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Os impactos dos racismos nas ocupações da população negra: reflexões para a terapia e a ciência ocupacional1 1 O trabalho foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. Lilian Magalhães recebeu suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de bolsa de produtividade n. 303037/2018-0.

Resumo

No Brasil, os racismos são estruturais e estruturantes, pois estão enraizados nos arcabouços das sociedades, nas relações interpessoais e nas instituições, atravessando as ocupações significativas dos sujeitos e coletivos. Isto explica as disparidades em diversos setores da sociedade brasileira, notadamente na empregabilidade das pessoas negras, bem como nos seus modos de adoecer e morrer. Entendendo o papel que os racismos desempenham nas ocupações das pessoas negras, este estudo propõe sistematizar observações que nos permitam compreender o fenômeno da produção de injustiças, com base em relações racializadas e, eventualmente, sugerir formas de enfrentamento dessa realidade. Desta forma, discutimos como os racismos foram instaurados no Brasil, reunindo elementos para a compreensão da ocupação humana e seus condicionantes. Em seguida, refletimos sobre os conceitos de justiça e injustiça ocupacional, que evidenciam os processos ocupacionais vivenciados pelas pessoas negras. Considerando que na terapia ocupacional e na ciência ocupacional brasileira ainda são incipientes os estudos que relacionam racismos e ocupação, apontamos algumas estratégias para reorientar as práticas profissionais de terapeutas ocupacionais, de modo a torná-las proativas e transformadoras.

Palavras-chave:
Racismos; Ocupação; População Negra; Terapia ocupacional; Ciência Ocupacional

Abstract

In Brazil, the many forms of racisms are structural and structuring, since they are rooted deep within society, in interpersonal relationships, and in institutions, traversing significant occupations of subjects and collectives. This explains the disparities in various sectors of Brazilian society, notably in the employability of Black people, as well as in their forms of getting sick and dying. In understanding the role that racisms play in the occupations of Black people, this study proposes to systematize observations that allow us to understand the phenomenon of the production of injustices based on racialized relations and, eventually, suggest ways to confront this reality. Thus, we discuss how racisms were established in Brazil, gathering elements for the understanding of human occupation and its conditioning factors. We then reflect on the concepts of occupational justice and injustice, which bring light to the occupational processes experienced by Black people. Considering that, in occupational therapy and in Brazilian occupational science, studies relating racisms and occupation are still incipient, we point out some strategies to reorient occupational therapists, practices to make them proactive and transformative.

Keywords:
Racisms; Occupation; Black Population; Occupational Therapy; Occupational Science

Introdução

No período do Brasil oficialmente escravocrata, a população negra foi racializada como inferior, animalesca, erótica, primitiva, violenta, exótica e exageradamente emocional, por isso, pessoas pretas deveriam ser submetidas à escravidão em todas as suas formas de dominação e desumanização. Enquanto isso, as pessoas brancas foram racializadas como universais, civilizadas e moralmente superiores e, assim, passaram a classificar e inferiorizar aqueles diferentes de si (Fanon, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.). A escravidão no Brasil durou mais de 300 anos e apenas em 13 de maio de 1888 a Lei Aúrea foi assinada. Vale salientar que a referida abolição ocorreu devido às reivindicações e aos movimentos globais de resistência, organizados pela população negra, e não apenas devido às petições da população branca abolicionista, como a historiografia costuma retratar (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.).

É evidente que a escravidão e os rótulos étnicos consolidaram o racismo. Munanga (2004MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO, 3., 2003, Niterói. Anais... Niterói: Eduff, 2004. Disponível em: <Disponível em: www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf >. Acesso em: 5 mar. 2022.
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, p. 7-8) reflete que:

O racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que têm características físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa escala de valores desiguais.

Como se sabe, a população negra brasileira é frequentemente desumanizada, devido aos racismos presentes na sociedade, e as estatísticas apontam que esse fenômeno é responsável pelo grande número de mortes que sofre. De acordo com os registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2019IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD Contínua: pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e >. Acesso em: 20 mar. 2022.
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), no Brasil, em 2017, a taxa de homicídio entre a população branca foi 16,0 e entre as pessoas pretas ou pardas foi de 43,4 para cada 100 mil habitantes. Isso significa que, em proporção, uma pessoa negra ou parda tem 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. Ainda segundo o IBGE (2019IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD Contínua: pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e >. Acesso em: 20 mar. 2022.
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), entre os anos de 2012 e 2017 a taxa se manteve estável para a população branca. Em contraste, durante esse mesmo período, a taxa aumentou drasticamente para a população preta ou parda, passando de 37,2 para 43,4 homicídios por 100 mil habitantes, o que “representa cerca de 255 mil mortes por homicídio registradas no Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, em seis anos” (IBGE, 2019IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD Contínua: pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e >. Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 9). Em todas as faixas etárias, a taxa de homicídios da população preta ou parda superou a da população branca. Além disso, a taxa de violência de gênero a qual as jovens brancas entre 15 e 29 anos estão submetidas é de 5,2, contra 10,1 para as jovens pretas ou pardas.

Os racismos estão enraizados na estrutura da sociedade, nas relações interpessoais e nas instituições, assim, atravessam as ocupações significativas dos sujeitos e coletivos (Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). As ocupações significativas são ações propositais motivadas pelo interesse e pela vontade. Dessa forma, na sociedade racializada e injusta, a população branca realiza ocupações que favorecem sua saúde, bem-estar e progresso material, enquanto as pessoas negras realizam ocupações prejudiciais à própria saúde, provocando muitas vezes traumas históricos pela desumanização e violência simbólica e real (Johnson; Lavalley, 2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
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; Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.; Valer; Ortega, 2011VALER, S.; ORTEGA, R. Ann Allart Wilcock: trayectoria profesional y aportaciones másrelevantes a la terapia ocupacional y a la ciencia de la ocupación. Revista Gallega de Terapia Ocupacional, Coruña, v. 8, n. 14, p. 1-18, 2011.).

Entendendo que o racismo impacta as ocupações das pessoas negras brasileiras, buscamos, neste estudo, sistematizar observações que nos permitam compreender o fenômeno da produção de injustiças, com base em relações racializadas e, eventualmente, sugerir formas de enfrentamento dessa realidade.

Na primeira parte do texto, apresenta-se como os racismos foram instaurados no Brasil. Em seguida, mostramos os principais marcos históricos, sociais, econômicos e políticos relevantes para combater os racismos, no plural. Na terceira parte, expomos os índices históricos de desigualdade entre brancos e negros, as lutas do Movimento Negro contra a invisibilidade e violação dos direitos humanos e as reivindicações da população negra em prol da promoção da equidade racial. Em seguida, apontamos elementos para a compreensão da ocupação significativa, articulados tanto pela terapia quanto pela ciência ocupacional. Para isso, incluímos os conceitos de justiça e injustiça ocupacional que evidenciam as ocupações realizadas pelas pessoas negras. Por fim, apontamos algumas estratégias contra-hegemônicas e antirracistas, a fim de reorientar as práticas de terapeutas e cientistas ocupacionais e de modo a dar mais proatividade e potencial de transformação às suas ações.

