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Educação em saúde na atenção primária: um olhar sob a perspectiva dos usuários do sistema de saúde

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar as ações de educação em saúde na atenção primária, sob a perspectiva dos usuários do sistema de saúde, à luz da teoria da ação social de Bourdieu. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada em duas Unidades Básicas de Saúde no município do Rio de Janeiro. Utilizou-se como técnicas de investigação a observação participante e a realização de entrevistas semiestruturadas. Foram realizadas doze entrevistas, com três categorias analíticas: autonomia e vulnerabilidade: a trajetória social dos agentes; cuidado ampliado em saúde: significados e tensões vivenciadas a partir dos capitais simbólicos; e vínculo, confiança e afeto: a rede de apoio social. A análise das entrevistas contou com o referencial teórico da análise de conteúdo de Bardin. As ações coletivas propiciaram espaço para diálogo e valorização da fala de todos, e a articulação dos conceitos da sociologia da ação de Bourdieu com a educação em saúde contribuiu para o entendimento da visão do usuário sobre essas práticas sociais. Por fim, são propostas ações efetivas e transformadoras por meio do diálogo e da interação com a dinâmica de vida popular.

Palavras-chave:
Educação em Saúde; Atenção Primária à Saúde; Pesquisa Qualitativa

Abstract

This article aims to analyze the action of health education in primary healthcare, under the perspective of users of the healthcare system, in view of Bourdieu’s social action theory. It is qualitative research held in two Primary Healthcare Centers in the municipality of Rio de Janeiro. Participant observation and semi-structured interviews were used as research techniques. A total of twelve interviews were conducted, with three analytical categories: autonomy and vulnerability: the agent’s social trajectory; extended health care: meanings and tensions experienced from symbolic capitals; and bonding, trust and affection: the social support network. The analysis of the interviews featured Bardin’s content analysis as theoretical framework in its thematic aspect. The collective actions opened space for dialog and appreciation of everyone’s ideas, and the coordination of the concepts of Bourdieu’s sociology of action with health education contributed to the understanding of the user’s perspective about these social practices. Finally, effective and transforming actions by using dialog and interaction with the dynamics of the lives of the common people are proposed.

Keywords:
Health Education; Primary Health Care; Qualitative Research

Introdução

A educação no campo da saúde tem sido reconhecida por gestores e profissionais como instrumento fundamental no desafio de lidar com o adoecimento da população, sendo a atenção primária em saúde (APS) lócus privilegiado para o desenvolvimento de ações educativas. Os atributos da Estratégia Saúde da Família (ESF) - abordagem familiar, formação de vínculo, cuidado longitudinal, competência cultural - permitem maior aproximação com a população e com a comunidade, possibilitando desenvolver estratégias educativas com potencial de gerar um pensamento crítico e reflexivo, estimulando a autonomia e o autocuidado dos sujeitos (Pereira; Oliveira, 2013PEREIRA, I. C.; OLIVEIRA, M. A. C. Atributos essenciais da atenção primária e a Estratégia Saúde da Família. Revista Brasileira de Enfermagem, [s. l.], v. 66, p. 158-164, 2013. Edição especial.; Ferreira et al., 2014FERREIRA, V. F. et al. Educação em saúde e cidadania: revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 363-378, 2014.; Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, Diário Oficial da União, 22 set 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html >. Acesso em: 6 fev 2019.
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).

Desta forma, para que os processos educativos sejam efetivos é necessário que sejam construídos a partir do protagonismo e da corresponsabilização dos sujeitos. Nessa perspectiva, diversas políticas públicas de saúde foram elaboradas a partir da necessidade de centrar as ações no usuário. No entanto, ainda existem dificuldades e desafios para a plena implementação de diretrizes e eixos estratégicos correspondentes a essa preocupação (Fittipaldi; O’Dwyer; Henriques, 2021FITTIPALDI, A. L. M.; O’DWYER, G.; HENRIQUES, P. Educação em saúde na atenção primária: as abordagens e estratégias contempladas nas políticas públicas de saúde. Interface, Botucatu, v. 25, e200806, 2021. DOI: 10.1590/interface.200806
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).

De fato, apesar das mudanças observadas nas políticas públicas nos últimos 40 anos, as abordagens educativas realizadas nas unidades de saúde permanecem, em geral, restritivas, enfatizando os saberes técnicos em detrimento dos conhecimentos e experiências adquiridas pelos sujeitos ao longo de sua trajetória de vida. Assim, não contribuem para a construção da autonomia nem para a busca por alternativas para uma melhor qualidade de vida, o que torna o debate sobre a redefinição das práticas de saúde urgente e necessário (Assis, 2017ASSIS, M. Uma nova sensibilidade nas práticas de saúde. In: VASCONCELOS, E. M.; PRADO, E.V. (org.) A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. São Paulo: Hucitec, 2017. p. 41-43.; Madeira et al., 2018MADEIRA, F. B. et al. Estilos de vida, habitus e promoção da saúde: algumas aproximações. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 106-115, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170520.
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).

