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Cozinhando mudanças: o ato de cozinhar como ferramenta de enfrentamento aos desafios do Antropoceno

Resumo

O ato de cozinhar engloba dimensões culturais, ambientais, sociais, econômicas e políticas, bem como compõe as atividades contidas em um sistema alimentar, sendo uma ação promotora de diálogos e transformações. Este estudo objetiva descrever e analisar elementos cotidianos relacionados ao cozinhar e suas relações com o sistema alimentar, a partir da experiência de um grupo de mulheres agricultoras urbanas da zona leste da cidade de São Paulo. Foram utilizados os mapas corporais narrados, método de pesquisa visual criativo no qual, por meio da realização do desenho dos contornos corporais dos participantes, foram produzidos dados visuais e orais sobre os significados do ato de cozinhar. Participaram do estudo sete mulheres, que desenvolvem ações relacionadas à agricultura e ao cozinhar. Os dados gerados foram analisados por meio de análise temática. O ato de cozinhar se mostrou como um conector do campo à mesa, fortalecendo e sendo fortalecido pelas práticas da agricultura urbana e periurbana, sendo uma interessante ferramenta para promover saúde, contemplando o bem-estar biopsicossocial em consonância com questões de sustentabilidade social, econômica e ambiental. Compreender tal conexão possibilita apoiar políticas públicas para a promoção de sistemas alimentares sustentáveis e o enfrentamento aos desafios do antropoceno.

Palavras-chaves:
Sustentabilidade; Sistemas Alimentares; Cozinhar; Meio Ambiente; Saúde Pública

Abstract

Cooking encompasses cultural, environmental, social, economic, and political dimensions, as well as composes the activities contained in a food system and promoting dialogues and transformations. This study aims to describe and to analyze everyday elements related to cooking and its relationship with the food system based on the experience of a group of female urban farmers in the east side of the city of São Paulo. Body-map storytelling was used, a creative visual research method, in which, by drawing the participant’s body contours, visual and oral data were produced on the meanings of cooking. Seven women participated in this study, who develop actions related to agriculture and cooking. The generated data were analyzed using thematic analysis. Cooking proved to be a connector from the field to the table, strengthening and being strengthened by the practices of urban and peri-urban farming, and is an interesting tool to promote health, contemplating biopsychosocial well-being in line with issues of social, economic, and environmental sustainability. Understanding this connection enables to support public policies to promote sustainable food systems and facing the challenges of the Anthropocene.

Keywords:
Sustainability; Food Systems; Cooking; Environment; Public Health

Introdução

Partimos do pressuposto de que a humanidade está vivenciando a era do antropoceno, um período em que suas ações afetam globalmente o planeta, tendo como consequências alterações e degradações dos recursos naturais. O grande crescimento populacional, causado por fatores como industrialização e avanço em tecnologia, exerce pressões globais significativas no meio-ambiente, tendo como algumas de suas repercussões eventos climáticos extremos e mudança do uso dos solos e da integridade da biosfera, que se associam a perda da biodiversidade (Artaxo, 2014ARTAXO, P. Uma nova era geológica em nosso planeta: o Antropoceno?. Revista USP, São Paulo, n. 103, p. 13-24, 2014. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i103p13-24
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). Esse contexto do antropoceno tanto é impactado como impacta os Sistemas Alimentares e, consequentemente, os elementos que o compõem (ambiente, pessoas, infraestrutura) e as atividades a eles relacionadas, como os modos de se produzir, distribuir e consumir a comida.

A comida é o alimento transformado não só pelas mudanças físicas, mas também pelas representações sociais e culturais (Lima; Ferreira Neto; Farias, 2015LIMA, R. S.; FERREIRA NETO, J. A.; FARIAS, R.C.P. Alimentação, comida e cultura: o exercício da comensalidade. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 507-522, 2015. DOI: 10.12957/demetra.2015.16072
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). Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (2004LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.), poder cozinhar o alimento e modificá-lo do cru para o cozido fez parte do processo de passagem do homem da condição biológica para a social. O autor estabelece, em seu trabalho, a diferença entre alimento e comida: o primeiro tem a função de saciar o homem, suprindo suas necessidades fisiológicas, ao passo que o segundo é o alimento transformado, podendo carregar diversos significados.

Tal diferença também é estabelecida pelo antropólogo brasileiro Roberto Damatta (1987DAMATTA, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, 1987.), que estudou a comida brasileira e engendrou a ideia de nem todo alimento ser comida, pois o alimento é o que nutre e mantém vivo, enquanto a comida é uma forma de expressão de identidade. Dessa forma, o cozinhar configura-se como uma forma de comunicação, por meio da qual as sociedades podem expressar sua estrutura, caracterizando e diferenciando os povos (Lévi-Strauss, 2004LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.).

