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A dimensão da atenção à saúde na Promoção da Saúde: apontamentos sobre a aproximação com o cuidado1 1 Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX-CAPES).

Resumo

O objetivo do presente texto é explorar as interfaces entre a Promoção da Saúde (PS), atenção à saúde e processo de cuidado. Parte-se da premissa de que a dimensão da atenção à saúde é essencial para a construção teórico-prática da PS, de forma que possa contribuir para melhores condições de saúde. Trata-se de pesquisa com caráter qualitativo; foi realizada consulta a gestores(as) e trabalhadores(as) municipais da Atenção Básica, utilizando formulário eletrônico, que teve 215 respondentes; e 13 entrevistas com especialistas, membros do Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Saúde Coletiva; também foi realizada análise categorial-temática. Como resultado, pode-se destacar: não necessariamente há dicotomia entre PS, Clínica e cuidado; a forma como o cuidado é produzido torna-se relevante, já que é necessário considerar princípios e diretrizes da PS; e que o cuidado estaria relacionado à PS ainda que a perspectiva seja a recuperação da saúde em casos de adoecimento. Assim, defender a importância da dimensão da atenção à saúde não é ratificar a hegemonia da assistência à saúde sobre outros componentes do processo de cuidado, sendo essencial considerar necessidades individuais em conjunto com a dinâmica social e o contexto no qual vivem as pessoas.

Palavras-chave:
Assistência à Saúde; Atenção Primária à Saúde; Serviços de Saúde; Integralidade em Saúde

Abstract

The aim of this text is to explore the interfaces between Health Promotion (HP), health care and the care process. It starts from the assumption that the dimension of health care is essential for the theoretical-practical construction of HP, so that it can contribute to better health conditions. This is a qualitative research, a consultation was carried out with managers and municipal workers of Health Primary Care, using an electronic form, which had 215 respondents; and 13 interviews with experts, so called members of the Working Group of the Brazilian Association of Collective Health; also a categorical-thematic analysis was performed. As a result, stands out that: there is not necessarily a dichotomy between HP, , clinical care; the way in which care is produced becomes relevant since considering HP principles and guidelines is necessary, thus care would be related to HP even though the perspective is the recovery of health in cases of illness. Thus, defending the importance of the health care dimension is not to ratify the hegemony of health care over other components of care process, and considering individual needs alongside the social dynamics and the context in which people live is essential.

Keywords:
Delivery of Health Care; Primary Health Care; Health Services; Integrality in Health

Introdução

A Promoção da Saúde (PS), como um conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, remete à busca de abarcar as complexidades relacionadas à saúde e à vida que dialoguem com o aspecto individual, por meio da construção de modos de vida (mais) saudáveis; e com o aspecto coletivo e societal, que leva as pessoas a terem efetivas possibilidades (ou não) de adotar os referidos modos, caso queiram. Ou seja, o que condiciona, permite ou impede que as pessoas tenham opções mais saudáveis se for do seu desejo.

Assim, como um campo gerador de políticas e práticas diferenciadas, no tocante a existência de uma dimensão da atenção à saúde, a PS tem trazido o desafio de construir possibilidades que viabilizem e incorporem estratégias de cuidado guiadas pelos princípios da integralidade e da equidade (Bagrichevsky, 2021BAGRICHEVSKY, M. Pelas lentes do SUS: notas sobre desafios e avanços da promoção da saúde na atenção primária. Revista Pensar a Prática, v. 24, 2021. DOI: 10.5216/rpp.v24.66137.
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). Além da importância do acesso a serviços de saúde de qualidade, é necessário enfrentar toda a amplitude dos determinantes da saúde, o que requer políticas públicas saudáveis, articulação intersetorial e mobilização da população (Buss et al., 2020BUSS, P. M. et al. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 12, p. 4723-4735, 2020. ).

A PS reconhece, desta forma, a necessidade de articulação e cooperação intra e intersetorial para a formação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), em integração com as demais redes de proteção social (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.446/GM/MS, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF, 2014.). Contudo, é possível afirmar que tais estratégias de cuidado acabam por ficar marginalizadas nas discussões sobre a PS, ainda que a intrasetorialidade seja um dos seus princípios. A RAS, como espaço importante para a operacionalização da PS (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.446/GM/MS, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF, 2014.), e a Reorientação dos Serviços de Saúde, como um dos campos de ação da PS (Organização Mundial da Saúde, 1986), permitem inferir a existência de uma dimensão da atenção à saúde. Contudo, tal dimensão, se não é negada na literatura, também não é devidamente explorada.

Compreende-se a Atenção à Saúde como as ações que envolvem o cuidado com a saúde do ser humano, incluindo ações de proteção, prevenção, recuperação e tratamento de doenças e de PS, e destaca-se que engloba a atuação em todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim como em todos os níveis de governo, as ações são dirigidas aos indivíduos ou à coletividade e prestadas no âmbito ambulatorial ou hospitalar, bem como em outros espaços, incluindo o domiciliar (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Vigilância em Saúde. Glossário temático: promoção da saúde. Brasília, DF, 2013. ). Ou ainda, seria o objeto de atuação dos serviços de saúde e o campo de competência do profissional de saúde dentro do processo saúde-doença compreendido em sua complexidade e multideterminação, reconhecendo a partir daí as limitações do setor Saúde nesse processo (Demarzo, 2013DEMARZO, M. M. P. Reorganização dos sistemas de saúde. Acervo de recursos educacionais em saúde. UNA-SUS, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://ares.unasus.gov.br/acervo/handle/ARES/167 >. Acesso em: 2 jul. 2016.
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).