São poucos os estudos que analisaram as abordagens educativas em saúde sob a ótica do usuário do sistema de saúde. Tais estudos refletiram principalmente sobre o campo da educação popular em saúde (EPS) e/ou abordaram a pedagogia de Paulo Freire, o que demonstra o fortalecimento desse campo de saber. No entanto, apesar de apresentarem reflexões sobre a importância de se considerar os saberes populares no processo de aprendizagem em saúde por meio de práticas educativas dialógicas, não deixam evidente se este caminho está sendo efetivamente trilhado no cotidiano do trabalho (Sampaio et al., 2014SAMPAIO, J. et al. Limites e potencialidades das rodas de conversa no cuidado em saúde: uma experiência com jovens no sertão pernambucano. Interface, Botucatu, v. 18, n. 2, p. 1299-1312, 2014. Suplemento. DOI: 10.1590/1807-57622013.0264
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; Reis, 2016REIS, M. J. Educação em Saúde na atenção primária à saúde no Brasil: um olhar sobre os conteúdos divulgados nas revistas científicas de saúde coletiva de 1990 a 2015. 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro, 2016.; Oliveira Júnior et al., 2017OLIVEIRA JÚNIOR, G. E. et al. Individualização dos cuidados em saúde e apassivação dos usuários no âmbito da educação em saúde na Estratégia Saúde da Família. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 453-467, 2017.; Almeida et al., 2019ALMEIDA, M. S. et al. A Educação Popular em Saúde com grupos de idosos diabéticos na Estratégia Saúde da Família: uma pesquisa-ação. Revista Ciência Plural, [s. l.], v. 5, n. 2, p. 68-93, 2019. DOI: 10.21680/2446-7286.2019v5n2ID16954
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; Rego et al., 2019REGO, L. S. et al. As atividades de grupo na perspectiva dos sujeitos em uma Clínica da Família. Physis, Rio de Janeiro, v. 29, n. 3, e290316, 2019.).

Resgatando os estudos de Victor Valla na década de 1990, identifica-se uma crise de interpretação e compreensão sobre o que os grupos populares têm a dizer (Valla, 1996VALLA, V. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes subalternas. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 2, p. 177-190, 1996. Disponível em: <Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71626 >. Acesso em: 14 out 2023.
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), discussão que se mantém relevante ainda hoje. Essa crise tem origem na dificuldade de profissionais e pesquisadores em considerar que as pessoas pobres, moradoras das periferias das grandes cidades e da região rural são capazes de produzir e compartilhar um conhecimento válido e de tomar decisões coerentes. Tal pensamento cria um fosso cultural entre profissionais e usuários, o que dificulta a comunicação e a corresponsabilização pelas intervenções terapêuticas propostas.

Na tentativa de superar essa crise de interpretação e de comunicação, para melhor compreensão sobre as limitações e obstáculos cotidianos vivenciados pelos usuários, ressalta-se a necessidade de ampliar os estudos que propiciem espaço de fala aos grupos populares e os considerem agentes ativos no processo de ensino-aprendizagem em saúde (Mentrup et al., 2020MENTRUP, S. et al. Patients’ experiences of cardiovascular health education and risk communication: a qualitative synthesis. Qualitative Health Research, [s. l.], v. 30, n. 1, p. 88-104, 2020.). Nessa perspectiva, a aproximação com a teoria da ação social de Bourdieu nos fornece novos elementos para o estudo da educação em saúde, ampliando o escopo das abordagens já adotadas pelas pesquisas de cunho qualitativo que congregam as ciências sociais e humanas na área da saúde. Assim, o objetivo deste artigo é analisar as ações de educação em saúde na APS, sob a perspectiva dos usuários do sistema de saúde, à luz da teoria da ação social de Bourdieu.

Métodos

Este artigo foi produzido a partir do recorte de uma tese de doutorado em saúde pública, cujo percurso metodológico teve como base teórica a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu (Bourdieu, 2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.; 2011BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2011.).

Entende-se que o pensamento de Bourdieu, enquanto sociólogo que desenvolveu estudos importantes e reconhecidos na área da educação, pode contribuir para a análise do processo de construção do conhecimento dos usuários da APS a partir das ações de educação em saúde. Assim, os conceitos de habitus, capital simbólico, campo e poder simbólico, descritos no Quadro 1, são potentes na compreensão da influência que os aspectos objetivos e subjetivos exercem nas ações dos usuários, impactando na constituição da sua autonomia e do seu protagonismo no cuidado em saúde (Bourdieu, 2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.; Bourdieu 2011BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2011.).

Quadro 1
As ferramentas sociológicas de Pierre Bourdieu

Segundo Bourdieu, para compreender a ação social dos agentes, é importante reconstruir os elementos e aspectos que escapam à sua consciência, combinando significados objetivos e subjetivos, que envolvem o agente e a estrutura, bem como o habitus e o campo em que ele está inserido (Bourdieu, 2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.).

Foi realizada uma pesquisa com abordagem qualitativa, em duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) localizadas no município do Rio de Janeiro, em uma região de grande vulnerabilidade social. O critério para seleção das unidades de saúde foi a presença de práticas coletivas desenvolvidas por equipes da ESF, assim como o interesse e a disponibilidade das equipes em acolher a pesquisa.

Os participantes foram os usuários das UBS, maiores de 18 anos, de ambos os sexos, que participaram de uma ou mais práticas coletivas. Para tanto, utilizou-se como técnica de investigação a observação participante das ações coletivas e entrevistas semiestruturadas (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.; Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.).

