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A influência dos determinantes sociais na vida de mulheres negras no Centro de Atenção Psicossocial do tipo álcool e outras drogas em Caucaia, Ceará

Influence of social determinants in the life of Black women in the Psychosocial Care Center for Alcohol and other Drugs in Caucaia, Ceará, Brazil

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar os determinantes sociais de saúde que incidem na vida das mulheres negras em acompanhamento biopsicossocial no Centro de Atenção Psicossocial (Caps), do tipo álcool e outras drogas (AD), em Caucaia, Ceará. Trata-se de um estudo qualitativo, com coleta de dados realizada através de entrevistas semiestruturadas e análise realizada por meio da análise de conteúdo de Bardin. Utilizou-se da pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Buscou-se identificar como se dá o acesso dessa população ao direito à saúde e analisar possíveis implicações de ser mulher negra e fazer uso de álcool e/ou outras drogas. Como resultado, foi possível perceber que esse grupo populacional tem maiores dificuldades para realizar o tratamento especializado, por conta do racismo institucional, por sofrerem uma forte pressão social para evitar o acompanhamento e ainda por serem as responsáveis, em sua maioria, pelos cuidados materno-familiares - tarefas domésticas, cuidar de filhos e companheiro(a).

Palavras-chave:
Mulheres; Saúde da População Negra; Substâncias Psicoativas; Saúde Mental

Abstract

The objective of this article is to analyze the social determinants of health that affect the lives of Black women undergoing biopsychosocial follow-up at Psychosocial Care Center (CAPS), of the Alcohol and Other Drugs (AD) type, in Caucaia, Ceará. This is a qualitative study, with data collection performed with semi-structured interviews and analysis performed with Bardin’s content analysis. Bibliographic, documentary and field research were used. We sought to identify how this population accesses the right to health and analyze possible implications of being a Black woman and using alcohol and/or other drugs. As a result, it was possible to perceive that this population group has greater difficulties in carrying out specialized treatment, due to institutional racism, since they suffer strong social pressure to avoid follow-up and also since most are responsible for maternal-family care - household chores, caring for children and their partner.

Keywords:
Women; Health of the Black Population; Psychoactive Substances; Mental Health

Introdução

Consoante Madeira e Gomes (2018MADEIRA, Z.; GOMES, D. D. de O. Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 133, p. 463-479, 2018. DOI: 10.1590/0101-6628.154
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), é de amplo conhecimento que a população negra tem sido a principal vítima das desigualdades sociais e alvo de múltiplas formas de violência e violações no Brasil. Logo, tornou-se impossível ocultar que o racismo opera como um sistema estruturante que, até os dias de hoje, cria hierarquias que conformam as relações de classe, gênero e poder, assim como diferenças estruturantes que subordinam e/ou excluem mulheres negras socialmente.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2019, o Brasil tem 209 milhões de habitantes, sendo que mais da metade são mulheres. Dentre elas, 55,71% são mulheres negras - que, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é formado pelo somatório de mulheres que se autodeclaram pardas e pretas.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2021FBSP - FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. A violência contra pessoas negras no Brasil. [S.l.], 2021. Disponível em: <Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/infografico-violencia-desigualdade-racial-2021-v3.pdf >. Acesso em: 4 fev. 2022.
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) verificou que 61,8% das vítimas de feminicídio em 2020 eram negras e que essas mulheres concentraram piores índices de qualidade de vida quando comparadas com mulheres brancas. Hooks (2015HOOKS, B. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 16, p. 193-210, 2015. DOI: 10.1590/0103-335220151608
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) afirma que, apesar de todas as mulheres serem oprimidas em diversos espaços, fatores como raça, classe e orientação social intensificam essas opressões e, por isso, devem ser discutidas dentro do movimento feminista. Identificando o quanto essa problemática é transversal, compreende-se a necessidade de superar a visão eurocêntrica e universalizante das mulheres não apenas no bojo do movimento feminista, mas em todos os espaços, incluindo os institucionais. Dessa forma, torna-se possível criar estratégias que abarquem as especificidades da realidade social das mulheres negras.

Percebe-se que o lugar definido socialmente para as mulheres vem sendo alterado com o passar dos anos, a partir de mudanças na própria compreensão desse grupo populacional de seus direitos e em consequência de suas lutas coletivas e das necessidades sociais de produção. Junto às conquistas alcançadas pelas mulheres vieram também consequências para sua saúde, entre elas, tem-se o aumento do número de mulheres que fazem uso de álcool e/ou outras drogas, visto que “As mulheres passaram a compartilhar uma posição profissional e na sociedade semelhante à dos homens e são solicitadas a consumir álcool e drogas ditas leves na mesma proporção que estes” (Ribeiro, 2009RIBEIRO, D. V. de A. Significações psicológicas sobre a adesão ao tratamento ambulatorial de mulheres dependentes de substâncias psicoativas: um estudo clínico-qualitativo. 2009. 129 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas)-Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. DOI: 10.47749/T/UNICAMP.2009.470198
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, p. 38).