O cozinhar envolve, então, diversos símbolos e significados, os quais compreendem, além de técnicas e habilidades, a doação pessoal (Ferreira; Wayne, 2018FERREIRA, J. W.; WAYNE, L. S. A cozinha das mulheres. Revista Espacialidades, Natal, v. 13, n. 1, p. 107-126, 2018. DOI: 10.21680/1984-817X.2018v13n01ID17598
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). É uma prática social legítima, que pode ser vista como um espaço criativo do cotidiano e possibilita a criação através de infinitas possibilidades de combinação e modos de preparo. Cozinhar é, também, uma ação pela qual pode-se preservar o passado ou inovar (Diez-Garcia; Castro, 2011DIEZ-GARCIA, R. W.; CASTRO, I. R. A culinária como objeto de estudo e de intervenção no campo da Alimentação e Nutrição. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 91-98, 2011. DOI: 10.1590/S1413-81232011000100013
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). Desse modo, o cozinhar se torna uma forma de expressar a cultura imaterial. As formas de preparar e consumir a comida funcionam como um campo de produção e verbalização de saberes e sabores (Meneses, 2013MENESES, M. P. Para ampliar as Epistemologias do Sul: verbalizando sabores e revelando lutas. Configurações, Braga, n. 12, p. 13-27, 2013. DOI: 10.4000/configuracoes.1948
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). A troca e a multiplicação de conhecimentos que perpassam o ato de cozinhar podem viabilizar mais autonomia e empoderamento para as pessoas (Diez-Garcia; Castro, 2011DIEZ-GARCIA, R. W.; CASTRO, I. R. A culinária como objeto de estudo e de intervenção no campo da Alimentação e Nutrição. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 91-98, 2011. DOI: 10.1590/S1413-81232011000100013
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). O processo de compartilhamento desses saberes é uma forma de manter vivos os conhecimentos tradicionais e dos povos locais - processo que tem sido enfraquecido entre as gerações (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, DF, 2014.).

Recomendações relacionadas ao ato de cozinhar podem ser encontradas em documentos oficiais brasileiros, como o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) para as Políticas Públicas (Brasil, 2012BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas. Brasília, DF, 2012.) e o Guia alimentar para a população brasileira (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, DF, 2014.). Ambos contribuem para a implementação da diretriz de promoção da alimentação adequada e saudável (PAAS), que integra a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, DF, 2013.). A PNAN (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, DF, 2013.) tem como propósito melhorar as condições de alimentação, nutrição e saúde da população brasileira e possui, dentre os seus princípios, o respeito à diversidade e à cultura alimentar, bem como o fortalecimento da autonomia dos indivíduos. A diretriz PAAS, que compõe essa política, é entendida como um conjunto de estratégias que viabilizam aos indivíduos e às coletividades práticas alimentares que sejam apropriadas aos aspectos biológicos, socioculturais e também relacionados à sustentabilidade do meio ambiente (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, DF, 2013.). O cozinhar é uma ação que pode englobar, em sua prática, dimensões culturais, ambientais, sociais, econômicas e políticas; é um espaço promissor para promoção de diálogos, reflexões, aprendizados e transformações.

Nesse processo, o cozinhar gera conexões diversas e significativas para indivíduos e comunidades, por exemplo com quem e como são compartilhadas as preparações, assumindo um importante papel de elo entre o campo - de onde vieram os alimentos - e a mesa - onde a comida é servida. Desse modo, o cozinhar compõe parte de um trajeto amplo do alimento, o do campo à mesa, o qual possui diversas interfaces junto da sustentabilidade.

Sendo assim, este trabalho tem por objetivo descrever e analisar elementos cotidianos relacionados ao ato de cozinhar e suas relações com sistema alimentar, a partir da experiência de um grupo de mulheres agricultoras urbanas da zona leste da cidade de São Paulo.

Metodologia

Este estudo utilizou abordagem qualitativa, de modo que diversos elementos foram observados de forma simultânea em um pequeno grupo de pessoas, possibilitando a produção de conhecimento sobre a experiência de cozinhar (Victora; Kanauth; Hassem, 2000VICTORA, C.; KNAUTH, D.; HASSEM, M. N. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.) de um grupo de mulheres agricultoras urbanas. O trabalho foi realizado junto às Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana), que são, em sua maioria, migrantes nordestinas que desenvolvem suas atividades no Viveiro Escola União de Vila Nova. Localizado na zona leste da cidade de São Paulo, o Viveiro, com uma área de 2500m2, existe desde 2009 e é um espaço coordenado pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano). A participação e convivência diária das mulheres na manutenção do Viveiro levou a criação das “Mulheres do GAU”, as quais veem, nesse local, um recurso em potencial para contribuir com a sua história, bem como a do bairro.

Elas são responsáveis pela manutenção do Viveiro, por meio de ações como plantio, cultivo, colheita e manejo agroflorestal. A produção do espaço é livre de venenos e compostos químicos e, nele, são cultivados desde frutas e verduras até flores e plantas alimentícias não convencionais (PANC). Objetivando fazer do Viveiro também um lugar de geração de renda, as Mulheres do GAU tiveram a iniciativa de produzir comidas para cafés e almoços, utilizando ingredientes colhidos no próprio local. Dessa maneira, iniciaram uma nova atividade: além dos cuidados da horta, passaram a ter o ato de cozinhar como parte de suas ações. Elas têm como proposta levar, por meio de suas preparações, saúde, cuidado e um pouco de suas histórias para as pessoas.

