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Rupturas urgentes em educação

Rupturas urgentes en la educación

Urgent ruptures in education

Resumos

Inovar a educação é promessa eterna, porque - segundo se crê - educação é uma das fontes principais de mudança, com o toque ulterior de ser mudança apropriada, aquela mais bem feita. Inspirando-se em Christensen, o texto discute armadilhas da inovação, entre elas: pretender inovar sem inovar-se; buscar controlar o processo de inovação; viver de promessas impossíveis ou de promessas mesquinhas. Os dados sugerem que nosso sistema educacional é inepto: as crianças não aprendem, os professores tendem a ser muito mal formados e mal pagos, a escola está ficando para trás, novas tecnologias não têm chance, e os alunos reclamam cada vez mais. Assim, "reformar" este sistema já não é o caso, porque o sistema já não possui razão suficiente para continuar existindo. Imprescindível seria mudar profundamente, quase começar de novo, em parte para poder estar à altura das necessidades dos alunos em novos tempos, em parte para corresponder aos cuidados pedagógicos da aprendizagem reconhecida crescentemente como desafio continuado. Referência fundamental é o professor, que, afinal, é o agente principal da mudança. Mudar o professor é crucial, porque praticamente todas as mudanças na escola são mudanças docentes. Criticar apenas não basta (nunca basta). É fundamental garantir novas oportunidades.

Mudança; Controle da mudança; Transformação social; Inovação disruptiva


Innovar en el campo de la educación es promesa eterna, porque - según se cree - la educación es una de las fuentes principales de cambio, con el toque ulterior de ser cambio apropiado, el mejor hecho. Inspirándose en Christensen, el texto discute trampas de la innovación, tales como pretender innovar sin innovarse; buscar controlar el proceso de innovación; vivir de promesas imposibles o mezquinas. Los datos sugieren que nuestro sistema educacional es inepto: los niños no aprenden, los maestros o profesores tienden a ser muy mal formados y mal pagados, la escuela está quedándose atrás, nuevas tecnologías no tienen oportunidad y los alumnos se quejan cada vez más. Así, ya no se trata más de "reformar" este sistema, porque el mismo ya no posee razón suficiente para continuar existiendo. Imprescindible sería cambiar profundamente, casi como que empezar de nuevo, en parte para poder estar a la altura de las necesidades de los alumnos en los tiempos actuales, en parte para corresponder a los cuidados pedagógicos del aprendizaje reconocido crecientemente como desafío continuado. El maestro es referencia fundamental, que, al fin de cuentas, es el agente principal del cambio. Transformar al maestro es crucial, porque prácticamente todos los cambios en la escuela son cambios docentes. Sólo criticar no basta (nunca basta). Es fundamental garantizar nuevas oportunidades.

Cambio; Control del cambio; Transformación social; Innovación disruptiva


To innovate education is an eternal promise, because - as is believed - education is one of the principal sources of change, with the ulterior insight of being the appropriate change, the one better done. Taking inspiration in Christensen, this text discusses innovation traps, of which some are: wanting to innovate without innovating oneself; seeking to control the process of innovation; nurturing impossible or mean promises. Data suggest that our educational system is inappropriate: children do not learn, teachers tend to be very badly trained and very badly remunerated, school is lagging behind, new technologies have no chance, and students complain increasingly. So, "to reform" this system is not the case, since it has no sufficient reason to persist functioning. Indispensable would be to change profoundly, almost beginning anew, partially aiming to be able to cope with the students needs in new times, partially to correspond to pedagogical cares of learning recognized increasingly as continuous challenge. Main reference is the teacher, who, after all, is the main agent changing. To change the teacher is crucial, because practically all changes in school begin with the teachers. To criticize only is not sufficient (it is never sufficient). It is fundamental to guarantee new opportunities.

