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EDITORIAL

Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação abre os seus números para diversas questões e abordagens, não tendo optado, assim, por números monotemáticos. Ao oferecer ao leitor uma visão panorâmica de cada fascículo, deparamo-nos com um espelho a refletir, em várias dimensões, questões e angústias da educação no Brasil e no mundo. O espelho revela que, dos dez artigos adiante, seis tratam da inclusão educacional e três destes abordam a inclusão na educação superior. Ou seja, temas prioritários para um país tão desigual em direitos e deveres. Outros artigos se referem a resultados e processos educativos, seguindo diferentes veredas, similares às que Guimarães Rosa (2001ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 31) explorava no Grande Sertão, bem na intimidade do Brasil: “Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias.” Quem percorre a autenticidade, como Rosa, verifica hiatos, não raro, abismos, entre as ideias, hoje em parte globalizadas, e a empiria; entre políticas educacionais e pessoas e grupos reais, no dinamismo sempre inacabado das teias sociais. Como o imortal Anísio Teixeira (1962)TEIXEIRA, A. Valores proclamados e valores reais nas instituições escolares brasileiras. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 37, n. 86, p. 59-79, abr./jun. 1962., estas contradições se estabelecem entre os valores proclamados e os valores reais ou vividos nas instituições escolares brasileiras. Pensa-se numa coisa e se faz outra. Na metáfora da cebola, as concepções avançadas ficam nas camadas externas, sem penetrar no âmago, na escola e na sala de aula, onde a educação se faz.

Comecemos, então, pelo começo. O primeiro artigo desta edição, A Universidade Aberta do Brasil e a democratização do ensino público, de Paulo Romualdo Hernandes, destaca o papel do tutor. Já que a educação a distância foi criada como forma de ampliação do acesso e decorrente democratização, este é o primeiro trabalho sobre inclusão. Um desafio seria tomá-lo como base para uma pesquisa empírica que analisasse na prática, sob vários ângulos, o trabalho do tutor no Brasil. Observemos que este editorialista apresenta novas indagações e desafios, não que os trabalhos sejam insuficientes, ao contrário, em virtude da sua riqueza, sugere novas janelas para o prosseguimento do fluxo de investigações.

No mesmo fio da inclusão na educação superior, Trajectories in higher education: ProUni in focus, da autoria de Vera Lucia Felicetti e Alberto F. Cabrera, destaca resultados até certo ponto surpreendentes: duas grandes barreiras do aluno de baixo status socioeconômico depois de passar pelo filtro do acesso. Um deles é a mancha ignominiosa da discriminação, no país do “homem cordial” (HOLANDA, 1995HOLANDA, S. B.. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.), aqui evidenciada na dificuldade de aceitar os diferentes (uma sociedade classista e racista?). Ainda utilizando a metáfora da cebola aplicada à instituição educativa, sua haste mais fina, bem no seu coração, representa os grupos de colegas. À falta da sua aceitação, o aluno “diferente” sofre impactos redutores do seu aproveitamento, como se sabe desde Coleman (1961)COLEMAN, J. S. The adolescent society: the social life of the teenager and its impact on education. New York: The Free Press of Glencoe, 1961., antes do seu relatório sobre igualdade de oportunidades. Outro obstáculo patenteado é o dos custos indiretos, isto é, o custo de materiais de estudo, deslocamento, alimentação etc. Assim, o Programa proporcionaria uma democratização pela metade? Tornaria os melhores frutos da árvore longe do alcance dos novos estudantes?

Caminhando pela mesma vereda da inclusão, a pesquisa seguinte situa em tela a transição da vida escolar para o trabalho, assunto muito presente na educação comparada, porém pouco estudado no Brasil. Trata-se de Programa educacional especializado para capacitação e inclusão no trabalho de pessoas com deficiência intelectual, de Annie Gomes Redig e Rosana Glat. Os casos estudados sugerem o quanto se precisa fazer para a inclusão no trabalho, como base para o protagonismo e a autonomia do chamado deficiente. Sem isso, a real integração fica prejudicada. A inclusão educacional é necessária, mas insuficiente para a inclusão social.

