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Por debaixo do arco-íris: perspectivas de mulheres lésbicas e bissexuais sobre saúde e doença

Resumo

Este estudo teve como objetivo compreender os sentidos que mulheres homossexuais e bissexuais dão ao estado de saúde e doença e a forma como avaliam o seu próprio quadro de bem-estar. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa constituída pelos relatos de 14 mulheres do município de Imperatriz, Maranhão, Brasil. A antropologia médica e os estudos sobre gênero contribuíram para analisar as categorias “Dimensões da saúde e da doença” e “O olhar sobre a própria saúde”. Nessas seções, são discutidas as perspectivas dualistas mente-corpo que caracterizavam etiologicamente o processo saúde-doença na visão dessas interlocutoras. Ademais, o contexto sociocultural foi compreendido como formatador da maneira como traduziam e avaliavam a sua própria condição de saúde, contexto esse atravessado pela vivência bissexual e lésbica. Portanto, as identidades e os comportamentos sexuais das entrevistadas friccionam a rigidez como o processo saúde-doença é interpretado pelo saber biomédico, questionando práticas que marginalizam essas mulheres nos serviços de assistência à saúde.

Palavras-chave:
Saúde da Mulher; Minorias Sexuais e de Gênero; Saúde; Doença

Abstract

This study aimed to understand the meanings that homosexual and bisexual women give to the state of health and illness and the way they evaluate their own state of well-being. It is a qualitative research study consisting of the accounts of 14 women from the municipality of Imperatriz, Maranhão, Brazil. Medical anthropology and gender studies contributed to analyzing the categories “Dimensions of health and disease” and “Looking at one’s own health”. These sections discuss the dualistic mind-body perspectives that etiologically characterized the health-disease process in these interlocutors’ view. In addition, the sociocultural context was understood as shaping the way they translated and evaluated their own health condition, a context crossed by their bisexual and lesbian experience. Therefore, the interviewees’ sexual identities and behaviors challenge the rigid way the health-disease process is interpreted by biomedical knowledge, questioning practices that marginalize these women in health care services.

Keywords:
Women’s Health; Sexual and Gender Minorities; Health; Disease

Introdução

Sob o lençol macio, um mundo pulsa,

e minha mão desliza, inteira

sobre ela, moça nua, elo perdido

entre o que sou e o que flutua

(Borges, 2014BORGES, K. Alegoria. OXE, Salvador, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://portaloxe.com.br/alegoria/ >. Acesso em: 5 jan. 2021.
https://portaloxe.com.br/alegoria/...
).

O trecho do poema Alegoria (2014) da escritora e jornalista baiana Kátia Borges apresenta o encontro sexual de duas mulheres. Nesse trecho, a autora propõe à imaginação dos leitores uma perspectiva particular sobre um momento fetichizado pelos olhos alheios, mas que, em sua escrita, constitui um espaço metafórico a respeito da descoberta de si mesma, situado entre o que realmente é e aquilo que pode ser - o que flutua. Utilizando-se dessa epígrafe, o presente estudo inicia o seu diálogo apontando para o que se encontra aqui: os sentidos e significados dados à saúde e à doença por intermédio do olhar de mulheres lésbicas e bissexuais, observando, portanto, essa realidade pelos olhos de quem a experiencia, isto é, por debaixo do arco-íris.1 1 A expressão “arco-íris” refere-se à simbologia dos movimentos sociais LGBTQIA+, em uso desde a década de 1970. Por se tratar de um estudo que se utiliza da perspectiva de mulheres que pertencem a essa comunidade, o diálogo é construído a partir da visão “nativa”, pensando a saúde a partir do modo como esta é interpretada pelas atrizes sociais dessa realidade, ou seja, por debaixo desse arco-íris.

O estudo das condições de saúde populacional, quando se utiliza o gênero como categoria analítica, possibilita compreender que os processos de socialização de mulheres e homens são diferentes, especialmente em sociedades ocidentais que são marcadas pelo patriarcado (Sagot, 1995SAGOT, M. Socialización de género, violencia y femicidio. Revista Reflexiones, San José, v. 41, n. 1, p. 17-26, 1995.; Scott, 1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995. ; Urra; Pechtoll, 2016URRA, F.; PECHTOLL, M. C. P. Programa “E agora, josé?” Grupo socioeducativo com homens autores de violência doméstica contra as mulheres. Nova Perspectiva Sistêmica, São Paulo, 25, n. 54, p. 112-116, 2016.).

Às mulheres se relacionam os ofícios domésticos, da maternidade, a figura feminina e frágil; esses ofícios funcionam como pontos de partida, ao mesmo tempo que figuram como limites de suas identidades e seus corpos. Essas discrepâncias nos papéis socialmente atribuídos a homens e mulheres constituem um sistema que concede poder ao masculino com base em visões patriarcais e falocêntricas, legitimando um contexto de desigualdades e inferioridade da mulher em detrimento do homem, desprivilegiando a singularidade da vivência feminina (Sagot, 1995SAGOT, M. Socialización de género, violencia y femicidio. Revista Reflexiones, San José, v. 41, n. 1, p. 17-26, 1995.; Urra; Pechtoll, 2016URRA, F.; PECHTOLL, M. C. P. Programa “E agora, josé?” Grupo socioeducativo com homens autores de violência doméstica contra as mulheres. Nova Perspectiva Sistêmica, São Paulo, 25, n. 54, p. 112-116, 2016.).

