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Cultura organizacional no contexto escolar: o regresso à escola como desafio na reconstrução de um modelo teórico

Cultura de la organización en el contexto educativo: el regreso a la escuela como desafio en la reconstrucción de un modelo teórico

Organizational culture in educational context: returning to the school as a challenge in the reconstruction of a theorical model

Resumos

A partir de um registo sociológico e organizacional, procura-se debater as potencialidades heurísticas da problemática da cultura organizacional para a compreensão do funcionamento quotidiano das organizações escolares, designadamente a partir da reflexão em torno de três dimensões analíticas: as relações entre a "estrutura" (formal) e "acção" (informal) e entre o "exterior" (fora) e o "interior" (dentro) da escola; a natureza multiforme e dinâmica inerente aos processos de construção e reconstrução da cultura; a diferenciação teórica e conceptual entre "cultura escolar" e a "cultura organizacional escolar", enquanto realidades sociológicas de alcance e natureza distintas. Em traços gerais, convoca-se o modelo teórico construído no âmbito da dissertação de doutoramento (TORRES, 2004) sobre a problemática da cultura organizacional no contexto da escola pública.

Cultura organizacional; Cultura escolar; Sociologia das organizações educativas; Sociologia da acção e da experiência social e escolar


A partir de una visión sociológica y de organización se pretende discutir las potencialidades heurísticas de la problemática de la cultura de la organización para la comprensión del funcionamiento cotidiano de las organizaciones escolares, principalmente alrededor de tres premisas analíticas: la relación entre la "estructura" (formal) y la "acción" (informal) y entre el "exterior" (fuera) y el "interior" (dentro) de la escuela; la naturaleza multiform y dinámica inherente a los procesos de construcción y reconstrucción de la cultura; la diferenciación teórica y conceptual entre la "cultura escolar" y la "cultura de la organización escolar", como realidades sociológicas de alcance y naturaleza distintas. En líneas generales, se utiliza el modelo teórico construido en el ambito de mi tesis doctoral (TORRES, 2004) sobre la problemática de la cultura de la organización en el contexto de la escuela pública.

Cultura de la organización; Cultura escolar; Sociología de la organizaciones educativas; Sociología de la acción y de la experiencia social y escolar


From a sociological and organizational view we discuss the heuristical potencialities of the issue of organizational culture to understand the daily functioning of the school organizations, namely from the analysis of three analytic dimensions: the relationship between the "structure" (formal) and the "action" (informal) and between the "external" (outside) and the "internal"(inside) the school; the multiform nature and the intrinsical dynamic to the processes of construction and reconstruction of culture; the theorical and conceptual differentiation between "school culture" and "school organizational culture", as long as sociological realities of distinct nature. In general lines, we adopt the theorical model that we construct in our PhD thesis (TORRES, 2004) about the theme of organizational culture in the public school context.

Organizational culture; School culture; Sociology of educational organizations; Sociology of action and social and school experience


Cultura organizacional no contexto escolar: o regresso à escola como desafio na reconstrução de um modelo teórico

Organizational culture in educational context: returning to the school as a challenge in the reconstruction of a theorical model

Cultura de la organización en el contexto educativo: el regreso a la escuela como desafio en la reconstrucción de un modelo teórico

Leonor Lima Torres

Doutora em Educação, Universidade do Minho, Braga, Portugal Professora do Curso de Mestrado em Educação da Universidade do Minho leonort@iep.uminho.pt

RESUMO

A partir de um registo sociológico e organizacional, procura-se debater as potencialidades heurísticas da problemática da cultura organizacional para a compreensão do funcionamento quotidiano das organizações escolares, designadamente a partir da reflexão em torno de três dimensões analíticas: as relações entre a "estrutura" (formal) e "acção" (informal) e entre o "exterior" (fora) e o "interior" (dentro) da escola; a natureza multiforme e dinâmica inerente aos processos de construção e reconstrução da cultura; a diferenciação teórica e conceptual entre "cultura escolar" e a "cultura organizacional escolar", enquanto realidades sociológicas de alcance e natureza distintas. Em traços gerais, convoca-se o modelo teórico construído no âmbito da dissertação de doutoramento (TORRES, 2004) sobre a problemática da cultura organizacional no contexto da escola pública.

Palavras-chave: Cultura organizacional. Cultura escolar. Sociologia das organizações educativas. Sociologia da acção e da experiência social e escolar.

ABSTRACT

From a sociological and organizational view we discuss the heuristical potencialities of the issue of organizational culture to understand the daily functioning of the school organizations, namely from the analysis of three analytic dimensions: the relationship between the "structure" (formal) and the "action" (informal) and between the "external" (outside) and the "internal"(inside) the school; the multiform nature and the intrinsical dynamic to the processes of construction and reconstruction of culture; the theorical and conceptual differentiation between "school culture" and "school organizational culture", as long as sociological realities of distinct nature. In general lines, we adopt the theorical model that we construct in our PhD thesis (TORRES, 2004) about the theme of organizational culture in the public school context.

Key words: Organizational culture. School culture. Sociology of educational organizations. Sociology of action and social and school experience.