Já por cuidado, entende-se o conjunto de ações interligadas que perpassam todos os níveis de atenção à saúde, considerando a integralidade do sujeito e envolvendo os setores que intervêm nos determinantes sociais da saúde. Busca-se a qualidade técnica e ética por meio do reconhecimento dos direitos, da subjetividade e das referências culturais do usuário, garantindo o respeito às questões de gênero, etnia, raça, situação econômica, orientação sexual, entre outros. Ou seja, a definição já remete ao cuidado integral em saúde (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Vigilância em Saúde. Glossário temático: promoção da saúde. Brasília, DF, 2013. ).

Assim, há alguns indícios sobre a relação entre PS e o cuidado por meio do que denominamos como dimensão da atenção à saúde, salientando-se a reciprocidade, já que a PS está incluída no conceito de atenção à saúde e este está incluído no de PS. Além do reconhecimento da complexidade e multideterminação do processo saúde-doença; da necessidade de ações interligadas e que consideram a integralidade das pessoas; do envolvimento de setores que intervêm nos determinantes sociais da saúde; e, ainda, da produção de saúde na articulação e cooperação intrassetorial na RAS.

Há imprecisões e confusões relacionadas às ações desenvolvidas nos/pelos serviços de saúde devido aos limites da incorporação política e paradigmática da PS na atuação profissional, sendo hegemônica a oferta de ações de PS voltada a grupos específicos: de doenças crônicas, da saúde da mulher etc.; de forma que o processo de cuidado na Atenção Básica (AB) é fortemente influenciado pelo modelo biomédico de assistência à saúde, sendo necessário repensá-lo (Netto; Silva, 2018NETTO, L.; SILVA, K. L. Prática reflexiva e o desenvolvimento de competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro. Revista da Escola de Enfermagem da USP , São Paulo, v. 52, e03383, 2018. ; Kessler et al., 2018KESSLER, M. et al. Ações educativas e de promoção da saúde em equipes do PMAQ, RS, Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 27, n. 2, e2017389, 2018. ).

Com isso, abdicar de aprofundar as discussões e reflexões sobre a dimensão da atenção à saúde da PS, ou o que originalmente ficou conhecido como reorientação dos serviços de saúde, pode levar à “cristalização” nas práticas de saúde de temas vitais para a PS, permitindo inferir que ocorreria sua operacionalização parcial, na perspectiva de criar “nichos” que não se conectam. Por exemplo, uma ação de saúde ou é PS ou é cuidado, sem possibilidade de conexões e interpenetrações.

Baseados na premissa de que a dimensão da atenção à saúde é essencial para a construção teórico-prática da PS, de forma que seja capaz de fornecer melhores condições de saúde individual e coletiva, e a partir da compreensão do processo de cuidado como a principal ação desta dimensão, o objetivo do presente texto é explorar as interfaces entre PS, atenção à saúde e processo de cuidado, buscando conhecer as compreensões de distintas pessoas com diferentes inserções no SUS. Problematizar a PS através da análise crítica de alguns temas, em especial a dimensão da atenção à saúde, que não possui consenso e até mesmo reconhecimento sobre sua relação com a PS, torna-se importante para avançar na construção teórico-conceitual e dar elementos para a prática no SUS.

É relevante destacar os princípios da PS que possuem maior relação com o que acreditamos ser um diferencial na busca de contribuir por melhores condições de saúde por meio da dimensão da atenção à saúde: integralidade; conceito ampliado de saúde; equidade; intrasetorialidade; e participação social. E, ainda, os valores: ética; respeito às diversidades; humanização; corresponsabilidade; justiça e inclusão social (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.446/GM/MS, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF, 2014.). Assim, as práticas de cuidado estariam ligadas à valorização e defesa da vida, reconhecendo e respeitando a complexidade e singularidade das pessoas e coletividades, com partilha de responsabilidades entre os envolvidos no processo e com acesso equitativo, o que remete ao direito à saúde como um benefício da vida em sociedade (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.446/GM/MS, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF, 2014.).

Metodologia

Este texto é baseado em pesquisa qualitativa com caráter exploratório com o objetivo de analisar criticamente a PS no SUS, e nele apresenta-se discussão sobre a aproximação com o cuidado. Realizou-se consulta a dois grupos: gestores(as) e trabalhadores(as) da AB por meio de formulário eletrônico (FormSUS) e entrevistas com especialistas em PS, assim denominados membros da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (GTPSDS/Abrasco).

Gestores(as) e trabalhadores(as) tiveram importante participação no processo de institucionalização da PS (Malta et al., 2016MALTA, D. C. et al. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): capítulos de uma caminhada ainda em construção. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1683-1694, 2016.), receberam o convite para participar por correio eletrônico e redes sociais virtuais, como o Facebook e o WhatsApp, sendo solicitado aos(às) respondentes a divulgação da pesquisa, assim como foi solicitado apoio na divulgação em instituições como o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), entre outras.