Ainda no caminho da inclusão, desta vez na educação profissional, Natália Gomes da Silva Figueiredo e Denise Medeiros Ribeiro Salles investigam Educação profissional e evasão escolar em contexto: motivos e reflexões. O tema, essencial diante das perdas de estudantes, detecta aspectos internos e externos à instituição educacional. É verdade que tal forma de abandono representa perda de recursos financeiros, instalações, equipamentos, tempo e, sobretudo, pessoal, mas é antes a perda de vidas que poderiam ser mudadas. Destaca-se nos resultados a falta de informações mais adequadas sobre os cursos oferecidos, o que mostra a imprescindibilidade de enlaces entre as instituições e os potenciais estudantes. Isto lembra que se espera do ensino médio conhecimentos sobre o trabalho em geral, informação ocupacional e orientação para a carreira.

Seguimos adiante para a redução do divisor digital ou a inclusão digital. Adda Daniela Lima Figueiredo Echalar e Joana Peixoto, em Programa um computador por aluno: o acesso às tecnologias digitais como estratégia para a redução das desigualdades sociais, focalizam o Estado de Goiás. Suas conclusões mostram a complexidade de a escola abrir estas portas. São problemas administrativos, de instalações e de professores que precisam formar, se bem que não o façam, uma orquestra afinada. Ao contrário, os resultados são dissonantes. Desse modo, as autoras identificam objetivos ambiciosos de uma política pública, fragilmente embasados pela pesquisa. Estas contradições em face da realidade remetem novamente a Anísio e outros autores.

Ainda em diapasão similar, Maria Celeste Reis Fernando Souza oferece resultados de um grupo de adolescentes na escola de tempo integral. Baseada na rica fonte de Bernard Charlot, a autora intitulou o trabalho de Aprendizagens e tempo integral: entre a efetividade e o desejo, onde analisa convergências e divergências sobre a valorização de áreas curriculares e o aborrecimento dos adolescentes na escola. Sendo a escola de tempo integral no Brasil priorizada para populações socialmente menos favorecidas, cumpre que ela atinja os seus objetivos, inclusive ao prover currículos com sentido para quem aprende. Sem sentido e sem desejo, a aprendizagem fica prejudicada

Em prosseguimento, Claudio Rejane da Silva Dantas, Neusa Teresinha Massoni e Flávia Maria Teixeira dos Santos enfocam A avaliação no ensino de ciências naturais nos documentos oficiais e na literatura acadêmica: uma temática com muitas questões em aberto. Os autores detectam um nó estratégico, a avaliação conteudista dos discentes, refletindo a sombra de séculos passados. Mais uma vez deparando-se com a incongruência entre valores proclamados e vividos, este editorialista se pergunta se os professores tolerariam ser avaliados do mesmo modo como avaliam seus alunos.

Antonio Bolívar Botía, Katia Caballero Rodríguez e Marina García-Garnica nos apresentam Evaluación multidimensional del liderazgo pedagógico: claves para la mejoría escolar. O artigo apresenta a adaptação ao espanhol do instrumento VAL-ED, para avaliar a liderança pedagógica da direção escolar. Constatam a carência de capacidade e competências para a configuração da escola secundária como comunidade de aprendizagem, centrada na aprendizagem do aluno. Como a história da educação traça as dificuldades de deslocar o eixo de gravidade do ensino para a aprendizagem! Mesmo a escola nova, que brotou sobretudo nos Estados Unidos, alcançou maior enraizamento na gestão que nos currículos. Se servisse de consolo, poderíamos escrever lá em Espanha como cá. Na América do Sul e outras regiões, a direção fica de tal modo retida na malha da burocracia que acaba por ser absorvida pelas rotinas exigidas de fora para dentro. O tempo para tarefas pedagógicas e as possibilidades de liderar são comprimidas pela hipernormatização e hiperburocratização da escola e do sistema educativo.

A seguir, Maria Cristina Gramani oferece seu contributo para as ciências da educação, já que estas constituem uma grande praça onde desembocam numerosas vias. Considerando que o Estado tem alcançado contínuos avanços, Análise dos determinantes de eficiência educacional do Estado do Ceará identifica variáveis intra e extraescolares relevantes a afetar o IDEB. Desse modo, os resultados salientam as variáveis renda, gasto per capita (na educação) e educação materna dos alunos. Todavia, o acesso ao esgoto sanitário pela escola é variável expressiva, associada a modestos resultados. Não pensaremos, claro, que a ligação ao esgoto melhoraria per se o IDEB, mas desvela a face da pobreza de escolas, comunidades e alunos, particularmente na área rural.

