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A violência baseada em gênero na perspectiva das crianças: uma investigação temática

Gender-based violence from the perspective of children: a thematic investigation

Resumo

A violência baseada na infância pode ser discutida diante da desigualdade de gênero, identificada na demarcação social de brinquedos, brincadeiras e criatividade. Dessa forma, dialogar com as crianças acerca desse assunto estimula a consciência crítica e o protagonismo, proporcionando a ressignificação de padrões, comportamentos e estereótipos discriminatórios pautados pelo gênero. O objetivo deste artigo foi compreender as percepções de crianças entre 8 e 11 anos, de uma Organização Não Governamental (ONG), sobre a violência baseada em gênero (VBG) durante a infância. Realizou-se uma investigação temática, com 32 crianças, fundamentada na teoria dialógica de Paulo Freire. Para as crianças, a VBG é uma manifestação da violência caracterizada pelo desrespeito e pela multicausalidade. Identificaram, ainda, algumas estratégias e atores para o enfrentamento do problema. Ações como essas potencializam a postura crítica por meio da educação popular em saúde numa perspectiva participativa e dialógica.

Palavras-chave:
Violência de gênero; Crianças; Educação; Enfrentamento

Abstract

Gender-based violence in childhood can be discussed in the face of gender inequality, identified in the social demarcation in toys, games, and creativity. Therefore, dialoguing with children on this subject stimulates critical awareness and protagonism, providing the resignification of discriminatory patterns, behaviors, and stereotypes based on gender. The objective of this article was to understand the perceptions of children between 8 and 11 years of age, of a Non-Governmental Organization (NGO) about gender-based violence (GBV) during childhood. A thematic investigation was carried out with 32 children, anchored in Paulo Freire’s dialogical theory. For children, GBV is a manifestation of violence characterized by disrespect and multicausality. They also identified some strategies and actors for coping with the problem. Actions such as these enhance the critical posture by the articulation of popular health education in a participative and dialogical perspective.

Keywords:
Gender-based violence; Children; Education; Coping

Introdução

A violência baseada em gênero (VBG) é definida por ações que provoquem - ou têm grande potencial para provocar - prejuízos de ordem física, psicológica ou sexual contra uma pessoa, como reflexo de desigualdades de poder em relação ao gênero. Essa situação está intimamente associada à intolerância aos desvios das normas convencionadas pela sociedade heterossexista (Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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).

Considerando essas questões, são exemplos de VBG: desigualdade e assimetria entre os gêneros marcados por uma relação de poder; imposição de comportamentos femininos/masculinos, desde o âmbito familiar até a escola; discriminação e violência provocada devido à transgressão dos padrões e estereótipos de gênero (Barufaldi et al., 2017BARUFALDI, L. A. et al. Violência de gênero: comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2929-2938, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017229.12712017
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; Martins, 2019MARTINS, J. R. V. A quebrada é quente: Gênero e infância na periferia de São Paulo. Periferia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 245-270, 2019. DOI: 10.12957/periferia.2019.41019
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; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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).

Na infância, a VBG é discutida, sobretudo, diante da desigualdade de gênero caracterizada pelas restrições de liberdade de escolha, criatividade e imaginação em brincadeiras e brinquedos padronizados conforme o sexo; assim como na demarcação de gênero e discriminação sofrida por quem transgride a heteronormatividade numa sociedade machista (Macedo, 2017MACEDO, A. C. Ser e tornar-se: meninas e meninos nas socializações de gêneros da infância. 2017. Dissertação (Mestrado em). - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.; Rossi, 2019ROSSI, E. The Social Construction of Gender in Adult-Children Interactions and Narratives at Preschool, Primary and Middle school. Italian Journal of Sociology of Education, Padova, v. 11, n. 2, p. 58-82, 2019. DOI: 10.14658/pupj-ijse-2019-2-4
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; Sampaio, 2019SAMPAIO, M. G. Monstrix: uma alternativa para dialogar sobre igualdade de gênero com crianças na educação infantil. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Design de Produto) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Uma pesquisa de Gobbi (1999GOBBI, M. Lápis vermelho é de mulherzinha: Desenho infantil, relações de gênero e crianças pequenas. Pro-Posições, Campinas, v. 10, n. 1, p. 139-156, 1999.) buscou identificar as relações de gênero com ajuda de desenhos infantis. A autora observou que, apesar de existir percepções de desigualdade entre os sexos, os resultados indicam uma transformação nas relações familiares e nas formas de educar meninos e meninas, apontando para mudanças nas interações perante as questões de gênero. Apesar do ano de publicação e do número reduzido de participantes, os achados desta pesquisa anunciam o prelúdio de uma mudança de comportamento na educação infantil voltada às relações de gênero, sugerindo um avanço no diálogo acerca desse assunto, visando à construção de uma sociedade mais justa e equânime.

Diante da complexidade desse fenômeno, o debate sobre o enfrentamento da VBG deve iniciar já nos anos iniciais para que as crianças comecem a identificar, refletir e questionar essas situações quando presenciarem ou forem vítimas em seu cotidiano (Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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; Texeira, 2015TEIXEIRA, A. M. P. Igualdade de gênero e prevenção da violência: uma problemática educacional no desenvolvimento local. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação) - Universidade do Porto, Porto, 2015.). Uma das possibilidades para o desenvolvimento dessas ações são as abordagens de educação em saúde pautadas por princípios de construção da autonomia, reflexão e incentivo ao protagonismo e curiosidade crítica (Brasil, 2013)BRASIL. Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2761_19_11_2013.html . Acesso em: 10 maio 2023.
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.

Esses princípios convergem com os pressupostos teóricos e metodológicos da teoria dialógica de Paulo Freire. O diálogo, para o pedagogo, é caracterizado como práxis - ação e reflexão - sendo prerrogativa para uma prática problematizadora, horizontalizada e conscientizadora entre educandos e educadores (Freire, 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., 2011FREIRE, P. Educação Como Prática da Liberdade. 34. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.). Essa prática dialógica parte da vida, história e realidade dos educandos, que se tornam protagonistas das ações. A proposta freireana estimula o encorajamento das crianças para pensarem por si mesmas, compreendendo que o ato de decidir requer reflexão, ponderamento e prática, uma vez que “as crianças precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir, o que se faz decidindo” (2000, p. 58-59).

Além disso, ao desenvolver pesquisas com crianças, é preciso diferenciar a educação do adestramento pelo adulto, conforme nos lembra Mauss (2010MAUSS, M. Três observações sobre a sociologia da infância. Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 3, p. 237-244, 2010. DOI: 10.1590/S0103-73072010000300014
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). Nessa direção, outros estudiosos da infância defendem que o(a) pesquisador(a) deve estar atento à singularidade das crianças, sua cultura, pensamento e comportamento por meio do olhar da própria infância e não com um viés do adulto (Fernandes, 2004; Pires, 2007PIRES, F. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, n. 1, p. 225-270, 2007. DOI: 10.1590/S0034-77012007000100006
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). Logo, é preciso, de certa forma, ser criança para aproximar-se dela e compreender toda sua complexidade.