Esse modelo de controle encontra uma resposta contrária à medida que as mulheres lésbica e bissexual rompem com o padrão normativo da heterossexualidade. Não somente seus corpos, mas a forma como pensam a si próprias, a maneira como se relacionam com outras pessoas e os limites sociais por elas reconhecidos são atravessados pelas tipificações dadas para as suas identidades sexuais. Assim, essa conjuntura castradora age diretamente sobre o modo que produzem as suas subjetividades em saúde, haja vista que o contexto sociocultural no qual estão inseridos os indivíduos exerce influência sobre o modo como entendem o processo saúde-doença (Helman, 2009HELMAN, C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009. ).

No Brasil, alguns autores debruçaram-se sobre o comportamento homoafetivo de mulheres, utilizando como recorte analítico vulnerabilidades sociais e aspectos direcionados às relações conjugais (Andrade et al., 2020ANDRADE, J. et al. Vulnerabilidade de mulheres que fazem sexo com mulheres às infecções sexualmente transmissíveis. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 10, p. 3809-3819, 2020. DOI: 10.1590/1413-812320202510.03522019
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; Valadão; Gomes, 2011VALADÃO, R. C.; GOMES R. A homossexualidade feminina no campo da saúde: da invisibilidade à violência. Physis, Rio de Janeiro, n. 4, p. 1451-1467, 2011. DOI: 10.1590/S0103-73312011000400015
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;). A presente pesquisa, inspirada nos trabalhos desses autores, emerge das seguintes inquietações: 1) quais os sentidos dados aos estados de saúde e de doença na perspectiva de mulheres lésbicas e bissexuais? 2) como mulheres lésbicas e bissexuais avaliam a própria saúde?

Pressupõe-se que os significados atribuídos por mulheres lésbicas e bissexuais à saúde e à doença são atravessados pelo contexto sociocultural em que estão inseridas, ou seja, a heteronormatividade e o constante controle de seus corpos e identidades refletem sobre a maneira como interpretam o processo saúde-doença. Dessa forma, o objetivo deste estudo é compreender as perspectivas de mulheres lésbicas e bissexuais sobre os estados de saúde e de doença, bem como a forma pela qual avaliam a própria saúde.

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo realizado na cidade de Imperatriz, Maranhão, Brasil, no ano de 2020.

O município é um importante polo comercial-político do sul maranhense e possui em sua história uma rígida base religiosa de vertente católica e protestante (Sousa, 2014SOUSA, B. O. As igrejas neopentecostais e a redefinição do protestantismo no Brasil: um estudo de caso em Imperatriz-MA e Araguaína-TO (1990-2013). 2014. 194 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.). Na cidade, há uma ascensão de grupos políticos que adotam discursos sobre padrões de moralidade essencialmente heteronormativos. O apelo social desses discursos provocou a ocupação de lugares de decisão por figuras políticas que são contrárias às políticas públicas voltadas à diversidade sexual e de gênero (Carvalho, 2020CARVALHO, G. A. Religião e política no engendramento do plano municipal de educação de Imperatriz. 2020. 18 f. Monografia (Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia) - Universidade Federal do Maranhão, Imperatriz, 2020.).

Por essa razão, esse espaço geográfico-político foi pensado como profícuo para compreender a maneira como as dinâmicas socioculturais dessa conjuntura conformam a subjetividade de mulheres lésbicas e bissexuais que residem na cidade, resultando em específicas interpretações sobre saúde e adoecimento.

As entrevistas foram realizadas durante os meses de janeiro a março de 2020. A técnica de bola de neve foi utilizada para aproximação com as possíveis interlocutoras e permitiu construir uma rede de participantes-indicadas (Vinuto, 2014VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014. DOI: 10.20396/tematicas.v22i44.10977
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). Essa rede tinha base na proximidade e, particularmente, na credibilidade presente nas relações pregressas entre a informante-chave, as entrevistadas e suas indicadas. Essa informante-chave, uma mulher lésbica, fazia parte dos contatos pessoais de um dos pesquisadores e engajava-se em redes de sociabilidade LGBTQIA+ em espaços como universidades e movimentos sociais e, por essa razão, favoreceu este estudo com uma gama de possibilidade de entrevistas.

Essas escolhas metodológicas fomentaram positivamente o trabalho de campo. As indicações e a proximidade entre as participantes produziram uma relação de mínima confiança entre as entrevistadas, suas indicações e os pesquisadores. Isso se deu, em primeiro plano, porque as possíveis participantes eram contactadas inicialmente pela entrevistada que as indicou. Assim, em razão da credibilidade presente nos contatos pregressos entre essas mulheres, a aproximação e aceitabilidade por parte dessas indicadas à pesquisa foi facilitada.

Todas as 14 mulheres participantes foram indicadas segundo os seguintes critérios de inclusão: mulheres que se autoidentificam como lésbicas ou bissexuais e que possuem 18 anos de idade ou mais. Após a indicação e o prévio aceite - informado pela participante que a indicou -, a possível interlocutora era contactada via aplicativo de mensagens, em que se apresentavam as propostas da pesquisa. Seguidamente, a possível participante era questionada sobre o interesse em participar. Em caso de resposta positiva, a entrevista individual era marcada.

As conversas tiveram início posterior à apresentação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram conduzidas em ambiente reservado nas dependências do Centro “Autores, 2021” da Universidade Federal “Autores, 2021”.

