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Comunicação e pandemia: interlocuções criativas de populações vulnerabilizadas no Distrito Federal

Resumo

O artigo tem como objetivo apresentar resultados de uma pesquisa que cartografou tecnologias e arranjos comunicacionais produzidos por e direcionados à populações vulnerabilizadas no território do Distrito Federal-Brasil no contexto da pandemia de ccovid-19. A pesquisa integrou uma investigação multicêntrica, de natureza qualitativa, estruturada em cinco etapas: mapeamento virtual das experiências; aprofundamento do conhecimento sobre as iniciativas através de entrevistas com suas lideranças; análise por experiência e transversal do material empírico; validação coletiva dos resultados através de sessões virtuais e construção de um mapa temático das experiências. Foram mapeadas 14 iniciativas sobre covid-19 que tinham um componente comunicacional e eram direcionadas à população de territórios periféricos, sendo selecionadas dez para a análise em profundidade. As respectivas lideranças foram entrevistadas, compondo um panorama cartográfico e temático das tecnologias e arranjos comunicacionais: histórias de vida; “boca a boca”; articulações em rede; comunicação orgânica presencial; cards; advocacy; redes sociais; uso de equipamentos territoriais como instrumentos de comunicação; jornal comunitário independente digital; aplicativo; rede de solidariedade e TV comunitária. Ressalta-se o compromisso das estratégias e tecnologias comunicacionais com o respeito às realidades locais, respeitando as características das comunidades, apontando para uma diferença crucial em relação à comunicação predominante sobre a pandemia nas instituições públicas de saúde.

Palavras-chave:
Covid-19; Comunicação e Saúde; Educação em Saúde; Populações vulneráveis

Abstract

The article aims to present results of a research that mapped communication technologies and arrangements designed and directed toward vulnerable populations in the territory of the Federal District (DF), Brazil, in the context of the COVID-19 pandemic. The research, which integrated a multicentric investigation, has a qualitative approach and was structured in five stages: virtual mapping of experiences; interviews with their leaders; individual and cross-sectional analysis of empirical material; collective validation of the results by virtual sessions and construction of a thematic map of the experiences. Fourteen initiatives on COVID-19 were mapped in the DF that had a communicational component and were aimed at the population of peripheral territories, with ten being selected for in-depth analysis.The respective leaders were interviewed, composing a thematic cartographic panorama of technologies and communication arrangements: life stories; “word of mouth”; network joints; in-person and organic communication; cards; advocacy; digital social networks; use of territorial equipment as communication tools; independent digital community newspaper; apps; solidarity network and community TV. The commitment of communication strategies and technologies regarding local realities, respecting the characteristics of communities, is highlighted, pointing to a crucial difference in relation to the predominant communication about the pandemic in public health institutions.

Keywords:
COVID-19; Health Communication; Health Education; Vulnerable Populations

Introdução

A pandemia de covid-19, a primeira do século XXI, constituiu-se em um pungente desafio sanitário contemporâneo (Bueno et al., 2021BUENO, F.T.C. et al. Notas sobre a trajetória da Covid-19 no Brasil. In: MATTA, G.C.M. et al (Org.). Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021.). Paralelamente aos impactos provocados pelo SARS-CoV-2 à saúde das populações, em escala global, ocorreu também uma “infodemia” - uma multiplicação exponencial e excessiva de produção e circulação de informações relacionadas ao vírus e à doença, voltadas para grandes públicos, sendo, em grande parte, geradora de desinformação (WHO, 2020WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. An ad hoc WHO technical consultation managing the COVID-19 infodemic: call for action. Geneva, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1302999/retrieve >. Acesso em: 20 ago 2022.
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).

No Brasil, a desigualdade social amplificou os efeitos nefastos da covid-19 para as populações vulnerabilizadas, compreendidas como grupos populacionais com maior risco de problemas de saúde, em consequência dos obstáculos que enfrentam no acesso aos recursos sociais, econômicos, políticos e ambientais. São ainda determinantes de vulnerabilização a cor da pele, o endereço, o gênero, a orientação sexual, a crença religiosa, a origem étnica e cultural. Adotamos, como Oliveira (2018OLIVEIRA, R. G. Práticas de saúde em contextos de vulnerabilização e negligência de doenças, sujeitos e territórios: potencialidades e contradições na atenção à saúde de pessoas em situação de rua. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 37-50, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170915a
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), os termos vulnerabilizadas e vulnerabilização, em vez de vulnerabilidade, em alinhamento com a noção de determinação social do processo saúde-doença.

Conforme salientam Matta et al. (2021MATTA, G. C. M. et al. A Covid-19 no Brasil e as Várias Faces da Pandemia: apresentação. In: MATTA, G. C. M. et al (Org.). Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 15-26.), a escala global da covid-19 não traduz um fenômeno universal e homogêneo. A compreensão da pandemia em contextos, lugares e linguagens diversos expõe a multiplicidade e especificidade da questão, desde suas consequências macrossociais até os seus desdobramentos cotidianos (Matta et al., 2021MATTA, G. C. M. et al. A Covid-19 no Brasil e as Várias Faces da Pandemia: apresentação. In: MATTA, G. C. M. et al (Org.). Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 15-26.). Nesse sentido, os processos de vulnerabilização nos incitam a pensar os contextos locais, cenários nos quais os flagelos das desigualdades se desenvolvem e tonificam a precarização socioespacial (Lima et al., 2021LIMA A. L. S. L. et al. Covid-19 nas favelas: cartografia das desigualdades. In: MATTA, G. C. M. et al. (Org.). Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 111-122.).