Pesquisas debatem os resultados positivos de práticas educativas baseadas na criticidade, problematização das desigualdades de gênero e reflexão sobre a desconstrução de padrões e estereótipos discriminatórios de gênero. Tais ações têm grande potencial para empoderar seus participantes e ressignificar essas relações desde a infância (Felipe; Moraes, 2019FELIPE, J.; MORAES, J. T. Como problematizar as violências de gênero na educação infantil? Uma proposta em discussão. Revista Prâksis, Nova Hamburgo, v. 3, p. 137-154, 2019. DOI: 10.25112/rpr.v3i0.1917
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; Rossi, 2019ROSSI, E. The Social Construction of Gender in Adult-Children Interactions and Narratives at Preschool, Primary and Middle school. Italian Journal of Sociology of Education, Padova, v. 11, n. 2, p. 58-82, 2019. DOI: 10.14658/pupj-ijse-2019-2-4
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; Sampaio, 2019SAMPAIO, M. G. Monstrix: uma alternativa para dialogar sobre igualdade de gênero com crianças na educação infantil. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Design de Produto) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

No entanto, conforme apontado por Heikkilä (2020HEIKKILÄ, M. Gender equality work in preschools and early childhood education settings in the Nordic countries - an empirically based illustration. Palgrave Communications, London, v. 6, n. 1, p. 1-8, 2020. DOI: 10.1057/s41599-020-0459-7
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), a construção da igualdade de gênero exige diretrizes que auxiliem na sistematização dessas práticas, o que implica na ampliação de pesquisas na área com o público infantil. Entre essas pesquisas, é imprescindível se aproximar da vivência dos fenômenos cotidianos dessas crianças. Sendo assim, o objetivo deste artigo é compreender essas percepções acerca da VBG na infância de crianças entre 8 e 11 anos de uma Organização Não Governamental (ONG).

Procedimentos Metodológicos

Este artigo integra uma pesquisa-ação que aborda as contribuições do diálogo, na perspectiva de Paulo Freire, para a construção de ações educativas visando ao enfrentamento da VBG com crianças numa ONG. A pesquisa aconteceu em dois momentos: investigação temática (atenção deste texto) e círculos de cultura.

A investigação temática (IT) foi proposta por Paulo Freire para a definição do conteúdo do diálogo a ser construído com os sujeitos nas ações educativas. Sua finalidade é proporcionar tanto aos pesquisadores quanto aos participantes a compreensão da realidade vivenciada por estes para que seja possível a identificação dos temas geradores que nortearão as práticas dialógicas nos círculos de cultura (Freire, 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., 2011FREIRE, P. Educação Como Prática da Liberdade. 34. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.).

Freire (2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.) propôs uma sistematização da IT, mas, não defendia o engessamento do processo e, sim, uma dinâmica de recriações desde que fosse assegurada sua finalidade. Nessa pesquisa, a IT foi operacionalizada em três etapas: leitura da realidade, codificação e círculos de IT, detalhadas a seguir (Figura 1).

Figura 1
Etapas da investigação temática

A pesquisa aconteceu numa ONG localizada em uma comunidade da cidade de João Pessoa (PB) que atende 70 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social entre 7 e 14 anos. Atualmente, a ONG é mantida por meio de recursos financeiros do seu fundador e presidente, mas também recebe doações de diversas origens (programa de apadrinhamento das crianças, doações, eventos etc.). Funciona de segunda a sexta em dois turnos, nos quais as crianças frequentam conforme o contraturno escolar, realizando no espaço atividades, como: aulas de música, inglês, educação ambiental, prática de cidadania e de esportes etc.

Foram convidadas todas as 32 crianças, com idade entre 8 e 11 anos de idade, que estavam regularmente matriculadas e assíduas na ONG.

Etapa 1 - Leitura da Realidade

Nessa etapa, buscou-se identificar as principais concepções, ideias e experiências dos participantes acerca da sua própria realidade (Freire, 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.). Para isso, realizamos grupos focais com as crianças no período de março a junho de 2019, em sala reservada, uma vez na semana com duração média de 50 minutos e registros em vídeo e diário de campo. Dividimos as crianças em três grupos que participaram de dois encontros cada, totalizando seis encontros.

Para mediar as discussões e potencializar o envolvimento dos participantes, utilizamos atividades lúdicas e um roteiro com questões norteadoras. No primeiro encontro, foram construídos fantoches com moldes e artigos de papelaria. Durante a construção, estimulamos a discussão acerca das concepções sobre as relações de gênero na infância, incluindo suas expressões nas vestimentas, comportamentos e brincadeiras. No segundo encontro, utilizamos os fantoches em um teatro cujas crianças puderam explicitar suas perspectivas quanto à VBG (conceito, tipos, características etc.). Nesses encontros, os fantoches eram bonecos de pano manipulados pelas pesquisadoras com nomes fictícios, mas com características similares às crianças (por exemplo, estudavam na mesma escola etc.). Os bonecos ficavam atrás de um palco de madeira colorido pequeno que simulava um teatro, com duas cortinas vermelhas.

Etapa 2 - Codificação

Os dados coletados na etapa anterior foram utilizados pela equipe1 1 A equipe foi composta pela pesquisadora principal (terapeuta ocupacional), pesquisadora auxiliar (graduanda em terapia ocupacional), orientadora (terapeuta ocupacional) e coorientador (psicólogo) da tese a qual este artigo faz parte. para elaboração das codificações problematizadas na etapa três. As codificações são definidas como representações das situações existenciais “com alguns de seus elementos constitutivos em interação” (Freire, 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., p. 54), sendo que elas sintetizam a leitura de mundo dos sujeitos, suas concepções e perspectivas por intermédio de diversas formas de comunicação (pinturas, desenhos etc.) (Freire, 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., 2015FREIRE, P. À sombra desta Mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.).

Construímos três codificações descritas no Quadro 1 e ilustradas na Figura 2.

Quadro 1
Síntese das codificações

Figura 2
Exemplo das codificações elaboradas pela equipe

Etapa 3 - Círculos de Investigação Temática

Nessa etapa, estimulamos as crianças a discutir sobre suas próprias concepções e perspectivas apresentadas nos grupos focais e representadas nas codificações. As situações de encontro envolveram a operacionalização das três codificações supracitadas e detalhadas no Quadro 1. Esse processo, nomeado por Freire (2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.) de descodificação, é compreendido tal qual uma releitura da realidade para problematizá-la sob uma nova perspectiva crítica.

Por sua vez, a participação variou, conforme ilustra a Tabela 1 a seguir. Além disso, a redução no número de crianças justifica-se pela indisponibilidade de horários e pelo desinteresse de algumas.