Teoria eugenista e democracia racial: um breve panorama histórico-social sobre as características dos racismos no Brasil, a partir do século XIX

No Brasil, após a abolição da escravatura e a Proclamação da República em 1889, não foram criadas políticas públicas para reparar as desigualdades vivenciadas pela população negra. Entre o século XVI e o início do século XX, os racismos no Brasil eram explícitos e fundamentados em teorias eugenistas, influenciadas pelas teorias europeias que, através da ciência, justificavam a hierarquia entre as raças (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.). O racismo científico era disseminado por figuras públicas como o Conde Arthur de Gobineau, os médicos Nina Rodrigues e Renato Kehl, além dos escritores Monteiro Lobato e Gilberto Freyre, entre outros (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.).

Estudos mostram que o Conde Arthur de Gobineau veio ao Brasil em 1869 numa missão diplomática e, ao conhecer a sociedade brasileira, concluiu que o país estava atrasado e precisava avançar econômica e politicamente, mas, sobretudo, precisava embranquecer. Devido às reflexões feitas pelo Conde e por outros intelectuais eugenistas, políticas de branqueamento foram adotadas no Brasil e, assim, imigrantes europeus foram convidados a morar no país, visando seu embranquecimento (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.). Além disso, após a abolição da escravatura, projetos de leis foram criados com o intuito de impedir a imigração asiática e africana para o Brasil (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.).

O racismo à brasileira, conceito criado por Lélia Gonzalez, reflete na pessoa negra o desejo de embranquecer. As teorias eugenistas disseminaram a ideia de que o padrão branco ocidental era adequado e superior, portanto, tudo o que fugia desse modelo era inferior. Dessa forma, o projeto de embranquecimento do Brasil leva a pessoa negra a negar a si mesma, suas origens e sua cultura (Gonzalez, 1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244.). A partir de 1930, iniciou-se no país o sistema de ideias intitulado democracia racial, que, no entanto, significou a reconfiguração concreta das ideias defendidas pelas teorias de branqueamento (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.).

A despolitização das relações raciais foi articulada em várias frentes. Por exemplo, Gilberto Freyre, ao lançar o livro “Casa-Grande & Senzala”, em 1930, concebeu a democracia racial, a partir do discurso de que no Brasil não existia racismo, porque a relação entre a população branca escravocrata e a população negra escravizada era harmoniosa. Estas ideias negavam que a miscigenação no país resultasse, principalmente, do estupro das mulheres negras e indígenas e sugeria que o fenômeno ocorria em resposta a relações consensuais (Freyre, 2003FREYRE, G. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48 ed. São Paulo: Global, 2003.; Gonzalez, 1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244.).

A democracia racial e o racismo deram origem ao que Gonzalez (1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244., p. 234) denomina neurose cultural brasileira : “sabemos que o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento”. O amor da senzala é um dos exemplos da neurose, que coloca a mulher e o homem negro como objetos de satisfação dos desejos sexuais do homem e da mulher branca, negando suas identidades humanas diante do status de objetos hiper sexualizados.

Racismos: as inúmeras faces dos racismos no Brasil

Conforme Grada Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), durante muitos anos os estudos sobre os racismos foram considerados inválidos e irrelevantes para a sociedade, assim como os saberes da população negra eram invisibilizados, sendo as feridas e traumas decorrentes dos racismos negligenciados. A autora afirma que, a partir de um certo momento, os estudos sobre o tema colocaram em risco os privilégios da população branca e mostra que:

Nesse momento, nós e nossa realidade com o racismo nos tornamos visíveis, faladas/os e até mesmo escritas/os, não porque talvez possamos estar em perigo ou em risco, ou precisar de proteção legal, mas sim porque tal realidade desconfortável perturba a estável imunidade branca. (Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 72)

O intelectual Emanuel Lima (2019LIMA, E. M. Racismo no plural: um ensaio sobre o conceito de racismos. In: LIMA, E. M.; SANTOS, F. F.; NAKASHIMA, A. H. Y.; TEDESCHI, L. A. (Org.). Ensaios sobre racismos: pensamento de fronteira. São Paulo: Balão Editorial, 2019. p. 11-24.) criou o conceito de racismos, no plural, pois podem se manifestar de maneiras distintas, por exemplo, através do fenótipo, do humor, da cultura, da religião, da ciência e da relação com o ambiente. Vale ressaltar que as práticas de cunho racistas são reproduzidas nas instituições, nas relações interpessoais, bem como na estrutura da sociedade e no cotidiano. Nessa direção, Silvio Almeida (2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.) apresenta três concepções do racismo: (1) individualista, (2) institucional e (3) estrutural. Na primeira concepção, o racismo, cujo caráter é individual, relaciona-se com a subjetividade e com o comportamento de uma pessoa ou de um pequeno grupo; “sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo” (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 25). O autor defende que essa concepção é imprecisa, porque as práticas racistas não são perpetradas apenas por uma pessoa, mas esse fenômeno está presente nas estruturas das sociedades. Já a segunda concepção relaciona-se com o racismo presente nas instituições públicas e privadas, além de organizações que criam condições desiguais de acesso aos serviços, com base no fenótipo. Quanto a isso, o autor afirma que:

Desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos. (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 27)

Dessa forma, a população branca cria padrões sociais que privilegiam os brancos e excluem as pessoas não-brancas. Por fim, a terceira concepção compreende que o racismo está presente nas estruturas sociais, políticas e econômicas da sociedade, pois impede a população negra de acessar as estruturas dominantes de poder. Para Almeida (2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 32), “em uma sociedade em que o racismo está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como ‘normais’ em toda a sociedade”.

Além das concepções dos racismos já apresentadas, a autora Grada Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) acrescenta uma perspectiva, o racismo cotidiano, definido como:

O racismo cotidiano refere-se a todo vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que colocam o sujeito negro e as pessoas de cor não só como “Outra/o” - a diferença contra a qual o sujeito branco é medido - mas também como Outridade, isto é, como a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca (...) a pessoa negra é usada como tela para projeções do que a sociedade branca tornou como tabu. Tornamo-nos um depósito para medos e fantasias brancas do domínio da agressão ou da sexualidade. (Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 78)

Além das definições apresentadas acima, Gonzalez (1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244.) sugere que os racismos podem ser apresentados de duas formas: o racismo aberto e o disfarçado. O racismo aberto é geralmente encontrado nos países anglo-saxões e na África do Sul, seu exemplo nítido é o apartheid, a segregação baseada na cor da pele. Essa segregação exigiu que a população negra desses países, ao sofrer os efeitos desse racismo explícito, se unisse e resistisse contra o modelo opressor, embora enfrentando respostas cruéis dos sistemas de governo.