RESUMEN

A partir de una visión sociológica y de organización se pretende discutir las potencialidades heurísticas de la problemática de la cultura de la organización para la comprensión del funcionamiento cotidiano de las organizaciones escolares, principalmente alrededor de tres premisas analíticas: la relación entre la "estructura" (formal) y la "acción" (informal) y entre el "exterior" (fuera) y el "interior" (dentro) de la escuela; la naturaleza multiform y dinámica inherente a los procesos de construcción y reconstrucción de la cultura; la diferenciación teórica y conceptual entre la "cultura escolar" y la "cultura de la organización escolar", como realidades sociológicas de alcance y naturaleza distintas. En líneas generales, se utiliza el modelo teórico construido en el ambito de mi tesis doctoral (TORRES, 2004) sobre la problemática de la cultura de la organización en el contexto de la escuela pública.

Palabras claves: Cultura de la organización. Cultura escolar. Sociología de la organizaciones educativas. Sociología de la acción y de la experiencia social y escolar.

Introdução

A partir das especificidades organizativas, políticas e institucionais da escola procuraremos debater as potencialidades heurísticas da problemática da cultura organizacional no desvendamento do funcionamento quotidiano das organizações. No quadro de um registo predominantemente crítico e reflexivo, sujeitaremos a debate sociológico uma proposta teórica para a análise da cultura organizacional em contexto escolar, basicamente organizada em torno de três tópicos:

1. a natureza ontológica da cultura, reequacionada quer em termos da sua estreita imbricação nas relações clássicas estabelecidas entre a estrura e a agência humana, quer ao nível das transações (culturais) estabelecidas entre o dentro/interior e o fora/exterior do campo organizacional;

2. as modalidades e a essência das configurações culturais, designadamente o carácter multiforme, interactivo e dinâmico das manifestações culturais;

3. por último, a distinção teórico-conceptual entre "cultura escolar" e "cultura orgnizacional escolar", assim como o estatuto epistemológico, teórico e empírico que tais designações podem assumir na investigação de realidades escolares concretas.

Tomando como pano de fundo uma conjuntura investigativa em educação, em que se procura uma redefinição dos enfoques sobre a escola como objecto de estudo, ou na perspectiva de Sarmento (2000, p. 91) pelo duplo empreendimento da "construção do objecto científico escola" e da "desconstrução da organização como noção teórica"1 1 Como refere Sarmento (2000, p. 91, grifo do autor): " Desconstruir a organização como noção teórica significa proceder à crítica da concepção reificada dos contextos estruturados onde vivem e trabalham os seres humanos e das suas 'invariantes' _ estruturas, níveis organizacionais, regras e dispositivos formais _ para restituir aquilo que no plano empírico é dinamismo, interacção, estruturação, troca simbólica, relações assimétricas de poder, cooperação e competição entre actores sociais em sistemas concretos de acção". , a ideia de "crise paradigmática" parece invadir o campo educativo, não só como resultado de impasses teórico-epistemológicos de alcance disciplinar mais restrito, mas também como um importante reflexo das tendências mais globais que têm atravessado a "ciência pós-moderna". Julgamos que esta conjuntura global de "crise paradigmática", tão bem desenvolvida por Santos (1987, 1989, 2000), ao reflectir-se no campo da educação, contribui para visibilizar a relação de dependência, e mesmo de alguma submissão, por parte da investigação em educação em relação a outras matrizes de conhecimento acumulado sobretudo no quadro das ciências sociais. A recorrente importação de lentes teóricas para o estudo da escola, grande parte delas produzidas por referência a outros contextos organizacionais, tem constituído a orientação investigativa mais frequente na área da administração educacional. Por isso, ao não vislumbrarmos a construção de teorias e de modelos teóricos gerados a partir da análise das especificidades da escola como organização, julgamos poder deduzir que a "crise paradigmática", apontada como uma realidade inquestionável para o contexto global da ciência pós-moderna, se traduz e repercute, inevitavelmente, no contexto investigativo das designadas "ciências da educação".

A proposta teórica que, neste trabalho, apresentaremos, reflectirá algumas destas tensões, desde logo, ao não escapar àquela inspiração magna - recurso a diversas lentes teóricas -, não obstante se procure nas especificidades da organização escolar o ponto de partida para repensar criticamente na pertinência de algumas perspectivas de análise.

As especificidades da escola portuguesa desempenharão um importante mecanismo a mobilizar na vigilância e na regulação da pertinência das dimensões analíticas a considerar, assumindo sobretudo uma função de "mediatização heurística". Dito de outro modo, a consideração das especificidades político-ideológicas da instituição escolar historicamente construídas por referência a contextos locais, regionais, nacionais e transnacionais, condicionará o processo de seleção das opções teóricas, restituindo-lhes uma validade explicativa acrescida. Este processo de selecção controlado e mediatizado pelas especificidades culturais, políticas e administrativas do sistema educativo (português), exige do investigador uma postura de vigilância crítica permanente ao longo do percurso de construção do modelo teórico.

Entre a estrutura e a acção: a cultura organizacional como processo de construção

A rejeição categórica da idéia de antinomia entre estrutura e acção, conduz-nos à adopção alternativa de uma perspectiva que contemple e aprofunde a premissa de inseparabilidade do binómio estrutura/acção, da sua mútua imbrincação e interdependência. Na esteira de um conjunto de autores teoricamente inscritos nas correntes da sociologia da acção, da sociologia interpretativa e da sociologia crítica, entre os quais destacamos: Crozier e Friedberg (1977), Berger e Luckmann (1990), Touraine (1994, 1996), Friedberg (1995a, 1995b), Boudon (1989, 1990, 1995), Giddens (1989, 2000), Cohen (2002), perfilhamos o princípio da existência de uma interacção dialéctica entre a estrutura e a acção, assente numa dinâmica de reciprocidade mútua e historicamente construída.

