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Agência e poder na pesquisa: algumas reflexões sobre os termos de consentimento livre e esclarecido1 1 Financiamento: bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bolsa do programa ProCiência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (de 2007 ao presente)

Agency and power in research: some thoughts about informed consent forms

Resumo

Neste artigo, discutimos algumas premissas do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), partindo do princípio que elas não são dadas. Argumento que o uso de um termo de consentimento deve ser compreendido dentro de uma relação de pesquisa, que é ao mesmo tempo uma relação intersubjetiva entre duas ou mais pessoas posicionadas socialmente. Desenvolvo esta reflexão a partir de minhas experiências recentes de pesquisa antropológica sobre gestação e parto, nas quais apresentei um TCLE em duas etapas do estudo, mas não em uma intermediária, que se dedicava a explorar mais as relações familiares durante a gravidez do que a experiência corporal em si. Assim, comparando essas três situações, examino suas especificidades na obtenção do consentimento, para discutir as dimensões de agência, poder e ética na pesquisa social.

Palavras-chave:
Termo de Consentimento; Ética em Pesquisa; Agência; Gravidez; Parto

Abstract

This article discusses some premises that constitute informed consent forms, assuming they should not be taken for granted. I argue that the use of informed consent forms should be understood within a research relationship, which is always an intersubjective relation between two or more socially positioned individuals. I develop these reflection based on my recent experiences of anthropological research on pregnancy and birth, during which I used an informed consent form in two stages but not in an intermediary phase, which was dedicated to focus on kinship relations during pregnancy more than the bodily experience itself. Thus, by comparing these three situations, I examine their particularities in obtaining consent, discussing agency, power, and ethics in social research.

Keywords:
Informed Consent Form; Research Ethics; Agency; Pregnancy; Birth

Quando resolvi estudar experiências da gravidez em 2007, a questão da ética na pesquisa se colocou de forma distinta de meus estudos prévios sobre amizade e identidade nacional. Anteriormente, as condições das conversas e entrevistas e a garantia de anonimato haviam sido negociadas verbalmente. Igualmente importante, a escrita havia se mostrado um momento significativo de respeitar esses acordos, o que só reforçava a importância de práticas de pesquisa éticas. Ao mudar de foco para um tema da área da saúde, as negociações verbais deixaram de ser suficientes e a apresentação de um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) às participantes da pesquisa tornou-se um requisito.

No entanto, entendo que as premissas do TCLE não são dadas e devem ser foco de problematização. O que significa consentir em participar de uma pesquisa das ciências sociais e humanas? As categorias “livre” e “esclarecido” trazem implícitas quais outras noções? Argumento que o uso de um termo de consentimento deve ser compreendido dentro de uma relação de pesquisa, que é ao mesmo tempo uma relação intersubjetiva entre duas ou mais pessoas posicionadas socialmente. Desenvolvo esta reflexão a partir de minhas experiências recentes de pesquisa sobre gestação e parto, nas quais apresentei um TCLE em duas etapas do estudo, mas não em uma intermediária, que se dedicava a explorar mais as relações familiares durante a gravidez do que a experiência corporal em si. Assim, comparando essas três situações, examino suas especificidades na obtenção do consentimento, para discutir as dimensões de agência, poder e ética na pesquisa social.

Os debates sobre ética na antropologia ganharam muita atenção no século XXI (Diniz, 2008DINIZ, D. Ética na pesquisa em ciências humanas - novos desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13 n. 2, p. 417-426, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000200017.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200800...
; Sarti; Duarte, 2013SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. Introdução. In: SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, DF: ABA/EdUFF, 2013. p. 9-30.; Victora et al., 2004VICTORA, C. et al. Introdução. In: VICTORA, C. et al (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Rio de Janeiro, ABA/EdUFF, 2004. p. 13-18.), em parte associado a uma maior diversificação na atividade profissional dos antropólogos, em parte pela imposição de parâmetros das pesquisas nas áreas biomédicas aos estudos nas ciências sociais. A regulamentação formal da ética no Brasil, iniciada em 1996, gerou uma série de desafios e impasses advindos de um campo novo, a bioética, que abarca filosofia e biomedicina (Duarte, 2015DUARTE, L. F. D. A ética em pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, Porto Alegre, v. 3, n. 5, p. 31-52, 2015. DOI: 10.20336/rbs.90.
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). Criada para regular todas as pesquisas com seres humanos, suas diretrizes se aplicam mais às pesquisas clínicas e experimentais em biomedicina do que àquelas nas ciências humanas e sociais. Em particular, as exigências sobre o que deve constituir um consentimento informado têm sido problematizadas nessas últimas, cujo conhecimento se constrói por meio das relações intersubjetivas no campo. Destaco que muitos dos problemas éticos alvo da regulação burocrática já haviam sido tema de revisão crítica na antropologia pós-moderna da década de 1980, quando a pesquisa de campo e a escrita posterior foram examinadas em termos das relações de poder implicadas.