Change; Change control; Social transformation; Disruptive innovation


Rupturas urgentes em educação

Urgent ruptures in education

Rupturas urgentes en la educación

Pedro Demo

Pós-Doutorado, University of California at Los Angeles; Professor Titular da universidade de Brasília. E-mail: pedrodemo@gmail.com

RESUMO

Inovar a educação é promessa eterna, porque - segundo se crê - educação é uma das fontes principais de mudança, com o toque ulterior de ser mudança apropriada, aquela mais bem feita. Inspirando-se em Christensen, o texto discute armadilhas da inovação, entre elas: pretender inovar sem inovar-se; buscar controlar o processo de inovação; viver de promessas impossíveis ou de promessas mesquinhas. Os dados sugerem que nosso sistema educacional é inepto: as crianças não aprendem, os professores tendem a ser muito mal formados e mal pagos, a escola está ficando para trás, novas tecnologias não têm chance, e os alunos reclamam cada vez mais. Assim, "reformar" este sistema já não é o caso, porque o sistema já não possui razão suficiente para continuar existindo. Imprescindível seria mudar profundamente, quase começar de novo, em parte para poder estar à altura das necessidades dos alunos em novos tempos, em parte para corresponder aos cuidados pedagógicos da aprendizagem reconhecida crescentemente como desafio continuado. Referência fundamental é o professor, que, afinal, é o agente principal da mudança. Mudar o professor é crucial, porque praticamente todas as mudanças na escola são mudanças docentes. Criticar apenas não basta (nunca basta). É fundamental garantir novas oportunidades.

Palavras-chave: Mudança. Controle da mudança. Transformação social. Inovação disruptiva

ABSTRACT

To innovate education is an eternal promise, because - as is believed - education is one of the principal sources of change, with the ulterior insight of being the appropriate change, the one better done. Taking inspiration in Christensen, this text discusses innovation traps, of which some are: wanting to innovate without innovating oneself; seeking to control the process of innovation; nurturing impossible or mean promises. Data suggest that our educational system is inappropriate: children do not learn, teachers tend to be very badly trained and very badly remunerated, school is lagging behind, new technologies have no chance, and students complain increasingly. So, "to reform" this system is not the case, since it has no sufficient reason to persist functioning. Indispensable would be to change profoundly, almost beginning anew, partially aiming to be able to cope with the students needs in new times, partially to correspond to pedagogical cares of learning recognized increasingly as continuous challenge. Main reference is the teacher, who, after all, is the main agent changing. To change the teacher is crucial, because practically all changes in school begin with the teachers. To criticize only is not sufficient (it is never sufficient). It is fundamental to guarantee new opportunities.

Keywords: Change. Change control. Social transformation. Disruptive innovation

RESUMEN

Innovar en el campo de la educación es promesa eterna, porque - según se cree - la educación es una de las fuentes principales de cambio, con el toque ulterior de ser cambio apropiado, el mejor hecho. Inspirándose en Christensen, el texto discute trampas de la innovación, tales como pretender innovar sin innovarse; buscar controlar el proceso de innovación; vivir de promesas imposibles o mezquinas. Los datos sugieren que nuestro sistema educacional es inepto: los niños no aprenden, los maestros o profesores tienden a ser muy mal formados y mal pagados, la escuela está quedándose atrás, nuevas tecnologías no tienen oportunidad y los alumnos se quejan cada vez más. Así, ya no se trata más de "reformar" este sistema, porque el mismo ya no posee razón suficiente para continuar existiendo. Imprescindible sería cambiar profundamente, casi como que empezar de nuevo, en parte para poder estar a la altura de las necesidades de los alumnos en los tiempos actuales, en parte para corresponder a los cuidados pedagógicos del aprendizaje reconocido crecientemente como desafío continuado. El maestro es referencia fundamental, que, al fin de cuentas, es el agente principal del cambio. Transformar al maestro es crucial, porque prácticamente todos los cambios en la escuela son cambios docentes. Sólo criticar no basta (nunca basta). Es fundamental garantizar nuevas oportunidades.

Palabras clave: Cambio. Control del cambio. Transformación social. Innovación disruptiva.