Entretanto, a experiência pandêmica potencializou, em grande medida, a proliferação de inciativas comunicacionais por parte das instituições científicas e da saúde a partir de estruturas hierárquicas e pouco participativas e colaborativas (Nacif; Coqueiro, 2022NACIF, M. A.; COQUEIRO, J.M. Comunicação rizomática: reflexões sobre os movimentos de resistência em tempos da Covid-19. Saúde em debate, Rio de janeiro, v. 46, n. 132, p. 200-210, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213214
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).

Assim sendo, questiona-se: como essas populações vulnerabilizadas enfrentaram a pandemia da covid-19 sem contar com uma informação adequada a seus contextos? Tal reflexão instigou a realização de uma pesquisa multicêntrica em cinco núcleos regionais - Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Paraíba e Distrito Federal, sendo este último o local onde foi desenvolvida a investigação cujos resultados apresentamos neste artigo.

O Distrito Federal (DF) é a unidade da federação mais desigual do país em relação ao rendimento domiciliar por indivíduo, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNUD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: notas técnicas versão 1.8. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101733_notas_tecnicas.pdf >. Acesso em: 29 de agosto de 2021.
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). Não é recente, no entanto, a enorme distância das condições de vida entre pessoas que vivem em Brasília, nas delimitações territoriais das alegóricas asas do avião projetado por Lúcio Costa, ou nas suas proximidades e aquelas que habitam as cidades-satélites. Schvarsberg (2017SCHVARSBERG, B. A carroça ao lado do avião: o direito à cidade metropolitana em Brasília. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 19, n. 38, p. 313-334, 2017. DOI: 10.1590/2236-9996.2017-3813
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) usa a metáfora da carroça em convívio com o avião para analisar a conformação dos territórios e periferias no entorno do Distrito Federal desde a construção da cidade que viria a ser a capital do país. Além de estimular o surgimento das periferias e das populações que nelas habitam, a exclusão territorial e social na construção de Brasília propiciou um sentimento difuso de pertencimento dos moradores dessas áreas vinculadas a Goiás ao território do avião.

Com a pandemia da covid-19, esses territórios vulnerabilizados viram surgir iniciativas de enfrentamento por parte de indivíduos e coletivos. Muitas dessas estratégias comunicacionais criadas foram apresentadas em uma série de oficinas com comunicadores populares, organizadas pela Fiocruz-Brasília, em 2020 (Oliveira-Costa, 2020OLIVEIRA-COSTA, M. Comunicadores populares do DF participaram de oficina online com a Fiocruz Brasília. Fiocruz Brasília, Brasília, DF, jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/comunicadores-populares-do-df-participaram-de-oficina-online-com-a-fiocruz-brasilia/ >. Acesso em: 29 ago 2022.
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). Esse levantamento não só apontou a existência dessas inúmeras formas de fazer comunicação para além das instituições de saúde, como também evidenciou a necessidade de conhecermos mais a fundo como elas se organizam, no intuito de aprender com essas experiências e buscar avançar nas práticas institucionais de Comunicação e Saúde, ainda hoje predominantemente ancoradas em modelos das décadas de 1960-1970, de natureza autoritária, meramente transferencial e sem atenção aos contextos. Nesse sentido, nossa pesquisa partiu do pressuposto de que a cartografia de iniciativas como essas podem auxiliar as instituições de saúde na formulação de políticas mais reconhecidas e apropriadas pela população.

Os termos “tecnologia” e “arranjo”, que nomeiam o objeto da pesquisa e seu principal objetivo suscitam uma breve explicação. Não é nossa intenção discorrer sobre as numerosas possibilidades de conceituar tecnologia, que abrangem desde os macroprocessos e os conjuntos de conhecimentos com os quais podemos satisfazer nossas necessidades até o modo de produção de instrumentos específicos e o próprio instrumento. Aqui, de forma restrita e mesmo figurada, com “tecnologia” queremos nomear os aparatos que permitem a consecução de um objetivo, no caso, o objetivo comunicacional. No entanto, não só aparatos físicos, digitais ou analógicos, mas também processos relacionais. Já arranjos são as formas encontradas pelas coletividades para atingir seus objetivos comunicacionais, que associam diversas tecnologias, digitais ou com ancoragem física nos territórios de acordo com as necessidades e possibilidades locais.

