Acessibilidade / Reportar erro

Regionalização da saúde no Rio Grande do Sul: olhar dos gestores estaduais

Health regionalization in Rio Grande do Sul, Brazil: view of state managers

Resumo

Este artigo teve como objetivo analisar, através da perspectiva dos gestores estaduais, como ocorreu a implementação do processo da regionalização da saúde no Rio Grande do Sul, a partir dos anos 2000. Trata-se de um estudo qualitativo descritivo, desenvolvido na Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul. As informações foram obtidas através de dez entrevistas semiestruturadas. Para a interpretação dos dados levantados, utilizou-se análise de conteúdo, modalidade temática. Como resultados, destacaram-se a melhoria na qualidade da atenção à saúde, o progresso na organização do sistema de saúde do estado, a mudança na função da gestão estadual, o desenvolvimento da tecnologia e o reconhecimento das instâncias de pactuação para a tomada de decisão. Identificou-se que a governança regional foi dificultada pela fragmentação do sistema e a histórica insuficiência de planejamento. Concluiu-se que se faz necessário implementar uma cultura de gestão estratégica, amparada pela alocação adequada de recursos e qualificação da governança nas regiões de saúde.

Palavras-chave:
Regionalização da saúde; Planejamento em saúde; Gestão em saúde; Políticas, Planejamento e administração em saúde

Abstract

This article aims to analyze, from the perspective of state administrators, the implementation of the health regionalization process in Rio Grande do Sul, beginning in the 2000s. This is a qualitative-descriptive study, conducted in the State Health Department. We obtained information from ten semi-structured interviews with state administrators from the central level. We interpreted the data using content analysis, thematic method. As results, we highlight the improvement in healthcare quality, the progress in the organization of the state’s health system, the change in the role of the state administration, the development of the technology and the acknowledgment of pact-making spaces for decision-making. We note that the system’s fragmentation and the historical planning insufficiency hamper regional governance. In conclusion, implementing a culture of strategic management is necessary, with the backing of adequate resource allocation and enhancement of governance in the health regions.

Keywords:
Regional health planning; Health planning; Health management; Health policy, planning and management

Introdução

A regionalização da saúde está inserida no contexto de descentralização política e administrativa das ações e serviços. Esse processo decorre das políticas de redemocratização implementadas no Brasil desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Brasil, 1988)BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1988.. A partir da CF88, a estrutura normativa do Sistema Único de Saúde (SUS) guiou-se no sentido da superação do centralismo do governo federal, por meio da consolidação de diretrizes para os processos de descentralização e regionalização (Reis et al., 2017REIS, A. A. C. et al. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1045-1054, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017224.26552016
https://doi.org/10.1590/1413-81232017224...
). As leis no 8.080BRASIL. Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1990a. e no 8142BRASIL. Lei Nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 dez. 1990b., de 1990, e as Normas Operacionais Básicas (NOB) editadas na década de 1990 (NOB 01/91, 01/92, 01/93 e 01/96) tiveram papel importante para fortalecer essas diretrizes, ao regularem aspectos da divisão de responsabilidades, relações entre gestores e critérios de transferência de recursos federais para estados e municípios.

O processo de descentralização evidenciou os municípios, o que, na concepção de Lucchese (1996LUCCHESE, P. T. R. Descentralização do financiamento e gestão da assistência à saúde no Brasil: a implementação do Sistema Único de Saúde - retrospectiva 1990/1995. Planejamento e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, n. 14, p. 75-152, 1996.), ocasionou a atomização de sistemas municipais de saúde, direcionado a um modelo de assistência municipalista em que a atenção à saúde foi ampliada sem articulação regional. Por outro lado, a regionalização, posteriormente, viabilizou uma maior responsabilidade das instâncias estaduais, cujo papel esteve insuficientemente definido pelo arcabouço do SUS até o início da década de 2000. É nesse momento que a regionalização e a conformação de Redes Atenção à Saúde (RAS) ganham força no debate setorial.

Em vista disso, este estudo considerou as três fases da indução da regionalização propostas por Albuquerque e Viana (2015ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. D. Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. especial, p. 28-38, 2015. DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005390
https://doi.org/10.5935/0103-1104.2015S0...
), que compreende o período entre os anos de 2001 até o momento atual. Segundo as autoras, a fase I abrange o período de 2001 a 2005, tendo como marco normativo as Normas Operacionais da Assistência (NOAS), de 2001 e 2002; a fase II abrange o período de 2006 a 2010, com marco normativo o Pacto pela Saúde, de 2006; e a fase III abrange o período de 2011 até os dias atuais, com marco normativo o Decreto n° 7.508/2011BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011..

No estado do Rio Grande do Sul, após a institucionalização do SUS, houve grande esforço dos gestores para garantir a descentralização da saúde. Esse processo se estendeu ao longo dos anos 1990, motivo pelo qual a preocupação com a regionalização apenas ganhou maior atenção da gestão estadual no final dessa década. Nesse sentido, pode-se entender que a regionalização foi redesenhada no Rio Grande do Sul com o Plano Diretor de Regionalização (PDR) de 2002, que destacou como objetivo a garantia da atenção e da qualidade à saúde através de instâncias de pactuação entre gestores, considerando as microrregiões, regiões e macrorregiões de saúde.

