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Universidade, formação e mundo do trabalho: superando a visão corporativa

Universidad, formación y mundo del trabajo: superando la visión corporativa

University, training and work: overcoming a corporative view

Resumos

Universidade, formação e trabalho são discutidos na perspectiva de interdependência em relação a ambientes e a processos e, como tais, vêm constituindo uma temática complexa, particularmente em tempos de mudanças estruturais, como se vive atualmente. No centro dessa discussão, mais uma vez, encontra-se a universidade que protagoniza papéis diferenciados e nem sempre assentados em bases científicas, políticas e sociais consistentes. Nesse contexto, a formação - razão cada vez mais crescente por demanda universitária -, não se encontra em situação de conforto, quer frente aos egressos, quer em relação ao setor produtivo. Na base desse desconforto estão a organização e a gestão dos cursos, os processos de formação e as pressões do mercado. Se de um lado uma visão corporativa reduz a universidade e a formação às exigências do mercado, de outra parte, vislumbra-se que o regime de cooperação entre universidade e organizações do sistema produtivo, mediadas pelo diálogo cooperativo, apresenta-se como alternativa viável e como superação do modelo de formação em vigor.

Universidade; Formação; Mundo do trabalho; Visão corporativa; Visão cooperativa


Universidad, formación y trabajo son discutidos en la perspectiva de la interdependencia entre ambientes y procesos que constituyen una temática compleja, particularmente en tiempos de mudanzas estructurales como se vive actualmente. En el centro de la discusión se encuentra la universidad que protagoniza papeles diferenciados y ni siempre con bases científicas, políticas y sociales consistentes. En ese contexto, la formación - razón cada vez más creciente por la demanda universitaria - no se encuentra una situación confortable, ni para los egresos, ni para el sector productivo. En la base de esa situación inconfortable están la organización y la gestión de los cursos, los procesos de formación y las presiones del mercado. Si por un lado una visión corporativa reduce la universidad y la formación a las exigencias del mercado, de otra parte, se vislumbra que el régimen de cooperación entre universidad y organizaciones del sistema productivo, mediadas por el diálogo cooperativo, se presenta como una alternativa viable y como superación del modelo de formación en vigor.

Universidad; Formación; Mundo del trabajo; Visión corporativa; Visión cooperativa


University, training and work are discussed on the perspective of interdependence of settings and processes, and, as such, constitute a complex theme, especially in times of structural changes, of nowadays. At the center of this issue, once more, there is the university playing different roles, not allways based on consistent scientific, political and social grounds. In that context, training - reason for an increasing demand on university - is not at a comfortable situation, whether in the face of graduates, or in the market. At the basis of this discomfort are the organization and management of courses, the training processes and the market pressures. If on the one hand a corporative view minimizes the university and the training to the demand of market, on the other, mediated by the cooperative dialogue, it is a feasible alternative and even an overcome to the current training model.

University; Training; World labor; Corporative view; Cooperative view


PÁGINA ABERTA

Universidade, formação e mundo do trabalho: superando a visão corporativa

University, training and work: overcoming a corporative view

Universidad, formación y mundo del trabajo: superando la visión corporativa

Antônio Elízio Pazeto* * O autor atualmente exerce a função de Consultor de Políticas Educacionais no Ministério da Educação em Timor-Leste.

Doutor em Educação, UFRJ Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC pazet@matrix.com.br

RESUMO

Universidade, formação e trabalho são discutidos na perspectiva de interdependência em relação a ambientes e a processos e, como tais, vêm constituindo uma temática complexa, particularmente em tempos de mudanças estruturais, como se vive atualmente. No centro dessa discussão, mais uma vez, encontra-se a universidade que protagoniza papéis diferenciados e nem sempre assentados em bases científicas, políticas e sociais consistentes. Nesse contexto, a formação – razão cada vez mais crescente por demanda universitária –, não se encontra em situação de conforto, quer frente aos egressos, quer em relação ao setor produtivo. Na base desse desconforto estão a organização e a gestão dos cursos, os processos de formação e as pressões do mercado. Se de um lado uma visão corporativa reduz a universidade e a formação às exigências do mercado, de outra parte, vislumbra-se que o regime de cooperação entre universidade e organizações do sistema produtivo, mediadas pelo diálogo cooperativo, apresenta-se como alternativa viável e como superação do modelo de formação em vigor.