A transposição desta matriz teórica para a análise da problemática da cultura organizacional constitui um passo metodológico importante tanto para a clarifificação do seu estatuto científico-epistemológico como dos seus sentidos ontológicos. Assim, ao afastar a possibilidade de pensar a cultura como o reflexo ou a tradução directa e imediata da estrutura, ou como o produto exclusivo das interacções humanas, aprofunda-se, alternativamente, o seu processo de construção, convocando para o efeito, as complexas relações de implicação mútua entre a estrutura e a acção organizacional. O entendimento destas interconexões passará pela perspectivação da acção humana quer como dependente das estruturas que a constrangem, quer como produtoras de novas lógicas e de novos sentidos que contribuem para a sua alteração, redefinição e modificação. E neste sentido, o comportamento humano passa a ser concebido como revestido de margens relativas de autonomia, relativamente às quais pode desenvolver criativamente diversas lógicas de acção. A apreensão das dimensões simbólicas e culturais resulta então da compreensão de um duplo fenómeno, bem ilustrado pelo conceito giddeniano de "dualidade da estrutura" (GIDDENS, 2000, p. 43): por um lado, a propensão para a reprodução cultural, ao nível da acção, das dimensões simbólicas da estrutura; por outro lado, a possibilidade de a acção, a partir das propriedades e dos constrangimentos impostos pela estrutura, poder criar significativamente diversas lógicas e estratégias de actuação de sentido não convergente com aquela.

Este processo ora de reprodução ora de criação autónoma de sentidos, de lógicas e de estratégias de acção nos contextos organizacionais, remete-nos para a natureza das modalidades de apropriação individual e colectiva destes espaços de manobra, em grande medida condicionadas pela diversidade de quadros axiológico-normativos dos actores. Será justamente a partir da exploração das interconexões entre as várias ordens simbólicas coexistentes nas organizações, em que a ordem estrutural e as ordens dos actores constituem a matriz referencial, que se poderá compreender o carácter dinâmico e dialéctico que subjaz ao processo de construção da cultura organizacional. Dito de outro modo, a cultura entendida como o conjunto de valores, de crenças, de ideologias accionadas pelos actores nos processos de interacção social, assume o estatuto de variável intermédia entre a acção comportamental (ou a agência) e as condições objectivas impostas pela estrutura. Os sentidos da acção social só são perceptíveis pela identificação dos modelos culturais assimilados e reconstruídos pelos actores, nos vários contextos de socialização e aprendizagem social. Mesmo as opções estratégicas dos actores, condicionadas pelos constrangimentos impostos pelo contexto estrutural, exigem uma compreensão mais profunda dos códigos culturais mais ou menos sedimentados e cristalizados ao longo do percurso biográfico do actor, constitutivo da sua experiência individual e colectiva.

Decompondo semanticamente a designação "cultura organizacional", poderíamos traçar um paralelismo com a abordagem que adoptamos para a apreensão das relações entre estrutura-acção: a cultura não constitui um mero reflexo da ordem organizacional, representa antes um processo de construção dinâmica mediatizada por um conjunto de factores, de que a estrutura também faz parte. Faz sentido, então, designar a cultura "de organizacional" justamente pelo facto de no seu processo de construção histórica confluírem um conjunto de factores regulados por referência aos constrangimentos e possibilidades de um determinado contexto organizacional.

Em síntese, a cultura da organização escolar enquanto processo de construção dinâmica e interactiva, desenvolve-se historicamente por referência a factores multidimensionais cujo entendimento passa, em primeiro lugar, pela sua articulação com as categorias sociológicas estrutura e acção. De acordo com os enunciados defendidos, a cultura organizacional da escola emerge, na qualidade de categoria analítica, do processo de síntese operada entre a estrutura e a agência. Dito de outro modo, as dimensões simbólicas que dotam de sentido a actividade humana — postulado de inspiração weberiana — e que vão enraizar, na durée, o quadro de valores referencial dominante na organização, resultam de processos de construção e de reconstrução, de lógicas de assimilação contínuas e descontínuas, de práticas de fidelidade e de infidelidade; enfim, são a expressão simbólica das relações de força que regem a dependência mútua entre a estrutura e a acção. E nesta perspectiva, as diferentes regras produzidas em contexto organizacional não podem ser desvinculadas da própria acção ou actividade humana, inscrita num determinado espaço-tempo histórico, já que toda e qualquer actividade se faz por referência a um conjunto de regras sobrepostas e articuladas, cuja coerência se foi consolidando no tempo. As regras organizacionais, ao mesmo tempo que podem ser interpretadas como uma expressão dos contrangimentos estruturais, traduzem, por outro lado, a concretização das possibilidades da acção (GIDDENS, 2000). Como consequência lógica, admitimos a coexistência de diferentes manifestações da cultura num mesmo contexto organizacional, despoletadas a partir de distintos níveis, de diversas ordens hierárquicas, de múltiplos actores e, efectivamente, no quadro de distintas conjunturas temporais. E deste modo, é possível reconstituir as diferentes lógicas de construção do cultural subsumidas nas configurações integradoras, diferenciadoras e fragmentadoras.