Tabela 1
Participação das crianças

Todos os encontros foram gravados, transcritos e, com os registros do diário de campo, submetidos à espiral de análise dos dados desenvolvida em quatro etapas: (1) organização dos dados; (2) leitura e lembretes; (3) descrição, classificação e interpretação - com o apoio do software Atlas TI, versão 8.0; e (4) representação dos dados (Creswell, 2013CRESWELL J. W. Investigação Qualitativa e Projeto de Pesquisa. Porto Alegre: Artmed, 2013.).

Este artigo seguiu a Resolução 466/2012 de pesquisas com seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer nº 3.230.196. As crianças autorizadas pelos pais por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram convidadas a participar da assinatura do termo de assentimento (TA). Além disso, para garantir o anonimato das crianças, utilizamos códigos.

Resultados e Discussão

A ONG em que desenvolvemos a pesquisa apresenta infraestrutura composta por duas salas de aula, dois banheiros (masculino e feminino), cozinha e uma sala para armazenar os alimentos, materiais de limpeza e de consumo. Na segunda sala de aula também são guardados os instrumentos musicais doados para a instituição.

Devido à sua localização de encosta, todos os acessos são por meio de declives. Além das casas e da ONG, existe escola, igrejas, associação de moradores e diversos estabelecimentos comerciais. Os serviços de coleta seletiva de lixo, tratamento de esgoto e o fornecimento de água e energia são feitos pela rede pública.

Durante as primeiras visitas ao local, recebemos a orientação de abaixar os vidros do carro ao entrar na comunidade para que pudéssemos ser identificadas como civis e não como policiais ou integrantes de comunidades rivais. Também usávamos crachás para facilitar nossa identificação. Em nossas observações e momentos informais de deslocamento até a ONG, verificamos que uma das ruas da comunidade - localizada logo na entrada - era conhecida por rua do tiro, onde os confrontos são mais comuns. Além disso, descobrimos que existem vários pontos dominados por traficantes, cujas ruelas levam seus nomes.

Com relação aos participantes da pesquisa, totalizaram 32 crianças de ambos os sexos, moradoras da comunidade em que fica a ONG. Dessas, 24 eram meninas com idade média de 9 anos e 8 meninos com idade média de 8 anos. A participação, ao longo dos encontros, foi heterogênea, de modo que as composições dos grupos variavam, ou seja, uma mesma criança participou do grupo 1 no primeiro encontro e do grupo 2 no segundo e, assim, sucessivamente. Durante a realização de todos os encontros havia a presença de uma voluntária da ONG, que abria o espaço para que pudéssemos utilizá-lo, com exceção de raros dias, nos quais ficamos sozinhas com as crianças devido à indisponibilidade da voluntária. Os resultados foram sistematizados em três categorias: (1) Violência Baseada em Gênero: conceito e manifestações; (2) Causas e natureza da VBG; e (3) Enfrentamento da VBG.

Para a apresentação dos trechos, utilizaremos os seguintes códigos, seguidos do número correspondente à ordem do grupo: CF - Confecção de Fantoches; TF - Grupo de Teatro de Fantoches; JT - Jogo de Tabuleiro; HQ - Histórias em Quadrinhos; VDI - Vídeo: o desafio da igualdade; DC - Diário de Campo.

Violência Baseada em Gênero: conceito e manifestações

As crianças aprofundaram os sentidos produzidos quanto ao conceito de VBG, conforme avançavam nas discussões desde a leitura da realidade até os círculos de IT. Nesse sentido, percebemos que a VBG, na perspectiva delas, é composta por um núcleo central de significação caracterizado pela falta de respeito de uma criança para com a outra, culminando em atitudes e comportamentos agressivos.

L.: É empurrar, tia.

M.: É briga! É briga!

S.: É xingar, apelidar

M.: É falta de respeito!

M.V.: É quando é mal-educado, desrespeita a pessoa. (TF1)

Essa compreensão da violência dialoga com as reflexões freireanas sobre o tema. O educador discute esse fenômeno nas relações de opressão (a mais citada e criticada é a educação bancária entre educando e educador), que reforçam as injustiças e desigualdades, impossibilitam o diálogo e ceifam do ser humano sua capacidade e vocação crítica, caracterizando-se como uma relação de subserviência (Freire, 1999FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999., 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

Destacamos que, ao buscar compreender como as crianças enxergam a VBG, pretendemos, neste estudo, lançar um olhar acerca da infância com a criança e não para ou sobre ela. Com efeito, foi possível nos abrirmos para seus ensinamentos e experiências, caminhando numa direção democrática e dialógica. É importante salientar, todavia, que esse olhar não se restringiu às observações e intervenções, todos os encontros foram organizados de forma a produzir um ambiente acolhedor, dinâmico e lúdico. Isso permitiu também às pesquisadoras vivenciarem a infância com as crianças, reiterando o que sugere Fernandes “para poder estudar a criança, é preciso tornar-se criança” (2004, p. 230). Para além da investigação, nós participamos das brincadeiras, em alguns momentos, vivenciamos com elas a magia de torcer, ganhar, perder e aprender.

Durante toda a pesquisa, percebemos a violência expressa em atitudes, comportamentos e linguagem para resolução de problemas e mediação de conflitos, fato que, a princípio, provocou surpresa nas pesquisadoras e dificuldade na condução dos grupos, conforme trecho do diário de campo:

As crianças estavam bem agitadas e agressivas, brigando, xingando umas às outras […] e, quando outra tentava resolver, acabava utilizando da violência também. Enfim, hoje foi bem difícil de conduzir os grupos, de conseguir concluir a proposta. (DC, 24 de abril de 2019)

Esse uso da violência para resolver conflitos reflete a naturalização e banalização desses atos em nossa realidade, dificultando o reconhecimento do fenômeno como um problema a ser resolvido (Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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). Esta banalização está presente em todas as classes sociais, faixas etárias e até em instituições e precisa ser problematizada em vários aspectos junto a diferentes grupos etários (Macedo, 2017MACEDO, A. C. Ser e tornar-se: meninas e meninos nas socializações de gêneros da infância. 2017. Dissertação (Mestrado em). - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.; Rossi, 2019ROSSI, E. The Social Construction of Gender in Adult-Children Interactions and Narratives at Preschool, Primary and Middle school. Italian Journal of Sociology of Education, Padova, v. 11, n. 2, p. 58-82, 2019. DOI: 10.14658/pupj-ijse-2019-2-4
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; Sampaio, 2019SAMPAIO, M. G. Monstrix: uma alternativa para dialogar sobre igualdade de gênero com crianças na educação infantil. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Design de Produto) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Para além da percepção da VBG como uma violência em geral, evidenciamos que as crianças anunciam especificidades desta, sobretudo, quando se referem às suas manifestações no cotidiano, relacionando-as, principalmente, às situações nas quais as pessoas não correspondem às expectativas dos padrões sociais esperados para cada sexo (Figura 3).