A partir de 2011, foram desencadeadas estratégias para estimular a governança regional no Rio Grande do Sul, a fim de definir as Regiões de Saúde (Bellini et al., 2014BELLINI, M. I. B. et al. Experiência de Planejamento Regional Integrado: uma construção coletiva. Barcelona: Alass, 2014.). Nesse sentido, após a publicação do Decreto n° 7.508/2011BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011., a Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul coordenou os trabalhos para a instituição das 30 Regiões de Saúde do estado e as respectivas Comissões Intergestores Regionais (CIR), que são as instâncias de pactuação consensual entre os entes federativos para a gestão compartilhada do SUS no estado. O momento atual da regionalização da saúde, a nível nacional e estadual, encontra-se em desenvolvimento por meio das Resoluções nº 23, de 17 de agosto de 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução Nº 23, de 17 de agosto de 2017. Estabelece diretrizes para os processos de Regionalização, Planejamento Regional Integrado, elaborado de forma ascendente, e Governança das Redes de Atenção à Saúde no âmbito do SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 ago. 2017., e nº 37, de 22 de março de 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução Nº 37, de 22 de março de 2018. Dispõe sobre o processo de Planejamento Regional Integrado e a organização de macrorregiões de saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 mar. 2018., da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), as quais trazem o Planejamento Regional Integrado (PRI).

Do ponto de vista conceitual, para Lima et al. (2012LIMA, L. D. et al. Regionalização e acesso à saúde nos Estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 2881-2892, 2012. DOI: 10.1590/S1413-81232012001100005
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201200...
), a regionalização se traduz como um processo técnico-político de múltiplas dimensões, envolvendo a distribuição de poder e as relações estabelecidas entre governos, organizações públicas e privadas e cidadãos no espaço geográfico. Abrange também o desenvolvimento de mecanismos e instrumentos de planejamento, gestão e financiamento de redes regionalizadas de ações e serviços de saúde (Mendes, 2019MENDES, E. V. Desafios do SUS. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2019.); a inclusão de elementos de diferenciação e diversidade socioespacial na formulação e implementação de políticas de saúde; a integração de diferentes campos da atenção à saúde e de políticas econômicas e sociais voltadas para o desenvolvimento e a redução das desigualdades regionais (Viana et al., 2018VIANA, A. L. A. et al. Regionalização e Redes de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6. p. 1791-1798, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.05502018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
).

No entanto, considerando estudos sobre a historicidade do conceito (Mello, Dermazo, Viana, 2019MELLO, G. A.; DEMARZO, M.; VIANA, A. L. D. O conceito de regionalização do Sistema Único de Saúde e seu tempo histórico. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1139-1150, 2019. DOI: 10.1590/S0104-59702019000400006
https://doi.org/10.1590/S0104-5970201900...
), é possível identificar que a noção de regionalização alcançou limites históricos de capacidade produtiva, uma vez que as fronteiras teóricas que delimitavam esse termo adquiriram maior grau de abstração, em especial por causa da aproximação de outros conceitos à noção de regionalização, tais como redes, urbanização, região, complexidade e intersetorialidade. Portanto, é necessário pensar esse conceito considerando um sentido mais estratégico, com novos direcionamentos, de modo que acompanhe e promova elementos de nível político, técnico e social.

Nesse sentido, a regionalização, mais que um processo de organização das ações e dos serviços de saúde, é uma construção política que envolve o diálogo entre os atores locais, para o reconhecimento e a proposição de estratégias de enfrentamento às necessidades de saúde dos territórios específicos. Assim, os gestores da esfera estadual têm um papel central na organização da regionalização e na indução do planejamento regional no SUS. À vista disso, o objetivo deste artigo é analisar, pela perspectiva dos gestores estaduais, como ocorreu a implementação do processo da regionalização de saúde no Rio Grande do Sul a partir dos anos 2000.

Métodos

Trata-se de um estudo qualitativo descritivo, o qual foi desenvolvido no cenário da gestão estadual, isto é, a Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (SES/RS). Para o levantamento das informações, utilizou-se entrevista semiestruturada com gestores do nível central da gestão estadual da SES/RS das áreas de: planejamento, ações em saúde, vigilância em saúde, gestão de tecnologias e inovação, assistência hospitalar e ambulatorial, fundo estadual de saúde, regulação estadual e direção geral. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (IMED)/Porto Alegre e pelo Comitê de Ética na Pesquisa em Saúde da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul.

Foram selecionados, de forma intencional, os gestores (técnicos e tomadores de decisão) que atuaram ou atuam no processo de regionalização da saúde do RS. Assim, este estudo é constituído por dez entrevistas, previamente agendadas por telefone, de acordo com a disponibilidade de cada entrevistado, ocorridas entre os meses de dezembro de 2020 e fevereiro de 2021. Para a condução delas, foi aplicado um roteiro com temas norteadores, abrangendo questões sobre o processo de regionalização da saúde no Rio Grande do Sul, a estruturação e o funcionamento dos mecanismos de governança, a avaliação dos recortes regionais (microrregião, região e macrorregião de saúde) promovidos pelo estado, a participação dos diversos atores no processo de regionalização e os avanços, desafios e recomendações sobre o processo de regionalização da saúde no Rio Grande do Sul.