Atualmente, as Mulheres do GAU se dividem em dois grupos: horta e cozinha. O grupo da horta é responsável pelo cultivo e venda dos alimentos que plantam. Em suas práticas, as mulheres desse grupo usam técnicas de agroecologia e permacultura, cultivando hortaliças, ervas medicinais, árvores frutíferas e PANC. Depois de colhidos, esses alimentos são usados pelas integrantes em suas preparações, além de serem vendidos para a comunidade da região, em feiras agroecológicas, eventos, entre outros.

O grupo da cozinha atua em um ambiente que conta com uma dispensa para guardar os alimentos e é equipado com geladeira e micro-ondas, além de fogões convencional e industrial. As mulheres da cozinha utilizam os produtos da horta para preparar receitas diversas, como pães, sucos e geleias, os quais são posteriormente comercializados na própria comunidade, em feiras, eventos ou sob encomenda. Além da venda desses produtos, elas também oferecem, como serviço, almoços no Viveiro e a realização de coffee breaks em eventos. Durante a pandemia, o grupo da cozinha iniciou a comercialização de marmitas, que eram compradas por organizações não governamentais do entorno e distribuídas para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Por mais que exista divisão, as mulheres dos diferentes grupos se ajudam quando necessário. Além disso, enquanto coletivo, realizam em conjunto atividades, como vivências, oficinas e encontros relacionados a temáticas da horta e da cozinha, criando um espaço de aprendizagem e troca com a comunidade local e com visitantes de outras regiões.

Participaram do estudo sete mulheres, que estavam ativamente engajadas nas atividades do coletivo durante o período de realização do trabalho de campo (outubro e novembro de 2020), e que aceitaram participar de forma voluntária da pesquisa. Suas idades variaram entre 43 e 69 anos, todas declararam ser mães e morar na região onde está o Viveiro. Têm em comum o fato de serem todas migrantes da região Nordeste - seis da Bahia e uma de Pernambuco. Seguindo preceitos éticos, que visam preservar a identidade dessas mulheres, seus nomes verdadeiros foram alterados e substituídos por nomes de PANC. Sendo assim, os nomes dos participantes estão relacionados no trabalho como Capuchinha, Feijão-guandu, Hibisco, Mandacaru, Ora-pro-nóbis, Peixinho-da-horta e Tomate-melão. Este projeto foi registrado e aprovado no CEP, sob o parecer nº 4.285.942, em 18 de setembro de 2020.

Para a geração dos dados analisados neste trabalho, sobre os significados do ato de cozinhar, foram utilizados os Mapas Corporais Narrados (MCN). Os MCN se configuram como um método de pesquisa visual criativo, no qual, por meio da realização do desenho dos contornos corporais dos participantes, são produzidos dados visuais (mapa) e orais (narrativa) (Conceição; Magalhães; Gastaldo, 2021CONCEIÇÃO, M.I.G.; MAGALHÃES, L.; GASTALDO, D. Introdução aos mapas corporais narrados: uma metodologia qualitativa para estudar saúde coletiva. In: MENDONÇA, A. V. M.; SOUSA, M. F. (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa qualitativa em saúde. Brasília, DF: ECoS, 2021. v. 1, p. 119-135.). Em outras palavras, os MCN fazem uso de desenho, pintura e outras técnicas baseadas na arte para representar visualmente aspectos da vida das pessoas e do mundo em que vivem (Gastaldo et al., 2012GASTALDO, D. et al. Body-Map Storytelling as Research: Methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping. Toronto: University of Toronto, 2012.). O uso desse método viabiliza a expressão de sentimentos, experiências e significados, estimulando uma reflexão e, portanto, promovendo a produção de dados de qualidade (Gastaldo et al., 2012GASTALDO, D. et al. Body-Map Storytelling as Research: Methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping. Toronto: University of Toronto, 2012.). Dessa forma, a metodologia envolve os participantes como coprodutores do conhecimento e, assim, apresenta um potencial para decolonizar a produção do conhecimento nas ciências da saúde (Gastaldo; Rivas-Quarneti; Magalhães, 2018GASTALDO, D.; RIVAS-QUARNETI, N.; MAGALHÃES, L.. Body-Map Storytelling as a Health Research Methodology: Blurred Lines Creating Clear Pictures. Forum: Qualitative Social Research, Berlin, v. 19, n. 2, 2018. DOI: 10.17169/fqs-19.2.2858
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).

O roteiro desta pesquisa foi elaborado com base no modelo disponível no manual “Pesquisa através de mapas corporais narrados” de Gastaldo et al. (2012GASTALDO, D. et al. Body-Map Storytelling as Research: Methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping. Toronto: University of Toronto, 2012.). A estrutura original, incluindo o número e a duração dos encontros, foi mantida, sendo adaptados os temas de cada encontro e suas questões norteadoras, de modo a atender os objetivos desta pesquisa. O roteiro foi estruturado para contemplar três encontros (com cada participante), com duração de uma hora cada e realizados semanalmente, tendo cada um acontecido individualmente, com a presença da pesquisadora e uma participante por vez.