As entrevistas foram realizadas na presença dos dois pesquisadores responsáveis pelo trabalho de campo, um homem e uma mulher. O primeiro pesquisador, homem, mais experiente em pesquisas qualitativas, conduziu as entrevistas. A segunda pesquisadora, uma mulher, fazia registros no caderno de campo e indagações que eram suscitadas pelas respostas das entrevistadas. Os diálogos foram gravados e, seguidamente, transcritos na íntegra pelos dois pesquisadores.

A análise dos dados foi construída por meio da análise de conteúdo na modalidade temática de Bardin (2011BARDIN, L. Análise do conteúdo. São Paulo: Almedina, 2011.). A autora enumera três etapas necessárias para recortes e apreensão dos sentidos expostos nas falas: pré-análise, que consistiu na organização do material e sistematização das ideias apresentadas pelas interlocutoras; exploração do material, condizendo com as codificações, definição de normas para os recortes de fala e classificação das ideias expostas; e interpretação, captando todo o conteúdo que foi manifestado nos discursos, os quais foram categorizados de acordo com os significados que transmitiram.

A análise continuou, ainda, na escolha da perspectiva teórica a ser utilizada. Assim, o arcabouço das ciências sociais, em especial o da antropologia médica e o dos estudos de gênero e sexualidade, foram utilizados para discutir as categorias que emergiram no processo de categorização temática anteriormente citado. Usou-se, ainda, o diário de campo, que, de forma precisa, aliou-se a essa perspectiva teórica e permitiu dialogar com os sentidos das falas de forma próxima aos contextos socioculturais e de identidade sexual em que são produzidos, proporcionando, também, que os registros não verbais pudessem corroborar com o processo de apreensão desses significados.

As interlocutoras foram nomeadas de forma fictícia, utilizando espécies de flores, sem qualquer menção a sua real identidade, esforço esse necessário para a manutenção de suas privacidades. Nesse ensejo, a presente pesquisa coaduna com os princípios da ética em pesquisa com seres humanos, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Maranhão, segundo certificado de apresentação de apreciação ética (CAEE) 28248620.5.0000.5087.

Resultados e discussão

Participaram do estudo 14 mulheres - o Quadro 1 apresenta uma síntese do perfil das participantes.

Em sua maioria, as participantes tinham idade entre 20 e 30 anos e eram acadêmicas de alguma das instituições de ensino superior da cidade do estudo. Metade dessas interlocutoras eram estudantes e/ou profissionais da área da saúde, o que produziu um certo alinhamento na compreensão do processo saúde-doença e, por outro lado, possibilitou uma compreensão da diferenciação de perspectivas em relação a mulheres que estudam-trabalham em outras áreas, ainda que estejam presentes as vulnerabilidades devido à orientação sexual.

Essa proximidade de perfis decorreu do fato de a informante-chave do estudo ser uma acadêmica de enfermagem. Todavia, à medida que a rede de indicações via bola de neve ganhava ramificações, outros perfis foram tomando lugar, tal como professoras e estudantes das áreas de ciências sociais e humanas, bem como das ciências exatas.

Quadro 1
Características das participantes do estudo, 2021.

Identificou-se que, ao serem indagadas sobre como seria, em suas percepções, alguém saudável, essas mulheres dialogavam sob uma perspectiva relacionada ao processo saúde-doença.

Portanto, emergiram duas categorias: 1) “Dimensões da saúde e da doença”, que diz respeito às dimensões dadas àquilo que acreditam ser saúde, enumerando características e, consequentemente, permitindo a compreensão da lógica que atribuem ao estado de um completo bem-estar e de adoecimento; 2) “O olhar sobre a própria saúde”, que versa sobre como as interlocutoras avaliam o seu próprio quadro de saúde, levando em conta a forma como percebem o seu corpo e a inserção de seu corpo em um contexto sociocultural atravessado pela vivência como mulher lésbica ou bissexual.

Dimensões da saúde e da doença

Essa categoria tem como elemento substancial a compreensão de como as participantes deste estudo dimensionam o processo saúde-doença. Essas interpretações evidenciaram uma influência dos contextos sociais e culturais nesse dimensionamento, uma vez que à saúde e à doença podem ser atribuídas causas de distintos domínios: naturais, psicossociais, socioeconômicos e sobrenaturais (Minayo, 1988MINAYO, M. C. S. Saúde-doença: uma concepção popular da etiologia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 4, p. 363-381, 1988. DOI: 10.1590/S0102-311X1988000400003
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).

Além disso, notou-se um atravessamento da homossexualidade e bissexualidade nessas percepções. Todavia, especialmente as interlocutoras que estudam e trabalham com a/na área da saúde compuseram suas percepções com elementos físicos e psicológicos do adoecimento.

As entrevistadas Margarida e Rosa expressam suas perspectivas, fixando-se aos elementos expressos no corpo e na experiência mental:

Fisicamente, pra mim, acho que você deve ter um bom estilo de vida. Não é por você ter um padrão físico magro ou um padrão físico gordo, mas você ser saudável em questão de hábitos. Ter uma boa alimentação, prática de exercícios físicos, ponderar em relação às suas atividades e seu lazer. Pra mim isso é você ter uma saúde física. Agora em questão de saúde psicológica, aí varia muito, porque eu acho que você, para você ter uma saúde psicológica, atualmente, você tem que se libertar de muitos gatilhos [situações e pessoas problemáticas]. (Margarida)