A coleta de dados foi realizada durante o horário de trabalho dos gestores e nos seus respectivos locais de trabalho ou domicílios. Das entrevistas, cinco aconteceram de forma presencial na SES/RS e cinco foram realizadas de maneira virtual através da plataforma Cisco Webex, com tempo médio de duração de uma hora. A adoção da estratégia de entrevistas por meio digital se deveu ao fato de, no momento da coleta de dados, estar ocorrendo a pandemia de covid-19.

Ademais, foi aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a cada entrevistado, respeitando os preceitos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos, conforme as resoluções do Conselho Nacional de Saúde. Todos os dados apresentados publicamente que pudessem identificar os participantes foram modificados, visando preservar a identidade dos gestores. Para tanto, foi realizada a codificação dos sujeitos do estudo, de modo que foram identificados por números.

A participação aconteceu de forma voluntária e as entrevistas foram gravadas após o consentimento dos participantes, sendo, posteriormente, transcritas e analisadas utilizando-se o software NVivo. Esse software, específico para pesquisa qualitativa, permite identificar núcleos de sentidos que favorecem a análise. Para May (2004MAY, T. Pesquisa Social: questões, métodos e processos. Tradução: Carlos Alberto Soares. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.), esse tipo de entrevista possibilita que as pessoas respondam a partir dos seus próprios termos e, ao mesmo tempo, garante comparabilidade entre as respostas.

As informações obtidas por meio das entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo, definida por Bardin (1979BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.) como um conjunto de técnicas de análise de comunicação que busca obter, através da descrição do conteúdo das mensagens registradas, indicadores quantitativos ou não que possibilitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção dessas mensagens.

Para a análise de conteúdo, foi aplicada a técnica de análise temática, que se baseia em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação e qual manifestação ou repetição tem significado para o objetivo analítico desejado. Nessa perspectiva, propõe o estudo de motivações, valores, inclinações, atitudes e crenças dos entrevistados (Bardin, 1979BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.).

Reforça-se que este estudo teve como base as três fases da indução da regionalização da saúde propostas por Albuquerque e Viana (2015ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. D. Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. especial, p. 28-38, 2015. DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005390
https://doi.org/10.5935/0103-1104.2015S0...
). De acordo com as autoras, na fase I, que teve início com as NOAS (2001; 2002), o grande objetivo da regionalização era ampliar o acesso ao SUS, retomando sua coerência sistêmica, organizando fluxos intermunicipais pouco regulados, integrados e negociados, promovendo o papel dos estados no planejamento e coordenação das redes intermunicipais.

A fase II, que se iniciou com o Pacto pela Saúde (2006BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2006.), representou uma transição das concepções de região e redes na política de saúde nacional. A questão mais importante foi o uso do termo rede de cooperação entre os três entes federados, ante a necessidade de maior coordenação e cooperação intergovernamental na gestão do SUS. Durante essa fase, foram criados os Colegiados de Gestão Regionais (CGR), posteriormente denominados Comissões Intergestores Regionais (CIR), e flexibilizados os critérios para a conformação das regiões de saúde, dando oportunidade para recortes mais variados e adequados às realidades locais.

Na fase III, a publicação da Portaria nº 4.279/2010 e do Decreto n° 7.508/2011BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011. consolidaram a nova perspectiva das RAS na política nacional. O Decreto n° 7.508/11BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011. trouxe mudanças significativas na concepção, nos objetivos e instrumentos do planejamento regional. Por um lado, buscou garantir flexibilidade e ganhos de escala e escopo no desenho regional e, por outro, buscou responsabilizar de forma clara e objetiva as três esferas de governo pelo planejamento, gestão e investimentos nas regiões de saúde.

Ainda no sentido de descrição e análise das respostas, foram considerados os seguintes eixos temáticos das entrevistas, de forma integrada: percepções do gestor sobre o processo de regionalização da saúde no Rio Grande do Sul; estruturação e funcionamento dos mecanismos de governança regional; e os desafios do processo de regionalização da saúde no Rio Grande do Sul. A descrição deste estudo qualitativo foi baseada no Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ), traduzido e validado para o idioma português (Souza et al., 2021SOUZA, V. R. S. et al. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 34, eAPE02631, 2021. DOI: 10.37689/acta-ape/2021AO02631
https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO...
).

Resultados e discussão

Foram realizadas entrevistas com dez gestores da gestão estadual da SES/RS, sendo oito mulheres e dois homens. Todos os entrevistados têm formação acadêmica de nível superior; seis possuem título de especialista, dois de mestre e dois de doutor. Um dos entrevistados era da área do planejamento (Gestor 1), duas integraram a área de ações em saúde (Gestor 2 e 9), duas compõem a área da regulação estadual (Gestor 4 e 7), uma compõe a área de assistência hospitalar e ambulatorial (Gestor 6), uma integra a área de vigilância em saúde (Gestor 3), um compõe a área de gestão de tecnologias e inovação (Gestor 5), uma atua no fundo estadual de saúde (Gestor 8) e uma integra a direção geral (Gestor 10). No período da pesquisa, seis entrevistados estavam em exercício e quatro aposentados. Dos entrevistados que estão na ativa, cinco possuem vínculo de cargo efetivo e um possui cargo em comissão. Todos têm mais de dez anos de atuação no SUS.