Assim sendo, o artigo objetiva apresentar resultados de uma pesquisa que cartografou tecnologias e arranjos comunicacionais produzidos e direcionados a populações vulnerabilizadas no território do Distrito Federal-Brasil, no contexto da pandemia de covid-19, com ênfase nas interlocuções criativas dessas populações.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, composta por uma cartografia temática. Tal modalidade cartográfica considera, além de pontos fixos territoriais, elementos socioespaciais mais específicos, como elementos de natureza subjetiva e abstrata, mesclando dados quantitativos e qualitativos (Duarte, 1991DUARTE, P. A. Conceituação de Cartografia Temática. GEOSUL, Florianópolis, v. 6, n. 11, 1991.). A pesquisa foi organizada em cinco etapas:

  1. Identificação das experiências, por meio de mapeamento pela internet (redes sociais, sites, blogs, etc.) dos grupos comunitários, organizações e coletivos de comunicação popular que atuaram/atuam no enfrentamento da covid e propositores de caminhos para a sobrevivência nos territórios periféricos do Distrito Federal durante a pandemia.

  2. Caracterização das tecnologias e atores sociais através da identificação de liderança dos grupos, contato por telefone/WhatsApp/email, aprofundamento da caracterização das tecnologias e arranjos comunicacionais. Todas as informações foram sistematizadas em uma planilha, contendo as seguintes variáveis: nome da experiência; promotores e organizadores; território abrangido; data de início/situação atual/frequência; participantes da equipe; público a que é dirigido; vinculações internas e externas à comunidade; descrição da experiência; história, motivação e objetivos; recursos materiais e financeiros; tecnologias comunicacionais utilizadas; formas de avaliação; material produzido e locais para acessá-los.

  3. Compreensão das perspectivas e ressignificações por meio de entrevista virtual com lideranças das iniciativas, transcrição e análise de conteúdo do material empírico. Foram realizadas dez entrevistas com pessoas representativas de cada experiência por meio da plataforma Zoom. Cada entrevista teve duração média de 60 a 90 minutos, sendo posteriormente transcrita pelos pesquisadores e analisada qualitativamente.

  4. Apresentação dos resultados e conclusões provisórias às lideranças para validação, em sessão coletiva virtual. O encontro realizou-se pela Plataforma Zoom e contou com a participação de 6 representantes das iniciativas, tendo duração de 195 minutos.

  5. Aplicação de técnicas de georreferenciamento (software gratuito QGIS 3.14.0.) dos dados qualitativos adquiridos. A proposta metodológica, em um primeiro momento, consiste na identificação do espaço fixo a ser georreferenciado (Santos, 1979SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 1979.), e, posteriormente, a identificação e a construção de fluxos e redes que dialogam com os pontos fixos do objeto estudado, apresentando aspectos mais subjetivos e dinâmicos.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respeitando todos os trâmites éticos descritos nas resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/2012 e 510/2016 (Brasil, 2016BRASIL. Resolução Nº 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em ciências humanas e sociais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2016.; 2012BRASIL. Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.).

Resultados e discussão

Inicialmente, foram mapeadas pela internet catorze iniciativas no DF relacionadas a atividades comunitárias e periféricas que tinham algum componente comunicacional sobre covid-19 direcionado à própria comunidade em suas práticas. Esse primeiro levantamento deu-se a partir de um acompanhamento de movimentações de comunicação popular durante a pandemia no Instagram, Twitter, em lives no YouTube, pesquisas no Google, grupos do WhatsApp e por vivências dos pesquisadores em organizações do terceiro setor, centros e coletivos culturais e instituições sociais que atuaram/atuam no enfrentamento da covid-19. Após uma primeira análise, foram selecionadas dez experiências que atendiam ao escopo do estudo, descritas brevemente a seguir:

  1. Território Cultural Mercado Sul Vive, Taguatinga (DF): movimento cultural comunitário com diversas experiências, tais como: ocupação urbana, espaços culturais, coletivos de comunicação na perspectiva da economia solidária, criativa e ecológica.

  2. Coletivo Nós por Nós, Cidade Ocidental (GO): coletivo feminista, criado para a discussão de direitos humanos e feminismo com a comunidade, utilizando uma comunicação não academicista.

  3. Casa Akotirene, Ceilândia (DF): quilombo urbano. Atua em projetos educacionais, entrega de cestas básicas e oferece acompanhamento psicossocial para a comunidade.

  4. Rede Urbana de Ações Socioculturais (RUAS), Ceilândia (DF): Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), atua na promoção da transformação social da juventude que vive nas periferias do DF. Ponto focal para diversos projetos no DF, estimula a comunicação comunitária, além de ações assistenciais.

  5. Distrito Drag, Brasília (DF): coletivo cultural e político de artistas transformistas, o qual busca, por meio do debate político e cultural, ser uma entidade LGBTQIAP+ que represente o movimento.

  6. Portal Canário, Brasília (DF): jornal universitário online independente, que surge como um instrumento de defesa da voz estudantil na UnB.

  7. No Setor, Brasília (DF): instituto de referência na luta pela transformação do espaço urbano no centro de Brasília por meio da ocupação e ressignificação do espaço público. Durante a pandemia, intensificou as ações voltadas para a população em situação de rua, principalmente através de iniciativas assistenciais e preventivas.

  8. Diário de Ceilândia, Ceilândia (DF): jornal comunitário independente que, na pandemia de covid-19, intensificou seu fluxo de produção noticioso para auxílio informacional da população local.