A observação participante teve como objetivo compreender a dinâmica das práticas coletivas desenvolvidas, além de convidar os usuários para participar da pesquisa e responder a entrevista. As etapas de análise e interpretação das entrevistas contou com o referencial teórico da análise de conteúdo de Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.).

É importante destacar o papel da entrevista como elemento integrante do processo educativo. Quando o participante é convidado a responder às perguntas da pesquisa, ele elabora suas respostas a partir dos temas discutidos e situações vivenciadas nas práticas coletivas. Ele encontra um espaço de fala sobre si, sobre sua vida e experiências, e, a partir dessa fala, tem oportunidade de pensar criticamente sobre o que vivenciou e sobre o seu lugar nesse processo de aprendizagem, trazendo à tona e tornando público um saber que poderia estar, talvez, latente.

Nessa perspectiva, Bourdieu destaca a potência da entrevista, em especial o seu significado para o entrevistado:

certos pesquisados, sobretudo entre os mais carentes, parecem aproveitar essa situação como uma ocasião excepcional que lhes é oferecida para testemunhar, se fazer ouvir, levar sua experiência da vida privada para a esfera pública; uma ocasião também de se explicar, no sentido mais completo do termo, isto é, de construir seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos e sobre o mundo, e manifestar o ponto, no interior desse mundo, a partir do qual eles se veem a si mesmos e o mundo, e se tornam compreensíveis, justificados, e para eles mesmos em primeiro lugar (Bourdieu, 1997BOURDIEU, P. (Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 704).

Resultados e discussão

Caracterização das ações educativas

Foi realizada observação participante em treze reuniões de seis ações educativas: Grupo café sem danos, direcionado aos usuários de álcool e outras drogas; Grupo de plantas medicinais, com compartilhamento de conhecimentos sobre o uso medicinal de plantas e plantio de horta comunitária; Reencontro com a autoestima, direcionado aos usuários de saúde mental; Grupo de hipertensão e diabetes, para orientações sobre os cuidados no tratamento dessas doenças; e Grupo de artesanato e Quem dança é mais feliz, ambos com o objetivo de proporcionar integração, socialização e alívio dos sintomas de estresse e ansiedade por meio da dança e da arte.

Todos os grupos observados foram desenvolvidos por meio de rodas de conversa, exceto o grupo Quem dança é mais feliz. Após a apresentação do tema principal pelos profissionais, os participantes eram convidados a manifestar suas impressões, fazer seus comentários, bem como esclarecer suas dúvidas. Em alguns momentos a conversa era direcionada para outros assuntos, reflexo das diversas dúvidas que surgiram, sendo as mudanças aceitas e acolhidas por todos.

As ações educativas demonstraram ser espaços de educação em saúde para além dos objetivos de cuidado específicos da área, dentre os quais pode-se identificar: oportunidades de escuta e fala, demonstração de afeto, formação de vínculos, estreitamento de relações, compartilhamento de saberes, construção coletiva do conhecimento e aproximação entre os saberes popular e científico. Sabe-se que a criação de espaços de socialização impacta positivamente na qualidade de vida da população (Bay et al., 2020BAY, A. A. et al. Effects of a health education and research participation enhancement program on participation and autonomy in diverse older adults. Gerontology and Geriatric Medicine, [s. l.], v. 6, 2333721420924952, 2020. DOI: 10.1177/2333721420924952
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).

Durante as rodas de conversas, observou-se a formação de uma ligação emocional e comportamental a partir das relações interpessoais entre profissionais e usuários, acionada e fomentada durante os encontros coletivos. Esse processo pode contribuir para o estímulo à autonomia e a corresponsabilização no cuidado da saúde, além de ressignificar as prescrições e orientações recebidas durante as consultas clínicas. Há falas dos participantes durante as ações educativas que expressam esse sentido:

Quer ver eu acordar feliz? Quando é segunda-feira e eu venho pra cá.

Sabia que tem bordado na clínica? Ah, não, não sabia. Aí, eu fiquei toda feliz. Eu estava num processo de frustração enorme como mulher, como pessoa que perde tudo de repente […]. Aí, de repente, eles falam: tem grupo de bordado, tem grupo de yoga. Oba! É comigo mesmo.

A educação em saúde sob a perspectiva dos usuários entrevistados

A partir dos grupos observados, realizou-se doze entrevistas semiestruturadas, tendo sido identificadas as seguintes categorias para análise e discussão dos resultados: (1) autonomia e vulnerabilidade: a trajetória social dos agentes; (2) cuidado ampliado em saúde: significados e tensões vivenciadas a partir dos capitais simbólicos; e (3) vínculo, confiança e afeto: a rede de apoio social.

Autonomia e vulnerabilidade: a trajetória social dos agentes

A análise das entrevistas a partir desta categoria empírica, abarcou os conceitos de habitus, capital cultural e capital econômico (Bourdieu, 2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.; Bourdieu 2011BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2011.). Assim, procurou-se demonstrar algumas influências que os entrevistados receberam ao longo da sua trajetória de vida e que representaram elementos objetivos e estruturantes das suas ações. Tais influências são formadas a partir das dinâmicas das práticas sociais que integraram a configuração do habitus, impactando na sua capacidade de desenvolver autonomia, bem como no acúmulo de capital cultural.