O Quadro 1 demonstra uma síntese das situações vivenciadas e das compreensões dos gestores estaduais entrevistados no que se refere às diferentes fases do processo de regionalização da saúde no Rio Grande do Sul, baseadas na proposta de Albuquerque e Viana (2015ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. D. Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. especial, p. 28-38, 2015. DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005390
https://doi.org/10.5935/0103-1104.2015S0...
).

Quadro 1
Percepções dos gestores estaduais quanto ao processo de regionalização da saúde no RS, 2020-2021

Quando observadas as percepções quanto ao processo histórico da regionalização da saúde no Rio Grande do Sul, torna-se evidente que os gestores estaduais compreendem de diferentes formas a regionalização, tendo em vista suas experiências e perspectivas, a partir dos diversos departamentos da SES/RS.

Considerando o período que compõe a fase I do processo de regionalização, mais da metade dos entrevistados destacam a descentralização, impulsionada pela municipalização consolidada na década de 1990. No que se refere à área da vigilância em saúde, a regionalização seguiu ao processo de municipalização e foi acompanhada de uma discussão conceitual e de uma nova estrutura. Do mesmo modo, o estudo realizado por Albuquerque (2021ALBUQUERQUE, A. C. et al. Desafios para regionalização da Vigilância em Saúde na percepção de gestores de regiões de saúde no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 128, p. 29-41, 2021. DOI: 10.1590/0103-1104202112802
https://doi.org/10.1590/0103-11042021128...
) evidencia que a existência de ações e serviços de interesse da vigilância em saúde disponibilizados em escala regional pode ser vista como indutora da regionalização.

Conforme a percepção dos gestores estaduais, tanto a municipalização quanto a regionalização envolvem uma capacidade de planejamento, monitoramento e avaliação. Um dos entrevistados relata que havia uma resistência por parte de alguns técnicos da gestão estadual em participar desses processos, provocada pelo pouco conhecimento com relação a essas práticas ou pela dificuldade em assumir novas funções, pois as mudanças, naquele momento, exigiram que os gestores estaduais passassem a assessorar os municípios.

Durante todo esse processo de descentralização, de regionalização e de elaboração do Plano Diretor de Regionalização, havia uma certa resistência ou dificuldade em fazer um planejamento estratégico, porque os colegas estavam, grande parte deles, envolvidos com atividades-fim, de dar apoio técnico ao município em ações de campo. Então, o processo de programação de ações, de planejamento, monitoramento e avaliação, o planejamento como um todo, custava muito a conquistar as pessoas. (Gestora 3)

Esse relato corrobora os achados de Carvalho e Shimizu (2017CARVALHO, A. L. B.; SHIMIZU, H. E. A institucionalização das práticas de monitoramento e avaliação: desafios e perspectivas na visão dos gestores estaduais do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface, Botucatu, v. 21, n. 60, p. 23-33, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0817
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.08...
) ao investigarem os desafios da institucionalização das práticas de monitoramento e avaliação no âmbito da gestão do SUS. Eles identificaram que grandes entraves no processo estão vinculados ao pouco conhecimento sobre os conteúdos referentes ao monitoramento e avaliação, estando ainda incorporados de forma insuficiente às práticas e possuindo, geralmente, um caráter prescritivo e burocrático que nem sempre contribui com o processo decisório, necessitando, portanto, de investimentos de ordem técnica e política por parte da administração pública setorial.

Os mecanismos de governança, nesse período, acompanhavam a descentralização com a instituição das CIB Regionais, por meio das quais os gestores municipais se reuniam para discutir gestão em saúde a partir das Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS) das quais faziam parte. Sinaliza-se que a divisão dos territórios administrativos da gestão estadual em CRS foi um processo que se iniciou em 1964. Estas CRS abarcam o conjunto de municípios com características geográficas e sociais comuns, que, ao mesmo tempo que somam/contrastam suas demandas em saúde, também se organizam politicamente. Entretanto, quem coordenava as CIB Regionais eram gestores vinculados ao Estado.

Com o Plano Diretor de Regionalização, no início dos anos 2000, consolidamos aqui no Estado as CIB Regionais que estavam ligadas às Coordenadorias Administrativas [...] Nesse período, no ponto de vista de governança regional, o que tínhamos era uma governança fortemente centralizada na gestão estadual, nas microrregiões, com foco na coordenadoria administrativa [...] Percebemos que as CIB regionais, eram instâncias burocratizadas. Não se discutiam questões relevantes dos territórios [...]. Não tinha como discutir questões mantendo o recorte das microrregiões. O caráter era muito mais informativo. (Gestor 1)

Na opinião dos entrevistados, a estruturação dos dispositivos de governança foi essencial no processo da regionalização no Rio Grande do Sul. Assim, mesmo instauradas as instâncias de governança descentralizadas, a participação dos gestores estaduais era fundamental na consolidação de espaços de diálogo entre gestores municipais para a organização de ações e serviços de saúde no SUS. Entretanto, as CIB Regionais tinham caráter burocrático e informativo. Era na CIB estadual que os acordos eram, de fato, tomados.