Palavras-chave: Universidade. Formação. Mundo do trabalho. Visão corporativa. Visão cooperativa.

ABSTRACT

University, training and work are discussed on the perspective of interdependence of settings and processes, and, as such, constitute a complex theme, especially in times of structural changes, of nowadays. At the center of this issue, once more, there is the university playing different roles, not allways based on consistent scientific, political and social grounds.

In that context, training – reason for an increasing demand on university – is not at a comfortable situation, whether in the face of graduates, or in the market. At the basis of this discomfort are the organization and management of courses, the training processes and the market pressures.

If on the one hand a corporative view minimizes the university and the training to the demand of market, on the other, mediated by the cooperative dialogue, it is a feasible alternative and even an overcome to the current training model.

Keywords: University. Training. World labor. Corporative view. Cooperative view.

RESUMEN

Universidad, formación y trabajo son discutidos en la perspectiva de la interdependencia entre ambientes y procesos que constituyen una temática compleja, particularmente en tiempos de mudanzas estructurales como se vive actualmente. En el centro de la discusión se encuentra la universidad que protagoniza papeles diferenciados y ni siempre con bases científicas, políticas y sociales consistentes. En ese contexto, la formación – razón cada vez más creciente por la demanda universitaria - no se encuentra una situación confortable, ni para los egresos, ni para el sector productivo. En la base de esa situación inconfortable están la organización y la gestión de los cursos, los procesos de formación y las presiones del mercado. Si por un lado una visión corporativa reduce la universidad y la formación a las exigencias del mercado, de otra parte, se vislumbra que el régimen de cooperación entre universidad y organizaciones del sistema productivo, mediadas por el diálogo cooperativo, se presenta como una alternativa viable y como superación del modelo de formación en vigor.

Palabras-clave: Universidad. Formación. Mundo del trabajo. Visión corporativa. Visión cooperativa.

Considerações introdutórias

Conhecimento e trabalho são formas constitutivas da produção humana e da sociedade, embora, não raro, se apresentem em situações de conflito e mesmo de antagonismo. A universidade, na condição de uma das instituições especializadas no contexto da produção do conhecimento e da realidade social, no caso brasileiro, de há muito, não estabelece interlocução sistêmica entre formação, mundo do trabalho e desenvolvimento da sociedade.

Por sua natureza, instituições centradas no desenvolvimento da aprendizagem, da investigação e do conhecimento e organizações voltadas para a produção de tecnologias, de bens de consumo e de serviços definem ritmos e relações de trabalho com intensidade e interesses distintos. A intencionalidade e os processos que permeiam as ações de ambas vêm sendo determinados por fatores extrínsecos ao contexto e às relações que constituem base comum entre os sujeitos e suas produções.

A base comum entre conhecimento e trabalho ou entre universidade e setor produtivo decorre da centralidade do ser humano nessa relação, em vista da produção das condições de sustentabilidade de vida e de convivência produzidas em espaços sociais. Por não se empenharem em diálogos contínuos, universidade e setor produtivo estabeleceram precedências ou situações que, não raro, são tomadas como espaços de propriedade, com evidente relação de exclusividade ou de subordinação, em detrimento da produção de conhecimentos, da formação e de relações de interdependência. Frente a essas constatações, a noção de pertinência e de cooperação entre universidade e mundo do trabalho não alcançou, até o presente, um estágio que aponte perspectivas de reciprocidade e de avanços entre conhecimento e trabalho, particularmente, no que se refere às funções da universidade frente ao desenvolvimento da sociedade.

Concorrem para esse quadro de disfunções, segundo a UNESCO (1998, p. 94),

[...] os diferentes tipos de ambiente com os quais interagem as instituições de ensino superior, [...] em plena mutação: globalização, internacionalização, regionalização, democratização, massificação, deslocamento, marginalização, fragmentação, tecnologização.

