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Piaget: do egocentrismo (História de um conceito)

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Piaget: do egocentrismo (História de um conceito)

Jair Fonzar

Doutor em Filosofia da Educação Professor Titular do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da UFPR

I - INTRODUÇÃO

No ano de 1923 Jean Piaget pôs no prelo quatro trabalhos científicos que tiveram todos uma origem comum - as pesqui sas levadas a termo por ele e por uma equipe de colaboradores na antiga "Maison des Petits" do então Instituto J.-J. Rousseau, em Genebra. Pesquisas essas realizadas no correr do ano letivo europeu de 1921-1922 e que tiveram por objeto as crianças das Classes Primárias e da Escola Maternal ligadas àquele Instituto.

Interessado em desvendar os mistérios que envolvem o processo do conhecimento humano e não satisfeito com as teorias explicativas então correntes, o jovem Piaget se lança à execução de ambicioso projeto que o haveria de absorver e o seu sempre numeroso e variado grupo de pesquisadores pelo espaço de quase sessenta anos de trabalho intenso e pertinaz.

Estas pesquisas, realizadas segundo o método do exame clínico, muito explorado pela Escola de Genebra, faziam parte de um projeto maior que ele tinha em mente. Por isso, como adverte o próprio Piaget, elas se atêm à apresentação de fatos mais do que propriamente de deduções que poderiam ultrapassar as fronteiras da psicologia da criança. Em vez de generalizações teóricas, busquem-se então nessas primeiras experiências, acima de tudo, fatos.

Dada a complexidade do problema que se pretendia resolver e tendo-se em vista a variedade de interesses resultantes das próprias pesquisas, cada um dos trabalhos, embora procedentes da mesma fonte, ressaltou um aspecto diferente do processo do conhecimento infantil. A ordem cronológica das publicações em questão é a seguinte:

a) Sur un caractère frappant du langage enfantin, abril de 1923 (J. Piaget/V. Chatenay, 1923a);

b) La pensée symbolique et la pensée de l'enfant, maio de 1923 (J. Piaget, 1923b);

c) Le langage et la pensée chez l'enfant, 1923, porém depois do mês de maio, como no-lo fazem saber referências contidas no artigo anterior, publicado no mês de maio (J. Piaget, 1923c);

d) Le jugement et le raisonnement chez l'enfant, 1924, não obstante ter sido preparado e posto no prelo no ano anterior (J. Piaget, 1924).

Se diversos são os problemas importantes tratados nessas publicações, a um deles Piaget deu especial ênfase, pois mais que outros lhe pareceu fundamental para a compreensão dos mecanismos do conhecimento infantil, objetivo dominante em torno do qual tudo o mais deveria girar. Esse problema ou fenômeno é o que se manifesta no linguajar da criança de 2-3 a 7-8 anos de idade e ao qual os autores da primeira públicação convencionaram em chamar de egocentrismo, termo que passou a ter um significado diferente daquele que até então lhe era comumente atribuído.

Uma vez constatado o fenômeno, Piaget percebeu logo a sua importância para uma correta compreensão da evolução psicogenética do conhecimento infantil. Daí o destaque que o problema passou a merecer dentro da teoria piagetiana. Pode-se afirmar que de 1923 a 1980, ano da morte de Piaget, duma forma ou doutra o tema egocentrismo não mais cessou de estar presente ao seu pensamento, de tal forma a compreensão do fenômeno se tornou indispensável à compreensão de sua teoria.

Pelas consequências que pode ter, o egocentrismo infantil é problema que interessa não só a psicológos, mas também a pedagogos a quem Piaget dedica especialmente a pesquisa, não sem uma espécie de desafio, desejoso de ver confirmadas, na prática, as conclusões a que ele e sua equipe de trabalho haviam chegado. (Piaget, 1923c, "Avant-Propos").

Circunstância especial me levou, em artigo anterior(l), a reapreciar a primeira publicação piagetiana sobre o egocentrismo infantil; publicação essa co-assinada por Jean Piaget e Valentine Chatenay, nome de solteira daquela que, naquele mesmo ano de 1923, passaria a assinar Madame Valentine Jean Piaget.