Uma das áreas onde mais se fala de "transformação social" é educação (DEMO, 2004b). É também onde menos de inova. Outra área é a da gestão empresarial, na qual surgiram inúmeras propostas de renovação radical, mesmo mantendo-se a proposta liberal. Boltanski e Chiapello (2005) denominam de "novo espírito do capitalismo" esta habilidade de inovação e que provém, muitas vezes e ironicamente, da capacidade de digerir a crítica. Enquanto na área da gestão empresarial muita coisa mudou e continua mudando, tendo-se estabelecido o compromisso de inovação radical como parte integrante da sobrevivência no mercado, em educação tudo continua como sempre, em especial a "aula". Tomo como pano de fundo a obra de Christensen (2002) sobre o "dilema do inovador", para ilustrar a urgência de ruptura em educação, em particular face a desafios tecnológicos. A tese de que educação é parte fundamental da transformação social pode/deve ser mantida, em especial quando se pensa que "pessoas educadas e suas ideias" são a mais decisiva riqueza das nações (DUDERSTADT, 2003), em que pese o gosto neoliberal desta visão. Mas, para tanto, educação precisar revirar-se em suas entranhas. Não consegue estar à frente do tempos. Antes, é penduricalho de tempos pregressos.

Inovação disruptiva

Christensen (2002) distingue dois tipos de inovação: a sustentadora e a disruptiva. As empresas exitosas tendem a usar novas tecnologias para confirmar o sucesso experimentado e que parece inquestionável. Isto ocorre principalmente quando elas se orientam pelos clientes que consomem seus produtos e os mantêm importantes no mercado. A inovação é bem-vinda, mas serve para "sustentar" o que já funciona. Tais tecnologias podem deter até mesmo dimensões radicais, mas seu propósito é manter o mesmo caminho, aperfeiçoando-o. "O que todas as tecnologias de sustentação têm em comum é que aprimoram o desempenho de produtos estabelecidos, ao longo de dimensões de desempenho que clientes prevalentes em mercados maiores têm valorizado historicamente" (CHRISTENSEN, 2002, p. XVIII). Ocasionalmente, porém, torna-se imprescindível contradizer a tais clientes, porque os caminhos recorrentes implicam declínio e, ao final, fracasso. Acontece, porém, que tecnologias disruptivas - que rompem com dinâmicas vigentes e acenam para alternativas radicais - induzem mudanças aparentemente dúbias no curto prazo, ou seja, desempenho deficitário em relação a produtos estabelecidos, procura seletiva no mercado, mesmo sendo mais baratos, simples/menores e de uso mais amigável. Facilmente a tecnologia se posta à frente do mercado, o que conturba a confiança de clientes e investidores costumeiros. O que Christensen chama de "dilema" é a contradição entre gestores competentes e que cuidam da qualidade dos produtos da empresa, de um lado, e, de outro, o fato de que este desempenho acaba tornando-se a própria ruína, ao não perceber que os tempos são outros. Sucumbe também o dito comum de que "o cliente sempre tem razão".

Empresas estabelecidas e exitosas desenvolvem naturalmente a tendência de persistir em seus procedimentos, pois, como se diz, "não se muda time que está ganhando". O próprio êxito se torna uma arapuca, pois é bem difícil manter espírito crítico face ao êxito. Tudo que se considera sucesso não se vê como passível de inovação, muito menos de inovação radical. A questão é que a rota assumida já não detém as promessas supostas. Permanece nela é conduzir a empresa para impasses que, cedo ou tarde, irão eclodir e acarretar consequências graves, ou fatais. Torna-se pretensão complicada - um dilema - desconstruir radicalmente uma rota tida por exitosa. Delineando-se, no horizonte, outras rotas, a empresa exitosa tende a ignorar ou a combater, também sob pressão dos clientes e investidores: estes protegem os procedimentos atuais considerados adequados. Acresce que inovações radicais, além de assustar normalmente, não são vistas como iniciativas fáceis de engolir. Ao contrário, acarretam sobressalto, ao induzirem a desconstruções profundas da rota anterior. Assim, empresas, cujo êxito se deve a adesões a tecnologias inovadoras antes, acabam, depois, tornando-se bastiões da resistência, ao não vislumbrarem a possibilidade de outros caminhos. Apostando no êxito, já não percebem que este êxito está em declínio ou perdeu a viabilidade, face a inovações concorrentes e alternativas. Êxito repetido se torna reprodução. É preciso "romper".