Esse dado está atrelado a diversos outros fatores, como o convívio social e familiar, o apelo das mídias na busca de um corpo aceito pela sociedade, as dificuldades financeiras, entre outros. “Há hipóteses que drogas como a cocaína, a maconha, os tranquilizantes e estimulantes tenham efeitos mais prejudiciais em mulheres” (Marangoni; Oliveira, 2013MARANGONI, S. R.; OLIVEIRA, M. L. F. de. Fatores desencadeantes do uso de drogas de abuso em mulheres. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 662-670, 2013., p. 663). Um desses prejuízos, desencadeado pelo álcool, é a cirrose biliar primária (CBP), na qual 9 a cada 10 pacientes que apresentam sintomas dessa patologia são mulheres (Lee, 2018LEE, T. H. Colangite biliar primária (CBP). Rahway: Merck & Co., 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt/profissional/dist%C3%BArbios-hep%C3%A1ticos-e-biliares/fibrose-e-cirrose/colangite-biliar-prim%C3%A1ria-cbp#:~:text=A%20cirrose%20biliar%20prim%C3%A1ria%20%C3%A9,e%2070%20anos%20de%20idade >. Acesso em: 8 ago. 2020.
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).

De acordo ainda com o FBSP (2021FBSP - FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. A violência contra pessoas negras no Brasil. [S.l.], 2021. Disponível em: <Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/infografico-violencia-desigualdade-racial-2021-v3.pdf >. Acesso em: 4 fev. 2022.
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), sabe-se que mulheres negras concentraram piores índices de qualidade de vida quando comparadas com as não negras, e isso pode ser percebido nos fatores sociais - como taxas de desemprego e subemprego, falta de acesso a saúde e educação e ausência de opções seguras de lazer - e biológicos, que também influenciam agravos na saúde da mulher usuária de álcool e/ou outras drogas.

Desse modo, o objetivo deste artigo é analisar os determinantes sociais de saúde que incidem na vida de mulheres negras em acompanhamento biopsicossocial no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do tipo álcool e outras drogas (AD) em Caucaia, Ceará.

Determinantes sociais

Este tópico discute a influência dos determinantes sociais nos indicadores de saúde, partindo do conceito de que os determinantes são “características socioeconômicas, culturais e ambientais de uma sociedade que influenciam as condições de vida e trabalho”, de acordo com a Comissão Nacional sobre os Determinantes de Saúde (MS, 2008MS - MINISTÉRIO DA SAÚDE. Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Brasília, DF, 2008.).

Através desta pesquisa, busca-se analisar como os determinantes sociais de saúde (DSSs) incidem na vida das mulheres negras. Assim, a pesquisa desenvolvida teve caráter exploratório e iniciou-se a partir do levantamento documental de prontuários individuais do seguinte público-alvo: mulheres que abriram prontuários novos no CAPS-AD de Caucaia no último trimestre de 2020 (de 1 de outubro a 31 de dezembro do referido ano). É válido destacar que esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), com parecer 4.752.390.

O critério para a elegibilidade na pesquisa de campo foi a autodeclaração das mulheres como pretas ou pardas durante as entrevistas realizadas. A partir da pesquisa documental, descobriu-se que foram abertos 29 novos prontuários por mulheres que atendiam a esse critério. A seguir, é possível visualizar dados sobre a faixa etária (Figura 1) e o estado civil (Figura 2) da amostra:

Figura 1
Faixa etária

Figura 2
Estado civil

Esses dados nos mostram o perfil das mulheres que passaram pela análise documental desta pesquisa: em sua maioria, mulheres entre 31 e 40 anos, solteiras. Quanto aos locais de residência, percebe-se que elas moram nos bairros mais próximos da sede do munícipio.

Quanto à escolaridade (Figura 3) e profissionalização/ocupação (Tabela 1) das participantes desta pesquisa, observa-se:

Figura 3
Escolaridade

Tabela 1
Situação ocupacional

Percebe-se que 14 participantes possuem ensino fundamental, duas o nível de alfabetização e duas não são alfabetizadas. De acordo com o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece, 2020IPECE - INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO CEARÁ. Uma análise dos indicadores sociais do Ceará por cor e raça declarada. Fortaleza, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.ipece.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/45/2020/12/ipece_informe_187_22_dez2020.pdf >. Acesso em: 14 fev. 2021.
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) a média de anos de estudo da população de 25 anos ou mais que se declara parda ou preta é de 7,7 anos, enquanto da população branca a média é de 9,3 anos, demonstrando, assim, a grande desigualdade que existe entre esses grupos populacionais no acesso à educação no estado do Ceará.