Já o racismo disfarçado, também denominado denegação, é encontrado na América Latina. No Brasil, os racismos são ancorados nas teorias do embranquecimento, miscigenação e na democracia racial, o que atrasou por muitos anos a implantação das políticas de ação afirmativa e o multiculturalismo no sistema educacional, além de provocar divisões e dúvidas no próprio Movimento Negro, devido à dificuldade de identificar e compreender os sinais do fenômeno (Gonzalez, 1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244.; Munanga, 2004MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO, 3., 2003, Niterói. Anais... Niterói: Eduff, 2004. Disponível em: <Disponível em: www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf >. Acesso em: 5 mar. 2022.
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).

Os racismos, como já mencionamos, relacionam-se à concentração de poder, pois um grupo o detém e, por isso, oprime e inferioriza os demais. Segundo Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), apenas as pessoas brancas podem reproduzir os racismos, pois essa população detém recursos políticos, econômicos, históricos e sociais que lhes permite concentrar o poder. Ressaltamos que, apesar das pessoas negras reproduzirem ações racistas no seu cotidiano, não existem racismos reversos, ou seja, um grupo historicamente oprimido e marginalizado não pode reproduzir práticas racistas com um grupo que sempre foi privilegiado na sociedade. Os racismos reversos são, portanto, uma das estratégias criadas pela população branca para deslegitimar a luta da população negra e para manter sua posição de privilégio (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.; Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.).

Bento (2002BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. 169 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. DOI: 10.11606/T.47.2019.tde-18062019-181514
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) afirma que existe um pacto entre as pessoas brancas, o pacto narcísico, baseado na omissão e no silenciamento das desigualdades, a fim de preservar as hierarquias de poder e não assumir as responsabilidades inerentes à inequidade produzida. Além disso, as pessoas brancas criam uma rede de apoio, pois protegem os seus interesses e criam obstáculos para impedir a ascensão das pessoas negras aos espaços de poder. Dessa forma, é de suma importância que as pessoas brancas se engajem nas lutas antirracistas e usem os seus privilégios para denunciar e combater os racismos presentes nas sociedades.

Índices históricos de desigualdade, invisibilidade e violação dos direitos humanos: as lutas do Movimento Negro pela promoção da equidade racial

Ao longo dos anos, com a redemocratização do país na era Vargas, a dificuldade de identificação do racismo sistêmico persistiu, pois “a temática da desigualdade se identifica quase que exclusivamente com a da distribuição de renda” (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64., p. 52). As pessoas negras trabalhavam em condições insalubres, assim como apresentavam as maiores taxas de analfabetismo, pois a elas estava vedado qualquer acesso à educação e a empregos de qualidade.

A criação da Constituição de 1988 fomentou uma discussão sobre as desigualdades sociais, o combate à pobreza e o acesso aos direitos humanos (Brasil, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 11 mar. 2022.
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). Ainda nesse período, a imagem da pessoa negra estava relacionada à pobreza: “A pobreza opera sobre a naturalização do racismo, exercendo uma importante influência no que tange à situação do negro no Brasil” (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64., p. 56). Com o fortalecimento do Movimento Negro no país, as pautas de enfrentamento da pobreza, melhores condições de educação, trabalho, cidadania, lazer e saúde foram reiteradas. Dessa forma, ampliaram-se as lutas para fazer o Estado reconhecer a desigualdade racial existente e, em seguida, criar políticas de combate aos racismos (Lima, 2019LIMA, E. M. Racismo no plural: um ensaio sobre o conceito de racismos. In: LIMA, E. M.; SANTOS, F. F.; NAKASHIMA, A. H. Y.; TEDESCHI, L. A. (Org.). Ensaios sobre racismos: pensamento de fronteira. São Paulo: Balão Editorial, 2019. p. 11-24.; Munanga, 2004MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO, 3., 2003, Niterói. Anais... Niterói: Eduff, 2004. Disponível em: <Disponível em: www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf >. Acesso em: 5 mar. 2022.
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). A crescente mobilização de grupos do Movimento Negro resultou em eventos como a “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida”, realizada em Brasília, DF, no dia 20 de novembro de 1995, que reuniu cerca de 30 mil pessoas. O documento escrito pela Marcha foi entregue a Fernando Henrique Cardoso,presidente do país na época, reivindicando os seguintes direitos:

Incorporar o quesito cor em diversos sistemas de informação; estabelecer incentivos fiscais às empresas que adotarem programas de promoção da igualdade racial; instalar, no âmbito do Ministério do Trabalho, a Câmara Permanente de Promoção da Igualdade, que deverá se ocupar de diagnósticos e proposição de políticas de promoção da igualdade no trabalho; regulamentar o artigo da Constituição Federal que prevê a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; implementar a Convenção Sobre Eliminação da Discriminação Racial no Ensino; conceder bolsas remuneradas para adolescentes negros de baixa renda, para o acesso e conclusão do primeiro e segundo graus; desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta; assegurar a representação proporcional dos grupos étnicos raciais nas campanhas de comunicação do governo e de entidades que com ele mantenham relações econômicas e política. (Moehlecke, 2002MOEHLECKE, S. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 117, p. 197-217, 2002. DOI: 10.1590/S0100-15742002000300011
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, p. 205-206)

Mesmo com as reivindicações do Movimento Negro e com os progressos da criação de políticas públicas e sociais voltadas para esse público, nota-se que as disparidades sociais decorrentes dos racismos não se reduziram. Dessa forma, os racismos continuam sendo perpetrados na sociedade brasileira, todavia, as estratégias de opressão seguem sendo reconfiguradas (Gonzalez, 1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244.; Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.; Munanga, 2004MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO, 3., 2003, Niterói. Anais... Niterói: Eduff, 2004. Disponível em: <Disponível em: www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf >. Acesso em: 5 mar. 2022.
www.geledes.org.br/wp-content/uploads/20...
). Almeida (2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 47) resume de maneira lapidar o processo:

O problema de considerar o racismo como obra da supremacia branca ocorre quando se considera este termo fora de um contexto histórico. Não há uma essência branca impressa na alma de indivíduos de pele clara que os levaria a arquitetar sistemas de dominação racial. Pensar desse modo simplista e essencialista a questão racial pode conduzir-nos a uma série de equívocos que só tornam ainda mais difícil a desconstrução do racismo. Dizer que o racismo é resultado de uma ahistórica e fantasmagórica supremacia branca reduz o combate ao racismo a elementos retóricos, ocultando suas determinações econômicas e políticas.