Nesta sequência, a compreensão do processo de construção da cultura em contexto escolar exige, do ponto de vista analítico, a incorporação da dimensão da temporalidade. Os contextos de produção do simbólico, deduzidos a partir da "dualidade da estrutura", reflectem lógicas inscritas na dialéctica espaço-tempo e que, por isso, pressupõem sempre um trabalho simultaneamente de contextualização e de reconstituição histórica. Os traços predominantes da cultura em contexto escolar tanto relevam de processos interactivos que operam no interior de limites estruturalmente determinados, como da natureza desses processos internos, não deixando de repercutir as dinâmicas sociais e culturais exteriores à escola, seja por via das orientações políticas, seja por via da reflexividade dos actores/cidadãos. Esta questão da temporalidade e da espacialidade remete-nos para um outro eixo de análise, que a seguir, desenvolveremos.

"Para além" do "dentro" e do "fora": a cultura organizacional como processo dinâmico de interdependência

A relevância heurística contida na tensão entre o interior e o exterior da organização para a exploração da cultura organizacional em contexto escolar, reside essencialmente na capacidade de questionar a natureza do estatuto ontológico desta problemática. A adopção de uma concepção antinómica das categorias dentro-fora permite extrapolar dois tipos distintos de focalização da cultura organizacional, ambos inscritos no mesmo registro ontológico: a cultura como produto das influências "externas" à organização (cultura como "variável independente e externa") e, contrariamente, a cultura como resultado de um trabalho de fabricação exclusivamente "interna" (cultura como "variável dependente e interna")2 2 Para um desenvolvimento teórico destas focalizações, consultar Linda Smircich (1983). . Porque ambos os registos partem do pressuposto de que a cultura é uma variável que a organização tem e, neste sentido, pertencendo à ordem das coisas concretas e identificáveis (diferenciando-se apenas quanto à localização da sua origem), assente numa visão que antagoniza e reifica as fronteiras físicas da organização, a questão central que se coloca é a de compreender, para lá dos limites e constrangimentos sociais e estruturais impostos, as possibilidades de autonomia relativa que se desenvolvem nos contextos organizacionais.

Em consequência do que acima foi esboçado, não será no quadro destes pressupostos funcionalistas que encontraremos pistas suficientemente elucidativas para a exploração dos processos de construção da cultura organizacional. Será, portanto, no contexto da "dualidade da estrutura" que nos posicionaremos teoricamente quanto ao estatuto e relevância das categorias "dentro" e "fora" na compreensão da cultura organizacional. Ou então, nas palavras de António Nóvoa (1992, p. 32, grifo do autor):

A totalidade dos elementos da cultura organizacional tem de ser lida ad intra e ad extra às organizações escolares, isto é, estes elementos têm de ser equacionados na sua 'interioridade', mas também nas inter-relações com a comunidade envolvente. De facto, se a cultura organizacional desempenha um importante papel de integração, é também um factor de diferenciação externa. As modalidades de interacção com o meio social envolvente constituem, sem dúvida, um dos aspectos centrais na análise da cultura organizacional das escolas.

Ao atribuirmos um carácter processual e dinâmico à cultura organizacional, invocando a sua estreita imbricação com as relações estrutura-agência humana, estamos a postular, correlativamente, a sua dupla natureza ontológica: por um lado, a importância dos padrões e dos códigos culturais sedimentados na sociedade portuguesa (cultura societal) no desenvolvimento de alguns modelos culturais reproduzidos nas organizações; por outro lado, o impacto das especificidades culturais historicamente institucionalizadas nas organizações, no condicionamento e na redefinição da cultura da organização. Esta pressuposição de base adquire um alcance e pertinência acrescida quando a confrontamos com a especificidade da realidade escolar portuguesa.

O modelo centralizador da administração da educação em Portugal, cuja evolução nos últimos trinta anos se caracteriza mais pela continuidade, ou mesmo pelo reforço da sua matriz política original, do que pela sua efectiva democratização política3 3 Para uma análise mais aprofundada sobre a evolução do modelo de administração da educação em Portugal, e das suas consequências ao nível da democratização da educação, consultar, entre outros, Formosinho (1984, 1986, 1989), alguns dos trabalhos produzidos por Lima (1992, 1994, 1995, 1998, 1999, 2000), Afonso (1995, 2000), Barroso e Pinhal (1996), Barroso (1995, 1998, 1999), Estêvão (1998, 2001, 2002), Formosinho e outros (2000). , configura um primeiro patamar analítico de relevo incontornável na compreensão dos mecanismos de construção da cultura organizacional das escolas. Distanciadas formal e geograficamente das periferias escolares, as esferas centrais de decisão educativa bem como as várias unidades pericentrais desconcentradas (as Direcções Regionais de Educação, por exemplo), instituem-se, ao mesmo tempo, como "sujeitos" e "objectos" das dinâmicas sociais e culturais mais vastas: enquanto "sujeitos" dotados de poder e legitimidade política e institucional, protagonizam a "topografia" complexa da tomada de decisões (LIMA, 1999), criando e impondo orientações normativas e culturais para as periferias escolares; como "objectos", dotados de capacidade reflexiva, permeabilizam-se a todo um quadro de pressões e influências de alcance diverso, cujas fronteiras, difíceis de delimitar, extravasam os limites do âmbito nacional, regional e local ou periférico. Deste ponto de vista, uma definição estável e clara daquilo que é "interno" e "externo" às fronteiras da organização escolar torna-se problemática e de pertinência questionável, na medida em que impede o investigador de aprofundar a natureza das relações de tensão existentes entre as categorais estrutura e a acção e, no caso em apreço, entre o "dentro" e o "fora".