Quanto à profissão, atividades ligadas ao trabalho doméstico (cozinhar, faxinar, costurar) e ao cuidado do outro foram as opções mais presentes na categoria “trabalho informal”, seguidas de “sem profissão/desempregada”. É perceptível que esses trabalhos são considerados femininos, de menor prestígio social, que não exigem maior escolaridade e, em sua maioria, se dão de modo informal e sem prerrogativas previdenciárias, como férias e 13º salário mínimo. De acordo com o IBGE (2019aIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681 >. Acesso em: 20 fev. 2021.
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), 64,2% dos brasileiros desempregados em 2018 eram negros e, desses, 47,3% ocupam empregos informais, como motoristas de aplicativos e empregadas domésticas.

Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2019IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. Brasília, DF: Ipea, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9538/1/td_2528.pdf > Acesso em: 14 fev. 2021
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), 92% das trabalhadoras domésticas (diaristas, babás, jardineiras e cuidadoras) são mulheres. O estudo revelou também que essas mulheres, em sua maioria, pertencem a famílias de baixa renda e possuem baixa escolaridade, indicadores que se assemelham à realidade das interlocutoras pesquisadas.

Outro dado importante a ser destacado é que apenas em 2015 o trabalho doméstico se tornou uma categoria regulamentada no país, visto que havia, e ainda há, muita resistência por parte da sociedade em considerar esse trabalho como um serviço formal que possui direitos e deveres, tal como as demais categorias. O referido estudo reflete ainda que 68% das mulheres que atuam no trabalho doméstico são negras, ou seja, as barreiras sociais negam o acesso à cidadania pela via do trabalho a essas mulheres, desencadeando inúmeros prejuízos sociais a suas vidas e de suas famílias.

Percebe-se o quanto as políticas públicas ainda necessitam se desenvolver para diminuir as desigualdades sociorraciais existentes no Brasil, investindo em ações afirmativas que visem à diminuição da disparidade desses dados.

Dando continuidade à análise da pesquisa documental, observou-se que das 29 pacientes que abriram prontuários, apenas 10 compareceram ao primeiro atendimento agendado, ou seja, aproximadamente 68% não fizeram o acompanhamento de fato, assim como demonstrado na Figura 4:

Figura 4
Status no serviço

Na percepção das autoras, um dos fatores motivadores para a descontinuidade do atendimento refere-se à vergonha da sociedade. Atendeu-se, em outro momento, uma paciente na Atenção Primária à Saúde (APS), onde, após a avaliação, foi necessário encaminhá-la para o Caps-AD, entretanto, a paciente insistiu para que não fizessem isso, pois ela não gostaria que associassem seu nome ao serviço, já que muitas pessoas poderiam vê-la entrando no local e “falariam mal dela, inclusive na Igreja”. A única solução encontrada pela paciente, com o apoio do marido, foi que ele afirmaria para todos que ele precisava de atendimento para uso abusivo de substância psicoativa (SPA), e não a esposa. Esse episódio levanta o papel social do homem, que iremos abordar nos próximos tópicos, que torna aceitável perante os demais que ele faça esse tipo de tratamento especializado, mas que seria motivo de vergonha para a mulher.

Destarte, das 10 mulheres que deram continuidade ao tratamento, apenas seis compareceram às consultas agendadas em 2021, e com cinco)conseguimos contato via telefone para agendar as entrevistas presenciais em dezembro do mesmo ano. Assim, durante este trabalho, elas serão identificadas como “Entrevistadas A, B, C, D e E”, uma vez que resguardaremos o sigilo de seus nomes, tal como acordado através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Raça

Nesta seção, relacionaremos os conhecimentos adquiridos pelas teorias científicas de referência deste estudo aos materializados por meio do instrumental de entrevistas semiestruturadas criado pelas próprias autoras. A análise dos dados colhidos se deu através da análise de conteúdo de Bardin, visto que se empregou um “conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens” (Bardin, 1977BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 38), ou seja, através dos discursos colhidos durante as entrevistas, analisa-se o sentido das falas, de forma que enriqueçam a pesquisa.

As respostas e as análises resultantes das entrevistas realizadas com as interlocutoras da pesquisa estarão dispostas ao decorrer de todo o trabalho, uma vez que se acredita ser de suma importância realizar essa interface entre as falas das entrevistadas e as teorias apreendidas.