Sempre considerei muito importante esse palco da Bipartite, onde tudo acontecia, onde acabava sendo batido o martelo. Da mesma forma, sempre achei muito interessante o trabalho das CIB regionais, aonde íamos com nossos colegas das regionais de saúde, ajudar a construir essa proposta de regionalização e o PDR. Todos levavam essas discussões para as CIB regionais.(Gestora 3)

Nessa linha, Santos e Giovanella (2014SANTOS, A. M.; GIOVANELLA, L. Governança regional: estratégias e disputas para gestão em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 4, p. 622-631, 2014. DOI: 10.1590/S0034-8910.2014048005045
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20140...
) sinalizam que a governança regional também envolve a utilização de estratégias e disputas permeadas por interesses políticos, por vezes conflitantes com a autonomia dos entes federativos na construção dos processos de regionalização da saúde. Assim, pode-se refletir que os impasses acerca do processo de regionalização estão relacionados a interesses econômicos, políticos, além da competitividade entre os entes federativos e a governança (Silveira Filho et al., 2016)SILVEIRA FILHO, R. M. et al. Ações da Comissão Intergestores Regional para gestão compartilhada de serviços especializados no Sistema Único de Saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 853-878, 2016. DOI: 10.1590/S0103-73312016000300008
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201600...
.

Com relação ao período que compõe a fase II do processo de regionalização, segundo os gestores estaduais, o Pacto pela Saúde, em 2006, reforça a ideia de qualificar ainda mais o processo de descentralização, não só de serviços, mas de poder, constituindo um novo cenário no âmbito do território. Apesar disso, esse movimento de transferência de poder não ganhou solidez naquele momento, visto que o estado considerava que conferir a gestão dos serviços e dos prestadores aos municípios significava perda de poder estadual.

E com o Pacto vem essa nova compreensão do processo de gestão e do quanto ele precisava ser cada vez mais descentralizado, realizado no território. No Rio Grande do Sul temos um histórico interessante com relação a essa ideia da descentralização. Naquela época se entendia que passar a gestão do serviço, dos prestadores para os municípios, significava perda de poder, perda do papel da Secretaria frente ao SUS no Estado. (Gestor 1)

Após a publicação do Pacto pela Saúde, ao assumir o Pacto pela Gestão, o governo do estado passou a acompanhar com maior critério os indicadores de saúde. Em vista disso, o Plano Diretor de Regionalização precisou ser revisto e atualizado, o que estimulou ainda mais o processo de descentralização. O desenvolvimento da descentralização promoveu uma mudança na atuação dos gestores estaduais, uma vez que deixaram de ser executores do processo e passaram a assessorar os municípios.

Deixamos de fazer e nos tornamos pessoas para assessorar e capacitar os municípios, foi uma diferença. Praticamente todos nós tivemos que desenvolver uma capacidade de ajudar na formação de pessoas. Porque descentralizar ações para os municípios envolvia, com certeza, capacitações, oficinas. Aí sim o processo de planejamento foi ficando cada vez mais claro que era essencial (Gestora 3).

Durante esse período, foram constituídos os Colegiados de Gestão Regional (CGR) chamados de COGERE, no Rio Grande do Sul. Desse modo, as CIB Regionais passaram a ser denominadas de COGERE, instâncias de diálogo no âmbito regional, mas que não pensavam necessariamente o território. Embora a descentralização estivesse transcorrendo, os mecanismos de governança encontravam-se dependentes da gestão estadual, pois, como o estado entendia que perderia poder se os municípios assumissem a gestão dos contratos com os prestadores, as discussões de média e alta complexidade ainda eram todas realizadas no nível central.

A partir da publicação do Decreto no 7.508BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011., em 2011, marco normativo que constitui a fase III do processo de regionalização, surge uma nova lógica de planejamento e governança, trazendo uma perspectiva diferente de gestão e de modo de trabalho.

Há um engajamento em processos de monitoramento, avaliação e regulação. Estou falando um pouco do papel da gestão estadual, que se modifica profundamente. É uma concepção diferente, onde tu passas a trabalhar junto com os gestores e não para os gestores, estás construindo o Sistema Único de Saúde de forma coletiva, de forma coordenada, de forma participativa. (Gestor 1)

Se nas fases I e II existia um recorte regional dependente da regionalização administrativa da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul, compartimentada em microrregiões, após o Decreto no 7.508/2011BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011., foram determinadas as regiões de saúde, a partir de limites geográficos, população atendida e ações e serviços ofertados.

Nesse momento começaram a ser elencados os critérios para a região de saúde, assim como o processo de organização de Redes de Atenção à Saúde. O planejamento começou a pensar, definir o que é rede, quais são os critérios para criar, o que é a região de saúde, quais os critérios para essa região. E isso passa a ter uma busca de organicidade, de reordenamento do Estado e do sistema. (Gestora 2)

Carvalho e Shimizu (2017CARVALHO, A. L. B.; SHIMIZU, H. E. A institucionalização das práticas de monitoramento e avaliação: desafios e perspectivas na visão dos gestores estaduais do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface, Botucatu, v. 21, n. 60, p. 23-33, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0817
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.08...
) destacam, entre o conjunto de aspectos relevantes abordados pelo Decreto no 7.508/2011BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011., o estabelecimento de novos dispositivos para o planejamento do SUS, fortalecendo sua característica de ascendente e integrado. Enfatizam, ainda, a importância de considerar as necessidades de saúde e a disponibilidade de recursos, induzindo a organização de Redes de Atenção à Saúde.