Christensen (2002) alega que, para dar conta de inovações disruptivas, são necessárias outras habilidades de sentido fortemente desconstrutivo/reconstrutivo, implicando viradas radicais, mesmo perante futuros ainda muito incertos. Sugere, no fundo, que inovadores radicais se atiram em processos de mudança, por vezes, sem segurança maior, levados pelo insight da alternativa que vai se desenhando. A ideia de que são necessárias outras habilidades coloca desafio particularmente instigante e que foi lançado, entre outros, por Holloway (2003), ao propor "mudar o mundo sem tomar o poder". Constatando que os revolucionários, chegando ao poder, se tornam conservadores, não interessaria mais tomar o poder, mas desenhar mudanças que se mantenham em mutação constante. Pode-se formular esta expectativa de outra forma: quem propõe mudanças, não as deveria gerir. Gestores de mudança não mudam mais! De fato, como sugere a sociologia, uma coisa é ver o poder de baixo para cima (contestando-o), outra é ver de cima para baixo (exercendo-o). É regra sócio-histórica que todo revolucionário encarapitado no poder vai-se tornando, com o tempo e com o desfrute do poder, reacionário (DEMO, 2002b). Não se pode, porém, banalizar esta questão, porque, sendo nua e crua, descreve dramas históricos lancinantes. Três exemplos são "paradigmáticos": a briga entre Lênin e Rosa Luxemburg - enquanto esta berrava que a ditadura do proletariado era do partido (de Lênin), aquele procurava colocar ordem numa casa em polvorosa; a briga entre Fidel Castro e Che-Guevara - enquanto este queria uma revolução por dia, aquele pretendia fazer a revolução funcionar; a dissonância entre a revolução cultural de Mão (interminavelmente revolucionária) e o pragmatismo chinês que tornou a China atual um fenômeno de êxito econômico liberal... Acrescentaria um quarto exemplo: Lula. A gestão da Presidência da República o levou a encaixar-se no figurino neoliberal, à revelia de sua história de esquerda. Pode-se ainda aludir também a Fernando Henrique Cardoso, que sugeriu, cansado das acusações de neoliberalismo, que se esquecesse do que havia escrito!

Seria difícil encontrar, na mesma figura história, ambas as habilidades, sustentadoras e disruptivas. Habilidades disruptivas tendem a bagunçar a gestão, provocando o caos (MASSUMI, 2002), relegando para segundo plano o funcionamento do sistema. Habilidades sustentadoras podem ser inovadoras, mas estão direcionadas a manter a rota vigente. Propostas de mudança têm dono, e seus donos não mudam mais, transformando-as em resistência. Não é resultado fatal, mecânico, porque todos podemos, como se diz em religiões, nos "converter", mudando de vida. Mas, sendo gesto radical, não ocorre toda hora e ao léu. Christensen (2002) faz um alerta muito pertinente: transformações sociais, ao se institucionalizarem, caem naturalmente em declínio, porque seu funcionamento se sobrepõe à inovação. Esta é vista, quase sempre, como perturbação ao funcionamento, não como alternativa. Deixar para trás legados históricos tornados obsoletos é habilidade de rara acuidade, própria de gente que mantém a mente aberta, apesar de todo e qualquer êxito. Em termos educacionais, o dilema seria: o êxito tende a não aprender mais. Estando satisfeito consigo mesmo, não capta alternativas. Antes, as vê como impertinentes, ameaçadoras, inoportunas.

Escola emperrada

Reconstruindo a análise de Christensen (2002) para o ambiente escolar, e também se levando em conta que escola não é propriamente "empresa" de mercado, a carapuça pode servir, mutatis mutandis. De partida, a escola dificilmente poderia ser considerada entidade exitosa, em especial a escola pública, onde sabidamente se aprende muito pouco. Assim, a escola persiste na rota secular, não porque tenha êxito para decantar, mas por acomodação do sistema. Em parte, considera-se êxito o que já sabemos ser impróprio, como a aula instrucionista (SCHNEIDER, 2007) - quando aumentada, provoca queda do desempenho dos alunos (DEMO, 2004a).