Este trabalho utiliza a categoria raça no sentido sociológico, assim como empregado por Guimarães (2003GUIMARÃES, A. S. A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, 2003. DOI: 10.1590/S1517-97022003000100008
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), ao afirmar que “raças” são uma construção social, ou seja, é necessário sempre considerar o contexto da categoria e seu momento histórico, uma vez que a sociedade está constantemente se alterando e o que tem um significado “x” hoje, pode ter um significado “y” amanhã.

Aliando à discussão de raça, é imprescindível trazer também a noção de etnia, visto que esses dois termos, apesar de muitas vezes serem utilizados como sinônimos, não o são. Conforme Munanga (2014MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. São Paulo: Portal Geledés, [2014]. Disponível em: <Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf >. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, p. 28), etnia “é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”. Nesta pesquisa, emprega-se a categoria raça/etnia juntas, uma vez que se considera que só a raça e só a etnia, separadas, não conseguem dar conta das discussões que serão propostas aqui.

Durante as entrevistas, quatro mulheres se identificaram como mulheres negras. Todas acreditam que existe diferença entre negros, brancos e indígenas no Brasil, mas nenhuma afirmou se considerar racista; três afirmaram ter sofrido algum episódio de racismo dentro do seio familiar, durante a infância, na escola e no ambiente de trabalho; e apenas uma disse não ter lembranças de ter sofrido racismo.

Eu tenho uma irmã que ela é branca do olho verde, então eu fui criada com ela me chamando de nega, bicha feia, entendeu? Porque é branquinha e tinha um tratamento melhor e era tratada diferente [...] eu já cresci assim. (Entrevistada B)

Eu, assim.... Eu digo, por conta dos lugares que eu trabalhei, assim, a gente nota a diferença, porque não tem como. Comigo mesmo, por conta do meu cabelo, né. Eu já fui mais... Como diz? “Não conta com ela”, sabe? [por conta do teu cabelo?] [...] Aham, eu era zeladora, né. E aí, mais um motivo. Na minha família tem a minha mãe [risos], é pra dizer mesmo? [...] A minha mãe é morena, mas ela não gosta de negros... Eu digo porque é verdade. Ela mesmo diz “eu sou negra, mas não gosto”. [...] eu sou a mais negra dos meus irmãos, e ela diz bem assim “graças a Deus, senão eu tinha jogado tudo fora”, mas ela não gosta, não gosta, ela não maltrata e não humilha, mas não gosta [...] meu pai era do mesmo jeito, quando eu nasci, ele não me queria, aí minha mãe ficava sempre brigando com ele [...]. (Entrevistada E)

Para o Movimento Negro Unificado (MNU), e para fins de análise de políticas públicas e direitos sociais, são consideradas negras todas as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. De acordo com a Pnad Contínua (IBGE, 2019bIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Educação 2018: PNAD Contínua. Rio de Janeiro, 2019b. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101657_informativo.pdf >. Acesso em: 8 ago. 2020.
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), a taxa de analfabetismo de negros, a partir de 15 anos ou mais, era de 9,1%, e de negros com mais de 60 anos é de 27,5%, enquanto de pessoas brancas é de 3,9% e 10,3%, respectivamente. Por sua vez, no mesmo ano, a taxa de desocupação para pessoas negras era de 7,7 pontos percentuais a mais do que para brancos. A partir desses dados estatísticos, sinaliza-se que a raça/etnia é um quesito que tem influência direta no acesso à renda e, consequentemente, a serviços sociais de qualidade, como saúde, habitação, segurança e educação.

A desigualdade racial existente entre brancos e negros no Brasil fica ainda mais latente ao se compararem as dificuldades no acesso aos serviços mencionados pela população negra, constituindo-se, assim, no racismo institucional. De acordo com Almeida (2019ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://blogs.uninassau.edu.br/sites/blogs.uninassau.edu.br/files/anexo/racismo_estrutural_feminismos_-_silvio_luiz_de_almeida.pdf >. Acesso em: 1 mar. 2021.
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), o racismo institucional não se limita apenas à ação de um indivíduo, mas sim a ações de instituições inseridas na sociedade que repetem as mesmas “normas sociais” de exclusão do grupo populacional negro.

Percebemos um processo cíclico que sempre se repete: a partir de ações racistas de certos indivíduos, a estrutura das instituições (judiciário, educacional, saúde, lazer, esportes etc.) torna-se racista, visto que, “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos” (Almeida, 2019ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://blogs.uninassau.edu.br/sites/blogs.uninassau.edu.br/files/anexo/racismo_estrutural_feminismos_-_silvio_luiz_de_almeida.pdf >. Acesso em: 1 mar. 2021.
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, p. 31).