Estes dois momentos da pesquisa levantam problemas específicos em torno do consentimento, como argumenta Alcida Ramos (2004RAMOS, A. A difícil questão do consentimento informado. In: VICTORA, C. et al (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Rio de Janeiro, ABA/EdUFF, 2004. p. 91-96.). A autora discute algumas dessas diferenças a partir de problemas éticos ocorridos em dois estudos com os Yanonami, um da genética e outro da antropologia. Enquanto no primeiro a falta de ética aconteceu no campo, no modo como material para a pesquisa genética foi coletado, no segundo, uma representação pejorativa da comunidade se construiu na escrita, quando o antropólogo já estava de volta ao seu país. A obtenção do consentimento das comunidades estudadas é fundamental, mas Ramos aponta como é complexo decidir qual a melhor forma, com que nível de detalhamento dos propósitos da pesquisa. Neste artigo, quero contribuir para essas reflexões a partir de minhas pesquisas recentes sobre gravidez e parto.

Assim, neste artigo, farei inicialmente um percurso mais teórico, apresentando tanto algumas questões do debate sobre ética em pesquisas sociais quanto discussões especificas da antropologia, para em seguida explorar aspectos de meus estudos sobre gravidez e parto, com destaque para os usos dos termos de consentimento e seus efeitos nos relatos produzidos.

Ética, poder e pesquisa na antropologia

Quando a ética em pesquisa foi regulamentada no país em 1996, a Constituição de 1988 era ainda recente e havia reconfigurado a questão dos direitos no país, como destacam Sarti e Duarte (2013SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. Introdução. In: SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, DF: ABA/EdUFF, 2013. p. 9-30.). Se a Associação Brasileira de Antropologia criou seu primeiro código de ética na gestão 1986-1988, ele vem sendo debatido de forma mais intensa no século XXI, na medida em que a resolução de 1996 atrelou a ética em pesquisa ao Conselho Nacional de Saúde. Com isso, a produção antropológica sobre a ética na pesquisa cresceu bastante nas últimas décadas, voltada para as tensões e os problemas na sua regulamentação e implementação, discutidos em diversas obras (Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. RECIIS: Revista Eletrônica de Comunicação Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 2, p. 78-90, 2008. Suplemento 1. DOI: 10.3395/reciis.v2i0.869.
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; Sarti; Duarte, 2013SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. Introdução. In: SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, DF: ABA/EdUFF, 2013. p. 9-30.; Victora et al., 2004VICTORA, C. et al. Introdução. In: VICTORA, C. et al (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Rio de Janeiro, ABA/EdUFF, 2004. p. 13-18.).

Neste debate, quero me deter na questão do risco trazido pelas pesquisas, pano de fundo da elaboração dos termos de consentimento.2 2 Valeria a pena pensar como a preocupação com os riscos da pesquisa se conecta com a importância dada ao risco nas sociedades ocidentais modernas. Como discutem Giddens (1991) e Beck (2011), na modernidade tardia atores e especialistas passaram a organizar o presente na vida social a partir do futuro e a ver o risco como fruto de escolhas e decisões individuais. As pesquisas feitas em seres humanos implicam riscos muito distintos daquelas feitas pelas áreas humanas, que se desenrolam a partir de relações intersubjetivas (Diniz, 2008DINIZ, D. Ética na pesquisa em ciências humanas - novos desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13 n. 2, p. 417-426, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000200017.
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; Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. RECIIS: Revista Eletrônica de Comunicação Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 2, p. 78-90, 2008. Suplemento 1. DOI: 10.3395/reciis.v2i0.869.
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; Duarte, 2015DUARTE, L. F. D. A ética em pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, Porto Alegre, v. 3, n. 5, p. 31-52, 2015. DOI: 10.20336/rbs.90.
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). No primeiro tipo, o interesse da pesquisa está na corporalidade humana, muitas vezes tratada de forma fragmentada, tornando as pessoas participantes vulneráveis. No segundo grupo, a pesquisa se desenvolve a partir da interação de duas ou mais pessoas, em posições distintas - pesquisador e pesquisado, consideradas em suas “totalidades vivenciais” (Duarte, 2015DUARTE, L. F. D. A ética em pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, Porto Alegre, v. 3, n. 5, p. 31-52, 2015. DOI: 10.20336/rbs.90.
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). Nesse segundo contexto, o caráter negociado da interação marca principalmente a coleta de dados, mas também seu tratamento, exigindo uma postura ética em todo o percurso da pesquisa. Na primeira situação, as pesquisas independem em geral da “consciência racional e do envolvimento afetivo dos participantes, mas terão implicações sobre os seus corpos” (Duarte, 2015DUARTE, L. F. D. A ética em pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, Porto Alegre, v. 3, n. 5, p. 31-52, 2015. DOI: 10.20336/rbs.90.
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, p. 35), justificando assim a formalização da relação de pesquisa em um TCLE.