Pleiteou-se isto na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) - o ano letivo passou para 200 dias - confundindo-se aula com aprendizagem. Entrando em vigor em 1997, dois anos depois ocorreu a queda mais espetacular no desempenho discente (de quase 20 pontos em língua portuguesa). Alguns alegam que esta queda se deveu à entrada de alunos novos no sistema (SOUZA, 2004), em geral mais pobres e despreparados. Por certo, isto pode ter influenciado, mas não a ponto de uma queda tão elevada, sem falar que a introdução dos 200 dias letivos nunca foi percebida como fator positivo nos dados do Saeb. Ao contrário, o tom de queda persistiu sempre.

A persistência da aula instrucionista não se deve, ainda, ao fato de ser procedimento coroado de êxito, por mais que seja apreciada pela "clientela" (alunos e seus pais). Na prática, este tipo de aula completamente avesso à qualidade disruptiva do conhecimento questionador (DEMO, 2005) se mantém porque é a "instituição" escolar propriamente dita: vai-se à escola para frequentar aula. Os docentes foram assim "instruídos", por professores que, sem produção própria, davam aula. Autoria nunca foi exigida, à revelia das teorias de aprendizagem que a preconizam insistentemente. Torna-se difícil esperar que os docentes "desconstruam" sua aula, aceitem humildemente que não são importantes para a aprendizagem dos alunos, sobretudo, que, não sendo escudadas em produção própria, são plágio corriqueiro. Não se dá esta aula porque está dando certo, mas porque é dogma. Virar pelo avesso esta prática significa lançar o docente no vazio e no desespero (CABRERA, 2010). Ao mesmo tempo, a rota alternativa vem-se desenhando pelo menos desde Piaget e Vygotsky (primeira metade do século passado): aprender implica desestruturação radical de esquemas vigentes de pensamento, face a novas realidades que já não cabem em tais esquemas. Piaget (1990) chamava de "equilibração", enquanto Vygotsky definia como "zona do desenvolvimento proximal" a ação mediadora docente que motiva o aluno a galgar patamares cada vez mais complexos do conhecimento (MEIER; GARCIA, 2007). Maturana (2001), usando o conceito de autorreferência do ponto de vista do observador (DEMO, 2002a), entende aprendizagem como procedimento reconstrutivo infindável na arquitetura da autonomia de todo ser vivo, de dentro para fora. A condição biológica implica mudanças radicais e naturais, não apenas sustentadoras (PLANT, 1999).

O processo de aprendizagem não só sustenta o que já se aprendeu. Principalmente, desconstrói. Como alega Shirky (2008), discutindo inovações digitais marcadas por autoria coletiva e individual, sobretudo os adultos precisam aprender a "desaprender", deixando para trás vezos obsoletos, como, por exemplo, manter didáticas reprodutivas. O desafio é, entre outros, participar de ambientes de produção de conhecimento abertos, nos quais "todos podem editar" (LIH, 2009). Todo participante se torna "discutível", seu texto pode sempre ser mudado, os consensos permanecem em devir incessante, vale a autoridade o argumento (não o argumento de autoridade). Na Wikipedia todo texto é convite a ser aprimorado, mudado e mesmo deletado. Os expertos são desafiados por levas de amadores, que, entre banalidades sem fim, também oferecem textos pertinentes. Muita gente aprendeu a pesquisar minimamente, apesar de todos os problemas que a Wikipedia contém (O'NEIL, 2009). Para docentes, o grande desafio é aceitar-se "discutível", em nome do conhecimento sempre discutível. Surgem novas epistemologias - novos modos de lidar com conhecimento - nem todas alvissareiras, mas que se vão impondo e desconstruindo a velha academia. Em especial, o que se tem chamado de web 2.0 (modismo como outros) valoriza autoria: usuários querem participar como autores, em níveis por certo muito diferenciados, cujo produto, em geral, é chamado de "remix" (WEINBERGER, 2007), não sem alguma ironia: vai desde quase plágio (que abunda amplamente) até textos sofisticados da Wikipedia.

