensar em mudar de curso de graduação: “a realidade muda e você acaba abrindo a cabeça pra outras coisas...”.

“Se você está determinada a secar, você seca!”

Quando entrou na adolescência, Ana tinha vários amigos. Gostava de sair para dançar e paquerar e, às vezes, exagerava na bebida alcoólica. Nesses momentos, se sentia inchada e fazia um controle dietético que a permitia, rapidamente, retornar ao peso original. Aos 16 anos, fez uma cirurgia: “[...] eu tava bem, andava, saía, mas eu fiquei 15 dias de atestado e fui pra casa da minha avó e, lá, comi de um jeito que não era normal... Porque ninguém come pra ficar lotado assim. Comer mais do que a fome”.

Chegou a engordar 10 kg em duas semanas, se esforçou para regular a ingestão alimentar, mas não conseguiu. Um dia, resolveu radicalizar e “fechou a boca”, começou a “comer nada, literalmente”. Entrou na academia, alegando que queria “ganhar massa”, mas, à medida que o peso reduzia, ela queria emagrecer mais. Visitava blogs de anoréxicas para se inspirar e perder mais peso:

[...] você vê que você é capaz de fazer aquilo também. Você vê que você é capaz de ter a sua bacia aparecendo e a barriga negativa. Você vê que é capaz de ter o braço fino. Você vê que é capaz de... sua perna não encostar uma na outra. Você vê que é capaz daquilo porque você é igual a todo mundo! A diferença entre você e aquela outra pessoa que não consegue fazer isso é a determinação! Se você está determinada a secar, você seca! E eu tava!

Passava o tempo todo pensando em calorias e, aos poucos, foi se afastando de todos. Morava com a avó materna, que parecia não entender o que estava acontecendo. Chegou a pesar 38 kg. Quando viu uma foto, não se reconheceu naquela imagem e ficou muito assustada. Não entende como chegou naquele estado, mas acha que “[...] você acostuma fazer o seu corpo assim... judiar dele! Eu tenho dó! Hoje, eu tenho dó do meu corpo porque... eu não sei como ele aguentou, entendeu? Eu não sei como que ele aguenta até hoje”.

Sozinha, sem ter com quem dividir sua preocupação, voltou, gradativamente, a se alimentar. No início, foi muito difícil para ela ver o peso subir, mas, na medida em que o cabelo parava de cair, a unha ficava mais bonita e autoestima melhorava, ela foi ficando tranquila. Nesse processo, no entanto, começou a ter “crises de compulsão alimentar”. Comia até vomitar e o peso voltou a ser motivo de preocupação. Estava cada vez mais “sozinha” e “deprimida”. Se sentia “gorda” e ficava paralisada na dúvida se deveria parar de comer. Pediu ajuda para a mãe, que a levou a uma psicóloga e, depois, a um psiquiatra. Ana acredita que isso só contribuiu para que sua situação piorasse, pois eles não só não lhe deram qualquer esperança de “cura”, mas também a trataram como “um ser humano diferente”, que não era “normal”.

No momento da entrevista, Ana estava com 18 anos e fazia acompanhamento em um serviço especializado, com uma equipe interdisciplinar que não a tratava como “doente”. Suas relações sociais eram escassas e, embora ela buscasse entender as causas que estavam por trás de seu permanente incômodo com o corpo, na maior parte do tempo: “[...] eu só como, como, como, fico triste, triste, triste, aí eu tento compensar no outro dia, aí, minha cabeça vira uma bagunça, meu corpo vira uma bagunça, aí eu fico uma bagunça e, no final das contas, eu não sei de nada, entendeu? E eu luto!”.