Devido às lutas da população negra, em 1989 foi promulgada no país a lei do Crime Racial n° 7.716, que pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Brasil, 1989BRASIL. Lei nº 7.716, de 1 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Brasília, DF: Presidência da República, 1989. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm >. Acesso em: 15 mar. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Todavia, mesmo o racismo sendo considerado crime, as práticas racistas permanecem presentes na sociedade brasileira (Pereira et al., 2021PEREIRA, A. et al. Sistema prisional e saúde mental: atuação da terapia ocupacional com mulheres autodeclaradas negras e pardas vítimas do racismo. Revista Eletrônica Acervo Saúde, Ouro Fino, v. 13, n. 3, p. 1-8, 2021. DOI: 10.25248/reas.e6440.2021
https://doi.org/10.25248/reas.e6440.2021...
).

Reflexões sobre justiça e injustiça ocupacional a partir de uma perspectiva crítica

Para discutir justiça ocupacional, começamos pelo conceito de justiça. Em seguida abordamos como o conceito de justiça ocupacional foi criado, fundamentado numa perspectiva mais conservadora e individualizante, até chegarmos às discussões mais recentes, que adotam perspectiva social crítica e emancipatória.

A ideia de justiça refere-se àquilo que é justo. Em termos gerais, a justiça é entendida como um modo de julgar o que é correto e incorreto. Vale ressaltar que as ideias sobre justiça e injustiça são definidas de acordo com a moral, a natureza ético-ideológica, as compreensões de mundo e crenças de um determinado grupo. Assim, suas definições são múltiplas:

Não há uma única ideia de justiça. A filosofia política moderna em suas controvérsias tem levantado uma variedade de teorias de justiça, desde o liberalismo individual, o liberalismo social até as teorias comunitárias e o pluralismo jurídico, entre outras. Cada um é baseado em um sistema de crenças de justiça, poder e liberdade, igualdade, desigualdade, comunidade e indivíduo. (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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, p. 5, tradução nossa)

Além disso, as concepções de justiça mudam conforme o tempo. Durante o período da colonização brasileira, por exemplo, a estrutura jurídica apenas considerava como cidadãos os homens brancos, pois o sistema apoiava a escravidão e a expropriação de terras indígenas e quilombolas. Apenas devido às lutas dos movimentos sociais, essa noção de justiça foi retificada (Jaccoud, 2008JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008, p. 45-64.; Munanga, 2004MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO, 3., 2003, Niterói. Anais... Niterói: Eduff, 2004. Disponível em: <Disponível em: www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf >. Acesso em: 5 mar. 2022.
www.geledes.org.br/wp-content/uploads/20...
).

No âmbito da ciência ocupacional, uma disciplina de estudos criada nos anos 1990 para aprofundar a compreensão sobre o papel da ocupação humana, a partir da articulação entre os conceitos de justiça e ocupação humana, as autoras Wilcock e Townsend propuseram o conceito de justiça ocupacional (Stadnyk; Townsend; Wilcock, 2009STADNYK, R.; TOWNSEND, E. A.; WILCOCK, A. Occupational justice. In: CHRISTIANSEN, C. H.; TOWNSEND, E. A. (Org.). Introduction to Occupation: The Art and Science of Living. 2. ed. New York: Pearson, 2009. p. 329-358.). Cientistas ocupacionais defendem que os humanos são seres ocupacionais, por isso todos devem ter oportunidades e recursos equitativos para a participação apropriada em seus diferentes contextos, o que resultaria na criação de uma sociedade justa. A justiça ocupacional, portanto, prioriza “ocupações (tarefas e atividades) significativas e com sentido, que as pessoas querem, necessitam e podem fazer considerando suas circunstâncias pessoais e situacionais” (Stadnyk; Townsend; Wilcock, 2009STADNYK, R.; TOWNSEND, E. A.; WILCOCK, A. Occupational justice. In: CHRISTIANSEN, C. H.; TOWNSEND, E. A. (Org.). Introduction to Occupation: The Art and Science of Living. 2. ed. New York: Pearson, 2009. p. 329-358., p. 331, tradução nossa). Essas ocupações significativas recebem influência da cultura, religião e condicionantes físicos e sociais. Elementos que, portanto, permitem que as demandas dos indivíduos sejam atendidas e possibilitem a sua participação ativa na comunidade (Valer; Ortega, 2011VALER, S.; ORTEGA, R. Ann Allart Wilcock: trayectoria profesional y aportaciones másrelevantes a la terapia ocupacional y a la ciencia de la ocupación. Revista Gallega de Terapia Ocupacional, Coruña, v. 8, n. 14, p. 1-18, 2011.).

No Sul Global há, entretanto, autores que refletem sobre o conceito de justiça ocupacional a partir de uma perspectiva crítica e pluralista, contrapondo-se à visão eurocêntrica, hegemônica e universalista defendida pelo Norte Global (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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). A forma conservadora de compreender a justiça ocupacional considera apenas os movimentos históricos, políticos e sociais dos países localizados no Norte Global, portanto, as demandas específicas dos países do Sul Global, como as disputas de poder, racismos e colonialismo, assim como as questões de gênero, cultura e classe social são excluídas e negligenciadas. Ressaltamos que o Sul Global ao qual Boaventura de Souza Santos se refere é o sul geopolítico, formado pelos países que até os dias atuais lidam com as consequências brutais da colonização (Santos; Meneses, 2017SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez Editora, 2017.). Nesse sentido, o Norte Global é formado pelos países anglo-saxões e europeus, que desde o colonialismo subalternizaram os povos colonizados e exerceram influência política, econômica, cultural e social no mundo (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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; Santos; Meneses, 2017SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez Editora, 2017.). Sendo assim, nas estruturas de poder, os conhecimentos produzidos pelo Norte Global são considerados superiores e reconhecidos mundialmente, em detrimento daqueles produzidos no Sul Global, que são silenciados e invisibilizados (Santos; Meneses, 2017SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez Editora, 2017.).

O Sul Global inclui a população negra, indígena, quilombola, latina, imigrantes, pessoas com deficiência e LGBTQIA+.2 2 A sigla significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Queer e outras identidades de gênero que não se encaixam ao padrão cis-heteronormativo. Por isso, autores defendem que profissionais de terapia e ciência ocupacional, ao trabalharem com as populações latino-americanas, devem adotar as perspectivas do Sul Global e buscar desvencilhar-se de referenciais teórico-metodológicos importados do Norte Global (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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). Dessa forma, para pensar a justiça ocupacional a partir das perspectivas do Sul Global, é necessário que terapeutas e cientistas ocupacionais desenvolvam práticas junto às populações atingidas por injustiças ocupacionais, a fim de favorecer mudanças sociais. Além disso, deve-se incluir, nas intervenções, perspectivas mais abrangentes de papéis ocupacionais, considerando os marcadores sociais, a cultura, a espiritualidade e os aspectos socioeconômicos e políticos.