  9. Guardiões da Saúde, Brasília (DF): software em formato de aplicativo, desenvolvido por um projeto de extensão da Universidade de Brasília (UnB), com objetivo de identificar possíveis surtos epidemiológicos no Brasil. Em relação à covid-19, o aplicativo consegue analisar os casos com boletins gerais e monitoramento da comunidade acadêmica.

  10. Instituto Barba na Rua, Brasília (DF): rede de solidariedade que desenvolve trabalhos voltados para a população em situação de rua. O instituto apresenta atuação contínua, com todas as atividades sendo desenvolvidas e descentralizadas pelo DF.

As respectivas lideranças dessas dez experiências foram contatadas e entrevistadas. O material empírico resultante do mapeamento das iniciativas, transcrição das entrevistas e validação junto aos sujeitos foi analisado e categorizado. Sua síntese permitiu identificar as principais estratégias, tecnologias e arranjos comunicacionais produzidos/utilizados por esses coletivos, conforme demonstra a Figura 1:

Figura 1
Tecnologias e arranjos comunicacionais de populações vulnerabilizadas, Distrito Federal - Brasil, 2022

A comunicação em rede, mais do que nunca, tornou-se um circuito integrado fundamental para lidar com questões do âmbito prático das comunidades. A comunicação popular, durante a pandemia, precisou ser articulada em rede nos territórios periféricos num processo de enfrentar uma série de desafios, em um país que ainda sofre com a desigualdades e falta de letramento digital nas periferias. A força das conexões com ferramentas online e off-line, do digital e o analógico, da escuta atenta às demandas e solidariedade foram fundamentais para dar encaminhamentos à demandas da população mais vulnerabilizada de uma maneira que tentasse amenizar as mazelas sociais da desigualdade que se intensificaram com a pandemia da covid-19.

Assim, as tecnologias comunicacionais mapeadas conformam essa rede em apropriações diversas pelas experiências, conforme será detalhado a seguir.

Redes sociais digitais

De maneira geral, todas as experiências possuem perfis em redes sociais, como Instagram e Facebook, no intuito de divulgar informações importantes e trabalhos efetuados pelos grupos, por meio de textos, cards, podcasts, artes e matérias. Durante a pandemia, as redes sociais e grupos de WhatsApp atuaram como canais de interlocução centrais com a população, facilitando a disseminação de informações preventivas (sejam informações oficiais ou conteúdos próprios), além de viabilizarem a captação de fundos e doações para financiamento de ações solidárias para as comunidades em que atuam.

As lives, transmissões ao vivo em plataformas digitais que se popularizaram em todo o mundo (Neves et al., 2021NEVES, V. N. S. et al. Utilização de lives como ferramenta de educação em saúde durante a pandemia pela COVID-19. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, 2021. DOI: 10.1590/ES.240176
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), foram apropriadas por alguns coletivos como dispositivo de comunicação para debate de pautas centrais às comunidades, tais como educação em saúde sobre o covid-19, violência doméstica, saúde mental, desemprego, apresentações culturais, entre outras.

A crescente propagação de notícias falsas relacionadas à covid-19 nas redes sociais, fomentando o descrédito da ciência e das instituições de saúde (Galhardi et al., 2020GALHARDI, C. P. et al. Fato ou Fake? Uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. suppl 2, p. 4201-4210, 2020. DOI: 10.1590/1413-812320202510.2.28922020
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), assim como o distanciamento das recomendações oficiais de prevenção da pandemia às possibilidades do cotidiano dos brasileiros mais pobres (Oliveira-Costa; Fernandes; Vasconcelos, 2022OLIVEIRA-COSTA, M. S.; FERNANDES, M. F. M.; VASCONCELOS, W. O recado está dado: a COVID-19 e suas repercussões para a comunicação em saúde nas instituições públicas. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 175-182, 2022. DOI: 10.17566/ciads.v11i2.923
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) formaram um pano de fundo para a atuação dos coletivos através das redes sociais digitais, aumentando a relevância de sua atuação nessas plataformas, como em outros espaços. Por exemplo, periódicos online, como o Portal Canário e o Diário de Ceilândia, se apropriavam de informações oficiais dos órgãos de saúde e as divulgavam em linguagem acessível em seus jornais, atuando como importantes tradutores do conhecimento para a população periférica do Distrito Federal. A circulação discursiva de informações diversas e em condições de apropriação pelas populações vulnerabilizadas, pelos meios digitais, não só foi bem recebida como também potencializou ações de base física. E isso só foi possível, conforme observado pelos próprios coordenadores dos coletivos, porque foi potencializado pela relação de confiança estabelecida entre os atores, construída nessa proximidade e escuta ao público, vivenciando suas necessidades e saberes.

Equipamentos territoriais como instrumentos de comunicação

Em relação às pessoas em situação de rua (PsR), o contato presencial e oral no território foi apontado por duas experiências (No Setor e Rede Barba na Rua) como a estratégia mais predominante e eficaz. Paralelamente, existem equipamentos territoriais que atuam como instrumentos de comunicação, por exemplo, a horta comunitária e o banheiro público, gerido pelos próprios moradores, com auxílio do Coletivo No Setor. A horta funciona como um “manejo de diálogos” que, a partir das ações no local, fomentam conversas e pontes de comunicação com as PsR. Já o banheiro público funciona também como um ponto de encontro, no qual foram afixados cartazes com orientações preventivas sobre a covid-19 e exigindo o uso de máscaras para utilização do local. Assim, criam-se mecanismos de atuação microestruturais dentro da comunidade, a partir da oralidade e dos costumes populares, além do exemplo vivo - ao verem os voluntários dos coletivos usando máscaras, a comunidade era estimulada a usá-las também.