No entanto, ao reafirmarmos, na esteira de Lima (1999, p. 76) a importância de focalizarmos o sistema de administração da educação e das escolas como um "sistema policêntrico", que se constitui como "sujeito" e "objecto" de produção cultural, na medida em que

Enquanto construção simbólica e cultural, e sobretudo no plano da acção, não é tanto o centro que edifica ou constrói as periferias, mas estas que, ao serem assumidas como centros de acção educativa concreta, por actores concretos, confirmam, e reinventam, a existência do centro.

é nosso propósito esclarecer as funções que aquele sistema (externo) exerce sobre o processo de construção do cultural e do simbólico nas organizações escolares, sem ignorar, contudo, a condição de "centralidade periférica" das escolas (LIMA, 1999, p. 77), vistas agora como unidades de gestão e sob o prisma das dimensões educativas e pedagógicas.

Mas a relevância dos factores externos à escola não se restringe ao modelo cultural politicamente imposto às periferias escolares. De assinalável importância, os modelos de referenciação cultural subsumidos pelos vários actores no contexto escolar, sobretudo pelos professores e pelo pessoal não docente, obedecem a um longo percurso de sedimentação mediado por diversas instâncias de aprendizagem/socialização formal, não formal e informal, cujo contexto primeiro de produção deve ser encontrado fora da instituição escolar. Se o percurso de socialização dos diversos actores escolares é desenvolvido, em primeira instância em contextos externos à escola como organização (família, grupos de amigos, organizações de carácter regilioso, político, desportivo, lazer, recreativo-cultural, etc.), mesmo que num segundo momento o contexto escolar passe a assumir um grande protagonismo na vida dos actores (ora enquanto alunos, ora enquanto professores ou mesmo funcionários), é lícito pensarmos na coexistência de múltiplos valores, ideologias, crenças, enfim, de diferenciadas e contraditórias visões do mundo escolar, assimiladas pelos actores e accionadas em contexto escolar.

E será no quadro desta multiplicidade de significados e funções atribuídas à educação, à escola, ao professor e ao aluno, que as lógicas de acção nas escolas adquirem sentido, simultaneamente como "veículos" e como "geradoras" de cultura. As interacções sociais quotidianamente estabelecidas entre os actores escolares, ao mesmo tempo que denunciam a presença de códigos culturais dominantes por eles partilhados, tornam-se igualmente no tempo e no espaço organizacional, contextos propícios à criação e recriação de novas simbologias, à produção genuína de novos significados e representações sociais, à negociação de estratégias de poder e de liderança. Deste processo de "simbiose" entre o "dentro" e o "fora" operado por via da agência humana no contexto da organização escolar resulta a edificação, permanentemente em movimento, de configurações culturais singulares, alicerçadas naquilo a que se tem designado por "autonomia institucional relativa" (SARMENTO, 2000, p. 152).

O jogo de interdependências (entre o "dentro" e o "fora", por exemplo) em que os actores escolares estão colocados, proporciona o desenvolvimento de processos de auto-regulagem e de heterorregulação, de reprodução e de produção, de fidelidades e de "infidelidades normativas" e culturais. Se aceitamos a premissa da dupla dependência "funcional" da escola relativamente ao sistema social e ao sistema político (Estado), então também deveremos apoiar a tese de que é no espaço organizacional de cada estabelecimento de ensino, em particular, que se processam, através da agência humana, os "metabolismos" culturais e simbólicos conferidores das especificidades escolares, ou então, na esteira de Sarmento (2000, p. 156, grifo do autor), da "autonomia em uso":

É o uso da autonomia, ou melhor, a autonomia em uso que permite fundamentar a capacidade das escolas para realizarem a diferença, relativamente aos princípios simbólicos presentes no respectivo campo organizacional. Porém, é a semelhança aquilo que a investigação dos modos de funcionamento mais detalhadamente tem procurado esclarecer.

De acordo com este raciocínio, rejeitamos liminarmente uma visão dicotómica entre o "dentro" e o "fora" da escola, já que as duas faces são elas próprias constitutivas do desenrolar da acção e, por conseguinte, encontram-se incrustadas no processo de construção do cultural. Desta forma, os actores escolares nas suas interacções quotidianas põem em prática determinados valores e comportamentos que podem ser consideradas o "centro nevrálgico" do processo de construção da cultura organizacional da escola. Nessas condutas comportamentais que quotidianamente se desenrolam nas escolas, por um lado podemos ver o fluir de normas, significados e representações sociais compartilhadas resultantes de diversificados processos de socialização, ou na esteira de Pellicani (1986, p. 95), o fluir da "sociedade" sob a forma de 'cultura interiorizada'. Por outro lado podemos depreender um exercício de tecelagem colectiva, um jogo de modelagens e redefinições dos universos simbólicos em constante mutação, por referência ao quadro institucional da escola. Sendo assim, a cultura organizacional da escola resultaria de um processo interactivo e dinâmico estabelecido entre o "dentro" e o "fora" da escola.