Inicialmente, o grau de escolaridade dos entrevistados foi considerado um importante elemento da sua trajetória social. Aqueles que possuem apenas ensino fundamental ou não foram sequer alfabetizados representaram a maioria dos entrevistados: “Não, nunca estudei, consegui trabalhar com sete anos de idade” (E8); “As pessoas mandam as coisas no zap pra mim e eu não sei ler nada” (E4).

Além disso, o nível de escolaridade dos pais dos entrevistados foi objeto de investigação; procurou-se compreender a sua influência no acúmulo de capital cultural. Metade dos entrevistados relatou que seus pais não tinham sido alfabetizados, e os que estudaram não concluíram o ensino fundamental: “minha mãe era analfabeta completa, não sabia ler e nem escrever. Meu pai, a partir de 50, quase 60 anos, foi que ele se alfabetizou, que ele aprendeu a escrever o nome dele e a ler” (E5).

A concepção teórica da sociologia da educação de Bourdieu se apoia na relação entre a origem social e o desempenho escolar, a partir, principalmente, das classes sociais. Para o autor, a escola teria o papel de reproduzir a estrutura social vigente e, portanto, as desigualdades sociais. Assim, propiciaria o baixo rendimento ou abandono escolar das classes populares, privilegiando as classes dominantes, que já entrariam no sistema de ensino com larga vantagem (Bourdieu, 2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.). Nessa concepção, o desempenho escolar não dependeria unicamente das aptidões individuais inerentes às constituições biológicas e psicológicas particulares, mas, principalmente, das condições favoráveis ou não da sua origem social.

Segundo Bourdieu (2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.), a família e a instituição de ensino são os principais responsáveis pela constituição do capital cultural dos agentes. A família, bem como a escola, transmite aos seus filhos um certo ethos, um conjunto de valores e modos de comportamento, nem sempre explícitos, mas responsáveis por conformar a identidade e o caráter dos indivíduos. Assim, na família ocorre a configuração do habitus primário, a primeira e profunda impressão da vida social no indivíduo. Em seguida, a partir das inúmeras interações sociais que acontecem ao longo da vida, outras impressões são sedimentadas.

Dessa forma, aspectos da educação formal e do contexto familiar podem acompanhar os sujeitos ao longo da vida, influenciando suas possibilidades de agência, assim como a capacidade de realizar escolhas e de modificar sua realidade. Tais reflexões apareceram nos depoimentos, muitas vezes atreladas às condições de existência e às histórias de vida dos entrevistados: “[…] ela não colocou ninguém para estudar. […] Ela não era aquela pessoa de incentivar. Nós fomos aprendendo as coisas com as pessoas. Não tivemos essa parte da alfabetização” (E10). “Não é fácil vir aqui toda quinta-feira. […]. Quando eu chego aqui, eu sei que eu venci algumas barreiras. […] Eu sei que foram lutas que eu venci pra estar aqui” (E5).

Observou-se, assim, que os entrevistados tinham consciência das limitações que possuíam e compreendiam a sua situação de vulnerabilidade. Ressalta-se que a vulnerabilidade envolve aspectos não apenas individuais, mas também sociais, influenciando, por exemplo, na exposição da população aos riscos de adoecimento (Ayres, 2014AYRES, J. R. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado: aportes conceituais. In: BARROS, S.; CAMPOS, P. F. S.; FERNANDES, J. J. (Org.). Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole, 2014. p. 1-25.).

Dessa forma, o componente individual da vulnerabilidade refere-se ao acesso que os sujeitos têm às informações sobre saúde e doença, à sua capacidade de compreensão e incorporação dessas informações às suas preocupações cotidianas, e ao interesse e às possibilidades de tornar essas preocupações ferramentas para modificação da sua realidade.

Ou seja, trata-se do componente subjetivo, que está diretamente relacionado ao habitus e ao acúmulo de capitais simbólicos.

Já o componente social diz respeito ao nível de escolaridade, ao tipo de informação a que se tem acesso, ao poder de protagonismo político, bem como à presença de recursos materiais, elementos que influenciam na possibilidade de incorporar mudanças no seu cotidiano. Tais aspectos geram impacto sobre a autonomia, bem como sobre as possibilidades de concretizar o autocuidado. Assim, as escolhas dos sujeitos e a sua capacidade de “livre-agir” são limitadas pelas condições de vida (Ayres, 2014AYRES, J. R. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado: aportes conceituais. In: BARROS, S.; CAMPOS, P. F. S.; FERNANDES, J. J. (Org.). Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole, 2014. p. 1-25.; Madeira et al., 2018MADEIRA, F. B. et al. Estilos de vida, habitus e promoção da saúde: algumas aproximações. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 106-115, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170520.
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).