Nesse cenário, a ideia de consentimento surge associada a escolhas exercidas com autonomia. Remetendo ao pensamento liberal e tornando-se base da regulação jurídica sobre sexualidade, esta concepção parte da visão de que “aquele que pode consentir é, antes e tudo, um sujeito que no pleno uso de sua capacidade de agência e discernimento faz escolhas na ausência de constrangimento ou de qualquer coação de sua vontade” (Fernandes et al., 2020FERNANDES, C. et al. As porosidades do consentimento. pensando afetos e relações de intimidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, v. 35, p. 165-193, 2020. DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2020.35.09.a.
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, p. 167). Os impasses em torno do conceito resultam tanto da definição de quem é o sujeito e quais os seus direitos, bem como de sua autonomia para decidir. Às crianças e adolescentes, por exemplo, é atribuída uma condição de vulnerabilidade, que afetaria a possibilidade de realizarem escolhas com autonomia, como destacam Fernandes et al. (2020FERNANDES, C. et al. As porosidades do consentimento. pensando afetos e relações de intimidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, v. 35, p. 165-193, 2020. DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2020.35.09.a.
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).

A visão de que sujeitos de pesquisa são vulneráveis orienta muitas decisões do comitê de ética em pesquisa etnografado por Harayama (2014HARAYAMA, R . O Sistema CEP-Conep e a ética em pesquisa como política pública de proteção do usuário do SUS. In: FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. (Org.). Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 323-351.), cuja missão seria a proteção de seus direitos. Como forma de regulação das atividades de pesquisa, o sistema de comitês de ética em pesquisa CEP-Conep atua buscando o “ponto de vista do sujeito de pesquisa”, visto, tal qual os usuários do SUS, como sendo de baixa renda e vulneráveis por conta de sua baixa escolaridade (Harayma, 2014HARAYAMA, R . O Sistema CEP-Conep e a ética em pesquisa como política pública de proteção do usuário do SUS. In: FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. (Org.). Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 323-351., p. 344). Por isso, seus direitos devem ser resguardados por meio dos TCLE, objeto de muita discussão e escrutínio nos comitês de ética.

Assim, nos TCLE, a questão do consentimento é central e põe em foco o respeito pela autonomia da pessoa pesquisada em aceitar ou recusar sua participação (Luna, 2008LUNA, F. Consentimento livre e esclarecido: ainda uma ferramenta útil na ética em pesquisa. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 2, p. 42-53, 2008. Suplemento 1. DOI: 10.3395/reciis.v2i0.866.
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). Se um estudo biomédico com substâncias não permite em geral ao pesquisado controlar como seu corpo reagirá a elas, a situação é diferente em um questionário ou uma entrevista. A pessoa pesquisada pode não responder à pergunta ou fazê-lo de modo vago ou mentir. Mais pertinente aos meus objetivos aqui, a pessoa muito provavelmente vai responder de acordo com o que ela ou ele acha adequado a uma pesquisa feita por aquele pesquisador específico (em termos de gênero, idade, classe, raça, origem nacional, entre outros). O reconhecimento dessa capacidade de agência se espelha no uso cada vez mais frequente do termo “interlocutor” para se referir aos pesquisados, que, longe de serem passivos na produção de conhecimento, são ativos e parceiros dela.

Por outro lado, contrapondo-se a uma visão de um indivíduo cuja autonomia o isola, Ortner (2007ORTNER, S. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, M. et al. (Org.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas - 25ª Reunião Brasileira de Antropologia. Blumenau: Nova Letra, 2007. p. 45-80.) argumenta a favor de um conceito de agência que articule a capacidade de agir ao enredamento em relações de solidariedade e de poder. Ainda que cada sociedade a elabore enquanto formas e esquemas culturalmente particulares, baseados em um conceito de subjetividade igualmente específico no tempo e no espaço, a agência diz respeito à condição que todos os atores sociais têm de atuar. Mas as diferenças de poder entre os atores afetam essas capacidades de agir, de influenciar pessoas e realizar projetos. Assim, na relação de pesquisa, as agências do(a) pesquisador(a) e do(a) pesquisado(a) estão articuladas às suas posições sociais, que por sua vez se inserem em relações de poder.

Estas diferenças de poder podem se apresentar de modos variados, dependendo das características sociais do(a) pesquisador(a) e das pessoas pesquisadas. Mas, em um sentido mais fundamental, ela está dada na própria relação epistemológica entre o olhar pesquisador e a pessoa pesquisada. Geertz (2012GEERTZ, C. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico. In: GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 60-74.) chama atenção para a diferença entre os conceitos de “experiência próxima” e de “experiência distante”, que estruturam a pesquisa antropológica. Os primeiros são usados sem esforço para se referir ao que se vivencia e muitas vezes nem são reconhecidos como conceitos. Os segundos, mais abstratos, são utilizados por especialistas para desenvolver seus objetivos. Ainda que a diferença entre eles seja mais de grau do que absoluta, os primeiros caracterizam o olhar de quem está imerso em sua vida cotidiana enquanto os segundos são mobilizados pelo pesquisador. Neste sentido, a relação de cada parte com o conhecimento e a experiência é necessariamente distinta e esta diferença pode produzir desconforto para quem vê sua vida discutida através de conceitos abstratos de pesquisa.