Emery-Whittington (2021EMERY-WHITTINGTON, I. G. Occupational Justice: Colonial Business as Usual? Indigenous Observations From Aotearoa New Zealand. Canadian Journal of Occupational Therapy, Thousand Oaks, v. 88, n. 2, p. 154-162, 2021. DOI: 00084174211005891) realizou um estudo em uma tribo indígena na Nova Zelândia para investigar a articulação entre os impactos da colonização e a justiça ocupacional. Conforme a autora, é necessário descolonizar o conceito de justiça ocupacional e questionar como e por que as desigualdades sociais, econômicas, políticas e de saúde são constituídas e reproduzidas. Tem sido proposto que a justiça ocupacional é marcada por quatro direitos que permitem a realização das ocupações significativas, são eles: (1) poder experimentar ocupações significativas e enriquecedoras; (2) realizar ocupações para fins de saúde e inclusão; (3) exercer autonomia individual ou social escolhendo ocupações e; (4) beneficiar-se de privilégios para a participação diversificada em ocupações (Durocher; Gibson; Rappolt, 2014DUROCHER, E.; GIBSON, B.; RAPPOLT, S. Occupational justice: a conceptual review. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 21, n. 4, p. 418-430, 2014. DOI: 10.1080/14427591.2013.775692
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). Não obstante, ainda que o conceito de justiça ocupacional seja um avanço, vale notar que as discussões realizadas ainda são feitas, majoritariamente, por autoras e autores brancos, de origem europeia e privilegiada (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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; Hammel, 2020). Assim, Pereira (2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.) afirma que, no caso da população negra brasileira, é necessário ampliar os princípios da justiça ocupacional, pois lida com questões específicas. Dessa forma, numa perspectiva afro referenciada e diaspórica, a autora propõe três direitos adicionais: (5) promoção de ocupações que proporcionem o senso de coletividade e atividades de cooperação; (6) direito de acesso e preservação das atividades ancestrais e; (7) a indissociabilidade entre vida ocupacional e território (Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). Portanto, as ocupações realizadas pelas pessoas negras devem superar a lógica individualizante, dando espaço às ocupações coletivas, que devem ser enfatizadas. Do mesmo modo, a ancestralidade e saberes afro-brasileiros devem ser resgatados e valorizados (Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.).

Numa sociedade injusta, há pessoas que desempenham as ocupações que favorecem o seu bem-estar, enquanto outras realizam ocupações que são prejudiciais à própria saúde ou que não preenchem as necessidades daqueles que as desempenham. Dessa forma, a injustiça ocupacional é conceituada como “qualquer limitação da participação significativa e digna da pessoa: seja ela restringindo, proibindo, segregando” (Valer; Ortega, 2011VALER, S.; ORTEGA, R. Ann Allart Wilcock: trayectoria profesional y aportaciones másrelevantes a la terapia ocupacional y a la ciencia de la ocupación. Revista Gallega de Terapia Ocupacional, Coruña, v. 8, n. 14, p. 1-18, 2011., p. 9, tradução nossa). Na literatura, cinco formas de injustiça ocupacional têm sido enfatizadas: (1) privação ocupacional; (2) desequilíbrio ocupacional; (3) alienação ocupacional; (4) marginalização ocupacional; (5) apartheid ocupacional (Durocher; Gibson; Rappolt, 2014DUROCHER, E.; GIBSON, B.; RAPPOLT, S. Occupational justice: a conceptual review. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 21, n. 4, p. 418-430, 2014. DOI: 10.1080/14427591.2013.775692
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; Kronenberg; Pollard, 2005KRONENBERG, F.; POLLARD, N. Overcoming Occupational Apartheid: A Preliminary Exploration of the Political Nature of Occupational Therapy. In: KRONENBERG, F.; ALGADO, S. S.; POLLARD, N. (Org.). Occupational Therapy Without Borders: Learning from the spirit of survivors. Toronto: Elsevier Churchill Livingstone, 2005. v. 1, p. 58-86.; Valer; Ortega, 2011VALER, S.; ORTEGA, R. Ann Allart Wilcock: trayectoria profesional y aportaciones másrelevantes a la terapia ocupacional y a la ciencia de la ocupación. Revista Gallega de Terapia Ocupacional, Coruña, v. 8, n. 14, p. 1-18, 2011.).

As cinco formas de injustiça ocupacional são criticadas por Hammell (2020HAMMELL, K. W. Ações nos determinantes sociais de saúde: avançando na equidade ocupacional e nos direitos ocupacionais. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 1, p. 378-400, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2052
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) porque, para ela, isso pode segregar e/ou deixar de fora outras opressões que acontecem na sociedade. A autora enfatiza que o foco deve recair nos impactos negativos que as injustiças provocam nos modos de vida. Para Hammell, a única categoria bem delimitada no conceito de injustiça ocupacional é o apartheid ocupacional, pois articula os processos de exclusão étnico-raciais enraizados nas sociedades. O apartheid ocupacional é manifestado quando as ocupações são oferecidas a algumas pessoas em detrimento de outras devido à etnia, classe social, idade, deficiência, sexualidade, religião, cultura, gênero, entre outros aspectos. Comumente, acontece ao nível institucional, econômico, social, cultural e político (Durocher; Gibson; Rappolt, 2014DUROCHER, E.; GIBSON, B.; RAPPOLT, S. Occupational justice: a conceptual review. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 21, n. 4, p. 418-430, 2014. DOI: 10.1080/14427591.2013.775692
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; Kronenberg; Pollard, 2005KRONENBERG, F.; POLLARD, N. Overcoming Occupational Apartheid: A Preliminary Exploration of the Political Nature of Occupational Therapy. In: KRONENBERG, F.; ALGADO, S. S.; POLLARD, N. (Org.). Occupational Therapy Without Borders: Learning from the spirit of survivors. Toronto: Elsevier Churchill Livingstone, 2005. v. 1, p. 58-86.).

