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“Conhecimento, ignorância, mistério”

O que nos reserva o número 105 desta revista? Uma multiplicidade de temas e abordagens teóricas e metodológicas, em número bem internacionalizado, a lembrar a riqueza da sociodiversidade, termo cunhado por Morin (2018)MORIN, E. Connaissance ignorance mystère. Paris: Arhème Fayard Pluriel, 2018. . O mesmo filósofo contemplou-nos com um testamento científico e poético em vida, cujo título ousamos atribuir a este editorial. Em torno de todas as contribuições intelectuais, estabelece-se o ciclo interminável do conhecimento, ignorância e mistério. Declara o autor que, paradoxalmente, descobrimos o desconhecido no interior do conhecido e do cognoscente. Quanto mais conhecemos, como na elaboração e leitura dos artigos deste número, mais nos deparamos com interrogações, com a nebulosidade do que não se conhece. Assim, conclui-se, quem pensa saber muito, pode embriagar-se com a esperada imensidão, quando, de fato, ignoramos muito mais e se nos impõem densos mistérios a desvendar. Somos grãos de poeira cósmica diante do infinito, cujo restrito conhecimento nos recomenda a humildade, em vez das vaidades e competições, acadêmicas e não acadêmicas. Nesta relação circular do avanço do conhecimento, das descobertas de limites e da percepção do mistério, escreve Morin, depara-se o mistério. Ou tudo o que se elucida (palavra originada de luz ) se torna obscuro, sem cessar de elucidar-se.

Neste e no ano passado, além de Morin, pelos menos dois destacados filósofos franceses nos deixaram testamentos em forma de opúsculos: Serres (2019)SERRES, M. Morales espiègles. Paris: Le Pommier, 2019. e D’Ormesson (2018)D’ORMESSON, J. Un hosanna sans fin. Paris: Héloïse d’Ormesson, 2018. . Com a sua fé no futuro, Serres escreve sobre a moral: contrapõe a obediência absoluta à desobediência. Como homem que comeu a maçã, confessa que desobedeceu (e obedeceu) durante toda a sua vida. Se não o fizesse, supomos, não teria aberto caminhos novos. “Que é a cultura? O que permite ao homem de cultura não esmagar ninguém sob o peso da sua cultura” ( SERRES, 2019SERRES, M. Morales espiègles. Paris: Le Pommier, 2019. , p. 27).

Por sua vez, D’Ormesson (2018)D’ORMESSON, J. Un hosanna sans fin. Paris: Héloïse d’Ormesson, 2018. , agnóstico, trata da importância da ciência. Nos nossos universo e história, no próprio corpo, tudo o que sabemos ao certo é a ciência que nos ensina. A ciência reina e nada a deterá, entretanto, ela nada pode dizer sobre o que mais nos importa, talvez mais que o próprio amor: que se passa após a morte? Qual o nosso destino na eternidade? Se o universo nasceu com o big bang, que havia antes? Por que o big bang? O laço entre as duas pontas, o princípio e o fim, não se ata, ambas mergulham nas trevas do desconhecimento.

Temas tão diversos nos colocam diante do brilho e das limitações da ciência, retornando à humildade do ciclo morineano de conhecer, ignorar e deparar-se com o mistério. Quanto mais espreitamos, mais estrelas distantes cintilam. Assim, toda vaidade é vã, todo radicalismo é estéril, toda singularidade é pobre.

Que estas reflexões têm a ver com os artigos deste número? Todos encerram grandes talentos, utilizados para desvendar mistérios, a partir dos quais se desdobram outros, a conhecer. Em suas diversas nesgas de observação, sucedem-se com foco em diversos, aspectos da realidade internacional. Começamos por um trabalho que explora os elos entre ideologias e ciência, como o desejo de uma “escola sem partido”, na família das longas discussões sobre neutralidade: D. Quixote contra os moinhos: um ensaio sobre o movimento escola sem partido, por Tiago Ribeiro Santos e Gicele Maria Cervi, abre o debate, remetendo ao que Bourdieu chamou de paradigma de D. Quixote, ou a expressão subjetiva anacrônica à realidade objetiva.

Segue-se a Educação profissional no Brasil – expansão para quem?, de Guilherme Lins Magalhães e Remi Castioni. Seu foco é a ampliação da Rede Federal de Escolas Técnicas desde 2007. Cunhamos conceitos novos, criamos Institutos Federais, mas parece que o arcaico aparece subjacente ao novo. Nota-se que aqueles Institutos seguem o prestigioso modelo acadêmico da universidade, enquanto numerosos alunos utilizam o ensino técnico como propedêutico para as universidades federais. Velhas aflições dos legisladores, encontradas também na Coreia do Sul e em Portugal, entre outros. E então indagamos: por que na Suíça e Finlândia universidades politécnicas sofrem atrações, mas não se desviam? A ilustrar Morin, o artigo apresenta constatações, embora o mistério esteja nelas embutido.

Em prosseguimento, aparece Other people’s voices: a reflective inquiry into power and voice within the classroom and the implications of researching one’s own practice, de autoria de Melanie Santamaria e Gordon Ade-Ojo. O estudo de caso piloto explora o poder e a voz (como o silêncio) nas interações de um pequeno grupo em sala de aula, ao mesmo tempo que as implicações de pesquisar a prática do professor, constituído simultaneamente como pesquisador. Ambas as explorações são muito relevantes, tanto a primeira na sociologia dos pequenos grupos, como a investigação do próprio professor, fulcro para a autocrítica e o aperfeiçoamento.