Como aspectos da vulnerabilidade social, os entrevistados descreveram situações relacionadas ao contexto social do local onde viviam, que estavam relacionadas com o seu processo de adoecimento: “é um lugar tenso. É porque você tem que passar por bandido o tempo todo, toda hora. Eles super armados, sabe? Aquela esquina cheia de homem super armado, muita droga. Eu não acho isso legal”. (E10)

Na fala em destaque, foi evidenciada a violência armada e os constantes conflitos que ocorrem nas comunidades populares oriundos do crime organizado. Esses fatores, além de representar risco de morte iminente, exercem um grande impacto na saúde mental dos moradores, que convivem diariamente com momentos de tensão e medo (Ribeiro et al., 2020RIBEIRO, F. M. L. et al. Sumário executivo: violência armada e saúde: investigando os sentidos e os impactos da violência entre moradores e trabalhadores da saúde e da educação em Manguinhos/Rio de Janeiro/RJ - estudo de caso. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/43349 >. Acesso em: 10 fev. 2021.
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).

No contexto aqui apresentado, o nível de vulnerabilidade e o capital econômico surgiram marcadamente como elementos limitantes das escolhas e da autonomia dos entrevistados. A concretização da autonomia, por outro lado, está relacionada ao acesso aos bens de consumo, aos cuidados com a saúde, ao lazer, ao trabalho, às condições de moradia, sendo limitada pela ausência ou restrição a esse acesso: “Eu só compro quando falta aqui, e quando falta aqui eu sei o que eu passo pra eu não deixar o remédio do meu marido e o meu faltar” (E8).

O desenvolvimento da autonomia, expresso na possibilidade de agir no mundo por meio da participação social e política, impacta positivamente na qualidade de vida dos sujeitos. Envolve as suas condições de vida, bem como as suas redes de apoio e espaços disponíveis para socialização (Bay et al., 2020BAY, A. A. et al. Effects of a health education and research participation enhancement program on participation and autonomy in diverse older adults. Gerontology and Geriatric Medicine, [s. l.], v. 6, 2333721420924952, 2020. DOI: 10.1177/2333721420924952
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). “Eu até luto contra usar a palavra usuário, prefiro abrigado, prefiro acolhida, porque usuário é aquele que usa, foi e acabou. Não, nós usamos, nós pensamos, nós mudamos alguma coisa que é possível e seguimos adiante. […] É um espaço de atuação também”. (E7) “O que tem mudado é que eu procuro, […] penso em consertar minha vida, e quando sair do abrigo - que eu não tenho vontade de continuar nesse abrigo […] - eu tenho que tentar fazer a coisa certa. (E2)

Para Bourdieu (2011BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2011.), o capital cultural, juntamente com o capital econômico, é responsável por estruturar as ações sociais dos sujeitos, vivenciadas de diferentes maneiras no espaço social. Assim, a dimensão simbólica da vida é tão importante e estruturante quanto os aspectos materiais presentes.

As escolhas e disposições sociais dos indivíduos não se limitam simplesmente às vontades individuais (primado da ação) e nem tampouco são macrodeterminações de arranjos coercitivos (primado das estruturas). São resultado principalmente de toda a sua herança cultural e social, adquiridos por meio da família e da escola, que de forma inter-relacional definem as suas atitudes, determinadas pela cultura, num jogo que envolve aceitações e recusas, bem como negociações nas estruturas, que são estruturadas e estruturantes (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.).

Outro aspecto que pode ser problematizado em relação à autonomia e à vulnerabilidade é a religiosidade. As menções à fé e à religião permearam as falas dos entrevistados, que as relacionaram à maneira como lidam com o adoecimento e com as dificuldades do cotidiano. A religiosidade é considerada elemento integrante no processo de cura e autocuidado: “Porque eu creio em Deus, porque eu creio que Deus pode ser um grande parceiro, o maior parceiro na recuperação de alguém, seja qual for a limitação dessa pessoa” (E5).

A grande procura por práticas religiosas sinaliza a busca não apenas por soluções para problemas de ordem física, mas também para manter o equilíbrio na unidade corpo-mente, ou corpo-alma. Assim, as igrejas oferecem suporte e motivação no enfrentamento e alívio do sofrimento, tornando as vidas mais significativas e toleráveis, proporcionando um sentido de autonomia e controle sobre o próprio destino (Targa, 2019TARGA, L. V.; OLIVEIRA, F. A. Cultura, saúde e o médico de família e comunidade. In: GUSSO, G.; LOPES, J. M. C.; DIAS, L. C. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed, 2019. p. 74-80.).

A construção do habitus, que ocorre no transcorrer da trajetória social de cada indivíduo, também se manifesta na experiência de vida coletiva do grupo em que convivem e com o qual se identificam. Nesse sentido, observou-se que os entrevistados compartilhavam condições objetivas de vida semelhantes, seja pela religiosidade, pelo território onde viviam, ou pelas suas características enquanto usuários de Unidades de Atenção Primária à Saúde em comunidades populares de uma grande cidade. Dessa forma, por pertencerem a um meio social semelhante, observou-se a construção de uma identidade comum, responsável por criar uma certa harmonização do habitus, o que Bourdieu chama de habitus de classe.

Sendo assim, conhecer alguns aspectos das experiências adquiridas na trajetória social dos entrevistados contribuiu com a compreensão sobre as suas possibilidades de desenvolver a autonomia e o autocuidado em saúde.

Cuidado ampliado em saúde: significados e tensões vivenciadas a partir do capital simbólico

A análise a partir desta categoria empírica visou compreender as inter-relações entre os diversos aspectos do capital simbólico dos agentes no espaço social dos encontros educativos. Abrangeu o arcabouço teórico dos conceitos de campo, poder simbólico e violência simbólica (Bourdieu, 2007aBOURDIEU, P. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007a.; Bourdieu 2011BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2011.).