As mudanças decorrentes dessa dinâmica apontam conflitos no interior das culturas, desafiando os padrões de formação e de desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico nas universidades e em outras instituições formadoras de pessoal especializado. A existência desses conflitos revela predominância de distintas concepções sobre formação, organização e desenvolvimento institucional e gestão social, que apresentam, no seu conjunto, problemas como descontextualização, ausência de visão compreensiva e de projetos institucionais e despreparo em relação à formação de seus dirigentes. A visão dicotomizada da realidade social e o predomínio imposto por determinados setores intensificam tais conflitos e ampliam o antagonismo entre universidade, conhecimento, formação e trabalho. Diante dessa situação, o documento da UNESCO (1998, p. 95), referido anteriormente, afirma ser necessário "superar as contradições, isto é, deixar de raciocinar em termos de 'ou isto ou aquilo' e passar a fazê-lo em termos de 'isto e aquilo', dependendo do contexto, porque as visões e as ações devem ser situadas".

A temática, ora em questão, requer maior aprofundamento e atenção continuada, sobretudo, por tratar de questões complexas e envoltas nas relações e na dinâmica da produção humana e de suas condições, nos mais diversos ambientes e contextos. Neles, trabalho, conhecimento e formação representam os vetores do desenvolvimento humano e social. Sob esse prisma, alguns questionamentos servirão de orientação para os próximos passos da reflexão:

• Quais exigências os novos cenários de formação para o trabalho apresentam à universidade?

• Quais desafios são questões comuns à universidade e ao mundo do trabalho?

• Que referenciais poderão contribuir para uma concepção de universidade que articule e apresente maior consistência frente aos processos de formação e sua relação com o mundo do trabalho?

Universidade e trabalho: ser árvore sem confundir-se com a floresta

Na medida em que o desenvolvimento da sociedade foi-se intensificando em função dos processos de urbanização, industrialização, cultura e modernização, diversificaram-se também as relações, as formas de viver e os processos culturais, políticos e sociais. Com a mesma intensidade, a procura por educação nas mais diversas especialidades e modalidades passou, igualmente, por ampliação e por novas exigências.

O desenvolvimento e as mudanças decorrentes desse novo cenário apresentam como principal vetor as tecnologias e sua variada gama de usos na produção em geral e na comunicação, mais especificamente. Ao longo desse processo, a escola e, em particular, a universidade são chamadas a produzir respostas às exigências por educação básica e por formação especializada para atender os novos ritmos do mundo do trabalho e as novas exigências de cidadania.

Frente a esse novo quadro, para Antunes (1999), o trabalho, analisado no seu conjunto e compreendido como fenômeno social, não desaparece; sofre metamorfoses e heterogeneização. A diminuição do trabalho estrutural, particularmente na indústria tradicional, e sua expansão no setor de serviços é conseqüência da mobilidade e da tecnologização, que alteram os processos produtivos e suas formas de expressão.

Em decorrência dessa mobilidade e dos novos sistemas e processos globalizados, são feitas análises de tendências e de cenários futuros em relação ao trabalho e ao emprego que, segundo UNESCO (1998), apontam, entre outras:

• Aceleração da modificação do perfil do emprego e das competências exigidas em praticamente todas as profissões;

• Demanda crescente de conhecimentos gerais em informática e competências de ponta nas novas tecnologias da informação e da comunicação;

• Multiplicação dos papéis profissionais que exigem alto nível de conhecimento nas mais diferentes áreas.

A celeridade com que essas novas exigências entram em cena não tem abrigo no quadro escolar brasileiro, em vista de um modelo educacional uniforme, tradicional e sem sólida formação científica desde a educação básica. A política educacional brasileira para todos os níveis e modalidades de ensino, exceção feita à expansão generalizada da rede escolar básica e ao acesso à mesma, não deu atenção às modificações do perfil e das novas competências de formação em relação ao mundo do trabalho. A reação do sistema educacional brasileiro a essas exigências é lenta e sem condições de acompanhar as demandas por formação científica, conhecimentos e tecnologias em informática e comunicação, além de reagir, modestamente, na multiplicação de papéis que exigem alto conhecimento em determinados campos profissionais.