Mapeando o terreno: as "configurações culturais múltiplas" e a idéia de "tráfico cultural"

E de distintas naturezas. Abordada como um processo dinâmico e de configuração variável, resultante de uma simbiose operada entre as circunstâncias externas (das locais às de âmbito global) e a forma como estas são construídas e reconstruídas nos contextos organizacionais concretos, a cultura organizacional assume, deste modo, uma natureza multiconfiguracional, podendo dar origem a distintas formas de manifestação cultural (integradora, diferenciadora, fragmentadora). A sobreposição de diversas configurações culturais no contexto organizacional aparece, igualmente, associada à ideia de "tráfico cultural" (ALVESSON, 2002, p.191), no sentido em que reflecte o fluir da mudança das orientações e constelações socioculturais em trânsito no seio de várias instâncias: meios de comunicação social, agências políticas, literatura científico-gestionária, movimentos sociais, entre outros.

Nesta sequência, as organizações enquanto loci de reprodução e produção normativa e cultural, reagem activamente sobre o fluir do "tráfico cultural", redireccionado-o e recontextualizando-o a partir de um processo similar ao de "reposição cultural dinâmica" defendido por Alvesson (2002, p. 192), isto é, o modo pelo qual os valores, as crenças, os significados permutam entre o centro e a periferia, entre a macroestrutura e a acção organizacional, num movimento dinâmico e interactivo. A pertinência analítica destes "princípios para um uso produtivo do conceito de cultura organizacional" (ALVESSON, 2002, p. 189), para além de se enquadrar no âmbito da agenda teórica orientadora deste trabalho, recobre e elucida o campo que pretendemos investigar no domínio das escolas como organizações, sobretudo a partir da exploração da dupla tensão das relações entre estrutura e acção e entre dentro e fora.

Erguido a partir de dois eixos principais, a grelha analítica representada na figura 1, procura ilustrar os diversos graus de implicação, articulação e de interdependência entre as respectivas categorias constituintes do eixo horizontal (fora/dentro) e do eixo vertical (estrutura/acção) no processo de construção da cultura organizacional em contextos escolares. Da intersecção entre os dois eixos resulta o recorte de quatro "quadrantes", regulados por factores de incidência e expressão diferenciadas na construção cultural e simbólica: o quadrante 1, circunscrito ao binário estrutura/dentro, evidencia a centralidade da estrutura formal no processo de construção da cultura, induzindo uma relação de sobredeterminação da primeira sobre a segunda; o quadrante 2, localizado na intersecção entre a acção e o dentro, revela o protagonismo da agência humana no interior da organização na produção da sua cultura; o quadrante 3, situado na convergência entre a acção e o fora, aponta-nos para a influência exercida quer pelas trajectórias de socialização extra-escolar vivenciadas pelos actores escolares, quer pelo "genótipo cultural" da comunidade/meio na construção da cultura organizacional da escola; por fim, o quadrante 4, restrito ao cruzamento dos campos estrutura/fora, sugere-nos a prevalência dos padrões estruturais, externamente contextualizados no nível político e na esfera profissional, no enquadramento das orientações normativas e culturais da organização escolar.


A relevância heurística destes quatro cenários culturais analiticamente recortados do modelo teórico, reside na visualização dos efeitos que determinados factores exercem sobre o processo de construção da cultura da escola, sobretudo quando estão em discussão as potencialidades de distintas perspectivas teóricas, assentes em diferenciadas agendas científicas, políticas e ideológicas. Além do mais, esta visão recortada da problemática, encerra um pertinente exercício de desvendamento das limitações e das capacidades explicativas propiciadas por cada constelação cultural, indispensável à problematização da cultura organizacional da escola.

Cultura escolar e cultura organizacional escolar

A consideração da noção de "experiência social" como construção histórica, ou como "tipos históricos" que resultam da combinação de "tipos puros" — utilizando a conceptualização weberiana —, parece-nos cientificamente relevante, na medida em que propicia uma compreensão das diferentes lógicas coexistentes na organização escolar, "[...] mediante a forma como os actores as sintetizam e as catalizam tanto no plano individual como no plano colectivo" (DUBET, 1996, p. 112). Apesar de o actor social se encontar "[...] numa espécie de intervalo, num espaço misto, intermediário a várias lógicas"4 4 DUBET, F. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 112. , é possível identificar, na perspectiva deste autor três registos de acção necessariamente adoptados pelos actores individuais ou colectivos: a lógica da "integração", a lógica da "estratégia" e a lógica da "subjectivação".

De acordo com a lógica da "integração", o actor tende a manter e a fortalecer a sua pertença à organização, interagindo de uma forma convergente e confirmativa, isto é, pautando as suas condutas com vista à manutenção de uma identidade integradora. Num registo mais "estratégico", o actor procura agir em função dos seus interesses para que o que pertença ao grupo passe a constituir uma condição necessária à prossecução dos seus objectivos ou fins "concorrenciais". A estrutura normativa e os valores que esta incorpora adquirem assim um sentido utilitário, transformado em recurso a mobilizar na acção, sobretudo se for favorável aos interesses do grupo e se reforçar as suas relações de poder no 'mercado escolar', onde as leis da concorrência e da rivalidade imperam. Por último, à luz de uma lógica de subjectivação, o actor representado como um sujeito crítico, age em função da sua identidade subjectiva, construída culturalmente a partir da tensão constante entre a acção integradora e a acção estratégica. Deste ponto de vista, o sujeito encontra-se sempre numa relação de distanciação e de reserva que impede uma adesão total ao ego (identidade subjectiva), ao nós (identidade integradora) e aos interesses (identidade recurso). Consequentemente, a cultura deixa de representar somente o conjunto de valores e normas historicamente sedimentadas na organização, tampouco apenas uma reserva de meios simbólicos da acção grupal; ela resulta igualmente da definição subjectiva do sujeito.