Esta presença dos equipamentos territoriais como lugares físicos e espaços simbólicos de comunicação foi considerada um dos achados mais importantes da pesquisa no núcleo do DF, destacando a frequente desvalorização e invisibilização desses lugares como espaços comunicacionais e de comunicação orgânica. Dessa maneira, podemos entender que os meios institucionalmente criados são, muitas vezes, descontextualizados e não guardam relação com as práticas e culturas locais.

O complexo mosaico de exclusão social e fragilidade de direitos que resultam na realidade das PsR, de um modo geral, finda por fortalecer a lógica da caridade como estratégia de “acerto de contas” social, imprimindo aos sujeitos um lugar de passividade, a exemplo do que Silva et al. (2021SILVA S.S. et al. Coletivo Nós Nas Ruas e Programa Corra Pro Abraço: ações para o enfrentamento da Covid-19 em Salvador, BA, Brasil. Interface, Botucatu, v. 25, n. Supl. 1, 2021. DOI: 10.1590/interface.200690
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) comentaram em outro contexto analítico. Paralelamente, a escassez de tecnologias educacionais e comunicacionais direcionadas às PsR reforça esse estigma excludente, sendo fundamental a elaboração de estratégias comunicacionais participativas junto a esses sujeitos - como a oferta de escuta sensível, construção e validação de materiais como lambes, ilustrações e álbuns seriados (Aragão et al., 2022ARAGÃO, C. P. et al. Validação de álbum seriado sobre redução de danos para pessoas em situação de rua. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 31, n. 1, e200939, 2022. DOI: 10.1590/S0104-12902022200939
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). É nessa mesma linha de pensamento que a apropriação de equipamentos territoriais locais para fins comunicacionais, como fizeram os coletivos No Setor e Rede Barba na Rua revela-se e revelou-se emancipatória e pertinente diante esse cenário de desigualdades pungentes que as pessoas em situação de rua vivenciam na pele.

Prática de articulação advocacy

Advocacy é uma prática de articulação e pressão aos entes públicos, visando a defesa de uma causa ou mudança no âmbito político, de maneira a reivindicar a resolução de um problema ou a garantia de um direito (Hermsdorff et al., 2020HERMSDORFF, H. H. et al. Advocacy e controle social na saúde. Viçosa: RENOB-MG, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.ippds.ufv.br/wp-content/uploads/2021/05/Controle-Social-e-Advocacy-2.pdf >. Acesso em: 10 ago 2022.
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).

O Distrito Drag investe na prática de advocacy, que, no contexto pandêmico, foi orientada para o acolhimento da população LGBTQIAP+ que tivesse sofrido alguma violência ou rejeição familiar, bem como a criação de um Fundo de Apoio Emergencial a LGBT’s, a partir do qual haveria (como de fato houve) a formação de uma rede de solidariedade, orientando, também, a comunidade para a submissão a editais de apoio e promovendo premiações em eventos online.

Na perspectiva da ação de pautar as organizações, imprensa e opinião pública a respeito das dificuldades enfrentadas pela população em situação de rua durante a pandemia, outras experiências, como No Setor e Rede Barba na Rua, também lançaram mão do advocacy como articulação comunicacional e fomento ao debate público, mesmo que não tenham nomeado a experiência como tal. Esses coletivos cobriam e cobrem largamente a condição indispensável apontada por Hermsdorff et al. (2020HERMSDORFF, H. H. et al. Advocacy e controle social na saúde. Viçosa: RENOB-MG, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.ippds.ufv.br/wp-content/uploads/2021/05/Controle-Social-e-Advocacy-2.pdf >. Acesso em: 10 ago 2022.
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) para que se atinja sucesso com a estratégia do advocacy, que é o envolvimento da sociedade civil. A importância dessa prática por parte dos coletivos participantes da pesquisa fica mais evidente se considerarmos que, apesar de compor uma diretriz organizativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a participação da população na construção de políticas públicas tem sido longe do ideal, principalmente se considerarmos a interlocução com as populações mais vulnerabilizadas, como por exemplo a população em situação de rua.

Pack de cards estratégicos

O coletivo RUAS coloca em cena a relevância da utilização de arranjos que contemplem uma sobreposição de caminhos, linguagens e estéticas diferentes para se comunicar com grupos sociais diversos. Nesse sentido, destaca a produção de um “pacote” de, no máximo, dez cards informativos, compartilhados em grupos estratégicos criados no WhatsApp e no Telegram. Assim, busca-se uma maneira dinâmica e objetiva de abordar assuntos importantes (como auxílio-creche, medidas preventivas de covid-19, auxílio financeiro etc.), com mensagens rápidas e recursos visuais.