Nesta sociedade, a mulher negra é duplamente oprimida, ou seja, além do racismo, ela sofre também com a desigualdade de gênero, visto que, apesar de muitas vezes realizar o mesmo trabalho de um homem e de possuir o mesmo cargo, quando relacionado à questão do pagamento por esse trabalho, os homens recebem melhores remunerações que as mulheres. Para além da questão trabalhista, as mulheres também sofrem uma grande pressão social de ser a responsável por cuidar das atividades relacionadas à casa e aos filhos, ou seja, além de possuir uma carga horária de, no mínimo, oito horas por dia no trabalho, as mulheres são cobradas pela sociedade por muitas outras responsabilidades não remuneradas.

De acordo com o Monitor da Violência1 1 O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (Velasco et al., 2020VELASCO, C. et al. Mulheres negras são as principais vítimas de homicídios; já as brancas compõem quase metade dos casos de lesão corporal e estupro. G1, 16 set. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/16/mulheres-negras-sao-as-principais-vitimas-de-homicidios-ja-as-brancas-compoem-quase-metade-dos-casos-de-lesao-corporal-e-estupro.ghtml >. Acesso em: 1 mar. 2021.
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), as mulheres negras representam 75% das mulheres assassinadas no primeiro semestre de 2020. Os dados relacionados a violência doméstica, estupro e estupro de vulnerável também revelam que cerca de 50% das vítimas são mulheres negras. Essa diferença de dados gera a possibilidade de que as mulheres negras não estão tendo acesso às denúncias, seja por questões financeiras, logísticas ou territoriais, seja pelo racismo institucional vivido por muitas nas delegacias. É válido ressaltar que toda essa estrutura de opressão e violência se alicerça na cultura do patriarcado2 2 “Trata-se da estruturação social da propriedade, dos poderes, do mando, dos territórios e das condutas: propriedade e poder sobre os corpos, a sexualidade e as condutas sexuais dos gêneros não-masculinos, sobre os territórios públicos no mercado de trabalho, nos postos de decisão e direção e na política. O poder patriarcal estrutura-se, pois, na desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, numa ‘lei do status desigual dos gêneros’” (FALEIROS, 2007, p. 62). e do sexismo3 3 Discriminação baseada no gênero ou no sexo de uma pessoa. .

Ao traçar essa discussão de gênero e raça/etnia aliada com a questão da renda, verifica-se que, de acordo com o estudo do IBGE (2019aIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681 >. Acesso em: 20 fev. 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php...
), 75% da população pobre do Brasil é negra e 55,5% dessas famílias são chefiadas por mulheres negras. Essas mulheres são obrigadas a se submeter a trabalhos informais que não pagam o mínimo do valor necessário para sua sobrevivência, tendo que trabalhar, muitas vezes, mais de 12 horas por dia em atividades insalubres. De acordo com a Pnad Contínua (2019bIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Educação 2018: PNAD Contínua. Rio de Janeiro, 2019b. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101657_informativo.pdf >. Acesso em: 8 ago. 2020.
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), 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza4 4 Renda per capita familiar diária inferior a US$ 5,50 PPC (Paridade de Poder de Compra), aproximadamente R$ 37,00. .

Entre as entrevistadas, quatro estão desempregadas, mas realizam trabalhos informais eventualmente e são as responsáveis pelo trabalho doméstico em suas casas, enquanto seus companheiros e/ou filhos trabalham fora de casa. A renda familiar de todas é de até um salário mínimo, mostrando o quanto a questão da renda impacta diretamente na vida dessas famílias.

Gênero

Para conseguir discutir com cuidado as temáticas da pesquisa, utiliza-se o conceito de gênero aliado à perspectiva de Gomes (2018GOMES, C. de M. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 65-82, 2018. DOI: 10.15448/1984-7289.2018.1.28209
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), uma vez que empregar “gênero” ao invés de “sexo” nos arremete à ideia de rejeitar o determinismo puro, que diferencia homens e mulheres com base apenas em uma questão biológica. Ao utilizar gênero na discussão, objetiva-se que as demais e mais intensas nuances presentes nessa relação de dualidade consigam ser discutidas da forma como são sentidas pelas pessoas. A autora explica que a importância de debater essa categoria “é a de problematizar a posição da mulher em sociedade ou, mais do que isso, problematizar o ‘ser mulher’” (Gomes, 2018GOMES, C. de M. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 65-82, 2018. DOI: 10.15448/1984-7289.2018.1.28209
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, p. 66).