Ser saudável é… eu não ficar cansada rápido, em algum exercício. Por exemplo: subir uma escada, um lance de escada, e estou cansada. Pra mim eu não estou saudável. Mas… e psicologicamente, hoje, como uma pessoa que faz terapia, […] é estar em paz com a sua mente, que é uma coisa bem difícil. A gente luta todo dia, mas só o fato de refletir sobre as coisas que você faz, sobre as coisas que você fala, eu já acho, eu já considero um… um passo saudável para sua saúde mental. (Rosa)

Algumas interlocutoras direcionaram-se para uma análise da perspectiva de saúde e doença de acordo com o espaço que seus corpos ocupam no mundo social. No que argumenta Lírio, o estado de boa saúde física caracteriza-se pela ausência de doença, já uma boa saúde mental depende do equilíbrio de múltiplos fatores:

A gente traz para a ideia completa de ausência de doença falando do físico e, já tratando do mental, aí nós já vamos elencar os bem-estar, né? Eu tenho que estar bem comigo mesma, eu tenho que estar bem com o próximo, com a sociedade, com o meio ambiente. (Lírio)

Na fala de Jasmim, a saúde aparece intrinsecamente atravessada por sua existência como mulher bissexual e pela presente estigmatização que vivenciam pessoas LGBTQIA+:

partindo do princípio de gays, lésbicas e bissexuais, eu acho que o primeiro fator para se reconhecer saudável e se sentir saudável está na parte da aceitação. Estar psicologicamente estável para entender o que está se passando, porque a gente dentro do contexto social é muito estigmatizada, é muito reprimido. (Jasmim)

Begônia, desde muito cedo, foi educada com base nos dogmas da religião de seus pais evangélicos muito tradicionais. A entrevistada passou por um extenso e traumático processo de compreensão e aceitação de sua bissexualidade, especialmente por parte de sua família.2 2 Informação dada em entrevista e registrada no diário de campo da pesquisa em 12 de fevereiro de 2020. Por essa razão, estar bem consiga mesma é fundamental para que ela pense o estado de saúde: “Olha, com o que a gente vê hoje, o ser saudável é ser aquela pessoa fitness, né, com gominhos e tudo. Mas não é, né, é mais amplo […] é você se sentir bem consigo mesmo” (Begônia).

As narrativas apresentam uma dualidade: a saúde física e a saúde psicológica. Essa divisão torna-se mais clara à medida que passam a elencar condições físicas que compõem o perfil de alguém saudável, como nos elementos enumerados pelo discurso de Margarida. Além disso, é notável que os aspectos físicos são mais descritos, por ela, devido à concretude palpável de raciocínio e exemplificação oriundos de sua formação enquanto estudante de Enfermagem.

Na fala de Rosa, professora de Inglês, é apresentada uma descrição que resulta do seu recente interesse por estabelecer uma rotina de acompanhamento psicológico e, concomitantemente, de seus achados em pesquisas individuais e materiais informativos do consultório que frequenta.3 3 Informação dada em entrevista e registrada no diário de campo da pesquisa em 6 de fevereiro de 2020. Por isso, a referida entrevistada tem um comportamento mais reflexivo acerca de si mesma como agente de seu estado de saúde, principalmente no que diz respeito à dimensão psicológica.

A categorização reflete uma aproximação das entrevistadas com a dualidade “corpo-mente”, encontrada no saber biomédico, demonstrando uma divisão entre o que são problemas do corpo e o que são problemas da mente (Helman, 2009HELMAN, C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009. ).

Há uma descrição mais numerosa de elementos no que se refere à dimensão física, ilustrando uma maior facilidade de traduzir situações nas quais a representação corpórea da enfermidade é concreta.

Nesses termos, os sintomas físicos, como expressado por Rosa em “subir um lance de escada e ficar cansada”, são uma experiência corpórea individual de definição do quadro de saúde, apoiada em um sentido identitário pessoal sobre o processo saúde-doença. Essa forma de pensar o adoecimento emerge de uma autopercepção funcional do estado de saúde, que está ligada à vertente da racionalidade médica (Helman, 2009HELMAN, C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009. ; Pinheiro, 2006PINHEIRO, C. V. Q. Saberes e práticas médicas e a constituição da identidade pessoal. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 45-58, 2006. DOI: 10.1590/S0103-73312006000100004
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), a qual se baseia na funcionalidade orgânica dos corpos.

A compreensão consequente dos depoimentos de Margarida e Rosa permite, por conseguinte, identificar que o status “saudável” e o status “doente” são frutos da interação entre racionalidade médica e experiências subjetivas de seus corpos. Pinheiro (2006PINHEIRO, C. V. Q. Saberes e práticas médicas e a constituição da identidade pessoal. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 45-58, 2006. DOI: 10.1590/S0103-73312006000100004
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, p. 7) argumenta que “a problemática da doença, da vida e da morte só pode ser qualificada quando se leva em conta a individualidade orgânica de cada ser vivo”. A individualidade orgânica da qual trata o autor, por um lado, dá ênfase à especificidade de cada indivíduo, numa perspectiva orgânica e, por outro lado, dá enfoque à inserção do ser no mundo, que evoca fatores como economia, relações sociais, afetividade etc.

Entretanto, observa-se que Margarida e Rosa localizam em si mesmas os elementos da saúde e da doença, sem ligação com questões mais amplas, o que se assemelha ao que Jurca (2021JURCA, R. L. Neoliberalismo e individualização nas políticas de saúde na periferia sul de São Paulo. Caderno CRH, Salvador, v. 33, 2021. DOI: 10.9771/ccrh.v33i0.30502
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) chama de individualismo social. Segundo o autor, as pessoas se percebem e são constrangidas a se perceberem como produtoras de si, responsáveis por desvendar e resolver as complexidades da vida, isto é, o indivíduo se torna o empreendedor de si mesmo.

