1. Introdução
A tecnologia farmacêutica associada à modificação da liberação de fármacos, a partir de preparações farmacêuticas, sofreu um incremento notório nas últimas décadas na tentativa de maximizar as vantagens inerentes às formas farmacêuticas de liberação controlada[1]. O sucesso dessas novas tecnologias caracteriza-se pela total desvinculação destas propostas com os elevados investimentos previstos à descoberta de novos fármacos[2].
A principal vantagem dos comprimidos matriciais de liberação controlada consiste na tentativa de manter as concentrações plasmáticas do fármaco a níveis terapêuticos. Estas diminuem as flutuações da dose administrada, eliminando a necessidade de administrações frequentes, melhorando a adesão do paciente ao tratamento[3,4].
Os sistemas matriciais constituídos por polímeros é uma das estratégias mais empregadas no desenvolvimento de uma formulação oral de liberação modificada devido às vantagens inerentes a estes sistemas: versatilidade, eficácia, baixo custo e produção que recorre a equipamentos e técnicas convencionais[5].
No desenvolvimento de sistemas matriciais, deve-se levar em consideração a estrutura da matriz, a cinética de liberação, os mecanismos para controlar a liberação do fármaco (erosão, difusão, intumescimento), a natureza química e as propriedades dos materiais utilizados. O mecanismo de liberação dos fármacos é dependente de fatores como a solubilidade do fármaco, capacidade de hidratação/intumescimento do polímero e formação de camada gelatinosa que funciona como uma barreira que controla a velocidade de liberação do fármaco[6].
Quando uma matriz hidrofílica entra em contato com o fluido do trato gastrointestinal, ocorre uma hidratação das moléculas mais superficiais da interface sólido-líquido, seguido por rearranjo da cadeia polimérica, formando uma camada gelatinosa. À medida que a água penetra no sistema, a camada de gel vai aumentando, enquanto que as camadas mais externas podem sofrer um processo de erosão. Em seguida, ocorre uma total geleificação do sistema e liberação do fármaco por difusão, erosão ou ambos[7].
A hidroxipropilmetilcelulose (HPMC) é um polímero hidrossolúvel muito utilizado como agente formador de comprimidos matriciais hidrofílicos[8]. Uma das suas características mais importantes é a capacidade de intumescimento/relaxamento, a qual exerce efeito pronunciado na liberação do fármaco. O grau de hidratação deste polímero depende das suas características físico-químicas, como a massa molecular, o grau de substituição e a viscosidade[9].
A Goma guar é um polímero natural hidrossolúvel com interesse na preparação de comprimidos matriciais devido ao baixo custo e a sua habilidade na formação de uma barreira difusional quando intumescida[10]. É um polissacarídeo natural extraído das sementes de Cyamopsis tetragonolobus (Leguminosea), constituído por unidades de β-1,4-manose glicosídica e uma unidade α-1,6-galactose a cada duas unidades de manose, formando ramificações[11].
A combinação criteriosa de polímeros, em determinadas concentrações, pode constituir a matriz de um sistema de liberação de fármacos muito promissor, que fornece um efeito terapêutico prolongado e uma biodisponibilidade mais equilibrada do fármaco[10,11]. Essa associação tem sido bastante estudada no intuito de garantir maior eficácia sobre o controle da liberação de fármacos[12-14].
A teofilina, fármaco solúvel em água, foi escolhida como modelo devido a sua eficiência no tratamento da asma e doença pulmonar obstrutiva crônica, sendo necessária a sua monitorização plasmática devido aos efeitos colaterais desagradáveis. Diante disso, podem ser usadas formas farmacêuticas de liberação lenta, as quais minimizam as oscilações plasmáticas, no intuito de diminuir efeitos adversos[15]. O objetivo deste trabalho foi avaliar o comportamento da Goma guar isolada em relação à hidroxipropilmetilcelulose, em diferentes razões GG:HPMC, no intuito de utilizar esse polímero natural em comprimidos matriciais de liberação controlada da teofilina.
2. Experimental
2.1 Materiais
Goma guar (All Chemistry, Brasil), Hidroxipropilmetilcelulose (METHOCELTM, K4M) fornecida gentilmente pela Colorcon® (Brasil), teofilina anidra (Deg, Brasil), celulose microcristalina (All Chemistry, Brasil), estearato de magnésio (Deg, Brasil), dióxido de silício coloidal (Deg, Brasil).