Não obstante a função da educação básica própria de sua faixa etária, que assenta as bases para a formação futura, os investimentos na formação dos profissionais da educação para todos os níveis e modalidades, que assegurem qualidade da educação não acompanharam as exigências do acesso e permanência dos alunos na escola. Em relação à educação superior, o quadro geral das exigências distanciou-se, ainda mais, dos investimentos e dos resultados esperados, de tal forma que uma formação básica ampla e qualificada, seguida de uma formação superior atenta aos diferentes graus de complexidade em relação às exigências do mundo do trabalho e da cidadania, não obtiveram êxito, nas últimas décadas.

As diretrizes, políticas e metas educacionais estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/1996 (BRASIL, 1996) e pelo Plano Decenal de Educação, instituído pela Lei 10.172/2001(BRASIL, 2001), recomendam que seja discutida uma agenda de providências fundada em situações e exigências, que não pode mais ser relegada a segundo plano. A primeira delas é a da indissociabilidade entre processo de aprendizagem, trabalho e educação, por constituírem base intrínseca e dinâmica à produção do ser humano e das condições objetivas e subjetivas de seu desenvolvimento, particularmente, aplicada no âmbito da educação básica. A segunda é a formação pós-básica, considerando as diferentes áreas de atuação relacionadas ao mundo do trabalho, ao conhecimento técnico-científico e as demandas de trabalho e renda, respeitadas a complexidade da demanda social e a indissociabilidade entre conhecimento e tecnologia. A terceira diz respeito à revisão do modelo de educação superior, incluído financiamento e gestão, que vem sendo praticado, estabelecendo-se diferenciações entre formação universitária propriamente dita – de caráter científico-investigativo –, e formação superior voltada à formação profissional.

O enfrentamento dessas questões não assegura, por si só, as mudanças educacionais de que se necessita, particularmente em relação às exigências de formação. No entanto, sem elas se fazerem constantemente presentes nas agendas e sem a ousadia dos legisladores, governos e dirigentes institucionais, a curto e médio prazos não serão criados projetos inovadores para superar o estado crítico em que se encontram a educação, a universidade e a realidade social brasileira.

Entre as muitas abordagens que vêm sendo feitas sobre esta ordem de questões, Chauí (1999) traz importantes contribuições ao avaliar as implicações da relação da universidade com o mundo do trabalho e com os processos formativos no âmbito da sociedade. A fragilidade e as tensões com que as universidades vêm-se deparando, ultimamente, frente às exigências da sociedade, que apresentam, de um lado, défices em relação à aprendizagem e ao conhecimento, e de outro, problemas de interação com o desenvolvimento social e com o mundo do trabalho, revelam contradições que estão comprometendo tanto a universidade quanto as instituições da sociedade. Frente a esse quadro, são conhecidos os três momentos apontados pela autora, pelos quais as universidades vêm passando, desde a década de 70.

O primeiro momento diz respeito à universidade funcional. Em decorrência da influência que o mercado de trabalho vem exercendo sobre a universidade, e do prestígio que os profissionais detentores de diploma universitário podem auferir, a universidade passou a ser identificada como condição necessária para ascensão social e garantia de qualificação profissional frente ao emprego e ao mercado competitivo. Em função desse entendimento, "estude para se tornar alguém" continua sendo um conselho dado aos jovens, que ainda carrega a marca – hoje ilusória –, de que diploma assegura uma profissão, como se o mundo do trabalho continuasse pautado pela certeza e previsibilidade asseguradas por uma espécie de "cartório de empregos".