Essa visão pressupõe que Margarida e Rosa reconhecem o status de sua saúde como algo controlado no adestramento de seus próprios hábitos e na autonomia de si mesmas enquanto únicas responsáveis pelo próprio cuidado, ou seja, que busquem melhorar seu condicionamento físico e evitem “gatilhos”, no intuito de alcançar o equilíbrio entre corpo e mente.

Cabe salientar que todas as interlocutoras estão inseridas no ambiente do ensino superior ou passaram por ele em algum momento. A priori, imaginou-se que as estudantes da área da saúde apresentariam uma percepção mais pluralista e detalhada no dimensionamento do processo saúde-doença, uma vez que entram em contato com a base conceitual e ideológica da Saúde Coletiva em seus cursos de graduação. Entretanto, somente Lírio, enfermeira, elaborou de modo mais diversificado elementos sobre saúde e doença.

Mesmo com esse contato prévio, como é possível observar no discurso de Margarida, as estudantes da área da saúde traçaram perspectivas ligadas a uma linearidade dicotômica entre mente e corpo, com curtas elaborações sobre a dimensão da mente. Esse resultado pode contribuir para a problematização do modelo de saúde que vigora nas instituições de ensino superior, especialmente aquelas que trabalham com as ciências da saúde.

Já Rosa, Lírio, Jasmim e Begônia descrevem de forma mais plural os elementos que constituem a saúde e a doença, citando o contexto social, familiar, as relações entre os sujeitos e o meio ambiente. As entrevistadas conduzem a pensar que as percepções apresentadas por elas estão intrinsecamente ligadas à existência no tempo e espaço, mesmo quando há uma aproximação maior ou menor com a medicina biomédica (Minayo, 1988MINAYO, M. C. S. Saúde-doença: uma concepção popular da etiologia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 4, p. 363-381, 1988. DOI: 10.1590/S0102-311X1988000400003
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).

Nos discursos de Margarida e Lírio, é possível compreender a forma como, para elas, o estado de saúde configura-se como uma noção de ponderação/equilíbrio. Margarida ressalta o equilíbrio entre uma mente saudável e um corpo com plena capacidade funcional, já Lírio acrescenta o equilíbrio entre múltiplos fatores, que excedem a dimensão mente-corpo.

Perspectiva parecida é analisada por Minayo (1998)MINAYO, M. C. S. Saúde-doença: uma concepção popular da etiologia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 4, p. 363-381, 1988. DOI: 10.1590/S0102-311X1988000400003
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. A autora demonstra que moradores de regiões de favela do Rio de Janeiro apontam o desequilíbrio entre comida e bebida alcoólica como possíveis causadores de doença, ou seja, entendem que deve existir uma ponderação entre comidas “leves”, “pesadas” e o consumo de álcool. Assim como pensam as interlocutoras deste estudo, o desequilíbrio em dimensões específicas da vida é utilizado para atribuir etiologia ao adoecimento, dando enfoque para a necessidade de que o indivíduo mantenha uma linearidade entre aquilo que faz bem e mal à saúde.

O reconhecimento do estado de saúde e de doença por Lírio é atravessado por uma interpretação da inserção de seu corpo no mundo, aspecto teorizado por Helman (2009HELMAN, C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009. ) quando afirmou que a apresentação da doença e as respostas de outrem a essa condição estão relacionadas a um contexto sociocultural. Por isso, as experiências físicas e psicológicas não foram as únicas mobilizadas na definição do que é saúde, mas, conjuntamente, esses aspectos ganharam parâmetros mais concretos quando as entrevistadas posicionaram o seu corpo-mente - feminino e lésbico - na conjuntura social em que estão inseridas.

A descriminalização da homossexualidade em algumas sociedades não significou uma plena legitimação da diversidade sexual, nem tampouco a desvinculação de suas identidades à patologização, à imoralidade e às práticas criminosas (Gama, 2019GAMA, M. C. B. Cura gay? Debates parlamentares sobre a (des)patologização da homossexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 31, p. 4-27, 2019. DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2019.31.02.a
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). Esse olhar social hostil e sua persuasão na construção de noções sobre saúde e doença são evidenciados quando Jasmim se entende saudável à medida que também se sente- aceita, daí derivando sua preocupação e seu medo de ser discriminada. Já Begônia enfatiza o sentir-se bem em sua própria pele, resultado de um traumático processo de aceitação de sua orientação sexual por parte de seus familiares.

Nesse diálogo, acrescentam-se as contribuições de Monique Wittig (1992WITTIG, M. The straight mind: and other essays. Boston: Beacon, 1992.), quando argumenta que a mulher lésbica não é considerada mulher se não estiver inserida nos parâmetros heterossexuais (Wittig, 1992)WITTIG, M. The straight mind: and other essays. Boston: Beacon, 1992., ressaltando um processo de apagamento histórico. Esse não reconhecimento é utilizado como um “discurso da não diferença” (Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, p. 1-15, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180279
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, p. 6), especialmente em ambientes de saúde, nos quais a existência dessas mulheres pode ser negada.

