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Editorial

O papel dos pesquisadores é a busca da chamada verdade, não uma verdade estática, mas fugidia e dinâmica como a sombra de um pássaro nas águas de um rio em movimento, conforme dizia um poeta. Enquanto isso, periódicos científicos propõem-se a formar mosaicos dessas aproximações, nos quais a pluralidade é rica e a singularidade é pobre.

Esta nova versão do mosaico, o nº 93, uma vez mais tem como denominador comum o estudante - e também o ex-estudante. Começa com mais um processo que drena riquezas de países menos desenvolvidos para mais desenvolvidos, a riqueza da educação. Dá para lembrar o clássico Myrdal, com a causação circular e cumulativa. É do que tratam Luisa Cerdeira, Belmiro Cabrito, Maria Lourdes Machado-Taylor e Tomás Patrocínio em “Transfer investment on education on a free cost basis: some evidence from Portugal, Spain, Greece and Italy”. Esta é mais uma história da crise de 2007-08, ou de como a árvore dá frutos no quintal de vizinhos e não vizinhos – e o Sul, pelas mãos cada vez mais visíveis do mercado, remete riquezas ao Norte. Se calhar, aplica-se aos dois hemisférios, Sul e Norte.

Em seguida, ainda em torno dos fatos da igualdade ou falta dela, temos “Itinerários de escolarização e mediações subjacentes: a experiência de discentes do Prouni”, por Andrea Bayard Mongim. Uma pesquisa qualitativa, com personagens concretos, vem dar voz ao que dados estatísticos detectam, igualmente necessários. Verifica-se o peso relativo dos custos indiretos para os bolsistas, bem como processos culturais que distinguem herdeiros de não herdeiros. Desperta a vontade de promover uma pesquisa longitudinal que acompanhe a trajetória desses estudantes, inclusive como egressos, para compreender suas vantagens e desvantagens no trabalho, em especial nesta conjuntura. Como funcionam as redes, os paraquedas e os trampolins, a inclusão e a exclusão?

Outra contribuição do mosaico também trata dos estudantes ou do seu sucesso a partir de uma pesquisa quantitativa. Pode-se pensar que a pesquisa é reiterativa, mas em ciência não é assim, pois a investigação com outras metodologias, populações e tratamentos contribuem para a constituição de massa crítica e o seu debate, iluminando melhor a realidade. É o que encontramos em “Liderança do diretor, clima escolar e desempenho dos alunos: qual a relação?”, de Ana Cristina Prado de Oliveira e Andrea Paula Souza Waldheim, de profícuo grupo de pesquisa. Aliás, a variável dependente da pesquisa é o desempenho em matemática, uma aversão, legada pela educação básica, a numerosos brasileiros, inclusive alguns pesquisadores educacionais.

Folheando adiante, encontramos, de Patrícia Alexandra da Silva Ribeiro Sampaio, “Conhecimento tecnológico dos professores de matemática sobre quadros interativos segundo as políticas públicas de formação contínua”. Ainda focalizando a matemática, este é um dos artigos que envolvem o conhecido hiato, lacuna, fenda ou abismo entre os valores proclamados e os valores reais. Como avant première, adianta-se que o conhecimento docente é uma coisa, mas as ações enfrentam obstáculos, entre eles a sutil e subjacente preferência de docentes, sejam quais forem os motivos e pretextos, pela pedagogia monológica. Mais simples, é verdade, porém mais penosa para os docentes, acossados por mal-estar físico e psíquico em face da condução das aulas e do próprio aulismo. Como podem professores sofrer tanto por se agarrarem ao passado: professor fala, aluno ouve!

Ainda a igualdade e a inclusividade pautam a pesquisa “Formação e capacitação de docentes para atuar com alunos com deficiência auditiva: um estudo no Instituto Federal do Espírito Santo”, por Wellington Gonçalves, Verana Maria Forniciari Gonçalves e Lilian Pittol Firme. Os diferentes na igualdade remetem aos riscos da inclusividade cega, em certos casos por ideologia, em outros por meros interesses econômico-financeiros, para reduzir a qualquer custo os custos educacionais. Com efeito, a sala de aula comum não é panaceia: parece simples e barata, embora os ônus venham a recair sobre os alunos diferentes tratados com falsa igualdade.

Outro ângulo da realidade é revelado por “Gestão de recursos tecnológicos em colégios estaduais baianos: as possibilidades de ação pedagógica na educação de jovens e adultos”, de Gilberto Pereira Fernandes, Paulo Gonçalves e Antonio Amorim. Com argúcia, a metodologia associou questionários e visitas às escolas, de modo a verificar mais uma vez o hiato entre as políticas e a sua realização nos locais onde de fato ocorre a aprendizagem. De fato, faltam recursos, porém muitos dos que existem deixam de ser aproveitados, com prejuízos sociais, ao contribuinte e ao aluno. Muitas foram as dificuldades e faltas de sintonia encontradas, mas outra vez aparece subjacente a atração professoral pela pedagogia monológica. O trabalho lembra uma pesquisa não acadêmica, realizada há decênios por um competente colega. Era preciso saber por que o livro didático chegava reiteradamente atrasado, para lá de um ano, às escolas. Ele se decidiu pela imersão, convivendo com pessoas desde que o livro entrava na gráfica até chegar aos alunos. Detectou tantos pontos de estrangulamento que os ditos livros encurtaram substancialmente seus caminhos. Este seria um desafio muito importante para analisar as viagens de outras coisas, inclusive o dinheiro para as escolas...