No FormSUS - que poderá ser disponibilizado mediante contato com os autores - eram descritas nove experiências municipais (ExpMun), previamente selecionadas por estarem relacionadas à PS, do Catálogo de Experiências da Mostra Brasil Aqui Tem SUS de 2015, iniciativa do Conasems que busca dar visibilidade a iniciativas desenvolvidas em âmbito municipal, fomentando a troca de experiências e valorizando o trabalho de gestores e equipes de saúde (Conasems, 2016CONASEMS - CONSELHO NACIONAL DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE. Mostra Brasil aqui tem SUS - Catálogo de experiências exitosas, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2016/06/catalogo_mostra_2016.pdf >. Acesso em: 1 out. 2016.
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). Tal opção foi baseada no fato de serem desenvolvidas em realidades semelhantes às dos(as) respondentes.

No FormSUS, mediante leitura das questões abertas representadas pelas ExpMun, os(as) respondentes foram instruídos a classificá-las como ações de PS ou não, indicando os elementos que levaram a isso. Foram 215 respondentes de 24 estados brasileiros (não houve respondente no AM, TO e RS), entre agosto de 2017 e junho de 2018. O conteúdo das respostas foi analisado utilizando o Microsoft Office e não se objetivou privilegiar o aspecto quantitativo, ou seja, o número de respondentes concordando ou discordando que uma determinada ExpMun era PS, já que não se tratava simplesmente de “sim” ou “não” e “porque”, considerando a riqueza e diversidade das múltiplas e até mesmo contraditórias respostas, portanto, partiu-se do princípio de que a multiplicidade interpretativa é constitutiva do campo da PS. Assim, a classificação em si da ação como de PS, no FormSUS, não foi o mais relevante e nem foi contabilizado, houve especial interesse nas argumentações, justificativas, afirmativas e negativas sobre o porquê dessa opção, pois nelas havia elementos que permitiam a análise e enriqueciam as possibilidades interpretativas sobre a PS.

Já com os especialistas em PS, em geral docentes universitários e pesquisadores que atuam como protagonistas no ensino da PS (Minowa et al., 2017MINOWA, E. et al. Contribuição das universidades na revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 26, n. 4, p. 973-986, 2017. ), foram 13 entrevistas semiestruturadas, entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018, com integrantes do GTPSDS, grupo que defende que a PS requer atuação na determinação social e não se restringe aos fatores de risco e proteção das DCNTs (Abrasco, 2017ABRASCO - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. Grupo Temático de Promoção da Saúde e Desenvolvimento Sustentável (GTPSDS). Disponível em: <Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtpromocaodasaude/ >Acesso em: 10 set. 2018.
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). Foram questionados, especificamente, sobre o objeto apresentado no texto: “Para você, existe uma dimensão da Atenção à Saúde na PS? Disserte sobre sua posição”; “Como a PS (pressupostos, princípios e diretrizes) pode ser articulada ao processo de cuidado? Ou, para você, são coisas distintas?” A partir dessas perguntas iniciais, foram introduzidas questões e temas complementares de acordo com as respostas, reflexões, questionamentos etc.

Ainda relacionado ao objeto da pesquisa, foram questionados sobre a análise crítica da PS no SUS, o papel do setor Saúde, as mudanças comportamentais e as ações cotidianas dos serviços de saúde da AB. As gravações foram transcritas e analisadas da forma já citada. Os(As) respondentes consentiram sua participação e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Ensp/Fiocruz sob protocolo n. 2.182.130.

Em ambas as formas de obtenção dos dados, questionário eletrônico e entrevistas, a análise categorial-temática foi realizada com vistas a desvelar os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença tem significado para o objeto em análise (Minayo, 2008MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2008.; Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). A dimensão da atenção à saúde, um dos temas fundantes das hipóteses iniciais que se desejava problematizar e discutir, foi naturalmente incluída nas questões disparadoras da entrevista e faziam parte das ExpMun, permitindo compreendê-la como um tema previsto (Oliveira; Jaime, 2016OLIVEIRA, N. R. F.; JAIME, P. C. O encontro entre o desenvolvimento rural sustentável e a promoção da saúde no Guia Alimentar para a População Brasileira. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 25, n. 4, p. 1108-1121, 2016. ). Ressalta-se que, ainda que tanto as formas de coletar dados quanto o perfil de respondentes tenham sido distintas, a PS e temas correlatos foram “fios condutores” que permitiram a categorização.

Resultados e discussão

Os resultados são apresentados considerando a premissa de que a dimensão da atenção à saúde é essencial para a construção teórico-prática da PS, assim, são debatidos temas julgados relevantes e indicado se surgiram a partir das ExpMun ou das entrevistas.