Dos dois autores do primeiro artigo, um ficou mais ou menos na penumbra, foi Valentine Chatenay. Se Piaget, mais tarde, qualificou a sua esposa de "fiel colaboradora" (Piaget, 1950a), tal cooperação se deveu mais a esse tipo de ajuda anônima, porém perseverante das esposas dedicadas, do que propriamente ao número de trabalhos co-assinados, por ambos. É verdade que a colaboração científica de Mme Valentine Jean Piaget não se limitou ao artigo ao qual aqui se faz referência, nem só ao capítulo do qual o citado artigo é um pequeno extrato(2). Em nu merosos trabalhos do psicólogo de Genebra, que constituem capítulos de alguns de seus livros, o nome da esposa reaparece como participante da pesquisa, porém sem aquele realce que teve por ocasião da primeira publicação. Daí o porquê de ter passado ela, diferentemente de uma Alina Szeminska ou de uma Bärbel Inhelder, quase como desconhecida do mundo científico. E no entanto, sua participação, se não tivesse ido além desse primeiro trabalho de apenas 8 páginas, teria ainda assim merecido a gratidão da ciência.

II - INTERESSE DA PESQUISA

Realmente o problema estudado na primeira publicação mereceu destaque dentro do projeto maior traçado por Piaget. O a que Piaget se propunha, desenvolvendo pesquisas desse teor, era desvendar os mistérios da lógica da criança, muito especialmente a gênese e evolução do conhecimento infantil. Explicada a epistemologia genética na idade infantil, estaria aberto o caminho para a compreensão do processo do conhecimento do homem na idade adulta. Interesse, convém lembrar, que animava já a psicologia da época.

Mas a psicologia não haveria de ser, no entanto, a única beneficiada com estudos dessa natureza. As conclusões daí tiradas teriam também repercussão nas áreas da filosofia e da lingüística, da sociologia e da educação, da religião e da moral (na medida em que se pode falar de moral a uma criança de 2-3 a 7-8 anos de idade).

Porém, a denominação de egocentrismo dada ao fenômeno de linguagem observado nas experiências acima referidas, se comprovou equívoca. Daí os malentendidos e as polêmicas a que deu origem. O próprio Piaget terá de se penitenciar repetidas vezes da impropriedade do termo que só escolheu, disse, na falta de outro mais adequado que exprimisse com clareza o novo significado que se pretendia, então, transmitir (Piaget, 1931/1933, e 1950a, IVa. Parte).

De fato, apenas lançado, o novo conceito suscitou arrepios e opiniões adversas, provocadas em parte pelo que o vocábulo continha de equívoco, tendo-se em conta a sua significação corrente e já consagrada pelo uso. No entanto, desde o primeiro momento Piaget viu o fenômeno não apenas como hipótese, mas como expressão dum processo psicológico mais profundo, como realidade verificável, não obstante as áreas obscuras de que ainda continuava cercado.

Se a proclamada descoberta psicológica, expressa no termo egocentrismo, trouxe reputação a Piaget já em 1923, a verdade é que termo e descoberta passaram a ser um inegável obstáculo para a boa compreensão de suas obras e trabalhos posteriores, conforme testemunha, em horas de debate, Bärbel Inhelder (1960, p. 195).

III - EGOCENTRISMO: DEFINIÇÃO E REDEFINIÇÕES

Além dos cursos universitários ministrados regularmente, das pesquisas de campo, dos congressos e conferências, da direção de instituições de renome mundial, de um sem-número de artigos publicados, das coleções que orientou e das quais foi sempre o principal colaborador, etc., de 1918 a 1980 Piaget assinou nada menos de 48 títulos publicados em 50 volumes, deixando outros inéditos dos quais alguns já apareceram em edições póstumas. Uma cabeça que não sabia pensar sem a caneta na mão (Gruber/Vonèche, 1977, p. XVIII). Esta sobrecarga de trabalho não lhe deixava, no entanto, tempo suficiente para aprimorar conceitos. Para quem se impôs, como ele, escrever diariamente quatro páginas de ciência (e seus amigos mais íntimos dizem que escrevia cinco e até mais!), a clareza das idéias tinha mesmo de sofrer prejuízos. Piaget é um pensador obscuro. Pierre Bovet (1932, p. 76) já o havia sentido. Seu cérebro trabalhava em forma de espiral ou, se se prefirir, em forma de círculos concêntricos, o que o levava a retomar um mesmo tema e muitas vezes em trabalhos sucessivos. A partir duma idéia central, outras idéias são desenvolvidas em torno daquela com uma indisfarçada preocupação de completar e de ajustar pontos de vista. Isto levou Piaget a se tornar um dos principais "revisionistas de Piaget", como dizia de si mesmo (B. Inhelder/H. H. Chipman, 1976, p. 11 e B. Inhelder/R. Garcia/J. Vonèche, 1977, pp. 5-6).