A escola, porém, tende a encolher-se em seus usos e costumes, mesmo proclamando a "transformação social". Por exemplo, foi decantada em prosa e verso a "lousa eletrônica". Permite maleabilidade acentuada (pode ser gravada, se houver na sala ambiente de internet; o que se escreve pode ser deslocado; pode ser apagada e refeita, etc.), mas, quase sempre, para sustentar a velha aula. Aproveita-se como confirmação de práticas obsoletas, já que serve principalmente para facilitar que o aluno a copie/grave sem maior esforço em seu computador. Algo similar dir-se-ia da educação à distância, quando apela para procedimentos digitalizados. Em geral, usamse para aprimorar a aula, torná-la mais motivadora e capciosa, engrandecer o papel docente, transmitir conteúdos mais levemente, etc. O instrucionismo continua o mesmo, ainda que agora inserido no mundo digitalizado. Não se percebe que, nas novas tecnologias, a par de velharias e banalizações recorrentes (DEMO, 2009), há igualmente inovações disruptivas e das quais é urgente dar conta, em especial para não ficar refém delas. A nova geração aponta para esta direção inapelavelmente (TAPSCOTT, 2009), ainda que naturalmente em termos ambíguos (BAUERLEIN, 2008). Tornou-se bem mais claro que conhecimento é dinâmica disruptiva, rebelde, desconstrutiva em primeiro lugar, reconstrutiva em segundo lugar. Transmitir conhecimento virou procedimento vetusto, inepto e inútil. Na sociedade intensiva de conhecimento (DU-DERSTADT, 2003), o que decide as oportunidades de vida e mercado é a habilidade de reconstrução infinda de conhecimento, no contexto da aprendizagem permanente. A escola inda não descobriu isso, em especial seus docentes e dirigentes.

Inovar-se para inovar

Embora o contexto fosse bem outro, Kuhn (1975), na obra "A estrutura das revoluções científicas", mostrava que o processo de institucionalização se sobrepõe facilmente ao desafio de inovação. Surgindo uma ideia nova e tornando-se "escola", tende a acomodar-se sobre seus louros. Caminha, então, para o envelhecimento. Dificilmente alguém de dentro do sistema consegue abalar o sistema. Mas facilmente, alguém de fora, como sugere Christensen (2002) (entrantes no mercado, na sua terminologia), tem condições de introduzir alternativa radical. Na prática tratase de fenômeno natural: toda ideia nova fica velha... Nós também! O caminho que se anda todo dia é mais cômodo, porque repetido já de modo inconsciente. Se, durante tantos séculos, a aula sempre foi didática central, quase única, por que se teria tornado obsoleta? Ainda mais: os alunos e seus pais querem aula. Nas greves, o que se repõe, são aulas, nada mais, porque se imagina que aula é a razão de ser da escola. Certamente, há aula e aula. Estou falando aqui de aula instrucionista, aquela dada sem autoria. Apesar do reconhecimento insistente do baixíssimo desempenho da escola, continuamos tocando o mesmo barco. Quando surgem novidades, usamo-las para aprimorar este barco medieval.

É menos "dilema", do que flagrante contradição. O discurso sobre transformação social torna-se sarcástico, porque é usado para atravancar qualquer transformação. Mudança facilmente é mal recebida, provocando resistência (EVANS, 2001; MOE; CHUBB, 2009; FRIED, 2005), mas é mais difícil entender que a escola, ponta de lança do sistema educacional, seja tão refratária. A noção de que aluno aprende escutando aula tornou-se petrificada, não admitindo sequer discussão preliminar. Em parte, isto se deve ao fato de que a maioria dos docentes não saberia fazer outra coisa, não por "culpa", mas por formação deficiente. Condições precárias de trabalho também colaboram em manter o baixo desempenho (DEMO, 2007). Os professores, por cacoete de formação, têm dificuldade extrema de se aceitarem "discutíveis". Nossa tendência é de encarnar o argumento de autoridade - impróprio no mundo científico - em especial transmitindo reprodutivamente conteúdos curriculares, em geral sem produção própria. No entanto, é decisivo saber "desconstruir-se", como sugeria Piaget (1990) com o termo "equilibração": ideias tornam-se esquema; esquema tende a enrijecerse; urge explodir esse esquema e galgar para outro patamar; este patamar, entretanto, logo vira esquema e se enrijece. Aprender é este vaivém sem fim de desconstrução e reconstrução, no qual nos esquematizamos e nos liquefazemos. A escola se esquece de se liquefazer (BAUMAN, 2007). Tornou-se esquema pétreo.