O segundo momento refere-se à universidade de resultados. Essa concepção, gestada na fase anterior, amplia o sonho em relação às oportunidades de acesso à universidade, em decorrência da presença, a partir da década de 80, da participação da iniciativa privada na oferta de cursos superiores e da parceria entre Estado e empresas no que concerne à oferta de estágios e a financiamentos em pesquisa. Esse contexto associou a universidade à idéia de sucesso e de resultados, dando continuidade ao status e estabilidade profissional de outrora.

Um terceiro momento aponta na direção da dimensão operacional da universidade. Nesse sentido, ela é vista pelo seu caráter operacional e sob esta ótica ela toma formas de gerenciamento como um tipo de organização do mercado. As novas exigências e formas de gestão implantadas no governo das universidades demonstram a predominância do modelo de gerenciamento organizacional sobre a concepção de gestão institucional. Assim, a perspectiva institucional que é intrínseca à universidade por força do caráter universal, social e público, fica reduzida a modelos pautados por interesses particulares e privados. O foco institucional assentado no conhecimento, na formação e na interlocução com as demandas sociais é substituído por padrões próprios das organizações que operam em função de interesses imediatos. "Virada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não age", afirma Chauí (1999, p. 190).

Sob o jugo desse quadro, vem sendo amplamente difundido, desde a década de 80, o conceito de universidade corporativa. Embora tenha origem nos anos 50, no final do século XX somente nos Estados Unidos essa concepção de universidade havia sido implantada em mais de 2.000 corporações empresariais. A idéia básica da universidade corporativa surgiu, segundo Meister (1999, p. xxvii),

[...] como complemento estratégico do gerenciamento do aprendizado e desenvolvimento dos funcionários para uma organização, [...], com o objetivo de obter um controle mais rígido sobre o processo de aprendizagem, vinculando de maneira mais estreita os programas de aprendizagem a metas e resultados estratégicos reais da empresa.

Em vista de mudanças cada vez mais aceleradas na sociedade, da intensificação de processos de globalização e da competitividade decorrente desse processo, conhecimentos, aprendizagens e tecnologias passaram a ser ferramentas estratégicas para empresas e corporações. Não por acaso, os conceitos de universidade corporativa e de universidade operativa tomaram forma no mesmo período, visando, em ambos os casos, assegurar competitividade e, dessa forma, agregar conhecimento e aprendizagem ao seu caráter funcional e de resultados.

Não sem espanto, igualmente, constata-se que, desde então, sob esse quadro, a concepção corporativa de universidade vem permeando muitas universidades brasileiras, cujos dirigentes pouco afeitos a uma concepção e prática analitico-reflexivas, fazem desse modelo uma bandeira de inovação no âmbito da gestão universitária.

Superando a visão corporativa de universidade

As reflexões provocadas por Chauí (1999) sobre a universidade operacional, anteriormente referidas, continuam alimentando o debate sobre os novos caminhos e perspectivas da universidade brasileira. Tais abordagens convergem para o pensamento de Frantz e Silva (2002, p. 150), ao afirmarem que

O contexto social, político e cultural sempre pressionou a universidade a cumprir funções que nem sempre lhe são próprias e que ao abrir-se para as demandas, a universidade criou um novo senhor controlador: o mercado. Este, completamente dominado por monopólios e, em muitos aspectos desregulado, impõe interesses nocivos ao caráter universal das ciências.

Há, no entanto, razões para justificar que a universidade brasileira tome os problemas dessa ordem como seus problemas. A sociedade liberal, diante da exigência de domínio das tecnologias como condição para eficácia e produtividade e conseqüente maximização dos resultados, produz as estruturas e relações de mercado, particularmente pela intensificação e extensão das relações de mercantilização que vêm sendo praticadas, tendo em vista a indissociabilidade entre ciência e tecnologia.

Sob esse enfoque, Oliveira (2004, p. 246) afirma que "a mercantilização da ciência está em curso no momento, fazendo parte da essência do processo neoliberal imposto à universidade". Tal constatação representa um desvio da função intelectual e investigativa da universidade, cujo foco centra-se no princípio de que ciência, trabalho e produção deixam de ter sentido público e passam a ter finalidade privada, sendo, para tanto, mercantilizados. O apelo à formação qualificada atraída por exigências de conhecimentos úteis reduzidos a fins pragmáticos e utilitários vem desviando a função da universidade e da ciência, imediatizando-as – função tático-operacional –, ao invés de consolidar-se como espaço das mediações, da investigação reflexiva e do futuro – função político- estratégica.