Ao fazer a opção pelo pacote de cards, um recurso tipicamente adequado à prática corrente no mundo digital de textos rápidos e fortemente imagéticos, o coletivo se mostra sintonizado com análises recentes desses ambientes discursivos, que se tornaram, conforme apontam Abreu et al. (2021ABREU, N. R. F. O.; CARVALHO, A. L. B. Avanços e desafios da comunicação digital em saúde na era da pandemia. Revista APS, Juiz de Fora, v. 24, n. Supl 1, p. 165-184, 2021. DOI: 10.34019/1809-8363.2021.v24.35190
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), espaços de participação e construção do cuidado e conhecimento, sendo cruciais, mundialmente, no enfrentamento do coronavírus. Ou, como elucida outro estudo (Freitas et al., 2021FREITAS, V. P. et al. Produção de redes sociais digitais como estratégia de educação em saúde no contexto da pandemia da COVID-19. Revista APS, Juiz de Fora, v. 24, n. 3, p. 617-627, 2021. DOI: 10.34019/1809-8363.2021.v24.33965
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), baseado na análise do Instagram, os coletivos buscam gerar maior interesse e engajamento das pessoas, lançando mão de formatos mais diretos e visuais, e descartando o uso de textos longos. Da mesma forma, Abreu et al. (2021ABREU, N. R. F. O.; CARVALHO, A. L. B. Avanços e desafios da comunicação digital em saúde na era da pandemia. Revista APS, Juiz de Fora, v. 24, n. Supl 1, p. 165-184, 2021. DOI: 10.34019/1809-8363.2021.v24.35190
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), afirmam que vídeos de curta duração em redes sociais como o TikTok produziam melhor repercussão entre os usuários.

Software em formato de aplicativo

O aplicativo “Guardiões da Saúde” surge com o objetivo de identificar possíveis surtos epidemiológicos no Brasil e no mundo. Durante a pandemia da covid-19, os recursos são voltados para monitorar os casos na comunidade acadêmica da Universidade de Brasília (UnB), assim como produzir e disponibilizar boletins gerais a partir dos dados obtidos. Assim, os Guardiões se tornam fonte confiável de informações para a comunidade acadêmica, realizando campanhas e desenvolvendo a vigilância ativa e parcerias com outras universidades.

Observa-se que, em um contexto de pandemia, o acesso à informação - direito básico do cidadão - também se mostra como uma forma de enfrentamento de crise, uma vez que influencia nas decisões individuais e coletivas (Artigo 19, 2020ARTIGO 19. 8 anos Lei de acesso à informação: transparência para superar a crise. São Paulo, 2020. Disponível em: <https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2020/05/RelatorioAcessoInformacaoCrise2020.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2022.
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). Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico de um software, concebido inicialmente com outros objetivos, atua como iniciativa comunicacional relevante, uma vez que evidencia como respostas rápidas foram adotadas a fim de garantir o acesso a informações de qualidade e combater a crise sanitária. Esse cenário foi apresentado por Valentim et al. (2021VALENTIM, R. A. M. et al. The relevance a technology ecosystem in the brazilian national health service’s Covid-19 response: The case of Rio Grande do Norte, Brazil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 6, p. 2035-2052, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232021266.44122020
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), que apresentou a relação entre o uso de tecnologias digitais no campo da comunicação em saúde e sua capacidade de provocar o controle da pandemia, demonstrando a importância do incentivo ao desenvolvimento de tecnologias em saúde.

Programa em TV comunitária

O Programa semanal de TV “Barba na Rua” promove uma comunicação com a população em geral, principalmente relacionada às pautas de comunidades vulnerabilizadas e a população em situação de rua do DF e entorno. Coordenado por Rogério Barba, que viveu em situação de rua até 2014, o programa garante a participação de cidadãos e representantes do poder público, compondo uma agenda de captação de recursos públicos e privados, bem como o compartilhamento de informações rápidas e diretas para situação de desaparecimentos, auxílios, coleta de agasalhos, distribuição de alimentos.

Segundo Peruzzo (2008PERUZZO, C. M. K. Televisão comunitária: mobilização social para democratizar a comunicação no Brasil. Em Questão, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 177-189, 2008.), os programas de TV comunitária têm o potencial de trazer uma agenda não-hegemônica, construída segundo as perspectivas e necessidades de suas comunidades. Dessa maneira, oportuniza-se a criação de emissores plurais e, consequentemente, promove-se diálogo com diversas populações, diferentemente do que ocorre na grande mídia, em que classes específicas são perpetuadas apenas como receptores de mensagens e as informações compartilhadas são determinadas pela lógica de mercado (Peruzzo, 2008PERUZZO, C. M. K. Televisão comunitária: mobilização social para democratizar a comunicação no Brasil. Em Questão, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 177-189, 2008.).

“Boca a boca” e Comunicação Orgânica e Presencial

A comunicação local e interpessoal foi uma alternativa fundamental para o processo de construção de uma comunicação que conseguisse dialogar com as pessoas em territórios que mais sofreram com os impactos da pandemia do covid-19, uma vez que as políticas públicas de saúde e assistência não conseguiram responder às urgências oriundas desse novo contexto de crise sanitária.