Os depoimentos demonstraram que os conhecimentos compartilhados nas práticas, assim como as trocas de experiências vivenciadas, eram importantes e integrantes no cuidado terapêutico. Há uma dinâmica de cooperação entre as ações coletivas e os cuidados clínicos individuais: “eu vim pra cá por causa do tratamento, mas sempre tinha um bordado, tinha um cantinho onde as pessoas estavam fazendo plantas medicinais e cuidando da terra e criando grupo de conversa com a comunidade” (E7).

Os elementos abordados nas práticas coletivas consideraram os preceitos da clínica ampliada e compartilhada, que prevê o estímulo à autonomia por meio da integração entre diversos saberes e experiências, para atender às diferenças e as singularidades (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Cadernos HumanizaSUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.). Assim, tiveram impacto positivo na vida dos participantes, em aspectos como a recuperação da autoestima, do prazer e do bem-estar, que afetam diretamente a saúde: “Minha autoestima foi lá em cima […]. Eu me sinto mais leve. Antigamente eu não fazia essas coisas, me sentia cansada, ficava em casa pensando: ‘gente, a vida é essa, só vendo televisão?’. […] No dia em que eu venho pra dança, o dia passa assim, rápido” (E3).

Os temas propostos pelos profissionais para serem problematizados durante as práticas coletivas eram do interesse dos entrevistados e despertavam sentimentos e reflexões: “São temas do meu interesse e temas que nos fazem repensar muito na nossa qualidade de vida, qualidade existencial e como a gente se posiciona diante das dificuldades da vida, […] de uma forma mais saudável” (E7).

Ao aceitar os temas que eram apresentados pelos profissionais, e que, em geral, não eram acordados previamente, os entrevistados estavam em acordo com o que Bourdieu (1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.) chama de “senso do jogo”. Segundo o autor, há uma sinergia entre a ação dos agentes e a regra do jogo de determinado campo, em que o agente nem sempre apresenta seu agir de maneira consciente, sendo raramente fruto de uma razão pura. Ao contrário, sua ação é consequência da interiorização de convenções e valores que regem o campo e que são frutos de uma relação assimétrica de poder e das desigualdades existentes entre os diversos tipos de capital que os agentes possuem. Dessa forma, profissionais e usuários estabelecem entre si uma relação de dominantes e dominados que nem sempre é percebida. O usuário aceita o seu papel de dominado nesse campo de poder, que é o campo da saúde, e acredita não estar em igualdade de posição quanto à posse do capital simbólico do saber (capital cultural) em comparação com os profissionais de saúde.

As diferenças existentes entre os níveis de capital simbólico produzem tensões que se manifestam de diversas maneiras no cotidiano do cuidado. Uma delas ocorre através do poder simbólico, que se estabelece de modo nem sempre percebido pelos agentes. Muitas vezes esse poder produz uma violência também simbólica, quando o usuário não se percebe dominado nessa relação de poder desigual. Há uma dominação de uma classe sobre a outra quando o profissional de saúde, com o seu saber científico - o conhecimento adquirido nos estudos acadêmicos e reconhecido como saber dominante e hegemônico -, exerce o poder de decidir sobre o que é melhor para a vida do outro (usuário).

Tal tipo de decisão passa por questões subjetivas, e quando esse aspecto não é considerado no contexto das intervenções propostas, ocorre a violência simbólica. Decidir sobre como o outro deve se alimentar e como deve se comportar no dia a dia para evitar comportamentos considerados de risco envolve considerações que vão além do conhecimento científico sobre o processo saúde-doença. Por outro lado, o usuário que “sofre” essa violência simbólica não a percebe. Ao contrário, valida e naturaliza as orientações que recebe como algo produzido por alguém que sabe mais que ele, que possui um capital cultural mais amplo, e, portanto, tem o direito de interferir na sua vida. Essa interferência é “permitida” porque, como Bourdieu (1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.) aponta, as ações dos agentes, influenciadas por aspectos objetivos e subjetivos, nem sempre são completamente conscientes. Dessa forma, as interferências, ainda que permitidas e aceitas, podem ser subvertidas de alguma forma e em algum momento.

Sendo assim, se as orientações oferecidas e compartilhadas forem baseadas no poder que se apresenta na interação entre usuários e profissionais de saúde, serão provavelmente fadadas ao fracasso: “E não tomei o remédio. Eu falei: ‘Eu não vou tomar remédio nenhum.’ Porque… vamos supor que esse também me dê uma reação? Porque eu nunca tinha tomado remédio até então… […] aí eu, por minha conta mesmo, eu me assumi, que eu não ia tomar” (E1).

Em contrapartida, quando o planejamento dos temas trabalhados nos grupos considerou previamente os interesses dos participantes, e permitiu o diálogo, propiciou reflexões posteriores: “Tirar proveito do que eu tenho aprendido aqui e prestado atenção, nas conversas. […] Não posso ficar vindo aqui, participando de palestras apenas por participar, não é isso que eu quero. Eu quero levar alguma coisa de proveitoso pra mim” (E2).