As implicações dessas relações de pesquisa foram tema de muitas reflexões da chamada crise pós-moderna na antropologia na década de 1980. Nelas, a questão do poder se colocava de duas formas principais, que refletem em momentos distintos da pesquisa: nas relações na pesquisa de campo e na construção das representações - na escrita (Abu-Lughod, 2020ABU-LUGHOD, L. A escrita dos mundos de mulheres. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020.; Clifford, 2016CLIFFORD, J. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (Org.). A escrita da cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ; Papéis Selvagens, 2016. p. 31-61.). A antropologia se constituiu como disciplina por meio do encontro colonial, quando um(a) pesquisador(a), em geral um homem branco europeu ou americano, fazia trabalho de campo em uma sociedade ou grupo colonizada. Com autoridade para construir representações sobre as pessoas estudadas, o trabalho etnográfico foi marcado por desigualdades de poder durante muitas décadas. O surgimento de “etnógrafos nativos”, que estudam suas próprias sociedades, afetou a autoridade do pesquisador, que automaticamente poderia falar por um outro (Clifford, 2016CLIFFORD, J. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (Org.). A escrita da cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ; Papéis Selvagens, 2016. p. 31-61., p. 41). A ideia de que os retratos construídos não refletem a verdade de uma cultura, mas sim a construção de uma visão a partir de uma posição específica, marcada pela subjetividade do autor, enfatiza a parcialidade das etnografias, modulando de certa forma sua autoridade.

A percepção de que a antropologia produz “verdades parciais”, para citar Clifford (2016CLIFFORD, J. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (Org.). A escrita da cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ; Papéis Selvagens, 2016. p. 31-61.), ademais vem associada a mudanças teóricas no modo de entender a cultura. Se o conceito foi entendido durante muito tempo como referindo-se a um “objeto científico”, claramente delineado e apto a ser descrito e “fotografado”, nas últimas décadas do século XX ele passa a ser visto como produção histórica sempre contestada. Mais ainda, no debate sobre a escrita etnográfica, destaca-se uma visão relacional de “cultura”, “uma inscrição de processos comunicativos que existe, historicamente, entre sujeitos em relações de poder” (Clifford, 2016CLIFFORD, J. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (Org.). A escrita da cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ; Papéis Selvagens, 2016. p. 31-61., p. 48, grifo do autor). Abu-Lughod (2020ABU-LUGHOD, L. A escrita dos mundos de mulheres. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020., p. 48) acrescenta às problematizações do conceito, que, além de produzir homogeneização e coerência com contornos definidos, transforma “a diferença em algo fixo e atemporal”.

Assim, o(a) pesquisador(a) não chega a campo para estudar uma cultura já dada previamente, que ele ou ela irá descrever, mas torna-se parte, através das relações intersubjetivas com as pessoas pesquisadas, dos dados produzidos por meio delas. Sua entrada no campo será afetada por suas características de gênero, idade, classe, origem étnica e nacional, religião, entre outros, como mostram muitas etnografias (Abu-Lughod, 2020ABU-LUGHOD, L. A escrita dos mundos de mulheres. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020.; Almeida, 1995ALMEIDA, M. V. Senhores de si. Lisboa: Fim de Século Edições, 1995.; Kondo, 1990KONDO, D. Crafting Selves. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.). Com esta perspectiva, analisar e explicitar a posição social do(a) pesquisador(a) passa a ser exigência dos textos antropológicos, como parte do entendimento do estudo que se apresenta. Esta demanda não modifica as relações de poder implicadas na pesquisa, mas tenta dar mais visibilidade a elas para entender como constituem o campo e afetam a escrita. Esta compreensão estaria, ao meu ver, na base de uma ética antropológica de pesquisa, anterior às regulamentações das últimas décadas e ao uso dos TCLE, na medida em que qualquer trabalho de campo só se desenvolve a partir das negociações estabelecidas com as pessoas pesquisadas. Examino a seguir alguns desses aspectos nas minhas pesquisas recentes.

O uso dos TCLE nas minhas pesquisas

Depois de alguns anos estudando percepções e discursos sobre amizade, em Londres e depois no Rio de Janeiro, em 2007 mudei radicalmente de tema para pesquisar a experiência da gravidez. Na época, meu filho tinha três anos e minha própria experiência de gravidez produziu várias questões que quis investigar. Buscando a bibliografia sobre o tema nas ciências sociais, constatei poucos estudos sobre a experiência desta etapa (com exceção daqueles que discutiam novas tecnologias reprodutivas), que eu entendia como um período de transição potente para pensar as mudanças de papéis e suas dimensões subjetivas para as mulheres antes de se tornarem mães.

Como meu intuito era acompanhar a gravidez de algumas mulheres ao longo do tempo, busquei grupos de gestantes no Rio de Janeiro que pudesse frequentar. Já havia definido que estudaria mulheres de camadas médias, segmento social que já pesquisava há anos. Procurei grupos que tivessem não apenas como foco a preparação física para o parto, mas também discutissem as vivências da gravidez. O primeiro grupo que contatei não permitiu minha entrada, pois a coordenadora achou que a presença de uma pesquisadora nas sessões poderia inibir as participantes ao falarem de suas “questões íntimas”. Consegui ser aceita em um segundo grupo, coordenado por uma psicóloga que era também instrutora de yoga. Em ambas situações, apresentei às coordenadoras meu projeto de pesquisa e minha filiação institucional.