À semelhança de outras teorias piagetianas, a do egocentrismo também se tornou para ele objeto de inúmeras reconsiderações, dadas as dúvidas e discordâncias que suscitou e que obrigaram o seu autor a se exprimir com mais clareza. É esta clareza maior que se procura no conceito que tanta polêmica gerou. Um conceito que fez história.

No primeiro artigo, publicado em 1923 em L'Éducateur, Jean Piaget e sua colaboradora apresentam simplesmente a pesquisa realizada, descrevem a técnica empregada e frisam o resultado geral a que chegaram. Verificam, surpresos, que a linguagem da criança de 6 e 7 anos de idade é ainda uma linguagem em boa parte voltada para a própria criança que não se preocupa em se fazer entender. Que parece não ter necessidade de interlocutor. Esse modo de expressão do pensamento infantil é logo etiquetado de egocentrismo pelos autores da pesquisa, que não cuidam ainda de precisar melhor o conceito. Linguagem vaga: imprecisão nos qualificativos e pronomes usados; alusões a objetos supostamente conhecidos, pois a criança imagina estar sendo perfeitamente compreendida; linguagem que dispensa interlocutor porque é ainda em parte voltada para quem dela se serve; ausência de relações causais e lógicas, etc., eis algumas das primeiras notas da chamada linguagem egocêntrica ou do caráter egocêntrico do estilo infantil.

Num segundo artigo - La pensée symbolique et la pensée de Tenfant, publicado nos Archives de Psychologie da Universidade de Genebra, também em 1923(3), Piaget acrescenta ao tema egocentrismo algumas idéias não expressas ainda no trabalho anterior e esboça uma primeira definição do conceito que tanto lhe interessa:

"Pode-se designar pelo nome de

egocentrismo

do pensamento infantil essa característica intermediária entre o autismo integral constituído de devaneios incomunicáveis e a característica social da inteligência do adulto." (Piaget, 1923b, p. 284).

O texto citado, pelo que contém de vago, não chega ainda a diluir o que o conceito proposto contém de obscuro. Contudo, o contexto de que foi extraído permite ver certas aproximações existentes entre os fenômenos do autismo, do pensamento simbólico e do egocentrismo. Até determinado grau é nota comum aos três "a ausência de limites precisos entre o eu, ou o mundo das representações subjetivas, e o não-eu, ou o mundo das representações exteriores ou objetivas." (Piaget, 1923b, p. 285).

Mas o tema egocentrismo deveria ser retomado de maneira mais ampla no livro Le langage et la pensée chez l'enfant, publicado, como já se disse, no mesmo ano de 1923 e que tanta notoriedade deu ao seu autor.

O conceito de egocentrismo, até então corrente, exprimia julgamento de valores. Piaget inova e imprime ao vocábulo nova dimensão epistemológica. Doravante o termo egocentrismo deverá exprimir um estado de espírito típico do processo evolutivo do conhecimento da criança. O que antes se restringia a um problema ético, agora se transforma em problema gnoseológico, sem excluir, contudo, conseqüências de caráter moral, social, pedagógico, etc. A linguagem da criança é o instrumento normal através do qual se manifesta o fenômeno que, no fundo, é um problema de conhecimento e só secundariamente problema de linguagem, como só secundariamente é um problema social.

Na primeira edição do livro, Piaget, interessado ainda em fatos mais do que em definições, se preocupa pouco em teorizar. A obra é rica em verificações: ecolalia, monólogo individual e coletivo, sincretismo verbal, sincretismo de raciocínio e de compreensão, o fenômeno dos porquês infantis, etc., estes e outros problemas são anotados com cuidado ao longo das pesquisas feitas. A função do jogo ou brinquedo na linguagem e na comunicação social da criança; pensamento adaptado e não adaptado à realidade (dirigido e não dirigido ou autístico); limites de idade dentro dos quais o egocentrismo se manifesta de maneira ordinária; egocentrismo e explicação causai; egocentrismo e socialização do pensamento infantil, etc., são outros tantos dados assinalados pelo autor, porém assinalados acima de tudo como fatos que falavam por si mesmos e que, por conseguinte, dispensavam maiores explicações.