Figura 3
Manifestações da VBG na perspectiva das crianças

A primeira manifestação da VBG reconhecida e destacada foi a violência contra a mulher, comum e banalizada na realidade das crianças.

M.: Ele tá festejando com outra! [referindo-se ao marido]

Y.: E depois quando chega em casa não é tome tome na mulher? [Gesticula tapas no rosto]. (TF1)

Estudos apontam que as mulheres são as mais atingidas por esse tipo de violência (Barufaldi et al., 2017BARUFALDI, L. A. et al. Violência de gênero: comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2929-2938, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017229.12712017
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; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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). Meninas e mulheres sofrem com esse tipo de violência desde a infância e os prejuízos em decorrência disso podem se perpetuar até a vida adulta com impactos em vários aspectos, por exemplo, na escolarização e inserção no mercado de trabalho (Tavares; Nery, 2016)TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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. No entanto, ressaltamos que a VBG não se restringe à mulher, pois se relaciona mais aos padrões estereotipados dos papéis sociais relacionados ao gênero e pode ser perpetrada até mesmo entre gêneros iguais (Barufaldi et al., 2017BARUFALDI, L. A. et al. Violência de gênero: comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2929-2938, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017229.12712017
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; Martins, 2019MARTINS, J. R. V. A quebrada é quente: Gênero e infância na periferia de São Paulo. Periferia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 245-270, 2019. DOI: 10.12957/periferia.2019.41019
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; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
https://doi.org/10.1590/1414-49802016.00...
).

Nessa direção, destacamos a relevância de ações educativas sustentadas em concepções ampliadas sobre a VBG, compreendendo-a em sua complexidade. Esse enfrentamento deve considerar a maior vitimização das mulheres, mas é necessário usar abordagens para expandir a problematização desse fenômeno, reconhecendo suas múltiplas faces para lograr resultados mais eficazes (Macedo, 2017MACEDO, A. C. Ser e tornar-se: meninas e meninos nas socializações de gêneros da infância. 2017. Dissertação (Mestrado em). - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.; Pinheiro et al., 2018; Rossi, 2019ROSSI, E. The Social Construction of Gender in Adult-Children Interactions and Narratives at Preschool, Primary and Middle school. Italian Journal of Sociology of Education, Padova, v. 11, n. 2, p. 58-82, 2019. DOI: 10.14658/pupj-ijse-2019-2-4
https://doi.org/10.14658/pupj-ijse-2019-...
; Sampaio, 2019SAMPAIO, M. G. Monstrix: uma alternativa para dialogar sobre igualdade de gênero com crianças na educação infantil. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Design de Produto) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Considerando essas questões, os autores defendem o uso de metodologias que estimulem a criticidade, liberdade de expressão, respeito à diversidade, colaboração e práticas de incentivo ao protagonismo e empoderamento desde a infância (Botton; Strey, 2018BOTTON, A.; STREY, M. Educar para o empoderamento de meninas: apostas na infância para promover a igualdade de gênero. Inclusão Social, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 54-66, 2018. DOI: 10.22478/ufpb.1981-0695.2019v14n1.44890
https://doi.org/10.22478/ufpb.1981-0695....
; Felipe; Moraes, 2019FELIPE, J.; MORAES, J. T. Como problematizar as violências de gênero na educação infantil? Uma proposta em discussão. Revista Prâksis, Nova Hamburgo, v. 3, p. 137-154, 2019. DOI: 10.25112/rpr.v3i0.1917
https://doi.org/10.25112/rpr.v3i0.1917...
; So et al., 2016SO, K. N. S. et al. Vídeos institucionais podem contribuir ao debate para o enfrentamento da violência doméstica infantil? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, p. 2347-2356, 2016. DOI: 10.1590/1413-81232015218.04592016
https://doi.org/10.1590/1413-81232015218...
). Tais metodologias são congruentes com a proposta da educação libertadora defendida por Freire cujos sujeitos (neste caso, as crianças) virem protagonistas do processo de enfrentamento no cotidiano e, coletivamente com outros oprimidos, lutem por sua libertação (Freire, 2002)FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002..

Além disso, defendemos que, ao pesquisar com crianças, é preciso adentrar no universo infantil (Fernandes, 2002; Mauss, 2010MAUSS, M. Três observações sobre a sociologia da infância. Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 3, p. 237-244, 2010. DOI: 10.1590/S0103-73072010000300014
https://doi.org/10.1590/S0103-7307201000...
; Pires, 2007PIRES, F. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, n. 1, p. 225-270, 2007. DOI: 10.1590/S0034-77012007000100006
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200700...
). Para isso, buscamos pensar como criança para planejar propostas congruentes com o que elas gostam de fazer, de brincar, de ouvir, e, assim, compreender essa singularidade da infância.

Além da VBG se manifestar como violência contra a mulher, percebemos que ela também se torna presente nas situações em que a liberdade para brincar, vestir-se e se comportar é cerceada em decorrência de questões de gênero.

FJu.2 2 O Fantoche Júlia (FJu) era manuseado pela pesquisadora principal e representava uma menina de 8 anos que estudava na mesma escola que as crianças da ONG. : Se o menino e a menina quiserem brincar de outra coisa?

S.: M. gosta de brincar de boneca….

[Uma menina bate palmas apoiando a colega].

S. continua: M. não gosta de menino, ele é um menino que só gosta de menina. [Fala em tom de ironia]. (TF3)

Os estudos que relacionam o gênero com o brincar permitem identificar que existem diferenças construídas desde cedo entre meninos e meninas, definindo dois perfis de brincadeiras: o primeiro, no qual as meninas são mais orientadas à maternidade, atividades mais calmas, tarefas domésticas e cuidados com o corpo. O segundo, em que os meninos são levados a brincadeiras mais ativas e, muitas vezes, agressivas (Bottom; Strey, 2018; Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.). Todas essas situações refletem diferentes formas de opressão sofridas por crianças de ambos os sexos, que, muitas vezes, é silenciosa e difícil de ser reconhecida. Destacamos, excepcionalmente, aquelas sofridas em decorrência das relações de poder relacionadas ao gênero, que refletem um pensamento conservador sobre as formas de ser menino/menina em nossa sociedade (Botton; Strey, 2018BOTTON, A.; STREY, M. Educar para o empoderamento de meninas: apostas na infância para promover a igualdade de gênero. Inclusão Social, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 54-66, 2018. DOI: 10.22478/ufpb.1981-0695.2019v14n1.44890
https://doi.org/10.22478/ufpb.1981-0695....
; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
https://doi.org/10.1590/1414-49802016.00...
).

Na pesquisa de Gobbi (1999GOBBI, M. Lápis vermelho é de mulherzinha: Desenho infantil, relações de gênero e crianças pequenas. Pro-Posições, Campinas, v. 10, n. 1, p. 139-156, 1999.) com crianças de quatro anos de ambos os sexos sobre relações de gênero, identificou-se uma mudança nas interações entre homens e mulheres, na percepção dessas formas de se relacionar e na maneira como as relações de gênero são construídas com as crianças. Tais transformações sugerem uma nova forma de educar no que se refere aos padrões e estereótipos de gênero e apontam para a importância e novas possibilidades de diálogo acerca dessa temática desde a infância.