De acordo com esta proposta, igualmente inspirada na obra de Touraine (1978), qualquer formação social é definida pela co-presença de uma lógica de integração comunitária, por um sistema de concorrência regulada e pela lógica da capacidade crítica e voluntária do sujeito. Se do ponto de vista analítico, é possível acentuar a autonomia de cada uma daquelas lógicas a partir de um ponto central, na óptica do funcionamento da organização, convém esclarecer que a circulação alternada das diferentes lógicas assemelha-se mais a 'arranjos', a produtos das experiências sociais. E as experiências sociais, ao se construírem a partir de diversas lógicas de acção que lhes não pertencem (e que são dadas pelas diversas dimensões da organização), resultam de combinações subjectivas de elementos objectivos.

A pertinência analítica destas três lógicas de acção, no que concerne à compreensão da cultura organizacional em contexto escolar, reside na capacidade de aprofundamento do conhecimento das condições de produção das manifestações culturais. Quase que poderíamos traçar um paralelismo, ainda que grosseiro, entre a prevalência de determinadas lógicas de acção e o tipo de manifestação cultural a ela associada: à lógica da "integração" corresponderia uma manifestação "integradora" da cultura; a lógica da "estratégia" suscitaria uma cultura predominantemente "diferenciadora"; e a lógica da subjectivação estaria por detrás de manifestações tendencialmente "fragmentadoras" da cultura5 5 Para uma síntese das principais focalizações da problemática da cultura organizacional, remetemos o leitor para os nossos trabalhos (TORRES, 1997, 2004), onde debatemos as várias correntes e perspectivas teóricas em confronto. . Despojada do pendor determinista e funcionalista que, aparentemente, apenas, parece sustentar, esta associação faz sentido quando perspectivada a partir de um enfoque que privilegie o seu carácter dialéctico e interdependente, ou nas palavras de Friedberg (1995b), que explore o "jogo social" da cooperação e do conflito. E, como já o afirmámos repetidas vezes, as "regras organizacionais" (exógenas e endógenas) constituem uma ferramenta insubstituível ao desenrolar do "jogo".

Seguindo este raciocínio, importa perceber, no contexto da escola como organização, como e em que gradações se constrói e se manifesta a cultura, tendo como antecâmara teórica a pressuposição de que para além das estruturas e regulações englobantes, que impõem uma ordem cultural hegemónica, se processa todo um trabalho de bricolage organizacional, que combina, numa disposição original, elementos reproduzidos dessa ordem estrutural e elementos resultantes do jogo inerentes às lógicas de acção. Do ajustamento e da articulação entre a ordem estrutural hegemónica e a ordem local podem resultar, pelo menos, dois cenários culturais teoricamente diferenciados: o cenário da "cultura escolar" e o cenário da "cultura organizacional escolar", cujas balizas foram já sinalizadas num nosso anterior trabalho (TORRES, 1997).

A "cultura escolar" pretende recobrir um cenário marcado pela hegemonia de uma lógica da "integração" e, como tal, desencadeadora de configurações culturais "integradoras", directamente redutíveis às grandes estruturações englobantes. Sobressaiem, desta imagem, comportamentos convergentes e reprodutivos da ordem prescritiva, condutas fiéis às estruturas e "regras formais", enfim, um quadro de valores, de crenças, de ideologias estabilizadas e colectivamente partilhadas pelos actores escolares. Tal cenário, tem o condão de fazer sobressair as dimensões culturais historicamente institucionalizadas nas organizações escolares, sob a forma de ritos, rituais, cerimónias legimadoras da acção educativa, e, por isso, relativamente comuns, generalizáveis ou ainda observáveis na regulação do funcionamento de todas as escolas. Esta relação de isomorfismo entre a "estrutura formal" ou "oficial" e as dimensões simbólicas que incorpora e a "estrutura informal" reproduzida nas escolas concretas, sustenta a idéia de uma "cultura escolar" institucionalmente imposta e localmente reproduzida nas periferias escolares, sem que dê lugar ao conflito ou à emergência de ordens (de acção) contraditórias.

Ao reflectir as semelhanças culturais que perpassam nos mais diversos contextos escolares, a "cultura escolar" encerra, deste modo, um duplo sentido fenomenológico, consoante a óptica de análise: quando o ângulo de perspectivação se restringe ao campo da educação formal, a "cultura escolar" recobre os sentidos teóricos sugeridos pela categoria "cultura genérica" (PROSSER, 1999, p. 8) ou pela noção de "cultura institucional" (PÉREZ GÓMEZ, 1998, p. 127), fazendo sobressair os aspectos culturais (normas, estruturas, rituais e tradições, valores e acções) mais ou menos estabilizados (pela previsibilidade) que atravessam holisticamente o sistema escolar; entretanto, se a óptica de leitura da realidade extravasar o campo educativo para recair sobre a totalidade da realidade organizacional, a expressão "cultura escolar", passa a traduzir, para além deste primeiro sentido, a especificidade cultural do sistema escolar em contraponto com outras singularidades culturais constitutivas de outros sistemas sociais, como, por exemplo, o sistema de sáude, o sistema de justiça, o sistema produtivo, entre outros.