Os leitores passamos para Alfabetização e letramento nas políticas públicas: convergências e divergências com a Base Nacional Curricular Comum, de Ieda Pertuzzatti e Ivo Dickman. A análise documental e de conteúdo das políticas públicas referentes ao chamado primeiro ciclo do ensino fundamental (do primeiro ao terceiro ano) encontra divergências que, cabe lembrar, patenteiam relações de poder ao longo do tempo.

Logo voltamos à educação profissional, esta esfinge a decifrar, com Avaliação da implementação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), de Thiago da Silva Laurentino e Jomária da Mata de Lima Alloufa. O estudo de caso do Município de Picuí, na Paraíba, analisa a implantação do Instituto Federal, na visão dos gestores. Consideramos que várias fragilidades indicadas se repetem no Brasil e noutras latitudes quanto à implementação de políticas públicas. Bom seria que avaliações como esta fossem previstas nos projetos e financiadas. Verdadeiras avaliações, não rituais burocráticos.

Outro nó górdio da educação constitui o alvo de Factores de calidad determinantes de la formación práctica de los estudiantes de educación, por Sara Serrate González, Sonia Casillas Martín e Marcos Cabeza González. Podemos puxar um fio para relacioná-lo com Other people’s voices... , quanto à pesquisa do professor sobre a sua própria prática. Muito útil e de ampla abrangência, identifica fatores determinantes da formação prática de qualidade na experiência do Practicum de Pedagogia em Espanha (cf. ANDRÉ, 2008ANDRE, M. Avaliação revela impacto de um programa de formação de professores. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro , v. 16, n. 58, p. 149-68, mar. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362008000100010
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362008...
; ROLDÃO; LEITE, 2012ROLDAO, M.; LEITE, T. O processo de desenvolvimento profissional visto pelos professores mentores. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação , Rio de Janeiro , v. 20, n. 76, p. 481-502, set. 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362012000300004
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362012...
).

A seguir, vem O trabalho educativo entre metas e produtividade: o acordo de resultados em Minas Gerais, de Abelardo Bento Araujo. A pesquisa qualitativa com profissionais da educação versa sobre o Acordo de Resultados do Sistema Mineiro de Avaliação e Equidade da Educação Pública. O leitor poderá fazer os seus juízos ante vantagens e limites de conceitos como o de produtividade escolar, formas de controle do trabalho educativo e práticas curriculares, enfim, sobre novos moldes preconizados para obter resultados educativos.

Prossegue este número com Environmental education program in Ecuador: theory, practice, and public policies to face global change in the Anthropocene, por Fander Falconí Benítez, Mónica Elizabeth Remoso Paredes, Javier Collado-Ruano, Edwin Fernando Hidalgo Terán e Gelson David León Ibarra. Longe de serem um exotismo, os direitos da natureza, inscritos na Constituição do Equador, representam um capítulo contemporâneo do Direito e da filosofia. Como tais direitos não se respeitam sem formar valores e atitudes, o país estabeleceu um programa educacional, Tierra de Todos, que importa analisar.

Num capítulo novo da gestão educativa para numerosos países, trata-se da educação infantil no Chile, em expansão recente. La gestión de los centros de educación parvularia en la región del Maule (Chile): visiones desde la práctica educativa, por Nibaldo Benavides-Moreno, Sebastián Donoso-Díaz, Daniel Reyes Araya e Tomás Neira Nurieta, por meio de pesquisa exploratório-qualitatativa, identifica os obstáculos mais importantes na opinião de diretoras e educadores. Não é preciso encarecer a sua relevância, já que a educação da primeira infância foi erigida como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Por fim, A qualidade da mobilidade de estudantes de graduação no “Ciência sem Fronteiras”, de Caterine Fagundes, Maria Beatriz Luce e Paloma Dias Silveira, expõe uma pesquisa quali-quantitativa sobre o programa em tela. Toma como dados as percepções dos estudantes depois da sua experiência, constituindo, assim, mais um fértil exemplo de como a avaliação serve às políticas públicas.

Ao terminarmos esta apresentação, remetemos às possibilidades e limites da ciência, tal como perspectivado pelos filósofos antes citados: as nuvens do mistério, a inesgotabilidade do conhecimento, as questões vitais a que a ciência (ainda?) não pode responder, as perspectivas positivas de futuro, em contraste com os idosos saudosistas (ah, como era bom!). A questão da objetividade, tema do primeiro artigo, remete às pós-verdades, aos “meus fatos”, em oposição aos “seus fatos”. A mentira há muito tem sido parte da paisagem humana, inclusive a mentira cínica e ostensiva como meio de persuasão. O teatro é máscara inerente à micro e macropolítica, como arte do disfarce. Relata-se que um sábio chinês indagava: Quando eu olho um gato, somos três: o gato, eu e o gato em mim . Como um gato, salvo evidência em contrário, não conversa, não troca nem discute ideias, não reflete sobre o cosmos, a interação humana é ainda mais complexa. Motivo para cautela com o que é, o que parece ser e o que se faz parecer ser.

Referências

  • ANDRE, M. Avaliação revela impacto de um programa de formação de professores. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro , v. 16, n. 58, p. 149-68, mar. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362008000100010
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362008000100010
  • D’ORMESSON, J. Un hosanna sans fin. Paris: Héloïse d’Ormesson, 2018.
  • MORIN, E. Connaissance ignorance mystère. Paris: Arhème Fayard Pluriel, 2018.
  • ROLDAO, M.; LEITE, T. O processo de desenvolvimento profissional visto pelos professores mentores. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação , Rio de Janeiro , v. 20, n. 76, p. 481-502, set. 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362012000300004
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362012000300004
  • SERRES, M. Morales espiègles. Paris: Le Pommier, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019
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