No decorrer desse período, houve a inclusão da tecnologia nos processos de trabalho por meio do desenvolvimento da ferramenta Business Intelligence (BI) para a gestão da informação em saúde, denominado de Portal BI da Saúde, no estado do Rio Grande do Sul (Mai et al., 2017MAI, S.; GUIMARÃES, C. F.; SILVA, J. M.; HINKEL, J. H. S. O uso das tecnologias na democratização da informação em saúde. Revista de Gestão em Sistemas de Saúde, São Paulo, v. 6, n. 3, p. 210-218, 2017. DOI: https://doi.org/10.5585/rgss.v6i3.287
https://doi.org/10.5585/rgss.v6i3.287...
), que teve impacto direto no processo de regionalização, permitindo a organização dos dados em informações.

Nesse período, ocorreu uma nova configuração acerca dos mecanismos de governança, pois foram constituídas, em 2011, as Comissões Intergestores Regionais (CIR), substituindo os COGERE. As CIR são instâncias de negociação, planejamento e gestão intergovernamental, formadas por representação das Secretarias de Estado de Saúde e do conjunto de municípios que compõem as regiões de saúde no âmbito do SUS (Albuquerque et al., 2018ALBUQUERQUE, M. V. et al. Governança regional do sistema de saúde no Brasil: configurações de atores e papel das Comissões Intergovernamentais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p. 3151-3161, 2018. DOI: 10.1590/1413-812320182310.13032018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231...
). Sinaliza-se que, essa transformação exigiu uma estratégia de planejamento na SES/RS envolvendo pactuações com os municípios, o que fortaleceu o poder de influência dos territórios, embora muitas decisões ainda continuassem sendo tomadas no nível central.

No entanto, ao mesmo tempo em que a afirmação do princípio da regionalização e a indução da conformação das Redes de Atenção à Saúde se tornaram diretrizes nacionais, apoiadas por instrumentos legais-normativos, desencadeando processos de organização do território, isso não significou, necessariamente, que foram obtidos os resultados propostos à transformação dos modos de produção do cuidado em saúde no RS.

Os gestores estaduais apontaram desafios percebidos no decorrer do processo de regionalização no Rio Grande do Sul. Uma das dificuldades consideradas pelos entrevistados decorre do processo da municipalização - que, por um lado, possibilitou a melhoria na qualidade de atenção à saúde; e, por outro, provocou uma fragmentação do processo de tomada de decisão graças a autonomia dos gestores municipais. Tal fragmentação trouxe implicações no planejamento da regionalização da saúde, ou seja, os municípios passaram a girar ao redor de si mesmos, afastando a concepção de pensar a região de saúde de forma solidária e compartilhada.

O gestor municipal ainda precisa entender que além do papel superimportante que ele tem em relação ao município ele tem outro papel, tão importante quanto, com relação ao seu protagonismo na sua região de saúde. (Gestor 1)

Nesse sentido, é importante que os gestores municipais se percebam como parte das regiões de saúde para dar conta das demandas de atenção à saúde. Para Mello et al. (2016MELLO, G. A. et al. Novos Caminhos, n. 9: o olhar gestor sobre a regionalização da saúde brasileira. [S. l.]: Região e Redes, 2016.), o ganho em acesso e equidade decorrentes da descentralização encontrou limites ao não ter conseguido associar concomitantemente um processo de integração regional. Talvez a composição de mecanismos de gestão seja capaz de induzir a regionalização da saúde como um dos principais desafios do gestor estadual no que diz respeito ao planejamento regional, estimulando uma cultura de gestão estratégica do SUS em parceria com os municípios.

A insuficiência de recursos humanos na gestão estadual apareceu nos relatos dos entrevistados como um dos entraves, e, como consequência, a dificuldade em equacionar de maneira adequada os profissionais, para desempenhar as funções necessárias; além da sobrecarga de trabalho nas atribuições de rotina. Além disso, incorporar a função de planejamento, monitoramento e avaliação como ferramentas de uso cotidiano foi indicado pelos gestores estaduais como um obstáculo à indução do processo de regionalização.

As pessoas aqui estão muito envolvidas com questões operacionais do dia a dia, apagando incêndio e como pouco tempo para pensar e monitorar as ações. [...] Deveríamos ter tempo para monitorar e acompanhar, mas estamos envolvidos em um trabalho operacional cíclico. (Gestor 5)

Nesse sentido, Ferreira et al. (2018FERREIRA, J. et al. Planejamento regional dos serviços de saúde: o que dizem os gestores? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 69-79, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170296
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817...
) relataram, em um estudo realizado com gestores sobre o planejamento regional dos serviços de saúde, que os profissionais que não participam do planejamento das ações e serviços atribuem tal ausência à sobrecarga nas atividades, resultando em pouco tempo disponível para realização do planejamento e gestão compartilhada e participativa.

Os entrevistados reforçaram a necessidade de estimular constantemente o planejamento regional junto aos gestores municipais, impulsionar a concepção de macrorregião de saúde, promover o fortalecimento e o financiamento das Redes de Atenção à Saúde e linhas de cuidado e a suficiência de serviços especializados, identificando as sobreposições ou vazios assistenciais, bem como fortalecer a governança nas regiões de saúde, no sentido de empoderar a tomada de decisão.