As gestantes frequentavam o grupo em geral duas vezes por semana, para exercícios de relaxamento e preparo para o parto com movimentos de yoga. Uma vez por semana, após essas atividades, havia uma sessão de conversas organizada pela coordenadora, que não só abria para perguntas e questões como também propunha temas de discussão/apresentação. Combinamos que seria nesses momentos em que eu faria minha observação participante, já que seria menos produtivo para os meus objetivos assistir aos exercícios de yoga.

Na primeira vez em que fui, a coordenadora me apresentou como pesquisadora e professora da UERJ e também mãe. Apresentei um TCLE a todas as participantes na medida em que elas iam aparecendo no grupo - havia uma certa rotatividade e irregularidade na frequência delas. O termo pedia permissão para acompanhá-las nas sessões do grupo e eventualmente contatá-las para uma entrevista. Era bastante detalhado sobre os meus objetivos tanto com a observação quanto com a possível entrevista, explicando também que havia toda liberdade para responder ou não às perguntas em local escolhido por elas. Garantia também o sigilo das informações bem como seu anonimato, prática já adotada em minhas pesquisas anteriores, mesmo sem apresentação de um TCLE.

Frequentei o grupo durante três meses em 2008. Nesse período, como sempre havia alguma participante nova, as gestantes se apresentavam e eu também falava da minha pesquisa e da minha experiência de gravidez e parto. Entendi logo que se eu não falasse nada, minha presença seria mais estranha, uma vez que o grupo era pequeno - variando entre cinco e dez pessoas - e todas falavam. Com muita frequência, a coordenadora fazia perguntas sobre minhas vivências como gestante e depois mãe e muitas vezes sentia que era esse papel que predominava lá, mais do que o de pesquisadora. Mas acho que o fato de já ter um filho, quando todas ali eram primíparas, e ser um pouco mais velha - na época a maioria das mulheres tinham em torno de 30 e 35 anos, quando eu tinha 43 -, me colocava numa posição mais próxima da coordenadora. Posso imaginar que minha proposta de estudar subjetividade e emoções, temas popularmente associados ao domínio da psicologia, tenha contribuído para esta aproximação, mesmo que o TCLE apresentasse minha filiação institucional e identificação como antropóloga. Não tenho como avaliar de que forma o TCLE afetou os depoimentos e discussões que ouvi, uma vez que não realizei a pesquisa de outra maneira, para comparar os relatos produzidos. Mas vejo que nesta situação de um grupo de gestante, o TCLE contribuiu para que minha presença no grupo fosse aceita.

Algum tempo depois desse período de participação no grupo, entre 2011 e 2012, resolvi fazer um conjunto de entrevistas com gestantes, cujo foco estava não apenas na experiência da gravidez, mas também na participação da família nesse momento de vida. Nessa etapa, me interessava entender a gravidez menos como experiência corporal e subjetiva da mulher e mais como etapa de mudança nas relações de parentesco com a chegada de um novo membro. Para tanto, contatei mulheres da minha rede social que estavam grávidas - primas, filhas e sobrinhas de amigas, e amigas destas. Ao contrário da pesquisa no grupo de gestante, no qual as participantes chegavam para suas sessões de yoga e discussão e se deparavam comigo, a entrevista só aconteceu após um contato prévio meu ou de pessoas conhecidas minhas. Assim, não entreguei a essas mulheres um TCLE; como fizera em minhas pesquisas anteriores, fiz uma apresentação dos meus objetivos, garanti o anonimato das entrevistadas e pedi permissão para gravar oralmente.

Em 2016, resolvi reorientar o foco para o parto, tema que já aparecia como evento antecipado tanto no grupo de gestantes quanto nas entrevistas realizadas posteriormente. Nesse momento, o parto havia se tornado também objeto de muita atenção na mídia e redes sociais, com a disseminação do ideário humanizado que criticava as altas taxas de cesárea praticadas no país bem como outras intervenções médicas. Mas o que mais pesou na minha mudança de objetivo foi a frequência com que ouvia as histórias de parto de mulheres que escutavam meu tema de pesquisa. Em mais de uma banca de defesa de trabalho acadêmico acabava sabendo como tinham sido os partos de minhas colegas.

Com essas questões em mente, elaborei um projeto comparativo, no qual estudaria mulheres de camadas médias de duas gerações, com o objetivo de perceber se havia diferenças no modo como elas contavam as histórias de seus partos. A proposta de comparar duas gerações se baseava no desejo de compreender não apenas as mudanças acontecidas na assistência ao parto e seus impactos nas experiências das mulheres, mas também o significado do parto como evento nas duas gerações.

Mais uma vez, me aproximei de mulheres da minha rede social e, como das outras vezes, expliquei oralmente meus objetivos gerais de pesquisa. Desta vez, contudo apresentei às mulheres entrevistadas um TCLE. Um pouco mais curto do que o termo elaborado para o grupo de gestante, este trazia os objetivos gerais do projeto - compreender como duas gerações de mulheres vivem suas experiências de parto - bem como alguns aspectos de interesse como a conexão com o bebê, percepções da maternidade e a relação com o marido e a família. Afirmava a liberdade de responder ou não as perguntas e de escolher o local da entrevista, informava o uso de gravador e garantia o anonimato das informações.