Considerações finais: um breve balanço sobre normatividades, “normalidades” e liberdades

Como bem definiu Mauss (2003MAUSS, M. As técnicas do corpo. In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 399-419.), “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem” (p. 407). Este, no entanto, é plástico e, ainda que seja atravessado pela fome, pela sede, pela dor, pelo cansaço e pelo sono, não há como ser enquadrado em uma universalidade, afinal, os humanos, em sua tríplice dimensão biopsicossocial (Mauss, 2003MAUSS, M. As técnicas do corpo. In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 399-419.), estão situados em tempos, espaços, culturas e sociedades específicas que irão orientar, por exemplo, os momentos em que a fome pode ou não ser saciada, quais alimentos poderão ou não ser ingeridos, assim como os ritos que farão parte desse processo. Da mesma forma, tais elementos nortearão as esferas afetivas e simbólicas da dor (Le Breton, 2013LE BRETON, D. Antropologia da dor. São Paulo: Editora da Unifesp, 2013.) e do cansaço, seus modos de expressão, a percepção de suas intensidades e a necessidade ou não de controlá-las (Sarti, 2001SARTI, C. A dor, o indivíduo e a cultura. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 3-13, 2001. DOI: 10.1590/S0104-12902001000100002
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).

Nas sociedades ocidentais contemporâneas, esse fenômeno tem sido cada vez mais intermediado pelas tecnociências, que abrem possibilidades para formas inusitadas de performatividades e materializações corporais. Nas narrativas apresentadas, a “autoprodução” (Rabinow, 1999RABINOW, P. Antropologia da razão: ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.) de uma “nova vida” é regida por certo ideal de normalidade ancorado em um corpo magro. Simone acreditava que isso a permitiria “passar despercebida” ao olhar do outro e, ao mesmo tempo, ser desejada. Marcelo precisava se livrar do “início de diabetes” e Ana queria perder os quilos que havia ganhado durante a recuperação de um procedimento ortopédico e ter uma “barriga negativa”. A “gordura”, para todos eles, estava associada a certas características pessoais - tais como ansiedade, baixa autoestima e inibição social -, assim como a determinados termos ligados a uma anormalidade, a um problema, a um motivo de piada ou, ainda, a um caminho certo para morte. De fato, tal como Sontag (1984SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984.) demonstrou, certas formas de adoecimento tendem a ser subjetivadas através de metáforas cujos significados são socialmente compartilhados. Tais representações, muitas vezes, carregam consigo julgamentos morais que forjam “fantasias punitivas ou sentimentais” e individualizam o sofrimento. A “cura”, nesse caso, “depende sobretudo da capacidade já seriamente provada ou enfraquecida do paciente de ter amor-próprio” (p. 31).

Foi assim que, apoiados por profissionais de saúde e familiares, Simone e Marcelo se submeteram à cirurgia bariátrica, reinventaram seus corpos e suas maneiras de estarem no mundo e de se relacionarem com os outros. Ana, por sua vez, seguiu um percurso solitário, em que as restrições alimentares, as atividades físicas exageradas e os vômitos foram velados pelo silêncio e retraimento social. Valendo-se de recursos tecnológicos diversos, cada um a sua maneira, autoproduziu novas subjetividades que refletem novas formas políticas e sociais (Rabinow, 1999RABINOW, P. Antropologia da razão: ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.): novos corpos, novas percepções, novas pessoas e novas relações - seja com os outros, com a comida e com o trabalho, seja com o próprio corpo e com a maneira de se ver.

Se, por um lado, essas tecnologias podem fomentar novas formas de disciplina e submissão, por outro, elas abrem espaço para novos projetos de liberdade que escapam qualquer tipo de determinismo tecnológico (Haraway, 1997HARAWAY, D. J. The virtual speculum in the New World Order. Feminist Review, Thousand Oaks, v. 55, n. 1, p. 22-72, 1997. DOI: 10.1057/fr.1997.3
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). Simone, ao buscar a “normalidade” - a partir da norma que institui que o corpo belo é o corpo magro -, se deparou com uma nova subjetividade em que as cicatrizes, a flacidez e os desencontros afetivos não lhe incomodavam como em outros tempos. Ela aprendeu a ver “além da aparência”, refez os laços sociais, projetos de vida e colocou em xeque não só o campo da normatividade, mas também o próprio campo de abjeção que antes ocupava. Ana, de uma maneira diversa, se apropriou dessa mesma norma, construindo uma espécie de prisão que “bagunçou” seu corpo e a deixou “deprimida”. Inicialmente, ao buscar acolhimento de uma psicóloga e de uma psiquiatra, se sentiu tratada como “um ser humano diferente”, situação que reforçou sua solidão e a sensação de inadequação no mundo. Seu percurso, no entanto, não ficou paralisado e ela procurou construir, em um serviço especializado, um lugar onde pudesse ser tratada como uma pessoa “normal”.