Essa “negação do outro” (Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, p. 1-15, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180279
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, p. 6) pode ser compreendida por intermédio da fala de Jasmim. Para a entrevistada, ser saudável é resultado da obrigatoriedade de pensar a sua condição de saúde segundo os riscos de um contexto estigmatizante, que está além do seu poder de controle. Assim, ela trata de forma individual um problema sociocultural e se responsabiliza, sem que compreenda que esse contexto também é responsável pela construção de ambientes políticos de promoção e proteção de seu estado de saúde.

Na experiência de Begônia, há uma negação do outro na dimensão familiar e, assim, o processo de saúde-doença é tomado com intensa interioridade. Isso contribui para a reflexão de que, para além de elementos do corpo e da mente, o contexto cultural-familiar produz um importante atravessamento na forma como a interlocutora interpreta o binômio saúde-doença. Ademais, contribui para levantar uma problematização sobre como às identidades subalternizadas é negado o sentir-se confortável consigo mesmo.

O não reconhecimento tem impactos em distintas dimensões da vida. Pensando em ambientes institucionais como os serviços de saúde, barreiras são criadas no acesso à assistência prestada a essas mulheres, por meio de argumentos que pautam uma falsa “igualdade” nas necessidades de saúde entre a população LGBT e os demais grupos populacionais (Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, p. 1-15, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180279
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). Consequentemente, podem contribuir para a negação das singularidades na percepção de saúde e, de modo mais amplo, das particularidades da existência de mulheres lésbicas e bissexuais.

As interpretações aqui construídas culminam em contribuir para a inclusão das relações de gênero no campo da saúde, no sentido de proporcionar outros horizontes na compreensão sobre os estados de saúde e de adoecimento. Devem ser consideradas, nesse processo, as singularidades do viver feminino e a maneira como a existência lésbica e bissexual pode (re)organizar a percepção do binômio saúde-doença (Heilborn, 2003HEILBORN, M. L. Articulando gênero, sexo e sexualidade: diferenças na saúde. In: GOLDENBERG, P.; MARSIGILA, R. M. G.; GOMES, M. H. A. O clássico e o novo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 197-208.).

O olhar sobre a própria saúde

Essa categoria está voltada à avaliação autopercebida que as mulheres participantes deste estudo produziram a respeito de sua atual situação de saúde. Essa perspectiva foi encontrada a partir do direcionamento de questões que buscaram fomentar, nas entrevistadas, uma reflexão sobre o próprio estado de saúde no momento do diálogo com os pesquisadores. Portanto, como resultado, emergiram conceitos de saúde e doença aplicados a seus próprios corpos e experiências.

A entrevistada Gardênia, quando questionada sobre considerar-se uma pessoa saudável, apresenta uma autoavaliação mediada pelo poder de compra. Essa relação reflete no modo como Gardênia e outras tantas mulheres lésbicas e bissexuais oriundas de classes populares administram sua saúde, uma vez que a renda é elemento fundante da falta de contato com o médico/médica ginecologista:

Eu acho que… acho que sim. Apesar de ser uma pessoa que ainda me descuido muito em relação a fazer esses exames, ainda mais por falta de monetário, né? Aí, por exemplo, ginecologista, a última vez que eu fui tem mais de um ano. Tem um ano e meio e alguns meses. E aí, eu acho que é uma coisa que eu deveria fazer com mais frequência, por exemplo. Mas como eu faço exames de sangue muitas vezes eu falo assim: “ah, não deu nada no exame de sangue então eu vou deixar de lado!”. Não tenho um contato muito bom, muito frequente assim. (Gardênia)

Devido ao vínculo empregatício de seu pai, Gardênia utilizou por muitos anos os serviços de um plano de saúde, inclusive durante o período em que passou por um tratamento oncológico. Toda a sua trajetória assistencial ocorreu majoritariamente em unidades privadas de saúde até o seu recente desligamento do plano de saúde, passando a depender essencialmente do Sistema Único de Saúde (SUS). Com pais muito religiosos, a sua bissexualidade passou a ser um marcador do mau relacionamento com eles, culminando na mudança de residência. Recentemente, Gardênia passou a morar com o namorado, depois de sérios desentendimentos familiares.

O seu itinerário terapêutico desde a desvinculação do plano de saúde e a saída de casa é, por ela, tido como um estado de constante “sobrevivência”. Mantendo-se, basicamente, com o valor oriundo de bolsa de apoio à pesquisa da universidade em que se gradua e de trabalhos como freelancer, Gardênia vem enfrentando dificuldades no que diz respeito ao monitoramento de seu estado de saúde em detrimento das constantes demandas básicas de vida, como moradia e alimentação.4 4 Informação dada em entrevista e registrada no diário de campo da pesquisa em 19 de fevereiro de 2020.

Contribuindo para a compreensão da saúde de acordo com o olhar daquelas que vivenciam as particularidades das identidades sexuais aqui abordadas, Jasmim apresenta a dimensão profissional como determinante da sua autoavaliação do status de saúde:

eu não me sinto bem porque eu não consigo resolver. Eu me vejo saindo da faculdade sem uma perspectiva, sem saber o que eu vou fazer. Então o fato de me sentir um pouco perdida profissionalmente não faz eu me sentir saudável. (Jasmim)