Para esses e outros autores, a universidade vem descurando de seu papel de antagonismo e de complementaridade de que falam Pimenta e Anastasiou (2002), que lhe é intrínseco, cedendo espaço para a racionalidade instrumental e para a mercantilização das relações de trabalho e de sua produção. Diante desse quadro, a universidade, de um modo geral, demonstra estar subserviente à ideologia dominante, cumprindo papéis mais econômicos que científicos, culturais e políticos, em decorrência da fragilização das políticas governamentais, acrescida de interesses corporativos internos e externos.

A gestão da universidade, por sua vez, ao centrar-se no provimento das exigências de manutenção e das demandas da tecnologia e da profissionalização, reforça a dispersão da cultura científica, intelectual e simbólica em vista das demandas e interesses econômicos e técnico-profissionais de caráter imediato.

Para Morin (2000, p. 10),

Não se trata de apenas modernizar a cultura, mas de culturalizar a modernidade. A universidade conclama a sociedade a adotar sua mensagem e suas normas: ela introduz na sociedade uma cultura que não é feita para sustentar formas tradicionais ou efêmeras do aqui e agora, mas está pronta para ajudar os cidadãos a rever seu destino 'hic e nunc'. A universidade defende, ilustra e promove no mundo social e político valores intrínsecos à cultura universitária, tais como a autonomia da consciência e a problematização, o que tem como conseqüências o fato de que a investigação deva manter-se aberta e plural, que verdade tenha sempre a primazia sobre a utilidade, que a ética do conhecimento seja mantida.

Os valores intrínsecos à cultura universitária, não obstante os prejuízos acentuados pelas formas tradicionais e efêmeras do 'aqui e agora', estão apostando em possibilidades e alternativas, que têm por referência o princípio da unidade na diversidade. Sob essa perspectiva, vislumbra-se cada vez mais espaço para a concepção do que se denomina de universidade-projeto ou universidade na perspectiva de projeto (PAZETO, 1995). Dois pressupostos básicos sustentam essa idéia. Um deles assenta-se na concepção de universidade com foco no vir-a-ser, no fazer ser, na idéia de instituição de investigação e de busca, orientada, ao mesmo tempo por questões locais e por questões universais. Esse enfoque de projeto está referido à dimensão socioantropológica assentada em perspectivas que dão base e legitimação à concepção de projeto definida por Boutinet1 * O autor atualmente exerce a função de Consultor de Políticas Educacionais no Ministério da Educação em Timor-Leste. . Outro pressuposto decorrente do anterior é expresso pela identidade e perfil institucional definidos a partir da convergência de potencialidades e de exigências manifestas de forma recíproca com que universidade e instituições da sociedade interagem, elaborem seus projetos e, em vista dessa interação, comprometem-se mutuamente.

A concepção de universidade na perspectiva de projeto resulta de intencionalidades explicitadas e de interconexões contínuas entre realidades sociais e propostas institucionais específicas consubstanciadas em propósitos e programas de finalidade comum. É com quem a universidade se envolve e a partir dessa realidade que a universidade configura e desenvolve seu projeto. É, portanto, nessa perspectiva que unidade e diversidade se conjugam, e universidade e sociedade, mediadas pelo Estado, produzem e implementam seus programas.

Na medida em que os fenômenos da urbanização, industrialização, modernização e democratização vêm determinando novos padrões nas relações, a educação e a formação especializada assumem relevância. No âmbito da universidade, tais fenômenos impõem redefinição das relações entre sujeitos e instituições, estabelecendo-se entre eles interdependência dos processos formativos.