Nos círculos de IT, as divergências de opiniões sobre a questão geraram conflitos que propiciaram uma problematização acerca das diferenças entre os sexos que, começam em situações cotidianas, mas repercutem em desigualdades e injustiças nas divisões de tarefas e de remuneração, por exemplo.

I.: O menino pode jogar bola e a menina não, a menina pode brincar de boneca e o menino não, o menino pode usar aquelas bermudinha folgada e a menina não, que chama logo de “Maria machão”. Eu gosto de usar essas bermudinhas e eu já fui criticada por isso. Isso é muito feio, é falta de respeito, preconceito!

Pesquisadora: E vocês acham que essas diferenças podem gerar violência futuramente?

[Todos dizem sim]

Pesquisadora: Por quê?

E.: Porque o homem pode se sentir superior a mulher. Porque a mulher ganha menos dinheiro do salário e o homem ganha mais, quer dizer que ele é superior a ela e ele vai fazer o que quiser com ela.

M.: É tem homem que acha que pode mandar na mulher. (VDI1)

Esses trechos reforçam como as diferenças entre os sexos já são demarcadas antes do nascimento da criança, que é imersa num campo simbólico por seus pais, pela sociedade e pela cultura, enquadrando-a em um estereótipo conforme seu sexo biológico, o que muitas vezes reforça a cisheteronormatividade (Texeira, 2015)TEIXEIRA, A. M. P. Igualdade de gênero e prevenção da violência: uma problemática educacional no desenvolvimento local. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação) - Universidade do Porto, Porto, 2015..

Com efeito, defendemos que o diálogo freireano seja um caminho viável para o enfrentamento da VBG desde a infância. Adotando a pedagogia da libertação para refletirmos sobre a infância, podemos compreender as crianças enquanto seres históricos, sociais, curiosos e inacabados. Devem, portanto, ser incentivadas a participar ativamente com os adultos de todos os processos e fenômenos que lhes envolvem e encorajadas a pensar por si e não apenas seguir o que lhes é dito ou imposto pelos outros (entende-se aqui os adultos). Consoante o educador: “as crianças precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir, o que se faz decidindo” (Freire, 2000FREIRE P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000., p. 58-59).

A potencialidade do diálogo foi corroborada, nesta pesquisa, quando analisamos as relações estabelecidas entre os meninos e as meninas nos grupos focais. De partida, observamos que as meninas se mostraram mais abertas para os diferentes discursos. Ao passo que, os meninos reprimiam essa abertura e demonstravam reprovação quanto aos posicionamentos que abordavam a defesa da igualdade de gêneros.

Hoje percebi que houve mais divergência entre os grupos. Eles estavam bem agitados, mas ficou visível que as meninas estavam mais abertas ao diálogo para entender o ponto de vista do outro e refletir. Já os meninos apresentaram uma postura irredutível, questionando as falas [das meninas], interrompendo quando elas falavam algo que eles não concordavam. (DC, 15 de maio de 2019)

No entanto, posteriormente, esses comportamentos foram identificados como machismo pela maioria das meninas, que julgaram ser também uma forma de violência contra a mulher, o que se articula com as ideias apresentadas neste artigo. Para elas, esse pensamento impede a liberdade e a independência das mulheres em nossa sociedade, fazendo com que os homens se sintam, cada vez mais, dominantes sobre elas, o que pode gerar violência.

Pesquisadora: Tem diferença da violência que a menina sofre?

[As crianças respondem que é pior].

Pesquisadora: Por quê?

Y.: Porque os homens são machistas.

Pesquisadora: Como assim?

M.: Quando o homem xinga a mulher, ele acha que pode mandar nela e fazer o que quiser!

Y.: Quando o homem bate na mulher.

Pesquisadora: E isso é ruim porquê?

L.: Porque, às vezes, algumas mulheres acreditam nisso, ficam com medo e não faz nada. Aí só faz o que o homem quer.

M.: Mas a mulher pode fazer o que ela quiser! (GDH2)

Esse machismo relatado pelas crianças é um fator a ser considerado em nossa sociedade, que legitima as diferenças entre os sexos e impede a promoção das igualdades entre os gêneros como um valor democrático e de justiça social. Isso dificulta a implementação de políticas e a atuação de forma articulada das demais instâncias de governo (Pinheiro et al., 2018).

Estudos apontam uma estreita relação entre o machismo e a VBG, destacando que a imagem, o discurso e o estereótipo machistas são carregados de preconceitos e desigualdades naturalizadas em nosso cotidiano em todos os espaços que podem legitimar as situações de violência e desafiar a sua superação (Balbinotti, 2018BALBINOTTI, I. A violência contra a mulher como expressão do patriarcado e do machismo. Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 25, n. 31, p. 239-264, 2018. DOI: 10.14295/revistadaesmesc.v25i31.p239
https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc...
; Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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). Sustentamos que essa realidade não se restringe aos adultos, pois é apresentada à criança precocemente em seu cotidiano.

Embora Paulo Freire, em suas obras, não tenha construído discussões específicas sobre as mulheres, o pedagogo defendia que toda situação de opressão precisa ser enfrentada. Logo, é preciso mudar a realidade opressora que discrimina a mulher e agir na direção do combate ao machismo em nosso cotidiano (Freire, 2015)FREIRE, P. À sombra desta Mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. Conforme discutido pelas próprias crianças, meninas sofrem com esse tipo de violência desde cedo e os prejuízos podem se perpetuar até a vida adulta, impactando em vários aspectos, por exemplo, escolarização e inserção no mercado de trabalho (Tavares; Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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).

Nesse cenário, a educação libertadora convoca para a autonomia, independentemente do contexto da opressão, mas ela só acontece quando nos inquietamos e reconhecemos a necessidade de transformação, que transcende a participação no processo, exigindo um protagonismo construído a partir da educação (Freire, 2005).

Por fim, o bullying emergiu como uma manifestação da VBG. As crianças denunciaram sua frequência na escola e na comunidade, caracterizando-o como uma forma de assédio e agressão verbal, que vitimiza qualquer gênero. Entretanto, muitas situações de bullying trazem consigo os componentes de violência psicológica e se caracterizam como VBG, pois referem-se à discriminação e ao preconceito sofridos por crianças que não seguem os padrões de gênero.

Pesquisadora: O que é bullying?