Por que desta vez apresentei às mulheres entrevistadas um TLCE, se todas elas eram contatadas previamente e só as encontrava se tivessem se disposto a falar comigo? Nessa época, já orientava dissertações sobre gravidez realizadas em instituições de saúde, que precisaram receber a aprovação de comitês de ética. A própria discussão de ética na antropologia já estava mais próxima de mim na sala de aula - ao dar a disciplina obrigatória de metodologia qualitativa na pós-graduação em 2016, depois de mais de dez anos sem ministrá-la, a turma pediu que incluísse textos no programa sobre ética em pesquisa. Assim, embora eu tenha feito um tipo de pesquisa parecido com estudos anteriores meus, baseados em entrevistas acordadas previamente, sabia que meu tema atual se enquadrava na antropologia da saúde, área que desde cedo foi exposta aos debates sobre ética. Mesmo que não tenha submetido meu projeto a um comitê de ética - na época entendi que não era necessário se não fosse fazer pesquisa em nenhuma instituição de saúde -, vi a necessidade de ter um consentimento firmado via TCLE.

Não vejo diferenças no desenrolar das entrevistas realizadas com gestantes sem TCLE e essas últimas sobre o parto, com termos assinados. Em ambos os contextos, minha inserção social como parte de uma rede especifica de parentesco e amizade contou para me aproximar das entrevistadas. O fato de eu ser mulher e mãe, o que era conhecido de todas, também afetava como elas me contavam suas experiências. Na época, tive um bolsista de iniciação científica que realizou três entrevistas com jovens HIV positivas sobre seus partos e, como homem, ele escutou vários detalhes dos procedimentos de cesáreas que eu nunca ouvi. Assim, mais uma vez, penso que o fato de ser mulher e mãe esteve mais presente nessas entrevistas do que as informações apresentadas no TCLE.

De forma semelhante, o fato de ser assegurado no TCLE a liberdade de responder ou não às perguntas não distinguiu as entrevistas realizadas com ou sem apresentação do termo. Em ambos os casos, as perguntas eram respondidas na medida em que faziam sentido para elas. Uma das questões que elaborei sobre o parto - sobre as primeiras impressões ao olhar o bebê, buscando conectá-las às expectativas imaginadas na gravidez (tratado em Rezende, 2016REZENDE, C. B. Imaginando o bebê esperado: parentesco, raça e beleza no Rio de Janeiro. Etnográfica, Lisboa, v. 20, n. 2, p. 231-249, 2016. DOI: 10.4000/etnografica.4258
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), não funcionou. Ou ela não fazia sentido para a entrevistada, ou gerava respostas que não se relacionavam com o parentesco, como eu esperava. Acabei deixando de fazer a pergunta para metade das mulheres.

Houve apenas um aspecto do TCLE que foi mencionado em algumas entrevistas com as mulheres da geração mais velha, que tinham tido filhos nas décadas de 1970-1980. Ao longo de seus relatos, escutei mais de uma vez como a experiência das mulheres mais novas (no caso, suas filhas ou noras) era bem diferente da delas. Como a proposta comparativa do projeto era apresentada no TCLE, vejo que essa informação norteou algumas das narrativas, tornadas explicitamente mais comparativas. Não saberei se os relatos teriam sido diferentes, caso o teor comparativo do estudo não tivesse sido explicitado.

Nas duas instâncias em que busquei um consentimento assinado, apresentei meus objetivos de forma mais geral, não porque buscasse esconder ou omitir alguma intenção problemática. Mas, como em uma pesquisa antropológica os dados se produzem a partir da relação de pesquisa vivenciada, o termo tinha que ser mais vago para deixar em aberto o que viria a acontecer. Assim é que, no projeto de estudo das narrativas do parto, esperava encontrar considerações e comentários sobre a rede de parentesco (como o bebê ao nascer se parecia com um parente, por exemplo), algo que não aconteceu. Por outro lado, o caráter mais aberto dos objetivos permitiu que a centralidade das relações das mulheres com seus médicos se revelasse com muita nitidez, como discuto em vários trabalhos meus (Rezende, 2017REZENDE, C. B. Trust, gender and personhood in birth experiences in Rio de Janeiro, Brazil. Vibrant, Brasília, DF, v. 14, n. 3, p. 58-71, 2017. Disponível em <Disponível em http://www.vibrant.org.br/claudia-barcellos-rezende-trust-gender-and-personhood-in-birth-experiences-in-rio-de-janeiro-brazil/ >. Acesso em 13 mai. 2023.
http://www.vibrant.org.br/claudia-barcel...
, 2019REZENDE, C. B. Histórias de superação: parto, experiência e emoção. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54, p. 203-225, 2019. DOI: 10.1590/S0104-71832019000200008
https://doi.org/10.1590/S0104-7183201900...
).