Precisamos regionalizar a linha de cuidado, garantir que o usuário consiga acessar o serviço da primeira consulta até a alta. É a linha de cuidado completa, porque se não olharmos para a linha de cuidado na regionalização, vamos inevitavelmente onerar o usuário, ao invés da rede trabalhar para ele, ele tem que ficar andando na rede, isso é bastante comum de identificarmos (Gestora 6).

Para Franco e Merhy (2013FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, Produção do Cuidado e Subjetividade em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.), torna-se decisivo identificar os atores que controlam os recursos das linhas de cuidado a serem implantadas, com função de organizá-la e fazer os fluxos assistenciais funcionarem. Ressalta-se que a construção da linha do cuidado a partir das regiões de saúde se produz a partir da vontade, adesão ao projeto, desejo político, recursos e materiais, associada a toda reorganização do processo de trabalho em nível da rede. Elas se organizam com grande capacidade de interlocução, negociação, associação da técnica e política e a implicação de todos os atores dos diversos níveis assistenciais.

Além disso, os gestores estaduais elucidaram a importância das normativas e legislações para a indução do processo, e consideraram a questão do financiamento e a utilização dos recursos de forma descentralizada como um dos maiores desafios do processo de regionalização da saúde. Nessa perspectiva, ressaltaram a necessidade de uma análise comprometida com as questões do financiamento, não somente no que se refere à quantidade financeira para determinada ação, mas a gestão apropriada dos recursos. Destacaram a regionalização como o caminho para otimizar o uso dos recursos financeiros.

Nessa perspectiva, no estudo de Aleluia et al. (2022ALELUIA, Í. R. S.; MEDINA, M. G.; VILASBÔAS, A. L. Q. Desafios da gestão regionalizada no Sistema Único de Saúde. Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 104-120, 2022. DOI: 10.12660/rgplp.v20n2.2021.83387.
https://doi.org/10.12660/rgplp.v20n2.202...
) foi identificado que limitações fiscais em cenários de crises financeiras dos estados e municípios, assim como a organização federativa tripartite, são alguns dos principais desafios da regionalização da saúde. Igualmente, em estudo realizado no estado do Rio Grande do Sul, o financiamento foi identificado como uma dificuldade pelos gestores municipais de saúde para a execução de ações e serviços de saúde (Arcari et al., 2020ARCARI, J. M.; BARROS, A. P. D.; ROSA, R. S.; MARCHI, R.; MARTINS, A. B. Perfil do gestor e práticas de gestão municipal no Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com porte populacional nos municípios do estado do Rio Grande do Sul. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 407-420, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020252.13092018
https://doi.org/10.1590/1413-81232020252...
).

Por fim, os entrevistados salientaram a importância dos fatores conjunturais para realmente impulsionar o processo de regionalização, especialmente aqueles referentes à ação política, como a dinâmica das relações intergovernamentais e a prioridade da regionalização na agenda governamental que reflete no processo decisório. Tais fatores similarmente foram identificados na revisão integrativa realizada por Aleluia et al. (2022ALELUIA, Í. R. S.; MEDINA, M. G.; VILASBÔAS, A. L. Q. Desafios da gestão regionalizada no Sistema Único de Saúde. Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 104-120, 2022. DOI: 10.12660/rgplp.v20n2.2021.83387.
https://doi.org/10.12660/rgplp.v20n2.202...
).

Como limitações deste estudo, aponta-se que se trata de uma pesquisa qualitativa descritiva com a escolha intencional dos participantes. Nesse sentido, os achados não podem ser diretamente extrapolados para outros contextos - o que é inerente a esse tipo de pesquisa. Todavia, tais reflexões podem contribuir para pensar os processos de regionalização da saúde no território brasileiro.

Considerações finais

As entrevistas com os gestores estaduais de saúde permitiram perceber, nos diferentes momentos da regionalização no Rio Grande do Sul, como se deu a operacionalização do processo, identificar os avanços alcançados, bem como dificuldades e limites importantes, tanto de ordem política quanto operacional. Disputam o modelo novas atitudes e pensamentos dos gestores estaduais, que ora sugerem avanços ao processo de regionalização, ora impõe um retrocesso.

A partir da indução da regionalização, no decorrer dos anos, destacam-se a melhoria na qualidade da atenção à saúde; o progresso na organização do sistema de saúde do estado; a mudança na função da gestão estadual, de executora para alguém capaz de fazer pactuações e assessoria técnica; o desenvolvimento do uso da tecnologia, que induziu a modernização da própria estrutura do estado para gestão compartilhada; assim como, o reconhecimento das instâncias de pactuação para a tomada de decisão. Já a governança regional foi, sobretudo, dificultada no Rio Grande do Sul pela fragmentação do sistema e a histórica insuficiência de planejamento e financiamento. Nesse contexto, faz-se necessário implementar uma cultura de gestão estratégica, amparada pela alocação adequada de recursos e pela qualificação da governança no âmbito das regiões de saúde.

Conclui-se que a regionalização da saúde é afetada pelas relações estabelecidas entre diversos atores sociais no espaço geográfico. Desse modo, envolve o desenvolvimento de estratégias e instrumentos de planejamento, gestão, regulação e financiamento de uma rede de ações e serviços de saúde no território. Assim, criar mecanismos no sentido de superar os desafios evidenciados torna-se fundamental à continuidade do processo de regionalização. Esses desafios, além de estarem permanentemente na agenda do gestor, têm potência param se configurarem como temas a serem explorados em futuras pesquisas sobre a regionalização da saúde.