Y.: Por exemplo, uma menina tem um óculos azul, aí diz “ah é maria machão, porque gosta de usar cor de homem”. Vê um menino com um negócio azul, mas um azul bem claro, aí começa a falar “ah é um viado”. (GDV1)

As narrativas revelam que o bullying se relaciona ao gênero. Para prevenir e combater a prática de bullying relacionada ao gênero na escola, e acreditamos que em todos os espaços de socialização de crianças, estudos reconhecem a necessidade de estabelecer parcerias com profissionais de outras áreas para intervir, com a família, nesses casos. Além disso, sugere-se o fortalecimento da rede de proteção, além do desenvolvimento de práticas educativas e de socialização entre os pares (Gonçalves; Cardoso; Argimon, 2019).

Nessa direção, consideramos que é fundamental ampliar a visão sobre a VBG, abrangendo os diversos protagonistas inseridos nessa realidade (família, escola etc.), além da sociedade de forma geral, sobretudo, ao estudar sobre a criança, reconhecendo que não apenas a família influencia na construção das normas e dos estereótipos de gênero, mas vários sistemas direta ou indiretamente também exercem essa função.

Principais causas da VBG

Ao refletirem quanto às causalidades da VBG, inicialmente algumas crianças evidenciaram um desconhecimento em relação ao assunto, enquanto outras elencaram desde o preconceito e falta de respeito até a influência das mídias. Por fim, algumas concluíram que essas situações geralmente acontecem, porque a vítima não se impõe diante do agressor, gerando um ciclo de opressão.

FJu: Por que isso acontece?

M.: É porque as criança vê na TV e quer fazer igual. Criança não pode ver filme de violência!

M: Porque a gente dá liberdade! (GT2)

Esse pensamento reforça a existência de uma cultura que culpabiliza a vítima pelas agressões sofridas e intolerância, gerando, assim, mais violência. Esses achados contribuem para uma maior compreensão das causas e dos impactos provocados por essas desigualdades - para além das questões individuais e sociais.

A culpabilização do oprimido pela opressão sofrida é uma característica marcante da dominação presente em situações opressoras para manter o status quo social. A realidade opressora, de acordo com Freire (2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., p. 20), funciona como um mecanismo de “imersão das consciências” por meio da qual “esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela”. Manter esse estado de alienação favorece a ação opressora sobre os oprimidos, pois sem a consciência da realidade em que se encontra, o oprimido não consegue - ainda - perceber sua força e capacidade para lutar pela sua libertação. Ademais, esse pensamento desresponsabiliza o Estado e os próprios sujeitos (enquanto sociedade) e os desobrigam da intervenção contra a violência, alimentando o ciclo perigoso de violência.

Nos círculos de IT, ao problematizarmos esse assunto, percebemos que as crianças ainda reforçavam a culpabilização das vítimas pela violência sofrida devido a um comportamento ou uso de vestimentas inadequados. Por outro lado, identificaram, em alguns homens, atitudes e pensamentos machistas que podem desencadear tal violência. Em suas narrativas sobre esse aspecto, evidenciamos uma visão generalista e estereotipada em torno da figura masculina que reforça o próprio machismo, alimentando o ciclo.

Pesquisadora: Por que isso acontece? [mostra uma imagem que insinua violência sexual]

G.: Porque os homens têm maldade!

J: Porque eu acho que ela tá com short curto.

J: Porque os homens são safado! São mau! São muito machista também! (GDT1)

Esses dados são problematizados por Carvalho et al. (2016)CARVALHO et al. Violência Contra a Mulher na Mídia: Combate ou Reforço? In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE, 18., 2016. São Paulo. Congresso […] São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2016., que reconhecem a gênese multicausal da VBG diante da sua complexidade, mas apontam a intolerância aos desvios das normas e padrões de gênero convencionados na sociedade, além da desigualdade de gênero como as principais causas desse fenômeno. Por isso, autores defendem a necessidade e urgência de debater essas questões precocemente, proporcionando às crianças uma discussão crítica para que sejam capazes de reconhecer e problematizar situações de desigualdade ou VBG (SCHARDOSIM, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; TAVARES; NERY, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
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; TEXEIRA, 2015TEIXEIRA, A. M. P. Igualdade de gênero e prevenção da violência: uma problemática educacional no desenvolvimento local. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação) - Universidade do Porto, Porto, 2015.).

Nessa pesquisa, nos chamou atenção a menção das mídias enquanto uma das causas da VBG. Di Piero (2019)DI PIERO, M. F. O. Violência baseada em gênero na escola: análise a partir de textos jornalísticos. 2019. 209 p. Tese (Doutorado em Educação Escolar) - Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2019., ao problematizar esse assunto, identifica uma invisibilidade e naturalidade da VBG, trazendo concepções que - muitas vezes - até culpabilizam a vítima e legitimam padrões e estereótipos de gênero discriminatórios, favorecendo a manutenção do status quo. Essas afirmativas ratificam a necessidade de dialogar para a desconstrução de padrões e estereótipos machistas que segregam e alimentam a VBG na sociedade (Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; Felipe; Moraes, 2019FELIPE, J.; MORAES, J. T. Como problematizar as violências de gênero na educação infantil? Uma proposta em discussão. Revista Prâksis, Nova Hamburgo, v. 3, p. 137-154, 2019. DOI: 10.25112/rpr.v3i0.1917
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).

Nessa direção, reconhecemos que os espaços de educação formal e não formal têm competência para manter ou transformar o pensamento hegemônico sobre os papéis sociais das crianças. É nesses espaços e contextos que reside o maior desafio: questionar os estereótipos de gênero, os polos opostos menino/menina, opressão/submissão, desconstruindo e problematizando padrões normativos. A desconstrução dessa polaridade pode ajudar na problematização da desigualdade e diversidade entre os gêneros e na melhor compreensão da VBG.

Enfrentamento da VBG

Durante a IT, as crianças refletiram sobre como a VBG na infância poderia ser enfrentada. Logo, considerando os diferentes atores envolvidos, delinearam algumas estratégias (Figura 4).

Figura 4
Síntese das possibilidades de enfrentamento da VBG

Para as crianças, os principais atores no enfrentamento da VBG são os adultos com os quais elas têm relações mais próximas, como os pais e professores, além de reconhecerem a importância da rede de proteção.

Para elas, os pais e professores podem mediar os conflitos usando estratégias desde intervenções autoritárias até o diálogo. Já as autoridades devem ser acionadas em situações mais complexas e perigosas.

Pesquisadora: A criança pode ajudar a enfrentar a VBG?

J.: Sozinha não.

M.: É muito difícil tia! Tem que ter um adulto.

Pesquisadora: E o que eles podem fazer?

M.: Pode chamar pra conversar, né?

Pesquisadora: Vocês citaram o Disque 100 ou 190, por quê?

J.: Ah é pra chamar a polícia pra resolver quando é mais sério.