Enquanto o cenário sugerido pela "cultura escolar", resulta da pressuposição básica de uma relação de continuidade e isomorfismo entre as orientações normativas e culturais e os contextos de acção concretos, o segundo cenário por nós aludido, a "cultura organizacional escolar", pretende evocar a importância dos contextos endógenos de acção no processo de construção da cultura organizacional.

Sendo ambos os cenários co-constitutivos da realidade escolar, faz sentido tomá-los como referência empírica para a compreensão dos processos de construção cultural. Inextrincavelmente ligados, os contextos estruturais formalizados (cultura escolar) só adquirem intelegibilidade sociológica quando desopacificados e recriados a partir da interacção humana não estruturada, desordenada, aleatória e fluida (cultura organizacional escolar). Por outras palavras, as "regras formais", por mais maciças e impositivas que se apresentem, só são culturalmente estruturantes e indutoras da reprodução se a sua aplicação puder ser suspensa, modelada, extravasada ou subvertida por um conjunto de práticas, de jogos sociais que quotidianamente desafiam a ordem prescrita e estabelecida. A apreensão das descontinuidades culturais entre estas duas realidades paralelas, que ora geram estabilidades relativas ora induzem novas instabilidades resultantes dos jogos sociais, permite perceber o complexo processo de construção da "cultura organizacional escolar". Neste sentido, julgamos estar próximos da concepção de "regulação mista" proposta por Friedberg (1995b, p. 153) para explicar o duplo sentido da regulação: ao mesmo tempo que as estruturas e as "regras formais" constrangem e restringem a acção, designando-lhe os locais e os protagonistas, elas são, por sua vez, reestruturadas, curto-circuitadas e contornadas pelas negociações e pelas regras alternativas necessárias ao seu desencadeamento:

Um grande número de contextos de acção, nos domínios mais diversos, são, de facto, estruturados e regulados por uma combinação de regras, de dispositivos, de mecanismos, de convenções e de contratos formais e informais, explícitos e implícitos; em todos, a 'regra constitucional' apoia uma 'prática constitucional' que se afasta da primeira ao mesmo tempo que a apoia, que a enfraquece em certos pontos ao mesmo tempo que a reforça noutros, e vice-versa. (FRIEDBERG, 1995b, p. 153-154).

Constituindo uma espécie de "entreposto" teórico, a agenda da "cultura organizacional escolar", ou na esteira de Prosser (1999, p. 8) "cultura única"; e na perspectiva de Pérez Gómez (1998, p. 199), "cultura experiencial", ao mesmo tempo que ganha expressão, amplitude e pertinência analítica, tornando-se num significativo ponto de chegada, deve ser impelida, entretanto, para o enfrentamento de novos desafios, agora de natureza mais empírica, inflectindo o seu anterior sentido e transfigurando-se num novo ponto de partida. E neste sentido, tal desafio exigiria um enfoque cultural sobre as dinâmicas de funcionamento do contexto escolar, historicamente instituídas, susceptível de promover um debate em torno de quatro eixos fundamentais: i) das orientações culturais exógenas (cultura escolar), consubstanciadas nas "regras formais"; ii) das apropriações culturais endógenas (cultura organizacional escolar), processadas a partir do desenvolvimento de lógicas de acção (jogos sociais) plurais; iii) da apreensão das relações entre os dentros e os foras da organização escolar, a partir do grau de permeabilização da escola ao meio/comunidade envolvente; iv) em consequência, da natureza das manifestações culturais sedimentadas no tempo e conferidoras de uma identidade cultural distintiva.

TORRES, L. L. Cultura organizacional em contexto educativo: sedimentos culturais e processos de construção do simbólico numa escola secundária. Braga: CIED, Universidade do Minho, 2004. No prelo.

Recebido em: 30/11/2004

Aceito para publicação em: 21/11/2005

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  • ______. O retorno do actor: ensaio sobre sociologia Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
  • 1
    Como refere Sarmento (2000, p. 91, grifo do autor): "
    Desconstruir a organização como noção teórica significa proceder à crítica da concepção reificada dos contextos estruturados onde vivem e trabalham os seres humanos e das suas 'invariantes' _ estruturas, níveis organizacionais, regras e dispositivos formais _ para restituir aquilo que no plano empírico é dinamismo, interacção, estruturação, troca simbólica, relações assimétricas de poder, cooperação e competição entre actores sociais em sistemas concretos de acção".
  • 2
    Para um desenvolvimento teórico destas focalizações, consultar Linda Smircich (1983).
  • 3
    Para uma análise mais aprofundada sobre a evolução do modelo de administração da educação em Portugal, e das suas consequências ao nível da democratização da educação, consultar, entre outros, Formosinho (1984, 1986, 1989), alguns dos trabalhos produzidos por Lima (1992, 1994, 1995, 1998, 1999, 2000), Afonso (1995, 2000), Barroso e Pinhal (1996), Barroso (1995, 1998, 1999), Estêvão (1998, 2001, 2002), Formosinho e outros (2000).
  • 4
    DUBET, F.
    Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 112.
  • 5
    Para uma síntese das principais focalizações da problemática da cultura organizacional, remetemos o leitor para os nossos trabalhos (TORRES, 1997, 2004), onde debatemos as várias correntes e perspectivas teóricas em confronto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      21 Nov 2005
    • Recebido
      30 Nov 2004
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