O apartheid foi uma política de segregação racial, implementada na África do Sul no século XVII e nos Estados Unidos na virada do século XIX. Em ambos os países, essa segregação foi instituída por um grupo minoritário de pessoas brancas (Casseres, 2020CASSERES, L. O racismo como estruturante da criminologia brasileira. In: MAGNO, P. C.; PASSOS, R. G. (Org.). Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2020. p. 129-144.), determinando que pessoas brancas e negras não frequentavam os mesmos lugares: separando clubes, bairros, escolas, assentos nos ônibus e bebedouros, por exemplo, assim como proibindo o casamento inter-racial. Esse separatismo racial durou por muitos anos e, devido à luta dos Movimentos Negros e ao apoio internacional contra o apartheid, a segregação racial imposta por lei deixou de existir na África do Sul e nos Estados Unidos (Casseres, 2020CASSERES, L. O racismo como estruturante da criminologia brasileira. In: MAGNO, P. C.; PASSOS, R. G. (Org.). Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2020. p. 129-144.). No entanto, embora no Brasil o apartheid jamais tenha sido instituído por lei, intelectuais enfatizam que, no país, tanto as teorias eugenistas quanto a democracia racial fomentaram a segregação racial no cotidiano da sociedade (Ambrosio; Pereira; Coelho; Magalhães, 2022AMBROSIO, L.; PEREIRA, A.S; COELHO, F.S; MAGALHÃES, L.V. Brazilian occupational apartheid: historical legacy and prospects for occupational therapists. South African Journal of Occupational Therapy, v.52, n. 3, p. 82-89, 2022. DOI: http:/dx.doi.org/10.17159/2310-3833
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; Casseres, 2020CASSERES, L. O racismo como estruturante da criminologia brasileira. In: MAGNO, P. C.; PASSOS, R. G. (Org.). Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2020. p. 129-144.). Sendo assim, pode-se dizer que, devido às configurações dos racismos no Brasil, um apartheid à brasileira foi instituído, em analogia ao racismo à brasileira, pois é sempre velado e/ou desacreditado, ainda que siga sendo reproduzido na sociedade (Gonzalez, 1983GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. M. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, DF: Anpocs, 1983. p. 223-244.).

A literatura aponta que a distribuição desigual de recursos limita a escolha das pessoas para desempenharem suas ocupações e impede que a pessoa explore o seu potencial individual e coletivo. Neste estudo, entendemos que os impactos da colonização e dos racismos assumem lugares centrais diante das disparidades observadas entre as populações não-brancas e a população geral, o que nos levou a sistematizar observações que permitam compreender o fenômeno da produção de injustiças com base nas relações racializadas e, eventualmente, sugerir formas de enfrentamento dessa realidade.

Racismos e injustiça ocupacional: o impacto dos racismos nas ocupações significativas

Terapeutas e cientistas ocupacionais de vários países têm discutido os impactos dos racismos nas ocupações da população negra (Ambrosio Et Al., 2021AMBROSIO, L. et al. La urgencia de una terapia ocupacional antirracista. Revista de Estudiantes de Terapia Ocupacional, Santiago, v. 8, n. 1, p. 1-17, 2021.; Beagan; Etowa, 2009BEAGAN, B.; ETOWA, J. The impact of everyday racism on the occupations of african canadian women. Canadian Journal of Occupational Therapy, Thousand Oaks, v. 76, n. 4, p. 285-293, 2009. DOI: 10.1177/000841740907600407
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; Farias; Leite Junior; Costa, 2018FARIAS, M. N.; LEITE JUNIOR, J. D.; COSTA, I. R. B. B. Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 228-243, 2018. DOI: 10.47222/2526-3544.rbto12712
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; Johnson; Lavalley, 2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
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; Martins, 2021MARTINS, S. Repercussões da experiência de racismo nas ocupações maternais de mulheres negras: estratégias de enfrentamento. 2021. 357 f. Tese (Doutorado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2021.; Pereira Et Al., 2021PEREIRA, A. et al. Sistema prisional e saúde mental: atuação da terapia ocupacional com mulheres autodeclaradas negras e pardas vítimas do racismo. Revista Eletrônica Acervo Saúde, Ouro Fino, v. 13, n. 3, p. 1-8, 2021. DOI: 10.25248/reas.e6440.2021
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; Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). Conforme mencionamos, os racismos não constituem problema de nível individual, mas um sistema enraizado nas sociedades, pois estão presentes em suas estruturas, nas instituições públicas e privadas, nas relações sociais e nas ocupações significativas. Tanto na produção acadêmica da terapia ocupacional quanto na ciência ocupacional, a ocupação humana é entendida como sinônimo de bem-estar, saúde, inclusão, independência e justiça, a despeito de alguns autores denunciarem excessivo otimismo com os processos ocupacionais, que obviamente também podem ser prejudiciais ao ser humano (Johnson; Lavalley, 2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
https://doi.org/10.1080/14427591.2020.18...
). Todavia, poucos estudos relacionam as ocupações cotidianas às injustiças e desigualdades. Numa sociedade racializada, a ocupação tanto pode promover justiça quanto injustiça ocupacional (Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). As políticas públicas ineficientes, a falta de acesso e permanência nos ambientes públicos e privados, a negação do acesso à saúde, educação e aos serviços socioassistenciais, condições de vida precária, violação de direitos, disputa por moradia e a cidadania negada colocam a população não-branca em estado de vulnerabilidade. Isso influencia como, onde e quando as pessoas negras podem ocupar seu tempo (Johnson; Lavalley, 2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
https://doi.org/10.1080/14427591.2020.18...
). Desse modo, na sociedade racializada e capitalista, cujo poder está concentrado nas mãos da supremacia branca, as ocupações humanas são atravessadas pelos racismos, gênero, sexismo e capitalismo.

Como já mencionamos, vários fatores internos e externos influenciam a realização e disponibilidade social das ocupações. Dessa forma, o pensamento individualizante, que responsabiliza os sujeitos pelas situações de vulnerabilidade que estão vivenciando, é injusto, impreciso e perpetua disparidades. Essa visão é pautada na ideia de meritocracia, pois supõe que o sujeito deve ser recompensado apenas por suas próprias habilidades físicas, cognitivas e emocionais, sem considerar os condicionantes socioeconômicos, além do peso do racismo estrutural (Sterman; Njelesani, 2021STERMAN, J.; NJELESANI, J. Becoming anti-racist occupational therapy practitioners: a scoping study. OTJR: Occupation, Participation and Health, Thousand Oaks, v. 41, n. 4, p. 232-242, 2021. DOI: 10.1177/15394492211019931
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).