2.2 Produção e caracterização dos comprimidos matriciais
Os componentes da formulação foram pesados em balança analítica (Gehaka, modelo AG 200) e submetidos à uniformidade de granulometría, utilizando um tamiz de malha 355 µm (Granutest). Em seguida, a teofilina, a Goma guar, a HPMC e a celulose microcristalina foram misturadas em gral e pistilo. Posteriormente, o estearato de magnésio e o dióxido de silício coloidal foram adicionados à mistura para a preparação dos comprimidos de teofilina (100 mg), utilizando uma máquina de comprimir rotatória semi-automática (Lawes, modelo W216), com punção de 11 mm. Foram produzidos os lotes A (GG), lote B (GG:HPMC 3:1), lote C (GG:HPMC 1:3) e lote D (HPMC). A composição de cada lote pode ser observada na Tabela 1.
Tabela 1 Composição qualitativa e quantitativa dos diferentes lotes dos comprimidos matriciais de teofilina.
Composição (mg) | Lote A | Lote B | Lote C | Lote D |
---|---|---|---|---|
Teofilina | 100,00 | 100,00 | 100,00 | 100,00 |
HPMC | - | 36,30 | 108,70 | 146,00 |
Goma guar | 146,00 | 108,70 | 36,30 | - |
Celulose microcristalina | 146,00 | 146,00 | 146,00 | 146,00 |
Estearato de magnésio | 4,00 | 4,00 | 4,00 | 4,00 |
Dióxido silício coloidal | 4,00 | 4,00 | 4,00 | 4,00 |
Total | 400,00 | 400,00 | 400,00 | 400,00 |
2.3 Determinação do peso médio
Para a determinação do peso médio, foram individualmente pesados 20 comprimidos. A faixa de tolerância preconizada é de 5%, quando o peso total for superior a 250 mg[16].
2.4 Determinação da altura, diâmetro e dureza
Foram retiradas amostras para determinação da altura e diâmetro (n = 20), utilizando um paquímetro digital (Starrett, modelo 727). A dureza (n = 3) foi ajustada durante a produção dos comprimidos e medida através de um durômetro (Nova ética, modelo 298), considerando o intervalo de 70-90 N, acima do valor mínimo permitido de 30 N pela Farmacopeia Brasileira (2010).
2.5 Determinação da friabilidade
A friabilidade dos comprimidos (n = 6) foi determinada quando estes foram colocados em um friabilômetro (Logan Instruments, modelo FAB-2), durante um período de 4 minutos, e submetidos a uma velocidade de 25 rpm. O resultado foi obtido pela diferença entre o peso inicial e final, medido em função da porcentagem de massa perdida. O valor preconizado é inferior a 1,5% do peso estabelecido[16].
2.6 Grau de intumescimento (GI)
Os comprimidos matriciais foram colocados em cestas de dissolutor, imersas em béquer contendo 150 mL de água destilada, durante 4 horas. Em tempos previamente determinados (0,25; 0,5; 1; 2; 3 e 4 horas), os comprimidos foram retirados do meio e avaliado o grau de intumescimento (GI) da matriz polimérica, utilizando o método gravimétrico, pela diferença de peso do comprimido seco (Ps) e intumescido (Pi), através da seguinte relação: GI(%) = (Pi –Ps)/ Ps x 100. O ensaio foi realizado em triplicata[17].
2.7 Perfil de dissolução in vitro
O ensaio de dissolução foi realizado em água destilada a 37 ± 0,5ºC, sob condições sink, utilizando dissolutor com aparato II (Erweka, modelo DT 800), a uma velocidade de agitação de 50 rpm e o volume do meio de dissolução de 900 mL durante 8 horas de ensaio. A metodologia foi adaptada do método utilizado para cápsulas de liberação prolongada de teofilina[18]. Foram retiradas alíquotas de 10 mL do meio de dissolução em tempos previamente determinados (0,5; 1; 2; 3; 4; 6 e 8 horas). Em seguida, as amostras foram diluídas em água destilada e as leituras foram realizadas em espectrofotômetro (Genesys, modelo 10 UV) em 272 nm. O ensaio foi realizado em sextuplicata.
3. Resultados e Discussão
3.1 Características físico-químicas dos comprimidos matriciais
As características físico-químicas dos comprimidos matriciais de teofilina estão apresentadas na Tabela 2. De acordo com os resultados obtidos, observou-se que os comprimidos foram produzidos em conformidade com os padrões farmacopéicos.
Tabela 2 Características físico-químicas dos comprimidos matriciais de teofilina.
Propriedades | Lote A | Lote B | Lote C | Lote D |
---|---|---|---|---|
Peso médio (mg) ± CV | 400,70 ± 0,55 | 401,70 ± 0,26 | 401,20 ± 0,37 | 401,55 ± 0,92 |
Diâmetro (mm) ± CV | 11,01 ± 0,04 | 10,98 ± 0,05 | 11,05 ± 0,04 | 11,02 ± 0,08 |
Altura (mm) ± CV | 3,35 ± 0,95 | 3,45 ± 1,22 | 3,91 ± 0,31 | 4,02 ± 1,99 |
Dureza (N) ± CV | 80,00 ± 0,00 | 86,70 ± 5,77 | 71,70 ± 4,03 | 76,70 ± 3,77 |
Friabilidade | 0,29% | 0,08% | 0,16% | 0,50% |
Legenda: CV= Coeficiente de variação.