Por exemplo, nas experiências relatadas pelo grupo No Setor e pela Rede de Solidariedade Barba na Rua - cujas atuações na pandemia se voltaram quase exclusivamente direcionadas e em conjunto à população em situação de rua - o “boca a boca” é a ferramenta mais eficaz como instrumento de comunicação. Importante observar que, nesse contexto, alguns materiais impressos de divulgação de medidas preventivas e com outros conteúdos se mostraram ineficazes, pois se tornam, muitas vezes, materiais de higiene no final da noite pelas pessoas em situação de rua, corroborando a importância do uso da oralidade e a evidenciando como uma tecnologia comunicacional básica, mas muitas vezes subestimada, que consegue se articular com a realidade da comunidade em questão.

Um outro bom exemplo é a experiência da Casa Akotirene que, apesar de possuir redes sociais, 90% do seu público são mulheres da comunidade local em Ceilândia (DF) que não possuem Instagram e Facebook e, por isso, as divulgações feitas na Internet não conseguiam atingir seu público. Portanto, a tecnologia comunicacional do “boca a boca”, diálogos pelos portões e até mesmo o WhatsApp, ocorrida por meio de trabalhos e encontros presenciais, surgiu como modo de comunicação para quem não está nas redes sociais. Além disso, o protagonismo das lideranças femininas, juntamente aos processos comunicacionais conscientizadores, ampliou as possibilidades de uma nova práxis de mobilização coletiva, conforme também é apontado por Yagiu et al. (2021YAGIU, H. et al. Social participation of community leaders in a context of social inequality and in the coping of the covid-19 pandemic: A psychosocial approach. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 2, 2021.).

De modo análogo, experiências comunitárias como o coletivo “Nós por nós” destacaram a relevância do uso de uma comunicação mais orgânica no território, com uma linguagem não academicista. Nesse sentido, o território cultural Mercado Sul utilizou a publicização de histórias de vida de sua comunidade, a fim de mostrar quem são os moradores e suas reivindicações e, a partir disso, obter apoio em seus projetos.

Conexões em rede

As experiências RUAS, Mercado Sul, Coletivo Nós por Nós e Casa Akotirene consolidaram construções e parcerias com outros coletivos, principalmente da periferia do DF, criando até mesmo uma articulação nacional para diálogo e apoio no intuito de enfrentar a pandemia.

A Rede de Solidariedade Barba na Rua também articula ações solidárias para a população de rua do Distrito Federal. As ações são protagonizadas e capitaneadas pelo coordenador Rogério Barba, mas não se concentram exclusivamente em sua liderança, pois os diversos colaboradores da rede atuam de maneira descentralizada em múltiplas iniciativas (aproximadamente 40 projetos).

O jornal Diário de Ceilândia também articulou uma rede local a partir da divulgação nas redes sociais de “prints” de pedidos de auxílio por parte de pessoas em situação de vulnerabilidade da comunidade durante a pandemia, observando grande adesão dos usuários do jornal.

Tais conexões solidárias das experiências sinalizaram o desenvolvimento de uma rede no Distrito Federal e entorno, com a formação de “epicentros solidários”, discutidos a partir de uma análise cartográfica a seguir.

Redes Comunicacionais e Solidárias no Distrito Federal e entorno

Utilizado para desenhar a espacialidade da rede comunicacional e solidária que as experiências constroem, considera-se, a partir de Pereira e Silva (2001PEREIRA, G. C.; SILVA, B. C. N. Geoprocessamento e urbanismo. In: GERARDI, L. H. O.; MENDES, I. A. (Org.). Temas de geografia contemporânea. Rio Claro: Unesp; AGTEO, 2001. p. 97-137.), que o Georreferenciamento é um conjunto de tecnologias, métodos e processos para a produção digital de dados e informações geográficas através de diferentes softwares. Dessa maneira, foi elaborado um Mapa Temático das Redes Comunicacionais e Solidárias no Distrito Federal e entorno (Figura 2), tendo em vista o processo socioespacial das experiências na formulação da espacialidade que caracteriza essa rede solidária.

Figura 2
Mapa Temático das Redes Comunicacionais e Solidárias no Distrito Federal e Entorno, 2022

Para Santos (1979SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 1979.), o espaço é compreendido como um conjunto de formas representativas das relações sociais do passado e do presente, com diversas relações acontecendo e manifestando-se através de diferentes processos e funções. Portanto, a disposição espacial atual das experiências, nas periferias do Distrito Federal ou no centro da cidade, revela um processo histórico contínuo de atendimento de populações vulnerabilizadas, organizadas em coletivos e movimentos em pontos estratégicos de alcance da comunidade por essa própria população. Nesse sentido, torna-se fundamental compreender a atuação das experiências em ambas as escalas: a) local, na comunidade e no seu entorno; b) regional, onde as ações das experiências abrangem o DF como um todo e, em certo momento, ultrapassa a escala regional chegando ao nacional.