Nas entrevistas, perguntou-se o que é ser mulher para as interlocutoras da pesquisa, que responderam:

[...] é cuidar da casa, dos filhos. Ter muito trabalho, sabe? Mas é bom, é bom. Tem coisas que só a gente consegue fazer, né? Porque esses homens são muito preguiçosos e não sabem fazer coisas simples do dia a dia que a gente faz. (Entrevistada A)

[...] ai, eu nem sei... ser mulher, assim, pra mim, né... eu não sei se é o certo, mas pra mim é ser mãe... é cuidar dos pais quando ficam velhos, né? Porque assim, eu tenho três irmãos homens, mas só quem cuida da minha mãe e do meu pai sou eu, sabe? Eles não tão nem aí... sobra tudo pra mim e, quando eu me estresso, aí sai de baixo... num instante eles vem ajudar, mas é difícil demais, mulher. (Entrevistada C)

Questionamos ainda quais as vantagens e desvantagens de ser mulher e ser homem dentro da nossa sociedade:

Pra mim é isso mesmo, porque homem não tem as preocupações de casa que a gente tem, né? Eles podem passar o final de semana bebendo e chegam em casa bebo [SIC] e vão dormir, tão nem aí pros filhos e sobra tudo pra gente, né? (Entrevistada A)

Eu acho que tem muita coisa boa, a gente que pode ter os filhos né, ter aquele amor que só a gente tem. A gente consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo [risos], porque esses homens, fia, conseguem fazer nada sozinho que precisam da nossa ajuda. (Entrevistada B)

Coisa boa de homem é porque eles podem passar o dia deitado, bebendo, né [risos], e sobra pra gente fazer as coisas [...] mas é até bom, né, ser homem?! [risos] Não tem esses arruma [SIC] de trabalho que querem que a gente faça [...] porque mesmo cansada você tem que cuidar das coisas, né. (Entrevistada D)

Diante das inúmeras violências pelas quais as mulheres passam diariamente, desde a violência patrimonial até a violência física dentro da própria casa e fora dela, muitas, por opção ou por necessidade, acabam fazendo uso de SPAs. Esse uso, em alguns casos, pode se tornar abusivo, acarretando prejuízos biológicos, psicológicos, sociais e jurídicos.

Substâncias psicoativas

Para adentrar nessa temática, é necessário compreender que drogas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), são substâncias que não são produzidas pelo organismo humano, mas que tem a finalidade de causar alterações no seu funcionamento. Neste estudo, trabalhou-se com uma categoria dentro das drogas, que são as SPAs: “drogas utilizadas para alterar o funcionamento cerebral, causando modificações no estado mental, no psiquismo. Por essa razão, são chamadas drogas psicotrópicas, conhecidas também como substâncias psicoativas” (Nicastri, 2015NICASTRI, S. Drogas: classificação e efeitos no organismo. In: ANDRADE, A. G. de (Coord.). Integração de competências no desempenho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2015. p. 113-144., p. 115).

As substâncias consideradas psicoativas ou psicotrópicas, apesar do o imaginário social, não são todas ilícitas, como é o caso do álcool e do tabaco. As demais substâncias que compõe esse grupo, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), são: opioides (morfina, heroína, codeína etc.); canabinoides (maconha); sedativos ou hipnóticos (benzodiazepínicos); cocaína; anfetamina; substâncias relacionadas à cafeína; alucinógenos e solventes voláteis.

Nesta pesquisa, perfilha-se a discussão de Gonçalves e Albuquerque (2016GONÇALVES, A. de M.; ALBUQUERQUE, C. S. (Org.). Drogas e proteção social: os desafios da intersetorialidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016.) que consideram a “questão das drogas” como uma expressão da questão social, visto que tais substâncias só assumiram a roupagem de problemática e objeto de intervenção do Estado no contexto da modernidade capitalista. Os autores complementam ainda que esse novo prisma é resultado também da expansão da matriz proibicionista, que busca impor, de forma repressiva, o tratamento do uso de SPAs.

Conforme Duarte e Morihisa (2015DUARTE, C. E.; MORIHISA, R. S. Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas. In: ANDRADE, A. G. de (Coord.). Integração de competências no desempenho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2015. p. 147-160.), o uso de drogas por homens e mulheres é um fato que transcende milhares de anos e possui diversas motivações, como religiosas, culturais, recreativas, enfretamento de problemas, socialização ou isolamento. Dependendo do contexto, o uso de SPAs pode ser inofensivo ou pode causar “padrões de utilização altamente disfuncionais” (Duarte; Morihisa, 2015DUARTE, C. E.; MORIHISA, R. S. Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas. In: ANDRADE, A. G. de (Coord.). Integração de competências no desempenho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2015. p. 147-160., p. 147).

O uso de algumas SPAs pelas interlocutoras deste estudo são descritas na Figura 5:

Figura 5
Substâncias de uso

Entre as interlocutoras, as substâncias que mais apareceram foram o tabaco e o álcool. Fatores de risco relacionados ao ambiente familiar, às condições de renda e de emprego têm influência direta nesses dados, visto que, durante as entrevistas, todas relataram que iniciaram o uso dessas SPAs na adolescência, mas em poucas quantidades; apenas agora, a partir da faixa dos 30 anos, com mais episódios vivenciados de violências, por exemplo, foi que o consumo dessas substâncias passou a ser diário e intenso.