Dessa forma, as estratégias dos agentes para conservação ou subversão das estruturas dependem da sua posição no campo, das suas disposições incorporadas (habitus) assim como da capacidade de acionar e mobilizar o capital simbólico por eles acumulado (Moreira, 2017MOREIRA, C. O. F. A sociologia da ciência de Pierre Bourdieu: ferramentas e pontos de vista. In: MARTELETO, R. M.; PIMENTA, R. M. (Org.) Pierre Bourdieu e a produção social da cultura, do conhecimento e da informação. Rio de Janeiro: Garamond, 2017. p. 179-189.).

Vínculo, confiança e afeto: a rede de apoio social

Os resultados a partir da presente categoria de análise evidenciaram aspectos das entrevistas que se coadunam com a concepção de capital social (Bourdieu, 2007bBOURDIEU, P. O capital social: notas provisórias. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007b. p. 65-69.). Os entrevistados encontraram nas práticas coletivas, para além de respostas e orientações técnicas sobre cuidado em saúde, um espaço de acolhimento, de afeto e escuta. Assim, criou-se ou reforçou-se o vínculo com os profissionais de saúde e com os demais participantes dos grupos, formando uma rede de apoio social: “As pessoas que nos atendem nos respeitam, têm carinho por nós. Eles nos dão abraço, eles nos dão uma palavra” (E2). “Eu tive essa oportunidade e permissão de Deus, em meio a uma crise de saúde, de ter médicos que estavam olhando no olho da gente. Estavam também numa roda de conversa” (E7).

Observou-se nos depoimentos que as práticas coletivas propiciam o diálogo entre profissionais e usuários, representando uma oportunidade rica e potente de troca de experiências e saberes distintos: “Eu tenho muita sede dessas escutas no grupo de conversação de fitoterapia, quando eles trazem um saber que é mais hegemônico, está numa construção que é da academia em contrapartida do nosso saber popular(E7).

Assim, a valorização e o respeito do profissional pelo saber do outro, pelas suas experiências prévias, bem como o carinho e atenção dispensados durante as práticas coletivas, estimularam o usuário a, através da escuta, produzir um conhecimento que gerasse mudanças de comportamento.

Esses resultados são corroborados pelo estudo de Mentrup e colaboradores (2020MENTRUP, S. et al. Patients’ experiences of cardiovascular health education and risk communication: a qualitative synthesis. Qualitative Health Research, [s. l.], v. 30, n. 1, p. 88-104, 2020.), que demonstrou que os participantes ficaram mais receptivos às mudanças de comportamentos quando as informações foram compartilhadas de forma dialógica, não crítica, em linguagem clara, objetiva, com honestidade e empatia.

Segundo os princípios da EPS, as práticas educativas devem ser realizadas com alegria, comprometimento, estimulando a curiosidade, esperança e com convicção em possibilidades reais de mudanças. Os encontros devem ser baseados no diálogo, na amorosidade, e no bem querer aos educandos, para propiciar a conscientização, sem a qual não há transformação da realidade (Freire, 2011FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.; Pedrosa, 2017PEDROSA, J. I. S. Gestão participativa, controle social e educação popular em saúde: socializando saberes e práticas. In: VASCONCELOS, E. M.; PRADO, E. V. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. São Paulo: Hucitec, 2017. p. 167-185.). As abordagens educativas que seguem esses princípios estão avançando na América Latina, onde os profissionais estão assumindo o desafio de modificar suas práticas para propiciar espaços de solidariedade, construir redes de encontros e interdisciplinaridade (Jara, 2020JARA, O. Desafíos para la educación popular en América Latina hoy. Interface, Botucatu, v. 24, e200151, 2020. DOI: 10.1590/interface.200151.
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).

Observou-se que as expectativas dos entrevistados em relação às práticas coletivas foram influenciadas pelas suas condições de vulnerabilidade. Tais condições os tornaram propensos a procurar (ainda que de uma forma não consciente) nos encontros coletivos uma rede de apoio para o enfrentamento das situações de saúde e adoecimento que vivenciavam. Algumas doenças apresentam causas sociais, e/ou teriam agravantes de origem social, como o isolamento. Dessa forma, o apoio social oferece suporte material, cognitivo, afetivo e emocional para o enfrentamento do adoecimento (Canesqui; Barsaglini, 2012CANESQUI, A. M.; BARSAGLINI, R. A. Apoio social e saúde: pontos de vista das ciências sociais e humanas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 5, p. 1103-1114, 2012.).

É importante destacar que a formação de redes de apoio social, constituída durante as práticas coletivas, representou para os entrevistados uma oportunidade de acúmulo de capital social, propiciando uma forma de acesso por meio das inter-relações e da rede de contatos e apoio que se estabeleceram: “Sim, sim, quando eu fico muito tempo sem vir, eu sinto os sintomas do afastamento […]. Eu nem te falo, é dor na coluna, é dor nas pernas, é inchaço nos pés. […] Mas é mesmo falta de ânimo, muita falta de ânimo” (E6).