Portanto, é indispensável a categoria espacial ao pensar a dinâmica e a capilaridade dessas experiências na cidade, onde o território usado, imaginado a partir do olhar dos atores que dele utilizam (Seabra et al., 2000SEABRA, O; CARVALHO, M; LEITE, J.C. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.), torna-se elemento indissociável que alimenta e constitui o nosso ser pessoa no mundo, não sendo possível ver as experiências apartadas do território, pois somos também parte indissociável dele, nosso próprio corpo-território (Correa Xakriabá, 2018CORREA XAKRIABÁ, C.N. O Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de Autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. 2018. 218 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2018.). Mesmo selecionadas de forma aleatória, as experiências carregam a potencialidade de agregação, apresentando a formulação de uma rede solidária. Essa rede, compreendida como um conjunto de nós interconectados (Braga, 2010BRAGA, R. M. Território, rede e multiterritorialidade: uma abordagem conceitual a partir das corporações. Revista Geografias, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 26-36, 2010. DOI: 10.35699/2237-549X.13293
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) é representada no estudo como localizações geográficas conectadas entre si, às quais promovem relações e intercâmbios, com aspectos móveis, integrados e fluídos, sendo esta troca entre pontos fixos e fluxos caráter essencial dessa rede que é mutável a partir do apoio e suporte que as experiências prestam umas às outras no enfrentamento de vulnerabilidades estruturais.

As experiências se interseccionam pela dinâmica solidária comum em cada comunidade. Dessa maneira, essa dinâmica se espacializa, criando epicentros solidários. Tais epicentros são compreendidos como pequenas redes locais de suporte, agregadas nas regiões administrativas, dentro dessa macro rede solidária do DF, apresentando componentes comunicacionais e de engajamento e, em um cenário pandêmico potencializador de vulnerabilidades, predominantemente assistenciais.

Assim, cria-se um epicentro na Ceilândia, com três experiências: a do quilombo urbano Casa Akotirene, a do jornal Diário de Ceilândia e a do movimento de juventude Instituto RUAS. Neste epicentro, é possível agregar a experiência Mercado Sul, que se encontra em Taguatinga, mas que mantém uma relação aproximada com as experiências de Ceilândia, através de um diálogo cotidiano entre esses territórios e o uso de tecnologias comuns como a conexão em rede que as experiências constroem a longo prazo. Além dessas experiências, agrega-se a única observada fora do território do DF - o coletivo Nós por Nós, na Cidade Ocidental-GO - mas que mantém também relação contínua com o Instituto RUAS em Ceilândia.

Outro epicentro solidário foi observado no Plano Piloto, área central de Brasília, com parte das experiências no Setor Comercial Sul contendo: Distrito Drag, Instituto No Setor e a Rede de Solidariedade Barba na Rua, sendo a atuação dos dois últimos em conjunto com a população em situação de rua. A segunda parte do epicentro solidário do Plano Piloto contém experiências dentro do território da Universidade de Brasília, sendo o aplicativo Guardiões da Saúde e o Jornal Universitário O Canário, focado na produção de informação para a comunidade acadêmica.

Portanto, nesta forma diferenciada de viver e fazer a cidade, a partir de uma lógica não hegemônica, as experiências constroem de forma coletiva e orgânica um modelo de se conectar em rede através de práticas solidárias. Ao territorializar um espaço hegemônico com práticas em função do bem-estar das populações vulnerabilizadas, cria-se um território de esperança: uma espacialidade que rompe com uma lógica autoritária e cruel, apresentando fissuras nesse modelo de cidade. Essa nova espacialidade constrói os dois epicentros solidários observados no DF.

Considerações finais

Os resultados evidenciaram que as principais tecnologias comunicacionais utilizadas pelas iniciativas estudadas diziam respeito às realidades locais em que estavam inseridas, respeitando as características e representatividades de suas comunidades. Como exemplo, destacamos a priorização de atividades presenciais em locais com pouco acesso a redes sociais e o aproveitamento de tecnologias territoriais comuns (como o banheiro público e a horta comunitária) que funcionaram como dispositivos de diálogo com a população em situação de rua, uma vez que a distribuição massiva de impressos se mostrou pouco profícua para esse público. Em síntese, se contrapormos essa comunicação fundamentalmente orgânica, produtora de redes de solidariedade, usando as forças vivas de cada coletividade, buscando distância de qualquer coisa que se possa chamar de caridade ou assistencialismo, mas também de um simples conjunto de prescrições a serem seguidas, à comunicação majoritariamente e historicamente produzida pelas instituições públicas de saúde, cujo padrão transferencial, concentrador da fala e descontextualizado foi repetido em quase todos os lugares na pandemia da covid-19, podemos concluir que o ponto de partida dessa pesquisa - aprender com os comunicadores populares - foi muito acertado e bem sucedido.

Disseminar esses resultados entre os gestores e assessores de comunicação dos órgãos responsáveis pela saúde pública e coletiva é a mais simples de todas as tarefas. A mais difícil é sem dúvida conseguir abrir fissuras na muralha das ideias preconcebidas que estruturam a prática institucional, conformada pelo pressuposto da prerrogativa do único conhecimento válido. Mas não fomos os primeiros, outros já nos antecederam nesse movimento, para o qual convergimos oferecendo as ricas aprendizagens de nossa pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    13 Mar 2023
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