A rede criada para o tratamento e cuidado das pessoas que fazem uso abusivo de substâncias dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) é a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que compõe a Política Nacional de Saúde Mental. A Raps preconiza a existência de equipamentos de base comunitária, que atuem nos territórios para o atendimento de pessoas com transtornos mentais de base ou decorrentes do uso de SPAs. Deve atuar de forma integrada com as demais redes de saúde, visto que, só assim, o indivíduo pode ter seu cuidado de forma integral, dessa maneira, a Raps também está presente na APS, na Atenção de Urgência e Emergência, na Atenção Residencial de Caráter Transitório e na Atenção Hospitalar.

Durante as entrevistas, as usuárias foram questionadas sobre o acesso aos serviços de saúde e assistência social do município e quais suas percepções sobre eles:

Lá no [bairro onde mora], a gente não tem posto não, aí eu uso esse daqui [...], porque minha filha me botou no cadastro dela, porque senão, eu não tinha médico pra me atender [...] eu já fui na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e no [hospital] municipal e o atendimento foi péssimo. Muito lotado, cheio de gente gritando [...]. (Entrevistada E)

O posto lá perto de casa é muito bom, eu faço acompanhamento de diabetes e meus exames ginecológicos. Eu gosto muito. (Entrevistada B)

[...] lá no [bairro onde mora], a gente só tem uma areninha, que foi esse novo prefeito que inaugurou, sabe? E agora ele tá fazendo o asfalto também, antes dele ninguém olhava pela gente de lá [...] no Cras [Centro de Referência de Assistência Social], eu só vou pra atualizar aquele cadastro. Eu acho que é esse nome né, Cras? (Entrevistada C)

Com base na fala de todas as entrevistadas, os serviços disponibilizados pela Prefeitura não cobrem uma grande parcela da população, mostrando que o princípio da universalidade e do atendimento integral do SUS não está acontecendo como deveria. Quanto aos serviços da assistência social, as usuárias não têm uma compreensão clara desses serviços e apenas uma citou o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) como um possível instrumento da política.

Neste estudo, será explanado apenas o Caps-AD, visto ser o espaço físico da pesquisa. Assim, o referido equipamento, de acordo com a Portaria nº 3.088/2011 (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 dez. 2011. Seção 1, p. 230-232. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html >. Acesso em: 20 abr. 2023.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
),

atende adultos ou crianças e adolescentes, considerando as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Serviço de saúde mental aberto e de caráter comunitário, indicado para Municípios ou regiões com população acima de setenta mil habitantes;

Sabe-se que o cuidado de saúde das pessoas não se refere apenas ao cuidado de seu corpo físico, mas sim a diversos outros fatores que permeiam as esferas psicológicas e sociais. Nota-se que o atendimento no Caps-AD ainda está muito centrado no atendimento médico, uma vez que o número de consultas dessa categoria está maior do que as das demais, vide Figura 6:

Figura 6
Consultas médicas

No serviço, as consultas médicas após a triagem são marcadas para até, no máximo, uma semana, mas oito das 29 mulheres não compareceram nem ao menos à primeira consulta. Posteriormente, vemos que essa quantidade vai diminuindo, ou seja, o número de mulheres que fizeram o acompanhamento médico é ínfimo. Considerando que uma consulta médica é realizada a cada dois meses, apenas uma mulher foi para as cinco consultas agendadas.

O Caps-AD deve ser composto por uma equipe multiprofissional de saúde (enfermagem, serviço social, psicologia, psiquiatria, terapia ocupacional, dentre muitas outras profissões) que deve atuar de forma interdisciplinar. O processo de trabalho deve ter prioridade nos atendimentos em espaços coletivos a partir de grupos de usuários, mas também abarca acompanhamento individual, compartilhado e visitas domiciliares, a partir do Projeto Terapêutico Singular (PTS).

O acompanhamento deve seguir o modelo biopsicossocial, que é antagônico ao modelo biomédico, que acredita que o cuidado do paciente é centralizado na ausência de doença e não busca compreender as influências externas que o indivíduo pode sofrer para estar na atual situação de saúde. No entanto, percebe-se, nos dados a seguir (Figura 7), que esse acompanhamento multiprofissional está sendo deficitário:

Figura 7
Consultas multidisciplinares

A causa para tal resultado pode derivar, entre outras, do modelo de gerenciamento indicado pela gestão, que, ao priorizar condições físicas para facilitar as consultas médicas, em vez das consultas aos demais profissionais da equipe, reforça o modelo biomédico.