M.V.: Ou então quando o adulto não consegue resolver (GT3)

No discurso das crianças percebemos que elas legitimam a família, escola e rede de apoio como os principais protagonistas no enfrentamento da VBG. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) delega ao Estado, família e comunidade a responsabilidade da efetivação de direitos, dentre eles o de viver livre de qualquer tipo de violência. Além disso, a rede de proteção é fundamental no combate à violência e o seu fortalecimento deve considerar a articulação com diferentes áreas, priorizando ações que visam à proteção das crianças contra as discriminações e violências de gênero (Souza; Medeiros; Martins, 2019)SOUSA, J. C.; MEDEIROS, M. L.; MARTINS, C. H. Atuação da mídia e de políticas afirmativas do estado no enfrentamento à violência doméstica. Brazilian Journal of Development, São José dos Pinhais, v. 5, n. 8, p. 13064-13078, 2019. DOI: 10.34117/bjdv5n8-122
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.

A literatura da área problematiza esses achados salientando a importância de envolver ações complementares, com diferentes públicos e espaços para enfrentar a VBG (Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.). Nesta pesquisa, a mídia pode ser significada tanto como contribuinte para uma legitimação da VBG quanto como potencial ferramenta para o seu enfrentamento, a depender do conteúdo exposto. Nesse sentido, autores identificaram que a visibilidade e divulgação do enfrentamento da VBG nas mídias têm aumentado, fato que pode contribuir para a ressignificação de padrões de desigualdade de gênero socialmente estabelecidos e ruptura dos ciclos de violência (Botton; Strey, 2018BOTTON, A.; STREY, M. Educar para o empoderamento de meninas: apostas na infância para promover a igualdade de gênero. Inclusão Social, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 54-66, 2018. DOI: 10.22478/ufpb.1981-0695.2019v14n1.44890
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; Rosemberg, 1996ROSEMBERG, F. Teorias de gênero e subordinação de idade: um ensaio. Pro-posições, Campinas, v. 7, n. 3, p. 17-23, 1996.).

As crianças também problematizaram o seu papel no enfrentamento da VBG. Partindo de uma perspectiva crítica é importante destacar que algumas tiveram dificuldade de se verem enquanto possíveis protagonistas desse processo, atribuindo a tarefa do enfrentamento aos adultos e instituições, conforme apontado anteriormente.

Pesquisadora: O que podemos fazer para enfrentar a VBG?

M: Tem que contar pra algum adulto.

Pesquisadora: Só pra um adulto?

S.: Vai contar pra outra criança? [Ironiza]

Elas não vão saber o que fazer! (GT2)

FJu: Aqui a gente vai falar de todas essas violências!

I.: Oh tia menos essa né? [Se referindo à violência sexual]

FJu: Por quê?

A.: Porque essa aí é feia, é nojenta.

M.: Porque tem coisas que crianças não podem saber, tipo essa! (GT3)

As discussões trazidas pelas crianças refletem a presença hegemônica da visão adultocêntrica em nossa sociedade. Essa visão, criticada por Rosemberg (1996ROSEMBERG, F. Teorias de gênero e subordinação de idade: um ensaio. Pro-posições, Campinas, v. 7, n. 3, p. 17-23, 1996.), reforça uma sociedade centrada no adulto, em que existe uma discrepância nas relações de poder, enxergando a criança como um sujeito ainda em construção. Essa perspectiva se configura como um fator que limita o potencial da criança de se ver como protagonista nessa e em outras discussões complexas que são pré-determinadas socialmente aos adultos (Macedo, 2017MACEDO, A. C. Ser e tornar-se: meninas e meninos nas socializações de gêneros da infância. 2017. Dissertação (Mestrado em). - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.).

É importante pontuar que o protagonismo não significa deixar a criança resolver sozinha e desresponsabilizar adultos, Estado, família e sociedade de seu dever em protegê-la, mas sim proporcionar espaços e incentivar seu posicionamento de forma ativa nas questões que fazem parte da sua vida (Botton; Strey, 2018BOTTON, A.; STREY, M. Educar para o empoderamento de meninas: apostas na infância para promover a igualdade de gênero. Inclusão Social, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 54-66, 2018. DOI: 10.22478/ufpb.1981-0695.2019v14n1.44890
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; Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; Tavares, Nery, 2016TAVARES, A. C. C.; NERY, I. S. As repercussões da violência de gênero nas trajetórias educacionais de mulheres. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 241-250, 2016. DOI: 10.1590/1414-49802016.00200009
https://doi.org/10.1590/1414-49802016.00...
). Ademais, a busca por soluções para a VBG deve envolver ações complementares como a articulação de redes de apoio e cuidado bem estruturadas, discussão em espaços formais e não formais de educação, além de uma prática interdisciplinar (Schardosim, 2016SCHARDOSIM, C. R. Relações de gênero na educação infantil: como brincam as crianças? 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; Texeira, 2015TEIXEIRA, A. M. P. Igualdade de gênero e prevenção da violência: uma problemática educacional no desenvolvimento local. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação) - Universidade do Porto, Porto, 2015.).

No entanto, algumas crianças, embora tímidas, expressaram possibilidades para o enfrentamento que dizem respeito à construção de relações mais respeitosas entre si.

FJo3 3 O fantoche João (FJo) era manuseado pela pesquisadora auxiliar sob a supervisão da pesquisadora principal e representava um menino de 10 anos que morava e estudava na comunidade das crianças. : Como podemos enfrentar a VBG?

J.: Trabalhando em equipe e um respeitando o outro!

E.: Não fazendo bullying e respeitando o outro!

M.: Tem que conversar! (GT3)

Essa percepção acerca da violência é abordada, analogamente, nas obras freireanas que também apontam inéditos viáveis para o seu enfrentamento a partir da vivência de novas situações baseadas no respeito, democracia e tolerância (Freire, 2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

Importante destacar que as crianças identificaram a organização e o trabalho em equipe como possibilidades para enfrentar a VBG, reforçando a ideia de complexidade e necessidade de diferentes protagonistas para combatê-la. Além disso, a noção de trabalho em equipe trazida reflete a concepção de cooperação citada por Freire (2002FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.), que se constrói nas ações dialógicas.

Por fim, as crianças trouxeram sugestões que ampliam o escopo das estratégias de enfrentamento para a participação da mídia, o que é congruente com as causas da VBG apontadas por elas, consoante o trecho seguinte:

Pesquisadora: O que poderíamos fazer para enfrentar a violência aqui na comunidade?

M.: A gente podia publicar informações sobre a violência nas redes sociais do instituto.

Pesquisadora: Quais informações?

M.V.: Eu acho que a gente podia fazer um vídeo sobre o enfrentamento da violência.

Pesquisadora: Pra que serviria esse vídeo?

M. V.: Pra publicar nas redes sociais, né? (GDV1)

Esses achados são discutidos pela literatura que reconhece o uso da internet para explorar as possibilidades e a visão de mundo pluralizada e democratizada, visto que, as redes sociais, permitem acesso às perspectivas de uma gama de indivíduos (Souza, 2017SOUZA, R. L. Debatendo gênero em escolas de ensino médio: uma abordagem através da educomunicação. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2017.). Essa visão de mundo se transforma em um novo espaço de colaboração, interação e participação ativa de quem produz e recebe conteúdo, mediada pelos meios de comunicação.