O autocuidado foi lembrado nas respostas a partir da leitura de cinco ExpMun, sendo considerado como PS. Tal ocorrência indica que há a compreensão de que a participação das pessoas no processo de cuidado é essencial. Também nas respostas, considerando cinco ExpMun, foi abordado o tratamento, o atendimento e o encaminhamento em uma perspectiva de melhorias a partir da valorização dos profissionais, revelando que esta etapa do processo de cuidado faz parte da PS. O aumento da resolutividade de casos com a redução do número de consultas médicas e de enfermagem foi lembrada na resposta de uma ExpMun.

Uma forma de compreender a PS próxima ao cuidado pode ser vislumbrada na afirmativa relacionada a uma ExpMun, de que além de tratar, buscou-se reduzir o número de consultas, ou seja, curar ou atenuar as repercussões das condições de saúde é essencial para a PS que não se pretende apenas discursiva, somente com um macro objetivo de mudar as condições de saúde e de vida, não dando a devida relevância para o adoecimento e sua mitigação. Assim, as fronteiras conceituais entre PS e cuidado podem ser borradas e se interpenetrar, refutando a ideia de que PS é uma coisa e cuidado e a Clínica são outra, como se não pudessem ser permeáveis e dialogar.

Para pensar a PS como um componente do processo de cuidado, é necessário reconhecer que, de forma geral, os profissionais de saúde são formados para seguir protocolos, e quando as coisas saem um pouco dessa “caixinha”, há maior dificuldade. As ações de PS são processuais, fluidas, até mesmo transitórias, e podem não ser palpáveis; com a concretude que um protocolo dá, quando as pessoas não seguem o que foi recomendado ou prescrito, um “deslize” que “ameace” o poder do profissional de saúde a partir de sua formação técnica, este geralmente culpabiliza o sujeito por sua condição de saúde.

O cuidado contribui para propiciar qualidade de vida também para quem está doente, assim como a busca por viver bem por quem já possui uma doença, conforme citado na resposta a partir de uma ExpMun. Não há concordância, por parte dos autores do presente texto, com a ideia de que voltar a atenção às pessoas que possuem uma determinada condição de saúde seria quebrar um dos primeiros princípios da PS, qual seja, pensar a população como um todo e não em grupos de risco. Ao defender a existência da dimensão da Atenção à Saúde na PS, defende-se que o cuidado é condição necessária para que as pessoas alcancem gradações crescentes de saúde, inclusive agindo sobre determinantes e condicionantes.

Na dimensão da Atenção à Saúde, diagnosticar e tratar sinais, sintomas, dor e sofrimento também podem ser PS, mas há clareza de que não é só isso. É necessário olhar e atuar sobre o contexto além do corpo biológico, identificando e buscando agir sobre as causas. Heidemann et al. (2015HEIDEMANN, I. T.S. B. et al. Sistema de informação da atenção básica: potencialidades para a promoção da saúde. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 152-159, 2015.) sustentam que há novos desafios para reformular, reposicionar e renovar os esforços para fortalecer a PS em seu papel de reorientar serviços de saúde.

A consideração das necessidades pessoais, a análise do perfil epidemiológico da população e, com isso, a priorização das principais linhas de cuidado, foi destacada na resposta de uma ExpMun, além da atuação de uma equipe multiprofissional, considerando as respostas de quatro ExpMun, defendida por ampliar as possibilidades de êxito do processo terapêutico, em especial quando ocorre o matriciamento, por estimular os usuários a atingir os objetivos coletivamente construídos. Silva e Tavares (2016SILVA, D. A. J.; TAVARES, M. F. L. Ação intersetorial: potencialidades e dificuldades do trabalho em equipes da Estratégia Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 111, p. 193-205, 2016.) destacam que são características do processo de trabalho da AB a atuação em equipe e a interdisciplinaridade, que contribuiu para a renovação do modelo de Atenção à Saúde. Uma abordagem ampliada da Clínica com diálogo compreensivo dos valores, crenças e preferências dos usuários (Chiesa et al., 2011CHIESA, A. M. et al. Possibilidades do WHOQOL-bref para a promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 45, n. esp 2, p. 1743-1747, 2011.), em conjunto com o saber técnico-científico do profissional de saúde, comporiam um processo de cuidado com maior possibilidade de êxito.

Já para a não caracterização como PS, nas respostas a partir de três ExpMun, afirmou-se que as ações de saúde foram uma estratégia de cuidado de saúde exclusivamente. Denota-se, aqui, a compreensão de que cuidado e PS são necessariamente coisas distintas. Silva et al. (2015SILVA, K. L. et al. Institucionalização de programas de promoção da saúde: definições na gestão municipal. Revista de Enfermagem UFPE on line, Recife, v. 9, n. 12, p. 1190-1197, 2015.) destacam que o modelo de Atenção à Saúde, com foco na doença, possui uma força historicamente estabelecida que não irá ceder apenas por boas intenções. Será um passo importante para a PS conseguir dialogar e adentrar o “espaço” do cuidado para tornar as práticas em saúde mais efetivas ao considerarem mais que sinais e sintomas. Assim, o tratamento partirá da busca por compreender e atuar também sobre as causas, o que ampliará as possibilidades de as pessoas seguirem a terapêutica sugerida, a partir da compreensão do que favorece ou impede que eles alcancem gradações crescentes de saúde.