Por fim, o sigilo das informações foi mantido não porque assinamos um TCLE, mas porque já era uma prática da pesquisa antropológica que eu observara desde meu mestrado. O cuidado com informações que possam identificar as mulheres vem associado a uma segunda questão, que é uma escrita respeitosa dessas experiências e histórias. Como destacou Ramos (2004RAMOS, A. A difícil questão do consentimento informado. In: VICTORA, C. et al (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Rio de Janeiro, ABA/EdUFF, 2004. p. 91-96.), neste momento quem exerce o controle das informações é somente a pesquisadora. Inspirada pela proposta humanista de Abu-Lughod (2020ABU-LUGHOD, L. A escrita dos mundos de mulheres. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020.) de enxergar nas histórias individuais os temas e questões culturais, sem produzir generalizações ou fixar diferenças, sempre busquei fazer justiça à riqueza das narrativas que escutei, destacando pontos analíticos que me interessavam, sem simplificar a complexidade subjetiva das minhas interlocutoras.

Considerações finais

Nesta seção final, recorro a dois outros estudos que tematizam agência e poder no desenvolvimento da pesquisa, para concluir esta reflexão sobre os TCLE. Janaina Amado (1995AMADO, J. O grande mentiroso. História, São Paulo, v. 14, p. 125-136, 1995.) conta que, em sua pesquisa em Goiás sobre a revolta do Formoso, na década de 1950, colheu o relato elaborado de Fernandes ao longo de muitas horas, com a riqueza de detalhes que todo historiador deseja. Algum tempo depois, pesquisando documentos, Amado descobriu que a versão de Fernandes não se confirmava - pessoas, datas, sequências de acontecimentos, quase nada podia ser comprovado, indicando que ele nunca tinha estado presente naqueles eventos. Ou seja, era uma história fantasiosa, uma grande mentira, razão pela qual ela engavetou durante anos a entrevista. Somente após algum tempo, escutando o depoimento novamente, percebeu que a história que ela ouvira trazia a estrutura de Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, livro que havia sido lido em praça pública quando Fernandes era jovem e que ele tinha na sua cabeceira. Se Amado conseguiu dar um novo sentido para um relato que ela havia qualificado como “mentiroso”, cabe aqui pensar que Fernandes contou para a entrevistadora o que ele teve vontade de falar - uma história que se conectava com outras que ele havia escutado ao longo da vida.

Este episódio de Amado fala também de uma relação de pesquisa em que a pesquisadora lida com pessoas com baixa escolaridade, que poderiam ter maior dificuldade de entender os objetivos buscados. Este é o caso do relato de Débora Diniz (2008DINIZ, D. Ética na pesquisa em ciências humanas - novos desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13 n. 2, p. 417-426, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000200017.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200800...
) sobre como negociou a realização de seu documentário com Severina, mulher analfabeta grávida de um feto sem cérebro e impossibilitada de realizar um aborto permitido pouco antes graças a uma liminar de justiça. O consentimento para as gravações foi obtido em todos os encontros de filmagem, de forma oral, pois o uso de imagens impede a manutenção do anonimato, prática antropológica e ética. Além disso, convidou uma entidade do universo simbólico de Severina para assegurar que as condições do TCLE estivessem claras para ela. Diniz complexifica assim o processo de obter consentimento para uma pesquisa sobre um tema sensível em situações de desigualdade social, mostrando os desafios éticos enfrentados e os caminhos percorridos para respeitar a autonomia e a história de Severina.

Na pesquisa de Diniz, o caráter afetivamente intenso do aborto poderia trazer riscos emocionais, argumento que sustenta muitos pareceres de comitês de ética em pesquisa. A autora pondera, contudo, que o encontro etnográfico pode adquirir um teor quase terapêutico para muitas pessoas, uma “experiência de catarse confessional” (Diniz, 2008DINIZ, D. Ética na pesquisa em ciências humanas - novos desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13 n. 2, p. 417-426, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000200017.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200800...
, p. 420), fazendo da entrevista uma oportunidade de ser ouvida. Diniz ressalta que muitas mulheres com experiência de aborto já haviam elaborado suas narrativas antes de serem entrevistadas. A diferença da situação de pesquisa era que “a escuta não era de alguém de sua rede de relações afetivas cotidianas, mas de alguém identificada como de sua rede de cuidados em saúde” (Diniz, 2008DINIZ, D. Ética na pesquisa em ciências humanas - novos desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13 n. 2, p. 417-426, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000200017.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200800...
, p. 420).

A partir dos estudos de Amado e Diniz e de minhas experiências, destaco alguns aspectos sobre o processo de pesquisa que busco reforçar nestas considerações finais. Primeiro, o encontro de pesquisa antropológico reúne duas pessoas que, para além de suas posições sociais anteriores - de gênero, idade, raça, classe social, entre outras -, têm acrescentados a si os papéis de pesquisador(a) e pesquisado(a). Estes papéis serão interpretados por ambas as partes, de acordo com seu entendimento do que é uma pesquisa de antropologia - a pesquisadora com suas orientações teóricas, o pesquisado com sua visão do que seja uma pesquisa dessa área. No caso de Diniz, ela e sua equipe são identificados como parte da rede de cuidados em saúde, o que guiará o modo como Severina contará sua história. Na minha pesquisa, ser uma antropóloga mãe norteou a forma como entrei no grupo de gestante e como as mulheres pesquisadas falaram comigo, bem como todas as entrevistas posteriores que realizei. Imagino que o fato de compartilharmos a mesma posição social, enquanto mulheres de camadas médias, também afetou o modo de falar de suas gestações e partos. Assim, a produção de conhecimento sempre acontece em uma relação entre duas pessoas específicas, de maneira que as experiências trocadas são formuladas nesse contexto particular.