“Do texto ao contexto: o Programa Ensino Médio Inovador em movimento”, de Mônica Ribeiro da Silva e Vanessa Campos de Lara Jakimin, analisa as transformações da formulação do Programa. A análise documental se baseou no quadro teórico de Ball, contribuindo para compreender as interações entre as intenções dos formuladores e os porta-vozes das possibilidades reais. Com isso, os próprios documentos mudam com as negociações, no intento, esperamos, de diminuir o hiato entre políticas e práticas. Espelha, ainda, como as burocracias piramidais, do topo à base descerram visões diferentes das realidades.

Adiante, “Governance concepts and emergence in Brazilian education”, por Aline Veiga dos Santos, Isabela Cristina Martins Braga, Ranilce Guimarães-Iosif e Sinara Pollom Zardo, também utilizando a contribuição de Ball, analisa a polissemia do termo governança, concluindo pela necessidade de alargamento do seu debate. Com isso, leva pelo menos este leitor a concluir que, quando emergem brotos novos, é preciso analisar cuidadosamente as suas raízes e os seus diversos ramos.

Ainda em torno da distância e contradições entre políticas e práticas, entre valores proclamados e valores reais, entre centros e periferias, temos “Política y cambio en educación: el caso de las competencias básicas en España”, de Héctor Monarca, Cecília Simón, Soledad Rappaport e Gevardo Echeita. Se servisse de consolo, evidencia o hiato ou abismo entre políticas e práticas no seu país. Alguém perguntou com sabedoria se as reformas reformam as escolas e/ou se as escolas reformam as reformas. O estudo de casos múltiplos sobre como chegam (ou deixam de chegar) as competências básicas às salas de aula em centros de educação primária e secundária aponta para as contradições entre normas e fatos. Tema tão reiterativo sugere a necessidade de estudá-lo com profundidade ainda maior, em seus por quês e comos.

A Página Aberta se abre para “Bullying e formação de professores: contributos para um diagnóstico”, por Alexandre Ventura, Beatriz Pedrosa Vico e Rosângela Ventura. Esta Revista tem disseminado ao longo dos anos numerosas pesquisas sobre o bullying e as violências nas escolas, pela sua grave importância. A indagação central da pesquisa trata de várias pesquisas internacionais e documentos reputados, inclusive de órgãos multilaterais, como a UNESCO. Teriam estas pesquisas e declarações chegado à formação de educadores em Portugal e Espanha? Qual a resposta? Não valem apostas, mas evidências que lá estão.

Este é, portanto, um mosaico cujas peças, juntas, desenham algumas grandes figuras, como os óbices à transformação, incluindo valores enraizados de muitos grupos envolvidos. Valores que geram atitudes, por sua vez traduzidas em comportamentos. Trata-se de um mosaico rico, colorido e, em certas áreas, é difícil decifrá-lo. Ele reúne não só uma pluralidade de problemas, teorias e metodologias, mas sobretudo pessoas com diversas formações e níveis de carreira. As cores do mosaico sugerem que se forma um circuito acadêmico iberoamericano mais intenso. Que seja este cada vez mais aberto ao restante do mundo, para robustecer-se. Como bailarinas(os), vamos ficando com os pés aqui e ali, no Norte e no Sul e nas diferentes regiões dos pontos cardeais.

Mas não é só isso: o leitor constatará uma luz de esperança, pelos dados biográficos dos autores, indicando a associação entre pesquisadores seniores e juniores, mestres aprendentes e aprendentes mestres. Eticamente, segundo a humildade que caracteriza a busca árdua, aparecem os mais aprendentes primeiro e os mais ensinantes depois. Isto sugere que constituímos os elos entre gerações, numa comunidade científica. Erguemo-nos sobre os ombros dos que nos precederam, como a saudosa Aparecida Joly Gouveia, que conseguiu ainda sintetizar e analisar em artigos a pesquisa educacional no Brasil. João Calmon, o Senador da Educação, nos últimos anos do seu derradeiro mandato, preocupava-se em apoiar e, de certo modo, formar sucessores para a luta pela educação. Não o conseguiu, mas, se fosse vivo, subiria hoje à tribuna, com entusiasmo, valorizando a pesquisa que tanto respeitava, para comunicar: a alma, de fato, não é pequena e os esforços valem, sim, a pena: conseguimos formar a dinâmica dos sucessores, com a consolidação da pesquisa educacional no Brasil. Direta e indiretamente isso devemos a pioneiros que pensaram a longo prazo, num entrelaçamento entre o ontem, o hoje e o amanhã.

Candido Alberto Gomes
Editor associado

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
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