Já em relação aos especialistas, dos(as) 13 entrevistados(as), apenas dois(duas) não falaram explicitamente sobre a dimensão da Atenção à Saúde. A contrariedade à dicotomia entre Clínica, cuidado e PS foi marcante nas respostas dos(as) entrevistados(as), assim como o reconhecimento de que não há dedicação em efetivar a Atenção à Saúde enquanto um campo da PS, deixando a discussão do cuidado esquecida, com foco exclusivo ou exagerado nas melhorias das condições de vida, as condições de saúde são debatidas no abstrato, como se o adoecimento não fizesse parte delas.

não concordo com a dicotomia entre PS e clínica, há uma possível disputa de espaço entre elas, mas defendo que as ações de PS e a interrelação com a questão do cuidado podem ser pensadas a partir das dimensões da integralidade. O desenvolvimento de competências para a PS de profissionais que atuam no cuidado em saúde, baseado nos valores e princípios da PS, é essencial. (E1)

Akerman e Rocha (2018AKERMAN, M.; ROCHA, D. G. Produção do cuidado: há espaços para a promoção da saúde? In: SÁ, M. C. et al. (Org.) Organização do cuidado e práticas em saúde: abordagens, pesquisas e experiências de ensino. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2018. p. 70-87) afirmam não haver dicotomia entre Clínica e PS, já que, dentro dos serviços de saúde e na Clínica, a aproximação entre elas implicaria a ampliação das estratégias do cuidado a partir da compreensão do adoecimento como um acontecimento na vida dos sujeitos. Para Prado, Falleiro e Mano (2011PRADO, E. V.; FALLEIRO, L. M.; MANO, M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular - porque um não pode viver sem os outros. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 14, n. 4, p. 464-471, 2011.), o cuidado é função essencial do profissional de saúde e objetivo comum entre ele e o usuário, não devendo ser associado com controle. Penido e Romagnoli (2018PENIDO, C. M. F.; ROMAGNOLI, R. C. Apontamentos sobre a clínica da autonomia na promoção da saúde. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 30, e173615, 2018.) destacam ser preciso levar em conta que a Clínica, na PS, parte do desafio fundante relacionado à centralidade da doença para o seu discurso científico e prático, ainda que devam ser reconhecidos os esforços em busca de ampliar o conceito de saúde para além da simples ausência de doença. Para as autoras, tal ampliação colaborou sobremaneira para interrogar as práticas clínicas em saúde, especialmente na AB. Assim, o processo de cuidado será muito beneficiado ao incorporar princípios e valores da PS.

É relevante que, no surgimento de um dos conceitos de PS mais difundidos, em 1986, por meio da Carta de Ottawa, registrava-se que o surgimento deste conceito se deu relacionado à necessidade de superar o enfoque exclusivo ou predominante da assistência à saúde. Conforme já exposto, a Reorientação dos Serviços de Saúde, um dos campos de ação da PS, traz a necessidade de mudança de atitude e de organização dos serviços de saúde para que focalizem as necessidades globais do indivíduo, como pessoa integral que é (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Carta de Ottawa. Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Ottawa, 1986. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/teams/health-promotion/enhanced-wellbeing/first-global-conference >. Acesso em: 7 abr. 2018.
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).

Dessa forma, o desafio é superar o referido enfoque exclusivo ou predominante, mas sem desconsiderar a sua importância, aquele documento seminal para a PS já afirmava que os serviços de saúde precisam adotar uma postura abrangente, respeitando as peculiaridades culturais e, com isso, apoiando as necessidades individuais e comunitárias para uma vida mais saudável, como também suas responsabilidades de prover serviços clínicos e de urgência (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Carta de Ottawa. Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Ottawa, 1986. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/teams/health-promotion/enhanced-wellbeing/first-global-conference >. Acesso em: 7 abr. 2018.
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).

A compreensão da PS, neste texto, se aproxima de sua vertente crítica, assim, reconhece sua relação com questões mais amplas, tais como as condições de trabalho, emprego, renda e acesso a bens sociais; contudo, a dimensão da atenção à saúde costuma ser relegada a planos menos importantes devido à possibilidade de negar ou relativizar um de seus princípios mais importantes, a intersetorialidade, entre outros motivos.

A referida necessidade de superar o enfoque exclusivo ou predominante da assistência à saúde não significa que não há um papel dos serviços de saúde no tocante à atenção à saúde e ao cuidado, já que se defende que a PS, mesmo com a amplitude e complexidade de suas propostas, pode ser apreendida e operacionalizada também nos espaços micropolíticos das unidades de saúde (Sperandio et al., 2016SPERANDIO, A. M. et al. 10 anos da Política Nacional de Promoção da Saúde: trajetórias e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1681-1682, 2016.) por meio de práticas de cuidado que conformam, em parte, a atenção à saúde. Westphal (2006WESTPHAL, M. F. Promoção da saúde e prevenção de doenças. In: CAMPOS, G. W. S. et al. (Org.) Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec ; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006. p. 635-667.) defendeu que a vertente crítica de PS pode ser aplicada na atenção à saúde em atividades de prevenção, tratamento e reabilitação.