Quando questionada sobre considerar-se uma pessoa saudável, a interlocutora Lírio apresenta vulnerabilidades que são motivadoras para uma avaliação negativa de seu estado de saúde. O seu discurso reflete um contexto social de cobrança-penalização que emerge do seio familiar e produz uma necessidade de “compensar” a sua identidade sexual não aceita:

infelizmente, eu ainda não cheguei no último ponto que eu toquei que, para mim, seria no ponto onde eu consigo provar que eu posso ser alguém, mesmo sendo alguém homossexual. Porque, por experiência própria, eu perdi muito da visão que as pessoas tinham de mim, né? E nesse quesito eu falo da minha família, em especial. Eu perdi muito a visão que as pessoas acham de mim a partir do momento que elas me descobriram como mulher homossexual. Então existia aquele conceito de: “a Lírio que faz faculdade, que sempre foi uma boa aluna e que era isso, que era aquilo”, que o povo endeusava, né? A partir do momento que descobriram que eu era lésbica, parece que tudo que eu tinha conquistado até então caiu por terra, né? E não existe mais, mas estou bem comigo e aceito e tudo mais, mas ainda tenho essa necessidade de: “vou provar para todo mundo que não é porque eu sou sapatão que eu não mereço o reconhecimento deles e, também, que não é porque eu sou mulher lésbica que tudo que eu conquistei até hoje se tornou invisível”. Eu continuo sendo a mesma pessoa que eu sempre fui. (Lírio)

Gardênia apresenta dois elementos importantes: a renda e os exames de sangue. A renda como elemento que determina os caminhos e as alternativas assistenciais adotadas. É salutar que se compreenda que Gardênia fazia parte de uma família com maior poder aquisitivo e que se manteve próxima durante os momentos de maior fragilidade do tratamento oncológico. A interlocutora teve, portanto, a base de sustento monetário e o apoio afetivo-familiar enfraquecidos.

As condições materiais de existência também são motivadoras da percepção etiológica da saúde e da doença em Minayo (1988MINAYO, M. C. S. Saúde-doença: uma concepção popular da etiologia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 4, p. 363-381, 1988. DOI: 10.1590/S0102-311X1988000400003
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). Questões como falta de comida, condições de moraria e saneamento básico são apontados pela autora como formatadoras da interpretação sobre as causas do adoecimento entre residentes de comunidades populares. Na vida de Gardênia, após a abertura da bissexualidade à sua família, as condições socioeconômicas só lhe permitem alcançar os exames de sangue como forma de cuidado mais especializado à saúde.

Por outro lado, é possível pensar que a situação de Gardênia poderia ser amenizada com a utilização dos serviços de saúde oriundos do SUS. Entretanto, as mulheres lésbicas e bissexuais enfrentam o não reconhecimento de necessidades e discriminação no sistema de saúde brasileiro, o que dificulta o acesso e diminui a qualidade da assistência recebida (Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, p. 1-15, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180279
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).

Segundo (2011), essas mulheres não são estimuladas pelos profissionais da saúde a verbalizar suas orientações sociais quando procuram assistência e, quando verbalizam, são tratadas com hostilidade (Valadão; Gomes, 2011VALADÃO, R. C.; GOMES R. A homossexualidade feminina no campo da saúde: da invisibilidade à violência. Physis, Rio de Janeiro, n. 4, p. 1451-1467, 2011. DOI: 10.1590/S0103-73312011000400015
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; Andrade et al., 2021ANDRADE, H. M. et al. Vivência de mulheres cis lésbicas durante a consulta ginecológica. Cadernos de Gênero e Diversidade, Salvador, v. 7, n. 3, p. 148-175, 2021.). Portanto, para Gardênia, o entrave é duplo: ela não possui condições monetárias para custear suas necessidades de saúde e, também, possivelmente, suas especificidades como mulher bissexual não serão reconhecidas.

A fala de Jasmim remete a uma cobrança pessoal, mas que se espelha em uma exigência social, com dimensões ideológicas e políticas maiores. De acordo com Viana e Silva (2018VIANA, A. L. A.; SILVA, H. P. Meritocracia neoliberal e capitalismo financeiro: implicações para a proteção social e a saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 7, p. 2107-2118, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018237.07582018
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), em análise dos achados de Curran e Hill (2017CURRAN, T.; HILL, A. P. Perfectionism is increasing over time: a meta-analysis of birth cohort differences from 1989 to 2016. Psychological Bulletin, Washington, DC, n. 141, n. 4, p. 410-429, 2017. DOI: 10.1037/bul0000138
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), a meritocracia neoliberal e o seu modo de produção ocasionam na sociedade uma busca por perfeição, através de uma série de expectativas irrealistas de sucesso pessoal e profissional, que afeta múltiplas dimensões da vida, inclusive a saúde. Com isso, epidemias de doenças mentais tornaram-se recorrentes (Viana; Silva, 2018)VIANA, A. L. A.; SILVA, H. P. Meritocracia neoliberal e capitalismo financeiro: implicações para a proteção social e a saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 7, p. 2107-2118, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018237.07582018
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.

Ao relatar-se “perdida” profissionalmente e cobrar-se a ponto de não se sentir saudável, Jasmim também se penaliza. Essa cobrança-penalização abre espaço para um comportamento hipervigilante e ansioso a respeito do futuro e do enquadramento social de sua sexualidade em um contexto de saúde de vulnerabilidades.

Na fala de Lírio, muitos aspectos interessam para a compreensão do porquê de sua avaliação negativa do estado de saúde. O primeiro deles diz respeito à invalidação social da pessoa homossexual, em que o seu corpo e as suas qualidades tornam-se dispensáveis e, por isso, a mulher lésbica vê-se pressionada a alcançar condições sociais e econômicas privilegiadas para validar a sua existência. É importante ressaltar que Lírio é uma enfermeira, economicamente estável, ou seja, a conquista de uma formação no ensino superior e da independência financeira teve pouco poder na valorização de sua pessoa por parte da família.