3.2 Grau de intumescimento (GI) e perfil de liberação do fármaco
De acordo com a Figura 1, observou-se que o lote A (GG) apresentou elevado grau de intumescimento nos primeiros 30 minutos de ensaio, seguido pela perda gradual de água e alta taxa de erosão da matriz. A natureza do polímero é determinante no processo de intumescimento em comprimidos matriciais[19,20]. Quando se aumenta a concentração de polissacarídeo na formulação favorece a hidratação do sistema matricial, e consequentemente, a formação de uma camada viscosa gelatinosa, o que influencia diretamente no controle de liberação do fármaco[20].

Figura 1 Gráfico do grau de intumescimento (%) dos lotes de comprimidos matriciais de teofilina durante 4 horas de ensaio.
Na Figura 2, estão representados os perfis de liberação das formulações contendo GG e/ou HPMC. A matriz polimérica de Goma guar (Lote A) sofreu alto grau de erosão, quando comparado ao intumescimento, perdendo, assim, a capacidade de retenção da liberação do fármaco. Srivastava et al.[10] avaliaram a goma guar e acácia como agentes modificadores de liberação do diclofenaco. Houve uma diminuição da taxa de liberação do fármaco com o aumento do índice de intumescimento do polímero. Isso pode ser atribuído à lenta erosão da camada gelatinosa nos comprimidos matriciais. Contudo, os autores não observaram a influência da GG sozinha na liberação do fármaco e, por isso, sugere-se que o uso de outro polímero foi determinante na diminuição da erosão do sistema. Diante disso, no presente estudo foi utilizada a HPMC em associação à GG em diferentes razões. Após adição de HPMC na matriz, os demais lotes apresentaram um grau de intumescimento praticamente constante durante o ensaio. Portanto, houve uma diminuição da taxa de erosão da matriz polimérica, refletindo em um maior controle da liberação da teofilina.

Figura 2 Gráfico dos perfis de dissolução dos lotes de comprimidos matriciais de teofilina durante 8 horas de ensaio.
De acordo com o percentual de teofilina liberada em cada formulação ao longo do tempo (Tabela 3), observou-se que o lote A (GG) liberou muito rapidamente o fármaco, pois em apenas 30 minutos houve uma liberação maior que 50% de teofilina. O lote D (HPMC) foi o que apresentou maior retenção do fármaco, enquanto que os lotes B (GG:HPMC 3:1) e C (GG:HPMC 1:3) apresentaram boa capacidade no controle da liberação da teofilina.
Tabela 3 Percentual de liberação de teofilina dos lotes A, B, C e D durante o ensaio de dissolução.
Formulação | % fármaco liberado | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
0,5h | 1h | 2h | 3h | 4h | 6h | 8h | |
Lote A | 56,54 | 61,96 | 72,85 | 79,37 | 90,75 | 96,74 | 94,99 |
Lote B | 25,37 | 30,74 | 37,02 | 43,94 | 48,85 | 53,26 | 58,19 |
Lote C | 13,48 | 18,32 | 26,76 | 33,30 | 39,82 | 47,70 | 55,01 |
Lote D | 10,02 | 12,57 | 19,64 | 23,10 | 28,45 | 29,72 | 43,66 |
A Goma guar constitui um material promissor frente à liberação controlada de fármacos em sistemas matriciais[19-21]. No entanto, este polissacarídeo utilizado sozinho não foi capaz de controlar a taxa de teofilina liberada, por isso foi associado a um polímero hidrofílico (HPMC), amplamente utilizado em comprimidos de liberação controlada[22-24]. Observou-se que a associação de 25% de HPMC à matriz polimérica é suficiente para que ocorra um maior controle da liberação do fármaco.
A associação de Goma guar e HPMC em formulações de comprimidos matriciais demonstrou resultados bastante satisfatórios. A proporção entre esses polímeros é fator condicionante no processo de liberação do fármaco no sistema hidrofílico. Isso porque determina a formação da camada de gel ao redor da matriz e, consequentemente, a velocidade de dissolução, difusão do fármaco e erosão do sistema.
4. Conclusões
A utilização da Goma guar isolada, no desenvolvimento de comprimidos matriciais de liberação controlada, não apresentou resultados satisfatórios em relação ao controle da liberação da teofilina, mas quando associada à HPMC houve uma redução significativa do processo de erosão da matriz e, portanto, uma maior retenção do fármaco. Diante disso, comprimidos matriciais contendo Goma guar:HPMC, na razão 3:1, apresentaram a capacidade de controlar a liberação da teofilina, agregando valor à utilização de polímeros naturais no delineamento de formas farmacêuticas.