Segundo Cecílio (2012CECÍLIO, L. C. O. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 280-289, 2012.), nossos fazeres e práticas são informadas de modo mais ou menos explícito, por teorias, conceitos, visões de mundo, projetos ético-políticos que, segundo o autor, delimitam como pensamos o Estado, as políticas públicas e sua operacionalização efetiva. Assim, a partir da premissa de que teorias e conceitos conformam os fazeres e práticas, não debater a dimensão da atenção à saúde da PS pode significar a busca de forma incompleta, ou mesmo não ampliada como a vertente crítica da PS defende, por melhorias nas condições de vida e de saúde individual e coletiva, atuando sobre o processo saúde-doença-cuidado.

Em complemento, dois(duas) especialistas destacam a forma como esse cuidado é produzido, considerando princípios e diretrizes da PS, em especial o empoderamento, a autonomia e o protagonismo do sujeito. Desta forma, a ação clínica ganha outros contornos, o foco deixa de ser uma abordagem exclusivamente medicalizante apenas nos sinais e sintomas, a partir de um olhar ampliado que permitirá que o sujeito participe efetivamente do processo de cuidado.

…programas e ações em serviços de saúde, nos quais havia questões relacionadas ao atendimento de uma determinada condição de saúde, mas neles as ações foram orientadas por alguns dos princípios da PS, por exemplo, empoderar o cidadão, a busca por mais autonomia na tomada de decisão, de participação na construção do seu protocolo de cuidado em saúde. São ações que se aproximam dos princípios da PS, mesmo com foco em uma determinada condição de saúde. (E2)

Fica evidenciado que a forma como a atenção à saúde vem sendo operacionalizada hegemonicamente também é um importante entrave para sua consideração na PS. Aquino et al. (2014AQUINO, R. et al. A Estratégia Saúde da Família e o reordenamento do sistema de serviços de saúde. In: PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. (Org.). Saúde Coletiva: teoria e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Med Book, 2014. p. 353-371.) afirmam que há o reconhecimento dos determinantes e condicionantes da saúde e a necessidade de atuação sobre eles por parte dos profissionais de saúde que trabalham na AB. As autoras ressaltam que o discurso destes já superou o enfoque exclusivamente na doença, contudo, as ações desenvolvidas, apesar de alguns avanços, ainda são fortemente focadas exclusivamente na mudança de comportamento dos indivíduos, com atribuição da responsabilidade pela sua condição baseados principalmente no modelo tradicional da educação em saúde, estabelecendo uma relação profissional-usuário verticalizada (Aquino et al., 2014AQUINO, R. et al. A Estratégia Saúde da Família e o reordenamento do sistema de serviços de saúde. In: PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. (Org.). Saúde Coletiva: teoria e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Med Book, 2014. p. 353-371.).

Para Pettres e Da Ros (2018PETTRES, A.A, DA ROS, M.A. Determinação social da saúde e a promoção da saúde. Arquivos Catarinenses de Medicina, Florianópolis, v. 47, n. 3, p. 183-96, 2018.), a superação da perspectiva de atuação fragmentada, com terapêuticas sobre o corpo como máquina ou saúde simplesmente como ausência de doença, traz a compreensão da saúde como produzida pela sociedade e influenciada pelas formas de organização da vida, sociabilidade, afetividade, cultura, lazer, entre outras. Haeser, Büchele e Brzozowski (2012HAESER, L. M.; BÜCHELE, F.; BRZOZOWSKI, F. S. Considerações sobre a autonomia e a promoção da saúde. Physis - Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 605-620, 2012. ) afirmam que o lazer, a educação, as relações sociais, o trabalho, enfim, as condições de vida, são elementos determinantes para a constituição da saúde. Já Prado, Falleiro e Mano (2011PRADO, E. V.; FALLEIRO, L. M.; MANO, M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular - porque um não pode viver sem os outros. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 14, n. 4, p. 464-471, 2011.) abordam a ideia de produção de cuidado, expressa no sentido de processo, construção, caminho a ser percorrido por indivíduos que apostam no diálogo e na escuta. Segundo os autores, é necessária uma escuta atenta a versões, verdades, crenças e histórias do outro em um tempo no qual o profissional de saúde abdica da fala e presta atenção a quem fala. Beato, van Stralen e Passos (2011BEATO, M. S. F; VAN STRALEN, C. J.; PASSOS, I. C. F. Uma análise discursiva sobre os sentidos da promoção da saúde incorporados à Estratégia Saúde da Família. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 15, n. 37, p. 529-537, 2011.) afirmam, sobre as significações existentes sobre o ideário da PS, existir fragmentação e polarização frequentes entre Clínica e as ações coletivas programáticas. Ambas se pautam em lógicas que raramente dialogam entre si, tornando-se, por sobreposição, uma só estratégia por força de normas institucionais.

Destaca-se a interrelação entre os determinantes e condicionantes da saúde, a Clínica e o cuidado, tendo em vista que estes não estão apartados do contexto no qual as pessoas vivem. Ainda que surjam questões relacionadas à proposta de reorientação do modelo de atenção à saúde; à PS se apresentar em todos os níveis de complexidade da gestão e da atenção do sistema de saúde; e aos desafios para a construção de um modelo de Atenção à Saúde resolutivo voltado à atenção integral, de forma geral, a literatura relacionada à PS não aborda especificamente a Atenção à Saúde.