Farias, Leite Junior e Costa (2018FARIAS, M. N.; LEITE JUNIOR, J. D.; COSTA, I. R. B. B. Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 228-243, 2018. DOI: 10.47222/2526-3544.rbto12712
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) mostram que o racismo prejudica a participação social das pessoas negras, porque restringe o acesso e a permanência desse público em determinados serviços e espaços sociais. No Canadá, Beagan e Etowa (2009BEAGAN, B.; ETOWA, J. The impact of everyday racism on the occupations of african canadian women. Canadian Journal of Occupational Therapy, Thousand Oaks, v. 76, n. 4, p. 285-293, 2009. DOI: 10.1177/000841740907600407
https://doi.org/10.1177/0008417409076004...
) estudaram o impacto do racismo nas ocupações das mulheres afro-canadenses. Para isso, utilizaram a escala de experiências de vida diária - “Daily Life Experiences Scale” - para investigar a frequência com que essas mulheres sofrem racismo. O estudo conclui que ser observada por estranhos, seguida e desrespeitada são situações cotidianas para esta população. Para as participantes, as práticas racistas causam impactos em todos os âmbitos da vida. Além disso, as mulheres relataram sofrer racismo no ambiente de trabalho, sendo que as mulheres que não admitiram essas experiências negativa, justificaram que no momento estavam desempregadas, eram autônomas ou tinham colegas de trabalho que eram mulheres negras. Isso torna evidente que, mesmo no trabalho, muitas vezes já precarizado, elas são expostas aos racismos, já que muitas têm sua capacidade intelectual inferiorizada, sendo consideradas incapazes de realizar atividades complexas e, consequentemente, impedidas de assumir cargos de alto prestígio social (Beagan; Etowa, 2009BEAGAN, B.; ETOWA, J. The impact of everyday racism on the occupations of african canadian women. Canadian Journal of Occupational Therapy, Thousand Oaks, v. 76, n. 4, p. 285-293, 2009. DOI: 10.1177/000841740907600407
https://doi.org/10.1177/0008417409076004...
). As autoras argumentam que, apesar das experiências do racismo serem subjetivas, esse fenômeno atravessa a vida das pessoas negras e comprometem o fazer cotidiano, pois são impedidas de realizar suas ocupações, frequentarem lugares que desejam conhecer e até ter momentos de lazer, por medo de validarem estereótipos racistas.

Johnson e Lavalley (2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
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) relacionam o impacto do racismo na vida das pessoas escravizadas nos Estados Unidos e as restrições geradas pelo apartheid ocupacional. A partir das discussões fomentadas pelo autor e pela autora, é possível projetar e refletir os impactos do racismo nas ocupações das pessoas negras brasileiras, pois na sociedade escravocrata as pessoas escravizadas não tinham direito de ir e vir, eram impedidas de estudar, votar e ocupar cargos relevantes na sociedade, por exemplo (Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). A realidade, entretanto, mostra que mesmo após a abolição da escravatura as pessoas negras ex-escravizadas e suas famílias continuaram sendo vítimas do racismo e suas ocupações continuaram a ser restringidas, tanto na América do Norte quanto no hemisfério sul (Johnson; Lavalley, 2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
https://doi.org/10.1080/14427591.2020.18...
).

Sabemos que na terapia e na ciência ocupacional ainda são incipientes os estudos que relacionam racismos e ocupação. Entretanto, estudo recente realizado por Sofia Martins (2021MARTINS, S. Repercussões da experiência de racismo nas ocupações maternais de mulheres negras: estratégias de enfrentamento. 2021. 357 f. Tese (Doutorado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2021., p. 286) reflete sobre o impacto do racismo nas ocupações maternas de mulheres negras brasileiras:

A nós, terapeutas ocupacionais, vale a pena problematizar o quanto algo tão invisível quanto o racismo é um dispositivo destrutivo ao se fixar nos corpos, nas ocupações das pessoas, gerando comportamentos, impossibilitando sentimentos e trazendo tantos processos de privação. O racismo é desumanizador porque penetra nas dimensões do ser, do fazer, do tornar, do pertencer e, principalmente, do sentir.

Desse modo, apesar das opressões históricas e violação de direitos aos quais a população negra é exposta constantemente, as ocupações também podem promover justiça, pois o engajamento das pessoas negras em ocupações significativas é um ato político, ético e de resistência: “A ocupação continua a ser um veículo emergente através da cultura, política, hábitos e ideias racistas. No entanto, os estudiosos da ciência ocupacional não podem negligenciar que a ocupação oferece oportunidade de se rebelar contra esta opressão” (Johnson; Lavalley, 2021JOHNSON, K. R.; LAVALLEY, R. From Racialized Think-Pieces toward Anti-Racist Praxis in our Science, Education, and Practice. Journal of Occupational Science, Abingdon, v. 28, n. 3, p. 404-409, 2021. DOI: 10.1080/14427591.2020.1847598
https://doi.org/10.1080/14427591.2020.18...
, p. 7, tradução nossa).

Considerações finais

Sabe-se que, no Brasil, os racismos são camuflados, desacreditados e mudam conforme o tempo e o espaço, dificultando a identificação do fenômeno. Apesar das lutas do Movimento Negro em prol da promoção de equidade racial e da criação de políticas públicas, os índices de desigualdades sociais e econômicas seguem inalterados ou se agravam, como no caso do encarceramento e da morbimortalidade da população negra (IBGE, 2019IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD Contínua: pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e >. Acesso em: 20 mar. 2022.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
). Desse modo, racismos continuam sendo perpetrados na sociedade e nas engrenagens da sociedade racista e capitalista, as pessoas negras continuam ocupando cargos de pouco prestígio social, assim como permanecem sob inúmeros riscos. Compreendendo os racismos como produtores de injustiças e reconhecendo os impactos que o fenômeno causa nas ocupações das pessoas negras brasileiras, Pereira (2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.) pondera que, no caso da terapia ocupacional, a tomada de consciência sobre as responsabilidades morais e éticas das/os profissionais em relação à produção de desigualdades é urgente. A autora alerta que o processo será demorado e desafiador, mas que poderá reorientar as práticas de terapeutas ocupacionais. Práticas antirracistas e contra hegemônicas são, portanto, urgentes:

A intervenção antirracista busca valorizar a diversidade étnico-racial; a identidade das pessoas negras e indígenas; valorizar, garantir e recuperar as tradições, práticas culturais e práticas religiosas; garantir a segurança, alimentar a memória e a recuperação dentro das necessidades e culturas de todos e todas; garantir moradia, educação, saúde, trabalho e uma renda digna para todas as pessoas, com a segurança de suas práticas tradicionais. (Ambrosio et al., 2021AMBROSIO, L. et al. La urgencia de una terapia ocupacional antirracista. Revista de Estudiantes de Terapia Ocupacional, Santiago, v. 8, n. 1, p. 1-17, 2021., p. 11, tradução nossa)