Para as construções do mapa, foram utilizados os seguintes materiais: rolos de papel branco plotter 914cm x 50m, giz de cera, canetinhas coloridas, lápis grafite, borracha, tesouras e cola. As participantes podiam pedir à pesquisadora que imprimisse uma imagem para ser levada nos encontros seguintes, o que aconteceu na construção de alguns mapas. Os encontros tiveram seus áudios gravados via celular, com consentimento das participantes, para posterior análise junto ao mapa.

Os encontros foram realizados no Viveiro Escola União de Vila Nova. O tracejado do corpo foi feito no chão do viveiro, que é de terra batida, utilizando os rolos de papel e os demais materiais disponíveis. Após o traçado do corpo, os mapas eram dispostos em uma mesa grande, disponível no local, e construídos de acordo com as perguntas semiestruturadas contidas no roteiro, o qual pode ser visto de maneira resumida no Quadro 1 (para o roteiro em versão detalhada consultar o trabalho de Rigote (2022RIGOTE, G. Cozinhando mudanças: os significados do ato de cozinhar para mulheres de um Grupo de Agricultura Urbana da zona leste da cidade de São Paulo. 2022. 152 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. DOI: 10.11606/D.6.2021.tde-07022022-205337
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)).

Quadro 1
Resumo do roteiro

O trabalho de campo foi realizado durante a pandemia, nos meses de outubro e novembro de 2020. Os encontros foram realizados após a cidade de São Paulo atingir a fase de abertura parcial (fase decrescente, com menores restrições) do Plano São Paulo, estratégia do Governo do Estado para o enfrentamento da covid-19 (São Paulo, 2020SÃO PAULO. Decreto no 64.994, de 28 de maio de 2020. Dispõe sobre a medida de quarentena de que trata o Decreto no 64.881, de 22 de março de 2020, institui o Plano São Paulo e dá providências complementares. Diário Oficial, Poder Executivo, São Paulo, 29 maio 2020. p. 1.). A realização da pesquisa aconteceu em lugar aberto e arejado e, nos encontros, estavam presentes somente a pesquisadora e a entrevistada, seguindo as recomendações das autoridades de saúde: distanciamento, uso de álcool gel, máscaras e faceshield (fornecidos pela pesquisadora). Cabe ressaltar que todas as envolvidas nessa fase (participantes e pesquisadora) se sentiram seguras e confortáveis para participar da pesquisa. Após cada encontro, todos os materiais eram higienizados com álcool.

Segundo Gastaldo et al. (2012GASTALDO, D. et al. Body-Map Storytelling as Research: Methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping. Toronto: University of Toronto, 2012.), o produto final do processo de MCN é uma história mapeada que possui três elementos: (I) testemunho - breve história narrada em primeira pessoa -; (II) mapa corporal; e (III) legenda para descrever os elementos visuais presentes no mapa. A análise dos MCN deve ser feita de modo integral, incluindo não só o mapa que foi produzido, mas também o processo de criação, juntamente com o testemunho e as legendas. É importante ressaltar que o objetivo da análise não é avaliar psicologicamente os participantes, mas obter uma visão acerca de determinados aspectos (Gastaldo et al., 2012GASTALDO, D. et al. Body-Map Storytelling as Research: Methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping. Toronto: University of Toronto, 2012.). Neste trabalho, os temas e categorias de análise foram elaborados com base na transcrição dos áudios dos encontros, que foram transcritos e analisados de forma indutiva, orientada pelos dados, sem tentar se encaixar em uma codificação pré-existente (Braun; Clarke, 2006BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, Abingdon, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006. DOI: 10.1191/1478088706qp063oa
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).

A análise temática é um método útil e flexível para a pesquisa qualitativa. Para este trabalho, foram seguidas as seis fases da análise temática propostas por Braun e Clarke (2006BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, Abingdon, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006. DOI: 10.1191/1478088706qp063oa
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).

  1. Familiarização com dados (transcrição, leitura e releitura dos dados, apontamento de ideias iniciais);

  2. Gerando códigos iniciais (codificação de aspectos interessantes e relevantes);

  3. Buscando temas (reunir os códigos em temas potenciais);

  4. Revisando os temas (checar se os temas funcionam);

  5. Definindo e nomeando os temas (refinar os detalhes, definir e nomear de maneira clara cada tema);

  6. Produzindo o relatório (relato da análise, seleção de exemplos vívidos e convincentes do extrato, análise final dos extratos selecionados, relação entre análise, questão da pesquisa e literatura, produzindo um relatório acadêmico da análise).

Resultados e discussão

A partir da análise de dados, foi possível observar, pela experiência do grupo de agricultoras urbanas, as repercussões do trabalho delas para a sociedade e o planeta, além de suas interfaces com a sustentabilidade e os sistemas alimentares.