Este número conflui, afinal, para um tema controverso, a educação para a sexualidade, que cabe ler com atenção. João Casqueira Cardoso e Martha Peter Mwolo, em Assessment of non-formal sexual education strategies for adolescent girls: the case of Tanzania, tratam dos novos comportamentos da adolescência e juventude no processo de modernização, resultando em gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, inclusive HIV-Aids, além de longo cortejo de decorrências socioeconômicas, socioculturais e educacionais. Grande parte das escolas e fortes setores da sociedade da Tanzânia preferem aplicar a “lei do silêncio” a tais problemas, embora candentes. Com a cegueira da educação escolar, a questão transborda e se esparrama para as ONGs, ou seja, para a educação não formal. Anacrônica diante destes problemas de vida, a escola é substituída. Bela ocasião para examinar e debater a perspectiva de Durkheim (2002)DURKHEIM, E. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002., originalmente voltada para as mudanças sociais e pedagógicas na história de França. Uma indagação difícil que outros sociólogos fazem é: sendo pouco significativa, deixando tantas lacunas, a instituição escolar, hoje em declínio conforme Dubet (2002)DUBET, F. Le déclin de l’institution. Paris: Du Seuil, 2002. e outros sociólogos, poderia desaparecer, ao menos como é hoje? O caso da Tanzânia dá o que refletir e indagar sobre o Brasil, a América Latina e o Caribe. Não adianta o escapismo de que é lá na África.

Assim, sem se centrar num tema, esta revista não é errática, costuram-se artigos com muito a oferecer. Quem a lê é desafiado a refletir, anotar e resenhar os artigos, cada um deles tijolo na construção da ciência, que não tem limites para extensão e aprofundamento. Pensamos enquanto os artigos espelham angústias da nossa época e do nosso espaço. Anotação indispensável concerne ao admirável talento de pesquisadores no sentido de baixar os custos das pesquisas, recortando realidades significativas e, corajosamente, seguir em frente. São tempos de recessão, mas, recuando um pouco no tempo, antes foi tão diferente? Continuam a faltar financiamento e outras condições, para a academia elaborar investigações mais amplas. A ciência não pode ficar exclusivamente a cargo de pesquisadores, individuais ou em pequenos grupos, com modestos recursos, frequentemente assoberbados de tarefas, em instituições que mal cobrem, quando cobrem, o dilatado tempo compatível com pesquisas sérias. Ainda assim, os trabalhos em tela revelam persistência e esperança, horizontes morais da atuação dos autores.

Mesmo com estas pedras no caminho, autores são autores, sejam pesquisadores ou artistas, com minúsculas diferenças. E periódicos, em simbiose com eles, veiculam suas obras acima de números, escalas e ordenações mais ou menos avaliativas. Por isso, convém dar a palavra a um escultor policromático de palavras, Alberto Caieiro, heterônimo exteriorizado por Fernando Pessoa (2017)PESSOA, F. Da mais alta janela da m[inha] casa : [1º v.]. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, [1914]. Disponível em: <http://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/obras/bn-acpc-e-e3/bn-acpc-e-e3_item308/index.html>. Acesso em: 28 mar. 2017.
http://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/obr...
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Flor, colheu-me o meu destino para os olhos. Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas. Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.

Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. Murcha a flor e o seu pó dura para sempre. Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Cândido Alberto da Costa Gomes
Editor Associado

Referências

  • COLEMAN, J. S. The adolescent society: the social life of the teenager and its impact on education. New York: The Free Press of Glencoe, 1961.
  • DUBET, F. Le déclin de l’institution. Paris: Du Seuil, 2002.
  • DURKHEIM, E. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.
  • HOLANDA, S. B.. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • PESSOA, F. Da mais alta janela da m[inha] casa : [1º v.]. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, [1914]. Disponível em: <http://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/obras/bn-acpc-e-e3/bn-acpc-e-e3_item308/index.html> Acesso em: 28 mar. 2017.
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  • ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
  • TEIXEIRA, A. Valores proclamados e valores reais nas instituições escolares brasileiras. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 37, n. 86, p. 59-79, abr./jun. 1962.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017
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