A análise de Christensen (2002) esclarece a tendência de resistir à desconstrução de quem comanda a mudança. No caso da escola, aplica-se apenas em parte, porque o professor não comanda mudança. Ao contrário, mantém, em muitos casos, o atraso.

A ideia de Christensen (2002), no entanto, parece válida para entender que dificilmente o docente percebe a necessidade de inovar-se para poder inovar. Antes de proclamar-se inovador, é imprescindível saber inovar-se, ou seja, aplicar a si mesmo a desconstrução. Sem falar que este procedimento pode ser doloroso ao extremo, contradita a história docente que tende a ver-se como indiscutível. Facilmente aplicaria a necessidade de desconstrução ao aluno. Não, porém, a si mesmo. Na prática, se quisermos aluno autor, antes é preciso inventar docente autor. Esta exigência convulsionaria radicalmente os atuais processos de formação docente, não tanto nos seus alunos, quanto nos seus professores. O sistema de ensino, sendo tão instrucionista, não produz autores. Produz "transmissores de conhecimento", uma função defunta na sociedade intensiva de conhecimento. Entre as assim ditas habilidades do século XXI (outro modismo, certamente), conta-se a de lidar crítica e criativamente com conhecimento na condição de autor. É amplo o reconhecimento de que disto dependem mormente as oportunidades de vida e mercado (CASTELLS, 2004). A escola está, então, na contramão, pisando uma rota já falida e incongruente. Para complicar ainda mais a questão, a escola fala, de boca cheia, de transformação social.

Entretanto, não cabe apenas questionar o professor. Concretamente, é muito mais vítima do que prócer desta transformação vazia. Se levarmos em consideração que é muito mal formado e é muito mal pago, trata-se de combinação deletéria. Exige-se transformação social logo de quem não recebe instrumentação mínima para tanto. Num lado, alardeia-se que educação se tornou o fator produtivo mais decisivo (IOSCHPE, 2004), em especial o fator mais incidente no salário. De outro, mantém-se o professor refém de expectativas laborais inacreditáveis. A recente aprovação da jornada de trabalho de quarenta horas semanais por mil reais é prova contundente deste desacerto. Trata-se de remuneração vil. Alguns governadores entraram na justiça procurando derrubar esta lei. Não foram ouvidos, mas isto mostra o quanto professor continua profissão aviltada. Esperar dela que comande a revolução da sociedade e da economia é chiste de mau gosto. Neste sentido, cabe oferecer oportunidades aos docentes de estudo, pesquisa, elaboração, de tal sorte que possam tornar-se autores e, assim, motivar a formação da autoria nos alunos (EMIGH; HERRING, 2005).

Para concluir

As ideias de Christensen (2002) podem elucidar algumas faces das transformações de que necessitamos na escola, mutatis mutandis. Foram muito aclamadas no mundo das empresas (também porque foram feitas para esse mundo), ao mostrar a importância das mudanças disruptivas e principalmente a necessidade de outras habilidades para dar conta delas. Tomando educação como é "vendida" por aí, ou seja, como fator fundamental de transformação social, seria de se esperar que docentes fossem protagonistas abertos de mudanças radicais, mantendo-se em desconstrução incessante. Não se pode esquecer a questão da institucionalização e escola é instituição, uma das mais constantes da sociedade. Mas, mesmo assim, incomoda que docentes não tentem desconstruir-se, em particular desconstruir suas aulas. Na escola tudo pode ser revisto, menos a aula. Esta se arvora como referência sagrada. É como oração que se repete todo dia, já de cor, sem refletir. Não se aprende nada com ela. Mas continua impávida. Em nome da transformação social.

Recebido em: 23/03/2010

Aceito para publicação em: 03/11/2010

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2010
  • Aceito
    03 Nov 2010
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