O discurso médico-psicológico, nesse caso, foi materializado em seu corpo de forma paradoxal: se, inicialmente, ele contribuiu para que ela se percebesse ainda mais adoecida e fora da norma, posteriormente, ao inscrevê-la em um enquadramento patológico passível de “tratamento”, ele pareceu dar algum sentido socialmente compartilhado para seu sofrimento, relançando-a em uma “luta” diária contra seu mal-estar. A identificação com o abjeto, nesse caso, permaneceu, mas assumiu uma nova roupagem que incidiu sobre o corpo e abriu um horizonte onde, talvez, algum movimento seja possível.

Marcelo fez um caminho mais discreto, mas não menos emblemático no que diz respeito à materialização corporal da norma. Ele não sabia dizer ao certo o que mudou, mas percebia que seu corpo já não era mais o foco das piadas dos amigos. A obesidade era seu corpo e, seu corpo, a obesidade materializada, bem como o material das piadas. As piadas se foram e Marcelo se tornou outro. Suas amizades continuavam “as mesmas”, mas vivenciadas em outro contexto de relações sociais, simbólicas e de poder, ou seja, ao mesmo tempo em que - através da técnica, da medicina e da ciência - se sedimentou a hegemonia simbólica das normas regulatórias em seu corpo, surgiu um novo processo de materialização corporal, que possibilitou a desconstrução e reconstrução de relações intra e intersubjetivas. Marcelo ressignificou não só a sua postura de depreciação em relação a si mesmo, mas também como ela afetava o olhar dos outros. As relações de poder, atravessadas por uma moralidade que preza pelo bem-estar e pela realização pessoal (Carrara, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. DOI: 10.1590/0104-93132015v21n2p323
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), permaneceram em sua vida, mas já não o alocam mais no lugar do “gordo-abjeto” do qual ele tentava se deslocar através da incorporação do “gordo bem-humorado”.

Nas três narrativas, as fronteiras entre o normal, o patológico, a saúde e a doença aparecem como algo cambiável, que ultrapassa o corpo biológico e se confunde com a própria vida. Canguilhem (2006CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.) adverte, nesse sentido, que, longe de qualquer reducionismo organicista, o que está em jogo na saúde não é exatamente a adequação a uma normatividade pré-estabelecida, mas a abertura permanente para novas criações diante de eventuais mutações da norma. Afinal, o que a caracteriza é justamente “a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas” (p. 148).

Nesse processo, poderíamos nos perguntar: o natural foi artificializado ou o artificial foi naturalizado? Na verdade, natureza e cultura, corpo-objeto e corpo-sujeito não se opõem, tampouco se anulam ou se apagam (Haraway, 2009HARAWAY, D. J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, T. (Orgs.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 33-118.). Em vez disso, cria-se uma simetria, um trabalho de hibridação que não permite que essa pergunta faça sentido para os sujeitos envolvidos. Ao que tudo indica, o que está em jogo para eles é o desejo pela construção de um novo corpo que seja representado e experienciado como “normal”. Não importa, nesse contexto, se será a natureza ou a técnica que engendrará essa “normalidade”, afinal, estamos diante de um paradigma em que tecnologia não é “mais aquilo que modifica uma natureza dada”, mas “a produção mesma dessa natureza” (Preciado, 2017PRECIADO, P. B. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 154). Como observamos nas narrativas, não há, nesse jogo, uma preocupação sustentável com uma suposta “essência” ou com um tipo normativo de perfeição corporal.