O trabalho das Mulheres do GAU e suas repercussões para a sociedade e o planeta

A percepção que as Mulheres do GAU têm a respeito da importância e do impacto tido no trabalho que realizam não se restringe apenas à comunidade em que vivem ou às pessoas que participam diretamente das atividades que desenvolvem. Na visão dessas mulheres, seus afazeres beneficiam a sociedade e o planeta. A participante Feijão-guandu exemplifica isso ao mencionar a atividade de agricultura urbana como uma prática relacionada à alimentação das pessoas e ao cuidado com o meio ambiente.

Eu me sinto feliz, realizada né por tá desenvolvendo uma atividade que a gente sabe que é importante pras pessoas né, é importante de uma forma geral, importante pras pessoas, pra nossa comunidade né, a gente tem um trabalho bem intenso com a comunidade. Antes da pandemia a gente sempre tava recebendo os alunos aqui, das creches, das escolas, professores, e assim muito importante, eu me sinto uma pessoa que tá fazendo um pouquinho também por o nosso planeta né, a gente vê que a cada dia tá aí, a natureza ninguém respeita, o meio ambiente a cada dia ta se degradando mais e a gente aqui faz um trabalho de formiguinha né. A gente ter uma horta aqui não é só se alimentar é também cuidar do nosso planeta, melhorar o nosso ar, diminuir a poluição, a gente aqui realiza várias atividades, como tem a nossa compostagem que a gente armazena os resíduos, já faz a compostagem, livra de ir pros lixões né, pros aterros, então acho que aqui eu me sinto feliz e me sinto que eu to fazendo alguma coisa né, algum bem pras pessoas e pro planeta. (Feijão-guandu, 2020).

A participante Hibisco também relaciona o trabalho delas a questões mais amplas, ao falar das percepções que teve ao longo desses anos trabalhando com a terra. Dessa forma, mostra o potencial que o cuidado com a terra tem de proporcionar conexão e reflexão sobre aspectos envolvendo a melhora do ambiente em que se vive (Ribeiro et al., 2011RIBEIRO, S. M. et al. Agricultura Urbana Agroecológica - Estratégia de promoção da saúde e segurança alimentar e nutricional. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 25, n. 3, p. 381-388, 2012. DOI: 10.5020/2269
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). Hibisco cita, por exemplo, o impacto que o consumismo tem nas questões ambientais e suas consequências, as quais podem ser observadas no próprio dia a dia, como o clima instável e imprevisível que afeta a plantação. Ela complementa falando que, com todo aprendizado adquirido, percebeu poder colaborar com a mudança dessa situação e ser exemplo para que outras pessoas contribuam.

[…] tem 3 anos vai fazer que eu to trabalhando aqui, eu vi como que é pra gente trabalhar com amor, com a terra, trabalhar com a natureza, ver o desenvolvimento da Mãe Terra, o cuidado que a gente tem que ter, porque o que tá acontecendo hoje, esse aquecimento global, o mundo se acabando, por quê? Porque a gente não tem o consumo consciente né? […] a destruição de tudo, o plantio tem uma expectativa e acontece outra, como já aconteceu com a gente aqui várias vezes né, e a terra não aguenta, vai perdendo o controle. Aí quando a gente tem um enxame de inseto nas hortas, até mesmo no meio urbano que as pessoas se assustam, não sabe o porquê, é o desequilíbrio né? […] então tudo isso é um aprendizado e a gente vai cada vez mais, a mente da gente vai se ampliando vendo as coisas diferentes e vendo que há possibilidade da gente ter uma mudança e conseguir também as pessoas ver na gente a mudança e conseguir mudar também. A gente não pode mudar outra pessoa, mas a pessoa pode ver mudança na gente, porque a gente pode mudar, mas a pessoa vendo a sua mudança vai falar: poxa vida se aquela pessoa fez e deu certo, eu vou fazer também que nem ela né? (Hibisco, 2020).

Interfaces com a sustentabilidade e os sistemas alimentares

Tais ações, realizadas pelas Mulheres do GAU, perpassam o trajeto do alimento do solo à mesa, que é amplo, diverso e complexo, possuindo interfaces com a sustentabilidade e compondo partes importantes do sistema alimentar (SA). A definição das SA se configura em um sistema formado por um conjunto de elementos (ambiente, pessoas, infraestruturas etc.) e atividades, que se relacionam com diversas etapas, como produção, distribuição, preparo e consumo de alimentos, compreendendo, também, seus resultados socioeconômicos e ambientais (HLPE, 2014HLPE - The High Level Panel of Experts. Food losses and waste in the context of sustainable food systems. A report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. Rome: FAO, 2014.). Um SA sustentável é aquele capaz de prover segurança alimentar e nutricional para todos, de modo a não comprometer as bases econômicas, sociais e ambientais, para, assim, gerar segurança alimentar e nutrição para as gerações futuras (HLPE, 2014HLPE - The High Level Panel of Experts. Food losses and waste in the context of sustainable food systems. A report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. Rome: FAO, 2014.). Nos debates referentes à sustentabilidade do SA, é importante levar em conta os aspectos ambientais em conjunto com os culturais, sociais e econômicos (Ribeiro; Jaime; Ventura, 2017RIBEIRO, H.; JAIME, P. C.; VENTURA, D. Alimentação e sustentabilidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 31, n. 89, p. 185-198, 2017. DOI: 10.1590/s0103-40142017.31890016
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).