O segundo aspecto diz respeito à autonomia das pessoas pesquisadas, de fazerem escolhas sobre como e o que querem compartilhar. Na pesquisa de Diniz, as mulheres contam uma narrativa que já estava elaborada, mas até então ficara restrita ao círculo social mais próximo, à semelhança das muitas histórias de parto que ouvi antes de começar minha pesquisa. Durante as filmagens do documentário de Diniz, com todo o cuidado das realizadoras com a produção de imagens sobre um tema sensível, Severina resolve mostrar uma foto do filho natimorto para ser incluída no filme. No estudo de Amado (1995AMADO, J. O grande mentiroso. História, São Paulo, v. 14, p. 125-136, 1995., p. 126), Fernandes dá seu depoimento ressaltando que tinha pouca educação formal, pois se tivesse estudado mais: “eu mesmo ia escrever a história dessa revolta. Como não estudei, vou contar a história pra você, pra você escrever ela pros outros”. Como sabemos, ele conta sua história, do seu jeito. Em minhas pesquisas, os relatos de cesárea que ouvi sempre foram muito mais sucintos do que as histórias de parto vaginal, não porque não tivessem detalhes interessantes, como aqueles escutados pelo meu bolsista de iniciação científica. As mulheres com quem conversei achavam, por razões diversas, que falar das sensações no trabalho de parto era mais relevante ou significativo do que contar como receberam anestesia peridural, o que sentiram ou quem as acompanhou.

O último aspecto diz respeito à possível diferença entre os objetivos iniciais e o desdobramento do estudo, o que se torna um problema para os TCLE que exigem uma delimitação a priori das questões de pesquisa. A narrativa de Fernandes só se tornou importante para a pesquisa de Amado quando ela reorientou seu olhar sobre o depoimento, enxergando nele não um documento de história oral, mas sim uma narrativa de recriação de eventos vividos. Meu projeto de pesquisa sobre o parto esperava encontrar narrativas sobre o parentesco, como atestava o título do projeto que consta nos TCLE que apresentei. Contudo, as mulheres entrevistadas priorizaram em seus relatos as relações com os médicos, ficando a família em um plano secundário.

Assim, é importante diferenciar como questões sobre consentimento e agência se colocam em diferentes momentos da pesquisa. A entrada no campo, que implica negociar a presença do(a) pesquisador(a) bem como a realização de entrevistas e conversas, será sempre marcada pelas situações sociais de cada pessoa nessa relação. Socialmente posicionadas, essas relações afetam e são afetadas pelas agências de cada parte, produzindo, por sua vez, dados que serão sempre específicos a este encontro particular e que podem suscitar novas perguntas não previstas no TCLE. É neste momento que os termos de consentimento são usados, materializando um processo de negociação que não se esgota no início da pesquisa. Na escrita, a agência se torna bastante desigual, a redação do texto e a criação de representações ficam nas mãos do(da) pesquisador(a).

O uso de termos de consentimento livre e esclarecido em pesquisas de antropologia, seja na área de saúde ou em outro tema, deve ser entendido, portanto, dentro de uma discussão mais rica sobre a relação de pesquisa e as diferenças de poder e agência contidas nela. Nesta ótica, o argumento é que o TCLE se torna um instrumento de garantia de direitos significativo, afinado a uma concepção de sujeito de direitos que se tornou mais presente nas últimas décadas, como destacam Sarti e Duarte (2013SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. Introdução. In: SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, DF: ABA/EdUFF, 2013. p. 9-30.). Contudo, como propõe Harayama (2014HARAYAMA, R . O Sistema CEP-Conep e a ética em pesquisa como política pública de proteção do usuário do SUS. In: FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. (Org.). Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 323-351.), o foco do sistema CEP-Conep em um sujeito de pesquisa cujos direitos precisam ser resguardados deixa de lado a constituição da pessoa por meio de experiências subjetivas. Assim, é crucial aprofundar o que se entende pelos pressupostos de um TCLE, uma vez que nas pesquisas em ciências sociais, a pessoa pesquisada nunca foi destituída de autonomia durante a fase de coleta de dados. Garantir que, na escrita sobre os resultados do estudo, ela também seja respeitada, é questão igualmente importante para os debates sobre ética em pesquisa social.

Referências

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  • VICTORA, C. et al. Introdução. In: VICTORA, C. et al (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Rio de Janeiro, ABA/EdUFF, 2004. p. 13-18.
  • 1
    Financiamento: bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bolsa do programa ProCiência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (de 2007 ao presente)
  • 2
    Valeria a pena pensar como a preocupação com os riscos da pesquisa se conecta com a importância dada ao risco nas sociedades ocidentais modernas. Como discutem Giddens (1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.) e Beck (2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.), na modernidade tardia atores e especialistas passaram a organizar o presente na vida social a partir do futuro e a ver o risco como fruto de escolhas e decisões individuais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2023
  • Aceito
    25 Set 2023
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