Um ponto importante, abordado por oito especialistas, é pensar no cuidado não só na forma de terapêuticas específicas para a saúde em um sentido mais estrito, por exemplo, o uso do cinema e da meditação. Deve-se considerar também atividades que não focam especificamente o problema ou uma determinada condição de saúde, mas que permitam fruição por parte das pessoas, diversão, relaxamento, aumento da autoestima, sem com isso querer atingir uma parte do organismo ou condição de saúde específica.

…necessário superar o olhar restrito sobre a saúde e a doença. O ser humano é muito maior do que isso, muito mais amplo, todo mundo tem suas potencialidades, assim além do cuidado biomédico, outras formas de tratamento além das estritamente assistenciais, considerados tratamentos não convencionais, são importantes. (E3)

estamos trabalhando com cinema, atividade física, rodas de conversa com profissionais de diferentes áreas, não só da saúde, assim estamos colocando na prática o que compreendo ser a dimensão da atenção à saúde da PS. (E4)

É relevante a compreensão, evidenciada por três especialistas, de que o cuidado estaria relacionado à PS ainda que a saúde seja considerada como ausência de doenças, ou seja, na perspectiva da recuperação da saúde em casos de adoecimentos, pois isso é necessário para que as potencialidades das pessoas sejam desenvolvidas e vividas. Logo, no processo de cuidado, quando forem necessárias terapias farmacológicas ou outras intervenções próximas da ideia mais procedimental de saúde, ainda pode ser PS a partir da sua dimensão da atenção à saúde.

…mesmo se houver a limitação da compreensão do termo saúde a uma visão mais antiga, mais clássica, de ausência de doenças, ainda assim creio que tem uma parte da atenção que diz respeito à PS. Porque o cuidado de agravos à saúde ou a doença dá condições para que as pessoas possam, com ou sem doença, atingir a plenitude da sua potencialidade. (E5)

...foi necessária complementação terapêutica… por meio de terapia farmacológica, havendo articulação com o ambulatório… mesmo quando a situação necessitou da terapia farmacológica, ainda assim é uma ação de PS já que é preciso dar respostas para aqueles que têm necessidades, ofertando cuidado para aquele individuo, de maneira ampliada. (E4)

Também para três especialistas que abordaram a questão do modelo biomédico, ele não é nem menos nem mais importante, em algum momento vai ser essencial, não poderá faltar, e em alguns será só auxiliar.

relativizar a crítica ao modelo biomédico pois é necessário profissionais competentes, que, por exemplo, saibam fazer diagnósticos precisos etc., mas entendendo as possibilidades de complementaridades além da medicina curativista… O problema é quando a abordagem biomédica é unicamente direcionada e centralizada. A PS tem um papel fundamental nisso por discutir esse modelo, esse paradigma e pressionar por mudança. (E5)

A compreensão geral do modelo biomédico é baseada em ciências naturais duras, biologicista, curativista, hospitalocêntrico, medicalizado e mercantilizado, sendo hegemônico nos sistemas de saúde, possuindo legitimação e institucionalidade nas suas práticas (Sá; Nogueira; Guerra, 2018SÁ, R. F.; NOGUEIRA, J.; GUERRA, V. A. Traditional and complementary medicine as health promotion technology in Brazil. Health Promotion International, London, v. 34, p. i74-i81, 2018. DOI: 10.1093/heapro/day087
https://doi.org/10.1093/heapro/day087...
; Pettres; Da Ros, 2018PETTRES, A.A, DA ROS, M.A. Determinação social da saúde e a promoção da saúde. Arquivos Catarinenses de Medicina, Florianópolis, v. 47, n. 3, p. 183-96, 2018.). Assim, a perspectiva biomédica prejudica a tradução da teoria da PS em ação, gerando até mesmo ambiguidade, normativas e documentos contraditórios, que afetam não só a teoria, mas também a materialidade do SUS, impedindo ou retardando a transição das práticas de saúde em direção a uma abordagem mais integral e participativa (Sá; Nogueira; Guerra, 2018SÁ, R. F.; NOGUEIRA, J.; GUERRA, V. A. Traditional and complementary medicine as health promotion technology in Brazil. Health Promotion International, London, v. 34, p. i74-i81, 2018. DOI: 10.1093/heapro/day087
https://doi.org/10.1093/heapro/day087...
). Assim, a principal crítica se concentra na hegemonia deste modelo, pois acredita-se que ele é necessário, mas não suficiente.

O profissional de saúde geralmente é formado no modelo citado e, mesmo conhecendo as melhores evidências, por exemplo, de que determinado material ou medicamento seria melhor do que o outro, a partir do contexto de um usuário, pode fazer outra opção terapêutica, pois vai ser melhor para o processo terapêutico daquela pessoa/individualidade/contexto. Assim, a construção de projetos terapêuticos considerará a realidade na qual as pessoas estão inseridas, tendo maior possibilidade de êxito mediante sua maior factibilidade. Não se trata de negar o cuidado mais efetivo disponível, mas de dialogar com as reais possibilidades de ele ser, de fato, implementado.