Apesar desse dado, nota-se que a psicologia está ocupando um espaço de grande destaque e de muita responsabilidade no acompanhamento dessas pacientes, visto que todas destacaram o papel da profissão nos seus tratamentos, trazendo assim a possibilidade de atendimentos mais amplos e complexos para os(as) pacientes, visto que um dos papéis dessa profissão é compreender os fatores que levam o(a) paciente a fazer uso de SPAs e como elas interferem no seu modo de vida.

No Caps-AD, trabalha-se ainda com a estratégia de Redução de Danos (RD), que, de acordo com Cruz (2015CRUZ, M. S. Estratégias de redução de danos para pessoas com problemas com drogas na interface dos campos de atuação da Justiça e da Saúde. In: ANDRADE, A. G. de (Coord.). Integração de competências no desempenho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2015. p. 335-368., p. 337), “constitui uma estratégia de abordagem dos problemas com as drogas que não parte do princípio de que deve haver imediata e obrigatória extinção do uso [...], mas que formula práticas que diminuem os danos para os usuários de drogas e para os grupos sociais com que convivem”.

Apesar de ser uma política incentivada durante muitos anos nos serviços da Raps e que muitos profissionais que atuam na rede devem conhecer e utilizar junto aos pacientes com uso abusivo de substâncias, nenhuma das entrevistadas afirmou conhecer a RD. Entretanto, ao explicar para elas a estratégia, a maioria afirmou que já utilizavam essas adaptações e que aprenderam com os profissionais do próprio Caps-AD, ou seja, apesar de não reconhecerem a estratégia pelo nome, seguem muitos passos da RD.

Considerações finais

Após as análises realizadas sobre os determinantes sociais de saúde que podem incidir na vida das mulheres negras em acompanhamento biopsicossocial no Caps-AD, foi possível perceber que esse grupo populacional enfrenta maiores dificuldades para realizar o tratamento especializado por conta do racismo institucional, da forte pressão social para evitar o acompanhamento e, ainda, por serem, em sua maioria, as responsáveis pelos cuidados materno-familiares, que envolver as tarefas domésticas e os cuidados com filhos e companheiro(a).

Pode-se compreender que a questão racial é estruturante das relações sociais e do acesso aos direitos sociais, tal como a saúde. Tendo isso em vista, é imprescindível que os(as) profissionais que trabalham nos serviços de saúde compreendam essas especificidades e estejam aptos a realizar atendimentos de forma equânime.

Para garantir a equidade do SUS, é necessário reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde e nas necessidades das pessoas, considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações sociais e deve atender a diversidade, oferecendo mais cuidado. É preciso que os profissionais de saúde tenham a possibilidade, dentro de seus serviços de atuação, de realizar atendimento e cuidado qualificados, considerando o quanto a questão racial afeta a população.

Compreender melhor o lugar de fala dos usuários de um serviço significa estar atento ao que eles expressam e buscar se colocar no lugar deles, que são alternativas possíveis para melhorar em diversos aspectos o acesso e a qualidade desse serviço. Para essa compreensão, é necessário que os profissionais da saúde estejam dispostos a fazer esse movimento. Esta pesquisa, então, buscou, dentre seus demais objetivos acadêmicos, publicizar as dificuldades que mulheres negras podem vivenciar durante o acesso aos serviços do SUS.

Referências

  • 1
    O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
  • 2
    “Trata-se da estruturação social da propriedade, dos poderes, do mando, dos territórios e das condutas: propriedade e poder sobre os corpos, a sexualidade e as condutas sexuais dos gêneros não-masculinos, sobre os territórios públicos no mercado de trabalho, nos postos de decisão e direção e na política. O poder patriarcal estrutura-se, pois, na desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, numa ‘lei do status desigual dos gêneros’” (FALEIROS, 2007FALEIROS, E. Violência de gênero. In: TAQUETTE, S. R. (Org.). Violência contra a mulher adolescente-jovem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007. p. 61-66. Disponível em: <Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Jefferson-Drezett/publication/265336500_Violencia_contra_a_mulher_adolescentejovem/links/5408fc370cf2718acd3cfae5/Violencia-contra-a-mulher-adolescente-jovem.pdf#page=61 >. Acesso em: 6 mar. 2021.
    https://www.researchgate.net/profile/Jef...
    , p. 62).
  • 3
    Discriminação baseada no gênero ou no sexo de uma pessoa.
  • 4
    Renda per capita familiar diária inferior a US$ 5,50 PPC (Paridade de Poder de Compra), aproximadamente R$ 37,00.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2022
  • Aceito
    05 Jan 2023
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