A contribuição de cada agente nessa inter-relação de troca depende de dois fatores principais, que podem agir isoladamente ou em conjunto: (1) o volume de capital social de que cada agente dispõe, que tem relação com a extensão da rede de apoio a que ele tem acesso ou pode mobilizar, bem como (2) o volume de capital cultural e/ou econômico que cada um possui. Assim, cada indivíduo, com seu volume de capital simbólico, que é exclusivamente seu, pode somá-lo ao capital simbólico do outro, formando uma rede de apoio mútuo e vínculos que podem ser ou não permanentes, mas que são úteis pelo efeito multiplicador que exercem coletivamente (Bourdieu, 2007bBOURDIEU, P. O capital social: notas provisórias. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007b. p. 65-69.).

Para Bourdieu, a rede de relações e de apoio não acontece espontaneamente. Ao contrário, se configura em uma ação social deliberada, produto de um trabalho estratégico de instauração e manutenção de investimento social, consciente ou inconsciente, a curto ou a longo prazo, para proporcionar lucros simbólicos. O estabelecimento do reconhecimento da inclusão de um agente em um grupo é subjetivamente sentido, por meio das trocas de sentimentos de respeito, amizade, solidariedade e amorosidade que ocorrem coletivamente, assim como objetivamente garantida pelas instituições, como um direito do cidadão (Bourdieu, 2007bBOURDIEU, P. O capital social: notas provisórias. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007b. p. 65-69.; Fittipaldi; O’Dwyer; Henriques, 2021FITTIPALDI, A. L. M.; O’DWYER, G.; HENRIQUES, P. Educação em saúde na atenção primária: as abordagens e estratégias contempladas nas políticas públicas de saúde. Interface, Botucatu, v. 25, e200806, 2021. DOI: 10.1590/interface.200806
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).

Bourdieu (2007bBOURDIEU, P. O capital social: notas provisórias. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007b. p. 65-69.) ressalta a intangibilidade do capital social, uma vez que ele reside na estrutura das relações sociais. O capital social seria, ainda, um caminho para acúmulo de capital cultural, através do contato com diferentes saberes, experiências e conhecimentos que são compartilhados coletivamente. Os lucros adquiridos são simbólicos e têm origem no sentimento de pertencimento a um grupo, cuja existência se torna possível com base no respeito, amizade e solidariedade.

Considerações finais

As ações coletivas propiciaram espaço para desenvolver o pensamento crítico e reflexivo por meio do diálogo entre os participantes bem como da valorização da fala de todos. No entanto, considera-se que o contexto de vulnerabilidade individual e social formado a partir da trajetória de vida dos entrevistados limita o seu poder de escolha e a sua capacidade de desenvolver a autonomia e o autocuidado plenamente.

As reflexões aqui apresentadas expressam um cenário de ações educativas que destoa das práticas hegemônicas de educação em saúde que são exercidas na APS. Representa-se uma perspectiva de mudança, que vislumbra a possibilidade de fomentar o desenvolvimento de práticas educativas em consonância com o ideário da Educação Popular em Saúde. Trata-se de uma potente alternativa para a conscientização, a transformação da realidade e a melhoria da qualidade de vida.

Entende-se que é impossível refletir sobre educação em saúde, enquanto ferramenta do cuidado, sem abordar as questões sociais objetivas que influenciam diretamente a vida dos sujeitos, interagem com sua subjetividade e permearam os depoimentos dos entrevistados desta pesquisa. Em outras palavras, como falar de educação em saúde quando faltam educação formal básica, trabalho, moradia, alimentação, enfim, condições dignas de subsistência?

Ao identificar que as questões que envolvem o adoecimento da população são atravessadas e influenciadas pelas condições determinadas pelas estruturas sociais, pontua-se a necessária inclusão de reflexões pertinentes ao campo da sociologia. Nessa perspectiva, optou-se pelas ferramentas sociológicas de Bourdieu como referencial teórico analítico, que mediam os aspectos subjetivos e os objetivos, destacando que as estruturas sociais operam em mão dupla com as subjetividades. Assim, a articulação dos conceitos da sociologia da ação de Bourdieu com a educação em saúde contribuiu para o entendimento da visão do usuário sobre essas práticas sociais, assim como de suas experiências, interesses e motivações. Corroborando a perspectiva de Bourdieu, ainda que o habitus tenha um papel marcante nas ações sociais, as estruturas são determinantes, facilitadoras ou limitantes dessas ações.

Pontua-se como limitações do estudo o contexto da pesquisa de campo, que foi atravessada pela pandemia de covid-19, com interrupção das ações educativas coletivas, e consequente diminuição do acesso aos usuários da APS. Assim, sugere-se a realização de novos estudos que possibilitem ampliar o objeto da presente pesquisa para novos campos e diferentes cenários e contextos.

Dessa forma, ao apresentar as experiências e os significados atribuídos às ações educativas pelos seus usuários, espera-se contribuir com o campo da educação em saúde na APS, sugerindo que ela seja pautada pelos princípios da Educação Popular em Saúde, por meio do diálogo e da interação com a dinâmica da vida popular. Aponta-se um caminho que, embora já trilhado por alguns profissionais, necessita ser ampliado, para que se encontrem alternativas coletivas ao enfrentamento da complexidade de problemas que levam ao adoecimento da população. Desse modo, podem ser propostas ações de educação em saúde que sejam efetivas, transformadoras e duradouras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2022
  • Revisado
    30 Dez 2022
  • Aceito
    02 Jun 2023
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