Prado, Falleiro e Mano (2011PRADO, E. V.; FALLEIRO, L. M.; MANO, M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular - porque um não pode viver sem os outros. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 14, n. 4, p. 464-471, 2011.) afirmam que tecnologias duras e estrutura hospitalar dão uma falsa sensação de que é neste espaço que haverá o cuidado, o alívio e a cura, destacando que muitos profissionais de saúde pensam assim, não só os usuários, o que remete a um poder simbólico que, segundo eles, contraditoriamente significa saúde. Contudo, reforçam que não necessariamente a prática hospitalar e/ou a especialização focal são empecilhos para que apareçam a subjetividade, o sentimento e o cuidado. O olhar e a abordagem ampliados podem ser próprios de um especialista e estranhos a um generalista, dependendo da forma como se relaciona com o sofrimento do outro (Prado; Falleiro; Mano, 2011PRADO, E. V.; FALLEIRO, L. M.; MANO, M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular - porque um não pode viver sem os outros. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 14, n. 4, p. 464-471, 2011.).

Assim, a partir da clareza, por parte dos profissionais, de que o contexto condiciona as possibilidades das pessoas de adotarem ou não determinadas recomendações, este profissional se tornará mais qualificado para o cuidado. Como exemplo, as pessoas deveriam ser responsabilizadas/“culpadas” por não realizarem um ou outro comportamento saudável, como a atividade física ou a alimentação saudável, nos casos em que a jornada de trabalho dentro e fora do domicílio é longa e cansativa? Com isso, a partir da fala de dois(duas) especialistas, defende-se que a compreensão estática e imutável que afasta PS e cuidado não é possível na realidade cotidiana dos serviços de saúde, sendo algo que encontra respaldo apenas na esfera conceitual.

… a PS é um grande campo de atuação dentro do setor Saúde e o cuidado, na verdade, é um elemento constituinte da PS, além de ser um elemento por si só que faz parte do processo saúde-doença, mas baseado nos pressupostos da humanização. (E6)

Considerações finais

Como limitações do presente estudo, destaca-se: a opção pela análise conjunta das respostas de gestores e trabalhadores da AB, já que possuem papeis distintos na PS e produção do cuidado. Contudo, justifica-se esta opção de pesquisa por se tratar de um tema ainda incipiente.

Dos elementos trazidos sobre a dimensão da atenção à saúde na PS, a partir da presente pesquisa, destacam-se: não necessariamente há dicotomia entre PS, Clínica e cuidado; a forma como o cuidado é produzido torna-se relevante, já que é necessário considerar princípios e diretrizes da PS, em especial o empoderamento, a autonomia e o protagonismo do sujeito; pensar o cuidado de forma ampliada e não só em terapêuticas específicas e estritas; a priorização de cuidado a partir da consideração das necessidades pessoais e do perfil epidemiológico da população; o cuidado está relacionado à PS, ainda que a perspectiva seja a recuperação da saúde em casos de adoecimentos; que o modelo biomédico, em algum momento, vai ser essencial e, em outros, vai ser só auxiliar.

Não se compartilha da ideia de que a “missão” do setor Saúde na PS seja “só” puxar agendas intersetoriais ou reconhecer que sozinho não dá conta de alcançar gradações maiores de saúde para indivíduos e coletivos. Concorda-se com isso, mas há algo intrínseco à Saúde, a atenção à saúde através da produção do cuidado, que também faz parte dessa busca pelas referidas gradações. Assim, a PS é defendida como uma forma de produzir saúde que não pode prescindir da atenção à saúde, assim como não pode se restringir a ela.

Defender a importância da dimensão da atenção à saúde não é o mesmo que defender a hegemonia da assistência à saúde sobre outros componentes do processo de cuidado, uma aposta exacerbada no autocuidado e no controle dos comportamentos por parte das pessoas, o que diminuiria o risco de adoecimentos e agravos à saúde.

Assim, a principal recomendação da presente pesquisa é que a efetivação da dimensão da atenção à saúde da PS passe pela essencialidade de considerar necessidades individuais em conjunto com a dinâmica social e o contexto no qual vivem as pessoas, o que permitirá um olhar integral sobre elas, suas vidas, sua saúde, e diferenciará a PS que é operacionalizada na realidade e no cotidiano dos serviços de saúde, a partir de negociação e pactuação com as pessoas na busca por melhor qualidade de vida e por diminuir riscos e morbimortalidade.

Também é imprescindível, na dimensão da atenção à saúde na PS, buscar a resolução ou atenuação das necessidades/problemas de saúde a partir de soluções possíveis de serem realizadas pelos usuários. Há uma complexa conjunção, desde os serviços disponíveis, o processo de trabalho da equipe, a disponibilidade de insumos e medicamentos, a necessária articulação com outros pontos da RAS. Assim como o respeito aos hábitos culturais e costumes dos usuários e a participação destes na avaliação do cuidado, o que permitirá reformulações para alcançar o objetivo de garantir acesso com qualidade e resolutividade às ações e serviços de saúde da AB.

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  • 1
    Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX-CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2021
  • Revisado
    18 Out 2021
  • Revisado
    25 Jan 2022
  • Aceito
    14 Fev 2022
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