Em seus estudos sobre os limites do corpo e do sexo, Judith Butler (2000BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 151-172.) legitima o caráter indispensável da pessoa homossexual como participante da materialização das identidades sexuais. É possível compreender que, mesmo sendo necessárias na conjuntura social de formação da identidade heterossexual, as mulheres lésbicas e bissexuais - tais como outras identidades dissidentes - são hierarquizadas, classificadas, dominadas e excluídas pela lógica binária (heterossexualidade-homossexualidade) (Louro, 2001LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. ).

No discurso de Lírio, é explícito que a família tem peso sobre a sua autoavaliação de saúde, de forma particular, já que, após revelar-se lésbica, o prestígio por ser uma boa filha e uma boa aluna desvaiu-se e, portanto, existe uma necessidade de provar a si mesma e aos outros que continua sendo a mesma pessoa. Como já analisado por Dias (2016DIAS, M. B. Homoafetividade e direitos LGBTI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.), o contexto familiar da homossexualidade a eleva a um patamar de estigmatização maior, devido a toda a construção social que privilegia a heterossexualidade em detrimento da marginalização da homoafetividade. Assim, Lírio vê-se isolada e pouco valorizada em sua família, em decorrência do padrão binário-homofóbico.

Dessa maneira, viver em comunidade, especialmente para Lírio, proporciona um sentimento ambíguo de pertencimento, mas, também, de um exercício de busca constante por reconquistar o afeto e o valor perdidos devido a sua identidade sexual. A jornada em busca de uma vida saudável que, geralmente, seria menos tortuosa caso fosse uma mulher heterossexual, é determinante na forma como ela atribuiu sentido e autoavaliou a sua saúde. Nesse caso, o olhar social para com os sinais do corpo e do comportamento, como articula Helman (2009HELMAN, C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009. ), não somente determinaram o adoecimento, mas legitimaram, também, a forma como Lírio pensa o seu corpo, a sua identidade e os significados que atribuiu ao seu bem-estar.

Considerações finais

Este estudo esforça-se para compreender os sentidos que mulheres lésbicas e bissexuais de uma cidade do interior do estado do Maranhão dão à saúde e à doença e como avaliam o seu próprio quadro de saúde.

A aproximação com a antropologia médica, a identidade sexual e a forma como essa identidade é vista pela sociedade abriu espaço para que os depoimentos das interlocutoras fossem discutidos próximos à realidade em que são produzidos os seus sentidos. Com isso, foi observado que o saber biomédico e o contexto político-social-cultural exercem grande influência sobre a maneira como as interlocutoras interpretam o processo saúde-doença e avaliam o próprio bem-estar.

As percepções sobre saúde e doença (re)organizaram-se de maneira instigante: ora próximo da medicina biomédica, ora próximo de um dimensionamento etiológico mais plural. Isso foi expresso na dicotomia mente-corpo citada pela maioria das interlocutoras e, também, na maneira como as experiências de vida e a existência como mulheres lésbicas e bissexuais lhes permitiam refletir sobre questões como contexto familiar, social e ambiental. Dessa maneira, as participantes expressaram particularidades nos sentidos que atribuem ao processo saúde-doença que, concomitantemente, também refletem a experiência do adoecimento como constructo social.

A compreensão aqui empreendida apresenta um fragmento da realidade, esse fragmento expõe a visão de mundo de um grupo específico que, ao relatar suas percepções sobre o processo saúde-doença, demonstra os atravessamentos que produzem entraves na vida cotidiana e, consequentemente, na busca por saúde. A ideia, aqui, não é fazer generalizações, mas deixar claro que as mulheres lésbicas e bissexuais têm necessidades específicas de saúde.

Nesse enquadramento, o “olhar do nativo”, neste estudo, permitiu elucidar que discursos subalternizados devem, frequentemente, ocupar espaço nos ambientes de formação e prática em saúde. Por isso, encorajam-se estudos que se utilizem da visão dos atores sociais de contextos marginalizados para interpretar a maneira como as suas existências são atravessadas pelas normas (des)legitimadoras de identidades.

Agradecimentos

Agradecemos às participantes do estudo.

Este artigo faz parte das atividades desenvolvidas pelo Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes de Imperatriz do Centro de Ciências de Imperatriz da Universidade Federal do Maranhão. Agradecemos o apoio material e pessoal do grupo.

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  • WITTIG, M. The straight mind: and other essays. Boston: Beacon, 1992.
  • 1
    A expressão “arco-íris” refere-se à simbologia dos movimentos sociais LGBTQIA+, em uso desde a década de 1970. Por se tratar de um estudo que se utiliza da perspectiva de mulheres que pertencem a essa comunidade, o diálogo é construído a partir da visão “nativa”, pensando a saúde a partir do modo como esta é interpretada pelas atrizes sociais dessa realidade, ou seja, por debaixo desse arco-íris.
  • 2
    Informação dada em entrevista e registrada no diário de campo da pesquisa em 12 de fevereiro de 2020.
  • 3
    Informação dada em entrevista e registrada no diário de campo da pesquisa em 6 de fevereiro de 2020.
  • 4
    Informação dada em entrevista e registrada no diário de campo da pesquisa em 19 de fevereiro de 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2023
  • Revisado
    31 Maio 2022
  • Revisado
    17 Mar 2023
  • Aceito
    28 Mar 2023
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