Para isso é preciso que as crianças sejam reconhecidas como “sujeitos constituintes da sociedade e situá-las na dinâmica de relações sociais, contextualizando-as histórica e socialmente e considerando que sofrem e vivenciam todas as transformações e mudanças da sociedade” (So et al., 2016SO, K. N. S. et al. Vídeos institucionais podem contribuir ao debate para o enfrentamento da violência doméstica infantil? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, p. 2347-2356, 2016. DOI: 10.1590/1413-81232015218.04592016
https://doi.org/10.1590/1413-81232015218...
, p. 2.349). Logo, por também integrar o tecido social, a criança tem o direito de participar ativamente de toda discussão e/ou proposta que pretenda uma intervenção. Com efeito, são sujeitos que devem ser ouvidos e envolvidos nos processos coletivos de forma democrática, respeitando sua linguagem e forma de compreender o mundo.

Além disso, enfatizamos a importância de entender a dinâmica das relações que produzem a VBG para pensar em estratégias que reflitam sobre a perspectiva do agressor também. Portanto, destacamos a relevância de ações educativas sustentadas em concepções ampliadas quanto à VBG, compreendendo-a em sua complexidade. Esse enfrentamento deve considerar a maior vitimização das meninas e mulheres, mas é necessário refletir sobre o perfil de outras vítimas e até mesmo sobre o agressor, por meio de ações abrangentes que reconhecem as múltiplas faces desse fenômeno para alcançar resultados mais eficientes em longo prazo (Macedo, 2017MACEDO, A. C. Ser e tornar-se: meninas e meninos nas socializações de gêneros da infância. 2017. Dissertação (Mestrado em). - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.; Pinheiro et al., 2018; Rossi, 2019ROSSI, E. The Social Construction of Gender in Adult-Children Interactions and Narratives at Preschool, Primary and Middle school. Italian Journal of Sociology of Education, Padova, v. 11, n. 2, p. 58-82, 2019. DOI: 10.14658/pupj-ijse-2019-2-4
https://doi.org/10.14658/pupj-ijse-2019-...
; Sampaio, 2019SAMPAIO, M. G. Monstrix: uma alternativa para dialogar sobre igualdade de gênero com crianças na educação infantil. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Design de Produto) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Ainda que a diferença de gênero seja produzida e naturalizada pela sociedade, a educação, sobretudo de orientação libertadora, apresenta ferramentas para que seja possível superar essa disparidade. Mas, como? É preciso - e possível - começar na infância, ouvindo as crianças, legitimando seu espaço em pesquisas e no cotidiano.

Aliado a esses fatores, destacamos a discussão sobre a importância das políticas públicas, defendendo a necessidade de uma prática mais eficaz no que diz respeito à perspectiva de gênero, seguindo, portanto, os princípios da equidade para transformar as relações marcadas pela desigualdade e minimizar práticas discriminatórias movidas por essa questão (Nunes; Carvalho; De Resende, 2020NUNES, T. A.; CARVALHO, V. C. M.; RESENDE, G. S. L.; ASSUNÇÃO, T. Violência contra mulher: uma discussão sobre direito e humanos. In: CATAPAN, B. L. S. B. (Org.). As ciências jurídicas e seus impactos na sociedade. Curitiba: Reflexão Acadêmica, 2021. v. 1, p. 98-110.; Sousa; Fialho, 2020SOUZA, H. H.; FIALHO, L. M. F. A Importância das Políticas Públicas Educacionais para as Questões de Gênero e Sexualidade na Escola. Inovação & Tecnologia Social, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 19-32, 2020. DOI: 10.47455/2675-0090.2019.1.3.3863
https://doi.org/10.47455/2675-0090.2019....
).

Considerações Finais

Os principais resultados deste estudo evidenciaram que: (1) as crianças percebem a violência enquanto um ato de desrespeito ao próximo, manifestando-se em forma de VBG, bullying e privação da liberdade, opiniões e desejos do sujeito. Compreende-se que essas formas de violência estão naturalizadas na realidade em que vivem e foram expressas em sua concretude e materialização no cotidiano dessas crianças; (2) as principais causas da VBG identificadas pelas crianças incluem desde a culpabilização das vítimas até uma discussão mais crítica sobre o machismo na gênese deste fenômeno; e (3) para o enfrentamento desse problema complexo e multicausal, as crianças identificaram no adulto com um relação de confiança ou de uma rede de proteção, denúncia aos órgãos competentes, divulgação de ações preventivas em redes sociais e o trabalho em equipe de forma organizada e dialógica como estratégias de enfrentamento.

Especificamente em relação à investigação temática, foco deste texto, evidenciamos que ela é a vivência do diálogo em si e já foi possível perceber mudanças nas percepções e atitudes das crianças ao longo do processo.

Esses achados evidenciam a potencialidade da articulação da saúde a partir da educação popular, desenvolvendo ações educativas com crianças numa perspectiva crítica, participativa e dialógica. Para a construção dessas, o referencial freireano se mostra como um alicerce teórico-metodológico sólido e capaz de direcionar práticas condizentes com a realidade dos sujeitos e que possibilitem às crianças a oportunidade para construir-se enquanto protagonistas, transformando a si, e suas formas de perceberem a realidade para então transformá-la nas relações com outras pessoas no e com o mundo.

Evidenciamos algumas limitações deste artigo, tais como a evasão de crianças, além de algumas dificuldades de engajamento delas em todas as etapas e em gerenciar a dinâmica de vários grupos ao mesmo tempo.

Por fim, reforçamos que é imperativo somar estratégias de curto, médio e longo prazos para compreender as diversas realidades e suas especificidades, convidando todos os envolvidos (crianças, familiares, professores, comunidade em geral) a participarem do processo ativamente, além de trabalhar numa articulação intersetorial.

Diante das considerações, este trabalho ressignificou o lugar da criança nesse debate ao proporcionar um espaço de diálogo e liberdade de expressão, reconhecendo-a como protagonista de sua própria história de vida e ratificando seu potencial para o enfrentamento da VBG por meio da compreensão que tem de sua própria realidade.

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  • 1
    A equipe foi composta pela pesquisadora principal (terapeuta ocupacional), pesquisadora auxiliar (graduanda em terapia ocupacional), orientadora (terapeuta ocupacional) e coorientador (psicólogo) da tese a qual este artigo faz parte.
  • 2
    O Fantoche Júlia (FJu) era manuseado pela pesquisadora principal e representava uma menina de 8 anos que estudava na mesma escola que as crianças da ONG.
  • 3
    O fantoche João (FJo) era manuseado pela pesquisadora auxiliar sob a supervisão da pesquisadora principal e representava um menino de 10 anos que morava e estudava na comunidade das crianças.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2022
  • Revisado
    04 Jan 2023
  • Aceito
    18 Abr 2023
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