Farias, Leite Junior e Costa (2018FARIAS, M. N.; LEITE JUNIOR, J. D.; COSTA, I. R. B. B. Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 228-243, 2018. DOI: 10.47222/2526-3544.rbto12712
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) ressaltam a conscientização e o empoderamento como estratégias para uma prática antirracista. Paulo Freire (1979FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.) sustenta que todo ser humano é capaz de ter um olhar crítico sobre o mundo ao seu redor. Assim, a conscientização possibilita o empoderamento, para as pessoas questionarem o status quo e compreenderem que as situações desfavoráveis que vivem não são apenas reflexo de suas ações, mas produzidas por determinantes sociais que perpetuam disparidades. Cabe aos profissionais de terapia ocupacional refletirem sobre as suas práticas e priorizarem a promoção de espaços de escuta e acolhimento das demandas étnico-raciais elencadas pelas pessoas negras (Farias; Leite Junior; Costa, 2018FARIAS, M. N.; LEITE JUNIOR, J. D.; COSTA, I. R. B. B. Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 228-243, 2018. DOI: 10.47222/2526-3544.rbto12712
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; Pereira et al., 2021PEREIRA, A. et al. Sistema prisional e saúde mental: atuação da terapia ocupacional com mulheres autodeclaradas negras e pardas vítimas do racismo. Revista Eletrônica Acervo Saúde, Ouro Fino, v. 13, n. 3, p. 1-8, 2021. DOI: 10.25248/reas.e6440.2021
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). Deve-se ainda pensar se o referencial teórico e metodológico que guia essas práticas é hegemônico ou contra hegemônico (Ambrosio et al., 2021AMBROSIO, L. et al. La urgencia de una terapia ocupacional antirracista. Revista de Estudiantes de Terapia Ocupacional, Santiago, v. 8, n. 1, p. 1-17, 2021.; Martins, 2021MARTINS, S. Repercussões da experiência de racismo nas ocupações maternais de mulheres negras: estratégias de enfrentamento. 2021. 357 f. Tese (Doutorado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2021.), o que implica identificar se os processos favorecem que os sujeitos sejam conscientes, políticos e agentes de mudança ou se perpetuam/naturalizam a exclusão e alienação (Farias; Leite Junior; Costa, 2018FARIAS, M. N.; LEITE JUNIOR, J. D.; COSTA, I. R. B. B. Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 228-243, 2018. DOI: 10.47222/2526-3544.rbto12712
https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto1...
). Terapeutas Ocupacionais devem reconhecer as demandas específicas que a população negra enfrenta (Beagan; Etowa, 2009BEAGAN, B.; ETOWA, J. The impact of everyday racism on the occupations of african canadian women. Canadian Journal of Occupational Therapy, Thousand Oaks, v. 76, n. 4, p. 285-293, 2009. DOI: 10.1177/000841740907600407
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), cabendo aos profissionais descolonizar o ser e o fazer dos sujeitos e coletivos. Isso implica desenvolver práticas com os povos e comunidades tradicionais, que considerem seus modos de vida, crenças, espiritualidade, cultura e suas relações com os elementos da natureza (Emery-Whittington, 2021EMERY-WHITTINGTON, I. G. Occupational Justice: Colonial Business as Usual? Indigenous Observations From Aotearoa New Zealand. Canadian Journal of Occupational Therapy, Thousand Oaks, v. 88, n. 2, p. 154-162, 2021. DOI: 00084174211005891; Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). Além disso, cabe aos profissionais refletir sobre suas condutas fora dos serviços nos quais atuam, bem como compreender seu papel de cidadãos políticos (Pereira, 2022PEREIRA, A. Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. 2022. 237 f. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). Reiteramos que essa não é uma luta isolada, apenas das pessoas não-brancas, pois, para uma transformação radical da sociedade, é necessário que todos os cidadãos, brancos e não-brancos, se comprometam com a justiça social (Bento, 2002BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. 169 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. DOI: 10.11606/T.47.2019.tde-18062019-181514
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) e ocupacional, assim como com a produção de equidade (Sterman; Njelesani, 2021STERMAN, J.; NJELESANI, J. Becoming anti-racist occupational therapy practitioners: a scoping study. OTJR: Occupation, Participation and Health, Thousand Oaks, v. 41, n. 4, p. 232-242, 2021. DOI: 10.1177/15394492211019931
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). Os profissionais devem examinar criticamente, problematizar os currículos pedagógicos e fomentar um diálogo crítico com as alunas, para que estudantes questionem, desafiem e mudem o status quo (Sterman; Njelesani, 2021STERMAN, J.; NJELESANI, J. Becoming anti-racist occupational therapy practitioners: a scoping study. OTJR: Occupation, Participation and Health, Thousand Oaks, v. 41, n. 4, p. 232-242, 2021. DOI: 10.1177/15394492211019931
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). Dessa forma, na análise das injustiças ocupacionais, o diálogo crítico e os conhecimentos contra-hegemônicos devem ser priorizados (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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).

Neste artigo, sustentamos que terapeutas ocupacionais precisam criar múltiplas estratégias de enfrentamento contra os racismos. Reiteramos que as abordagens para tal não podem ser padronizadas, pois precisam considerar os condicionantes culturais, sociais, políticos e econômicos, respeitando a subjetividade dos sujeitos e coletivos (Sterman; Njelesani, 2021STERMAN, J.; NJELESANI, J. Becoming anti-racist occupational therapy practitioners: a scoping study. OTJR: Occupation, Participation and Health, Thousand Oaks, v. 41, n. 4, p. 232-242, 2021. DOI: 10.1177/15394492211019931
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).

Cabe reconhecer que não pudemos abordar as condições nas quais vários marcadores incidem simultaneamente sobre uma população, como no caso de pessoas negras que possuem alguma deficiência, ou que divergem da orientação sexual sancionada por seus grupos. Nesses casos, o impacto dos racismos pode ser ainda mais deletério, pois cada marcador opera de forma exponencial quando combinado aos elementos já vivenciados pelas populações.

Não obstante, há que se construir uma identidade profissional a partir dos marcos epistemológicos propostos pela terapia ocupacional crítica latino-americana, que defende a coletividade e o diálogo crítico, bem como fundamenta-se a partir de uma lógica anticolonial, ética, antihéterocispatriarcal e anticapitalista (Guajardo Córdoba, 2020GUAJARDO CÓRDOBA, A. Sobre as novas formas de colonização em terapia ocupacional: reflexões sobre a ideia de Justiça Ocupacional na perspectiva de uma filosofia política crítica. Caderno Brasileiro de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 4, p. 1365-1381, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2175
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).

Além disso, no Brasil, terapeutas ocupacionais precisam conhecer a trajetória histórico-social que engendrou as formas pelas quais os racismos foram instituídos no Brasil, para que isso lhes possibilite compreender o legado dos racismos que seguem operando as exclusões de parcelas expressivas da população mesmo atualmente, a fim de favorecer práticas que beneficiem a consciência e a identidade das populações racializadas.

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  • 1
    O trabalho foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. Lilian Magalhães recebeu suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de bolsa de produtividade n. 303037/2018-0.
  • 2
    A sigla significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Queer e outras identidades de gênero que não se encaixam ao padrão cis-heteronormativo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2022
  • Revisado
    08 Dez 2022
  • Aceito
    24 Jan 2023
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