Segundo Butler (2001BUTLER, J. Corpos que pesam. In: Louro, G. L. (Orgs.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 151-172.; 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), a norma é um ideal abstrato e, por mais que tentemos copiá-la, estaremos sempre realizando uma paródia, ou seja, se a performatividade materializa, em alguma medida, os efeitos produtivos do poder regulatório no corpo, ela também revela que sempre há um componente da normatividade que extravasa e produz efeitos contingenciais e inesperados. Isso acontece justamente porque os corpos não são passivos, pelo contrário: eles estão em um movimento permanente que permite novas invenções. Sabemos, contudo, que, quanto mais os corpos se afastam da norma, mais próximos eles ficam do campo da abjeção e maiores chances eles têm de serem patologizados, desumanizados e marginalizados.

Em nossa investigação, ficou evidente que, no contemporâneo, há um padrão normativo de magreza que, alimentado pelas indústrias farmacêuticas e da moda e regulado pelos saberes médico-científicos, vacila entre o belo e o saudável (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). O campo de abjeção, nesse sentido, pode ser habitado tanto por corpos (muito) gordos como por corpos (muito) magros. A “normalidade” se revela, assim, como algo bastante vulnerável do ponto de vista conceitual, mas radicalmente violento com corpos que não se realizam materialmente em consonância com o poder regulatório que tenta, permanentemente, domesticá-los.

Ao compararmos a experiência de Marcelo com as de Ana e de Simone, o efeito do marcador social relacionado ao gênero na subjetivação do sofrimento articulado ao ideal do corpo magro é evidente. Diferentemente das mulheres, que trazem em suas narrativas o isolamento e o distanciamento de questões relativas à vida afetiva-sexual, Marcelo parece manter, independentemente do formato corporal, um trânsito social mais fluido. Uma vez que, em nossa cultura, a feminilidade hegemônica se encontra fortemente ligada a uma imagem articulada à delicadeza do corpo magro, é esperado que o sistema seja mais brutal com mulheres que divergem desse padrão. Essa estética, para além do ideal biomédico, é acompanhada de um julgamento moral que as culpabiliza e as aloca em um lugar de abjeção em que suas próprias feminilidades são questionadas (Novaes, 2010NOVAES, J. V. Com que corpo eu vou?: sociabilidade e usos do corpo na mulheres das camadas altas e populares. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Pallas, 2010.). Simone, por exemplo, após a cirurgia, não estava preocupada com o excesso de pele ou com a flacidez, o que a incomodava era a diminuição dos seios, um dos mais fortes símbolos de feminilidade, sexualidade e maternidade nas sociedades ocidentais modernas.

Há de se considerar, nesse contexto, que marcadores relacionados às raças, etnias e classes sociais também se articulam na determinação de quais corpos devem ou não incorporar esse ideal de perfeição. Assim como as performances e os comportamentos sociais, os padrões estéticos (sociais e culturais) também respondem a normas racializadas, contudo, neste artigo, tendo em vista as semelhanças dos participantes em relação a esses quesitos, deixamos essa questão em aberto para futuras investigações. De todo modo, nos chama a atenção como Simone, Marcelo e Ana, em suas experiências particulares, reinventam seus corpos e reaprendem, a cada dia, a se relacionar com ele, com os outros e com o mundo, em um jogo que opera, ao mesmo tempo, dentro e fora da norma. Esse jogo reafirma que não há uma essência que nos determine, nem tampouco um construcionismo etéreo que não se torna carne - afinal, estamos falando de corpos que vivem, corpos que sentem dor e prazer. Nesse processo, também não existem determinismos: os corpos se materializam enquanto se reinventam, abrindo-se tanto para novos constrangimentos quanto para novas liberdades. Não se trata, portanto, de demonizar ou sacralizar as tecnociências, mas de manter viva as reflexões a respeito das controversas relações entre o poder regulatório, a materialidade dos corpos e os projetos de liberdade, de forma a abrir possibilidades para outras interpretações diante da irremediável mediação tecnológica dos processos sociais no contemporâneo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2021
  • Revisado
    16 Ago 2021
  • Revisado
    28 Set 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
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