Atualmente, o SA global não é sustentável e passa por diversos problemas, como mudanças climáticas, diversos conflitos, dificuldades no acesso de alimentos e recursos, dentre outros (Marchioni; Carvalho; Villar, 2021MARCHIONI, D. M.; CARVALHO, A. M. de; VILLAR, B. S. Dietas sustentáveis e sistemas alimentares: novos desafios da nutrição em saúde pública. Revista USP, São Paulo, v. 1, n. 128, p. 61-76, 2021. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.i128p61-76
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). Tais problemas são complexos e têm um grande impacto na saúde das pessoas e do planeta, tornando essa uma temática pautada em discussões de âmbito global, como foi na Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), para o desenvolvimento sustentável, a qual visa acabar com a pobreza e promover vida digna para todos, respeitando os limites do planeta (ONU, 2015ONU - Organização das Nações Unidas. Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Brasília, DF, 2015.).

Levando em conta que todas as decisões, como o quê e como se come, são sociais e políticas, é fundamental, também, a participação e o envolvimento da população no enfrentamento das questões relacionadas ao SA. As práticas de consumo de alimento são uma parte importante na mitigação das questões relacionadas às mudanças climáticas e no sistema alimentar, que se estendem ao que e como as pessoas comem no seu dia a dia (Mäkelä; Niva, 2015MÄKELÄ, J; NIVA, M. Citizens and sustainable culinary cultures. In: MÄKELÄ, J; NIVA, M. Climate Change Adaptation and Food Supply Chain Management. Abingdon: Routledge, 2015. p. 172-182.). Os aspectos fundamentais de uma rotina de alimentação sustentável são: o consumo moderado de alimentos de origem animal, óleos vegetais e açúcar, a mudança do padrão das dietas atuais para versões que tenham maior consumo de vegetais, a redução do consumo de alimentos ultraprocessados e do desperdício de alimentos (Lawrence et al., 2019LAWRENCE, M. et al. Sustainable diets: the public health perspective. In: BURLINGAME, B.; DERNINI, S. (Ed.). Sustainable diets: linking nutrition and food systems. Boston: CABI, 2019. p. 13-22.). Além disso, os padrões alimentares sustentáveis levam em conta o patrimônio cultural, a qualidade dos alimentos e as habilidades culinárias da população (Lairon, 2012LAIRON, D. Biodiversity and sustainable nutrition with a food-based approach. In: BURLINGAME, B.; DERNINI, S. (Ed.). Sustainable Diets and Biodiversity: directions and solutions for policy, research and action. Rome: FAO ; 2012. p. 30-35.).

As atividades que as Mulheres do GAU realizam, tanto as relacionadas à agricultura como ao cozinhar, convergem com tais aspectos, contribuindo para a promoção de um SA sustentável, que impacta na saúde das pessoas e do planeta. Abaixo, é possível ver como ocorre, no contexto das Mulheres do GAU, a aplicação dos quatro aspectos fundamentais de uma dieta sustentável (Lawrence et al., 2019LAWRENCE, M. et al. Sustainable diets: the public health perspective. In: BURLINGAME, B.; DERNINI, S. (Ed.). Sustainable diets: linking nutrition and food systems. Boston: CABI, 2019. p. 13-22.):

  • O consumo moderado é exemplificado por Ora-pro-nóbis pela redução da ingestão de carne vermelha, que é associada a um impacto positivo para a saúde e o meio-ambiente (Carvalho et al., 2016CARVALHO, A.M. de et al. Excessive red and processed meat intake: relations with health and environment in Brazil. British Journal Of Nutrition, Cambridge, v. 115, n. 11, p. 2011-2016, 2016. DOI: 10.1017/S0007114516000969
    https://doi.org/10.1017/S000711451600096...
    ).

[…] hoje a gente pode sobreviver sem precisar de carne né, “ah eu não vou comer porque não tem carne” não, tem tantas misturas que você pode fazer e comer, sem ter a carne né, principalmente a carne vermelha que eles falam que não é bom a gente comer muito né, comer mais frango essas coisas, então tem muita coisa boa que você pode fazer. (Ora-pro-nóbis, 2020).

  • O maior consumo de vegetais é ilustrado, no contexto das participantes, por meio do consumo dos alimentos que elas plantam, dentre eles as PANC, o que promove um resgate cultural e da expressão da biodiversidade brasileira, colaborando para um consumo sustentável (Kinupp, 2007KINUPP, V. F. Plantas alimentícias não-convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. 2007. 562 f. Tese (Doutorado em Fitotecnia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Agronomia, Porto Alegre, 2007.; Martinelli; Cavalli, 2019MARTINELLI, S.S.; CAVALLI, S.B. Alimentação saudável e sustentável: uma revisão narrativa sobre desafios e perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 11, p. 4251-4262, 2019. DOI: 10.1590/1413-812320182411.30572017
    https://doi.org/10.1590/1413-81232018241...
    ).