Referências

  • ALBUQUERQUE, M. V. et al. Governança regional do sistema de saúde no Brasil: configurações de atores e papel das Comissões Intergovernamentais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p. 3151-3161, 2018. DOI: 10.1590/1413-812320182310.13032018
    » https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.13032018
  • ALBUQUERQUE, A. C. et al. Desafios para regionalização da Vigilância em Saúde na percepção de gestores de regiões de saúde no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 128, p. 29-41, 2021. DOI: 10.1590/0103-1104202112802
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202112802
  • ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. D. Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. especial, p. 28-38, 2015. DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005390
    » https://doi.org/10.5935/0103-1104.2015S005390
  • ALELUIA, Í. R. S.; MEDINA, M. G.; VILASBÔAS, A. L. Q. Desafios da gestão regionalizada no Sistema Único de Saúde. Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 104-120, 2022. DOI: 10.12660/rgplp.v20n2.2021.83387.
    » https://doi.org/10.12660/rgplp.v20n2.2021.83387.
  • ARCARI, J. M.; BARROS, A. P. D.; ROSA, R. S.; MARCHI, R.; MARTINS, A. B. Perfil do gestor e práticas de gestão municipal no Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com porte populacional nos municípios do estado do Rio Grande do Sul. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 407-420, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020252.13092018
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232020252.13092018
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.
  • BELLINI, M. I. B. et al. Experiência de Planejamento Regional Integrado: uma construção coletiva. Barcelona: Alass, 2014.
  • BRASIL. Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1990a.
  • BRASIL. Lei Nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 dez. 1990b.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.203, de 5 de novembro de 1996. Aprova a Norma Operacional Básica - NOB do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1996.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2006.
  • BRASIL. Decreto Nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução Nº 23, de 17 de agosto de 2017. Estabelece diretrizes para os processos de Regionalização, Planejamento Regional Integrado, elaborado de forma ascendente, e Governança das Redes de Atenção à Saúde no âmbito do SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 ago. 2017.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução Nº 37, de 22 de março de 2018. Dispõe sobre o processo de Planejamento Regional Integrado e a organização de macrorregiões de saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 mar. 2018.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1988.
  • CARVALHO, A. L. B.; SHIMIZU, H. E. A institucionalização das práticas de monitoramento e avaliação: desafios e perspectivas na visão dos gestores estaduais do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface, Botucatu, v. 21, n. 60, p. 23-33, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0817
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0817
  • FERREIRA, J. et al. Planejamento regional dos serviços de saúde: o que dizem os gestores? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 69-79, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170296
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170296
  • FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, Produção do Cuidado e Subjetividade em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.
  • LIMA, L. D. et al. Regionalização e acesso à saúde nos Estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 2881-2892, 2012. DOI: 10.1590/S1413-81232012001100005
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232012001100005
  • LUCCHESE, P. T. R. Descentralização do financiamento e gestão da assistência à saúde no Brasil: a implementação do Sistema Único de Saúde - retrospectiva 1990/1995. Planejamento e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, n. 14, p. 75-152, 1996.
  • MAI, S.; GUIMARÃES, C. F.; SILVA, J. M.; HINKEL, J. H. S. O uso das tecnologias na democratização da informação em saúde. Revista de Gestão em Sistemas de Saúde, São Paulo, v. 6, n. 3, p. 210-218, 2017. DOI: https://doi.org/10.5585/rgss.v6i3.287
    » https://doi.org/10.5585/rgss.v6i3.287
  • MAY, T. Pesquisa Social: questões, métodos e processos. Tradução: Carlos Alberto Soares. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.
  • MELLO, G. A.; DEMARZO, M.; VIANA, A. L. D. O conceito de regionalização do Sistema Único de Saúde e seu tempo histórico. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1139-1150, 2019. DOI: 10.1590/S0104-59702019000400006
    » https://doi.org/10.1590/S0104-59702019000400006
  • MELLO, G. A. et al. Novos Caminhos, n. 9: o olhar gestor sobre a regionalização da saúde brasileira. [S. l.]: Região e Redes, 2016.
  • MENDES, E. V. Desafios do SUS. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2019.
  • REIS, A. A. C. et al. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1045-1054, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017224.26552016
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.26552016
  • SANTOS, A. M.; GIOVANELLA, L. Governança regional: estratégias e disputas para gestão em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 4, p. 622-631, 2014. DOI: 10.1590/S0034-8910.2014048005045
    » https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2014048005045
  • SILVEIRA FILHO, R. M. et al. Ações da Comissão Intergestores Regional para gestão compartilhada de serviços especializados no Sistema Único de Saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 853-878, 2016. DOI: 10.1590/S0103-73312016000300008
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000300008
  • SOUZA, V. R. S. et al. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 34, eAPE02631, 2021. DOI: 10.37689/acta-ape/2021AO02631
    » https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631
  • VIANA, A. L. A. et al. Regionalização e Redes de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6. p. 1791-1798, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.05502018
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05502018

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2023
  • Revisado
    07 Mar 2023
  • Aceito
    31 Mar 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br