Pertinência e cooperação como direcionamento estratégico

A relação de pertinência dos programas institucionais da universidade com processos de formação, sempre atentos ao mundo do trabalho, é hoje, um dos maiores desafios da universidade, diante de contextos instáveis de desenvolvimento e da dificuldade de se estabelecer referenciais para seu direcionamento. É pressuposto do sentido de pertinência, a convergência de programas da universidade com o desenvolvimento de sustentabilidade, em estreita coerência com o projeto institucional da universidade . Nesse particular, a universidade não pode estar desatenta a políticas e programas que levem em consideração, entre outras:

• Pesquisas sobre desafios e questões agudas que afetam a vida, a segurança, a saúde e o ambiente da sociedade;

• Problemáticas relativas ao trabalho e à empregabilidade;

• Integração de culturas;

• Programas de formação contínua.

Não obstante o caráter de investigação e de reflexão da universidade, sua função diz respeito aos processos de formação da sociedade, tendo como referência o local e como perspectiva o mediato. Tal situação impõe ações indissociadas entre conhecimento e práticas sociais, tanto mais quanto a realidade social e as circunstâncias em que a universidade está inserida apresentam desequilíbrios que requerem intervenção e superação urgentes. A questão da pertinência, portanto, leva em consideração um conjunto de medidas que assumem padrões específicos a contextos determinados, de forma a expressar o projeto institucional, tornando a universidade sensível ao meio social em que atua e participante do projeto mais amplo de sociedade, que transcendem os objetos que a envolvem.

O regime de cooperação entre universidade e instituições da sociedade, como estratégia para efetividade e relevância social da universidade é condição para o exercício da pertinência e da interdependência. Em vista dessa relação e da complexidade dos problemas com os quais ela se depara, a amplitude e a intensidade de tais questões não possibilitam ações efetivas por parte da universidade a menos que políticas de cooperação interinstitucional participem de programas comuns.

Em função de ser a universidade o locus da investigação, da reflexão e da criação, ela constitui-se elo estratégico da cadeia cooperativa com outras instituições, no processo de desenvolvimento dos setores científico-culturais e produtivos. Tal relação de interdependência minimiza a pulverização dos programas e o distanciamento da universidade frente a questões sociais, possibilitando potencializar os sujeitos diante da realidade em que atua e assegurando, dessa forma, otimização de suas forças e efetivação de seus propósitos.

A cooperação entre universidade e forças produtivas resulta de uma cultura de complementaridade entre comunidade acadêmica e mundo real, em que informações transformam-se em conhecimentos por meio de canais de comunicação e de espaços de interação. A criação de espaços e de "redes de relacionamentos [...] em que produtos, processos e projetos sejam abertos à interação, capacitação e cooperação" (WITTMANN, 2004), fundam-se na capacidade de fazer conexões, tornando-se uma das condições para efetivar a interatividade entre formação e trabalho e entre universidade e sociedade.

É do exercício sistemático de articulação e de interação entre segmentos e instituições comprometidas com projetos sociais mais amplos – sem perder de vista suas especificidades –, que a cooperação produz qualidade e novo alcance para o exercício de suas funções sociais, particularmente da universidade. Nessa perspectiva, formação especializada e mundo do trabalho podem ter a universidade como ponto de convergência e como oportunidade de síntese entre ser humano e fatores de produção. Em ambos os casos conhecimento, tecnologias e comunicação são canais de mediação para o desenvolvimento social.

Recebido em: 20/07/2005

Aceito para publicação em: 28/10/2005

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  • *
    O autor atualmente exerce a função de Consultor de Políticas Educacionais no Ministério da Educação em Timor-Leste.
  • 1
    A concepção de projeto aplicado a instituições, segundo Boutinet (1996), assenta-se em quatro pilares: a) o inédito vital, de cunho biológico, sendo antídoto para a repetição e a morte; b) a busca existencial de sentido, de caráter fenomenológico, antídoto para o absurdo e o acaso; c) a antecipação metodológica, de cunho praxiológico, antídoto para o impulso e a improvisação; d) a inovação cultural, etnológica, antídoto para a regressão e a marginalização.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      28 Out 2005
    • Recebido
      20 Jul 2005
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