Mudou na questão dos temperos né, aqui a gente vai, já pega o temperinho fresquinhos, já põe na comida, antes eu não me interessava muito por alface, por almeirão, por as PANC, hoje não, hoje se eu fizer meu almoço e não tiver nada verde no meu prato, pra mim, tá faltando alguma coisa. (Feijão-guandu, 2020).

  • A redução do consumo de alimentos ultraprocessados é exemplificada por Hibisco (2020), ao contar que opta por sucos caseiros, ao invés dos em pó, que passam por um processamento excessivo, o que não é sustentável (Martinelli; Cavalli, 2019MARTINELLI, S.S.; CAVALLI, S.B. Alimentação saudável e sustentável: uma revisão narrativa sobre desafios e perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 11, p. 4251-4262, 2019. DOI: 10.1590/1413-812320182411.30572017
    https://doi.org/10.1590/1413-81232018241...
    ): “E assim, substituindo, tomava suco de saquinho, [...] eu prefiro comprar um maracujá, um limão, uma laranja e fazer meu próprio suco”.

  • A redução do desperdício dos alimentos aparece na fala de Ora-pro-nóbis, por meio do aproveitamento integral dos alimentos. Ela aprendeu a preparar a casca da banana, reduzindo o desperdício, elemento importante na diminuição dos impactos dos ciclos dos alimentos no meio ambiente (Reynolds et al., 2019REYNOLDS, C. et al. Review: consumption-stage food waste reduction interventions: what works and how to design better interventions. Food Policy, Amsterdam, v. 83, p. 7- 27, 2019. DOI: 10.1016/j.foodpol.2019.01.009
    https://doi.org/10.1016/j.foodpol.2019.0...
    ).

Ah eu aprendi muita coisa […] a carne maluca que é feita da casca da banana, né. É um aproveitamento que a gente faz com tudo, porque antigamente você pegava a casca da banana, você jogava fora, você não aproveitava nada. Hoje você pode aproveitar a casca da banana de duas maneiras, fazer a carne maluca e ainda fazer ela, a casca da banana, empanada (Ora-pro-nóbis, 2020).

Esses quatro aspectos podem ser observados nas preparações que as participantes cozinham, como a moqueca vegetariana de mamão verde e o peixinho-da-horta empanado que Ora-pró-nóbis coloca em seu mapa. Essa é uma opção que estimula o consumo moderado, a maior ingestão de vegetais e a redução do consumo de alimentos ultraprocessados e do desperdício de alimentos.

Hibisco fala sobre a importância do trabalho que realizam e também traz percepções de pontos que são significantes para um SA sustentável, como a importância do trabalho do agricultor, da agricultura não convencional e a conexão entre alimentação saudável, meio ambiente e saúde global (Martinelli; Cavalli, 2019MARTINELLI, S.S.; CAVALLI, S.B. Alimentação saudável e sustentável: uma revisão narrativa sobre desafios e perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 11, p. 4251-4262, 2019. DOI: 10.1590/1413-812320182411.30572017
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).

Um desafio muito grande, além de ser um desafio, e assim muita gente não reconhece o trabalho de um agricultor né, e saber que um trabalho de agricultor, tanto na zona rural como na cidade né, é um trabalho que é feito com amor, na preocupação da saúde das pessoas né? Vou falar agricultor, agricultor não agronegócio assim, é porque tem uma diferença muito grande do agronegócio pro agricultor, um agricultor urbano e um agricultor rural porque trabalha, trabalha pensando na natureza, um desafio muito grande você trabalhar pensando no bem estar do nosso mundo que grita por socorro né? Você vê a temperatura, a mudança climática, tudo isso envolve no que a gente faz inconsciente né, que é o uso demais de produtos químicos, consumo de muitas coisas sem ter um descarte certo pros lixos, e vai pro meio ambiente, e hoje a gente sofre com isso [...]. Então tudo isso, acho que é um conjunto de tudo, alimentação saudável, a saúde também do meio ambiente, a saúde global, tudo isso né, então assim eu não tenho nem palavras como expressar tudo isso né? (Hibisco, 2020).

Por fim, a participante Hibisco, emocionada, fala do sonho que ela tem de que iniciativas como a das Mulheres do GAU - que inclui tanto a agricultura como o cozinhar - sejam expandidas e tenham um reconhecimento do governo:

Olha, o meu sonho mesmo é que a agricultura familiar, a agricultura urbana, não fique só em, como fala assim, uma cidade, mas que seja expandido por todo o mundo e assim, ter mais um reconhecimento do governo, né [se emociona nessa hora, pede tempo para se acalmar pois diz que falar disso tocou profundo]. Então, porque assim como eu tive um resgate da minha saúde, tive um resgate da minha infância, aqui em São Paulo, nessa grande metrópole né que as pessoas vêm aqui atrás de um futuro melhor, que migra de lá das suas cidades, de seus estados né e aqui ela é braços abertos e acolhe todo mundo né, e aqui a gente tem que ter essa cultura de alimentação saudável, porque a correria do dia a dia, trabalho, estresse, faz com que a gente esqueça um pouco a nossa saúde. E como São Paulo tem tantas coisas pra nos oferecer, por que não agricultura e uma alimentação saudável para todos né? Principalmente para as pessoas da periferia que não tem condições, não tem acesso a alimentação saudável, e eu tenho o sonho de que esse trabalho nosso seja reconhecido e abrange as pessoas que não tem acesso a alimentação saudável (Hibisco, 2020).

A fala da participante aponta para a importância das políticas públicas no fortalecimento e reprodução desse tipo de iniciativa em outros lugares. Para ela, uma cidade como São Paulo, que tem tanto a oferecer, pode promover também a agricultura e uma alimentação saudável para todos, principalmente para as pessoas em situação de vulnerabilidade, como as da periferia. Isso vai ao encontro da importância do papel das regiões urbanas no enfrentamento desses desafios a nível local, pois a organização das cidades viabiliza a criação, o fortalecimento e o cumprimento de ações e políticas públicas, que vão ao encontro da promoção de um SA sustentável (Costa, 2016COSTA, M. A. (Org.). O Estatuto da Cidade e a Habitat III: um balanço de quinze anos da política urbana no Brasil e a nova agenda urbana. Brasília, DF: Ipea, 2016.).

As cidades podem contribuir para esse SA implementando, a nível local, estratégias que garantam a democratização do acesso ao alimento saudável, combatam o desperdício de alimentos nas etapas de distribuição e consumo e promovam discussões sobre impactos da alimentação na biodiversidade e nas culturas dos povos tradicionais (Tângari, 2019TÂNGARI, J. M. et al. Construindo políticas alimentares: o papel das cidades e dos cidadãos. In: ROCHA, M. G.; TÂNGARI, J.M.; XAVIER, F.T. (Org.). Isto Não é (apenas) um Livro de Receitas: é um jeito de mudar o mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2019. p. 22-25. Disponível em: <Disponível em: https://74ca6b36-53be-4db5bb07b19c950dec5e.filesusr.com/ugd/349c51_53b108352e37415bbaf5c05f52d93d00.pdf >. Acesso em: 15 jul. 2021.
https://74ca6b36-53be-4db5bb07b19c950dec...
). Para superar esse desafio de criar um SA sustentável, é de grande importância envolver múltiplos atores nas discussões, abrangendo os sistemas de produção, cadeias de suprimento, ambientes alimentares e o consumo (Marchioni; Carvalho; Villar, 2021MARCHIONI, D. M.; CARVALHO, A. M. de; VILLAR, B. S. Dietas sustentáveis e sistemas alimentares: novos desafios da nutrição em saúde pública. Revista USP, São Paulo, v. 1, n. 128, p. 61-76, 2021. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.i128p61-76
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); sendo necessárias ações estruturais em concomitância com ações que compreendam os modos de comer de indivíduos e coletividades.

Considerações finais

A partir da experiência de mulheres agricultoras urbanas, que vivenciam o ato de cozinhar como cotidiano do trabalho, foram gerados dados que possibilitaram uma melhor compreensão de como o trabalho por elas realizado repercute para a sociedade e o planeta, assim como as suas interfaces com a sustentabilidade e os sistemas alimentares.

O Viveiro Escola União de Vila Nova se constitui como um espaço educativo, onde são realizadas atividades e encontros promovidos pelas Mulheres do GAU e em parceria com outras pessoas, grupos e organizações, o que contribui para o aprimoramento e desenvolvimento das ações por elas realizadas. O desenvolvimento do ato de cozinhar, em conjunto com a agricultura urbana, inserido em um contexto como o do Viveiro, que proporciona um espaço educativo, pode ser uma ferramenta para a promoção de saúde no âmbito local, trazendo o alimento e a comida para o centro das discussões e proporcionando a transformação de determinada realidade, o que gera um impacto positivo na saúde das pessoas e na criação de ambientes saudáveis.

O ato de cozinhar se mostrou como um conector do campo à mesa, fortalecendo e sendo fortalecido pelas práticas da agricultura urbana e periurbana, podendo ser uma interessante ferramenta para promover saúde no seu sentido mais amplo, contemplando o bem-estar biopsicossocial em consonância com questões de sustentabilidade social, econômica e ambiental, de modo a promover sistemas alimentares mais sustentáveis, sendo uma importante e considerável ferramenta de enfrentamento aos desafios do antropoceno. É importante salientar que, para o cozinhar acontecer e se poder ter esse potencial transformador, são necessários recursos básicos, como o acesso ao alimento, à água potável, à energia elétrica e ao gás. No entanto, na realidade do Brasil, marcada por desigualdades socioeconômicas e voltando ao mapa da fome, esses recursos básicos não chegam à população. Por isso, é imprescindível o fortalecimento de políticas públicas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2022
  • Revisado
    24 Nov 2022
  • Aceito
    23 Jan 2023
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