Por ter tido origem comum e por ter sido incubado ao mesmo tempo que os trabalhos já citados, o livro Le jugement et le raisonnement chez l'enfant (1924) é uma continuação das análises anteriores. A definição de egocentrismo obedece ainda à técnica descritiva. Aí a originalidade da estrutura intelectual da criança (p. 162) aparece com suas múltiplas peculiaridades que, de qualquer forma, contribuem para uma melhor compreensão do fenômeno central no qual têm origem. Uma vez que Piaget tem em mente um objetivo maior, qual seja o estudo do processo evolutivo do conhecimento infantil, outros problemas ligados à epistemologia genética lhe prendem a atenção de maneira particular. Fato dominante que é, o egocentrismo é invocado a todo momento, porém mais como explicação de outros problemas do que como fenômeno que precisa ser melhor conhecido. É na sua condição de fato dominante que ele vai influenciar e de certo modo explicar a não-necessidade que sente a criança de demonstrar o que quer que seja (pp. 21 e 31). A tomada de consciência (p. 118), os solilóquios freqüentes nessa idade (p. 163), a maneira individual de julgar (p. 173), a dificuldade que tem a criança de pouca idade de concentrar a atenção em objetos diferentes de si mesma (p. 175), a dificuldade de adaptação ao modo de pensar dos outros (p. 182), sua imaginação criadora e a força mágica que tem de transformar simples desejos em realidades (pp. 163 e 194), etc., tudo isto faz parte da estrutura intelectual infantil que não pode ser confundida com a estrutura intelectual da idade adulta. A inteligência adulta começa a aparecer naquela fase da evolução quando a criança principia a fazer distinção entre a realidade do seu eu e a realidade do mundo exterior (p. 195). Por isso Piaget insiste: o egocentrismo é fenômeno tipicamente intelectual (p. 201), embora se manifeste de formas variadas em outras áreas do comportamento infantil.

Em La représentation du monde chez l'enfant (1926) Piaget previne o leitor contra a dificuldade que o conceito pode oferecer a quem o deseja captar pela simples observação. Como chegar com facilidade a um conceito numa idade em que a criança não atingiu ainda o necessário grau de descentração, de forma a poder transmiti-lo com clareza? (pp. 9-10).

A par da insistencia sobre elementos anteriormente abordados, nessa obra o autor chama a atenção dos estudiosos para uma tríplice característica que acompanha o egocentrismo. A primeira é psicológica e se faz notar pela ausência de consciêcia do eu que, em diferentes graus, se confunde com a realidade do mundo. Como assinala Piaget, nessa fase "o real está impregnado de aderências do eu" (p. 141). A segunda tem caráter lógico: uma vez que a criança só percebe o universo orquestrado em torno do seu eu, faltar-lhe-ão critérios seguros para distinguir a verdade que consiste fundamentalmente no diálogo entre sujeito e objeto. A verdade é então, para ela, a sua verdade. Mas se a criança criou a sua verdade, é porque criou a sua realidade (p. 142). E aí aparece a terceira característica do egocentrismo, estreitamente ligada às duas anteriores. O mundo gnoseológico da criança é, pois, um mundo diferente do mundo do adulto. Seu universo ontológico, por falta da necessária diferenciação entre sujeito e objeto, tem pouco de comum com o universo ontológico do adulto. Não estando a criança ainda suficientemente instrumentalizada para perceber a diferença que vai entre o seu eu e o universo que a cerca, a sua verdade será forçosamente diferente da verdade do adulto.

Em La causalité physique chez l'enfant (1927), obra que não se reeditou mais, não obstante a boa aceitação que teve, Jean Piaget deixa em segundo plano o fenômeno psicológico de que se ocupou quase por inteiro em trabados anteriores. Nesta publicação outro é o interesse que o move, conforme no-lo revela o título da obra. Não obstante isto, sem a noção de egocentrismo algumas das conclusões a que chega não teriam suporte. Não é raro o conhecimento da criança se apresentar com características de um realismo que falta às vezes ao conhecimento do adulto. E isto se explicaria pelo fato de normalmente estar ela mais perto das "coisas". De outro lado, seu conhecimento está impregnado de criações subjetivas, internas (p. 316). Paradoxo? Esse subjetivismo, alimentado por um egocentrismo do qual o adulto já se libertou, desfigura o realismo infantil e impede a criança de ver as coisas como elas são e de lhes dar explicações causais satisfatórias. A criança é demasiadamente realista, para ser objetiva.

Em 1931, no Congresso Internacional da Infância, realizado em Paris, Piaget alinhava as idéias básicas que haverão de entrar, anos mais tarde, numa definição mais precisa de egocentrismo e que alimentarão suas obras imediatamente posteriores. Sua conferência sai publicada nos Anais do Congresso em 1933. É sobretudo nessa conferência que Piaget põe em realce o caráter essencialmente intelectual do egocentrismo, acreditando poder desfazer, assim, os "graves malentendidos" que o termo havia gerado (Piaget, 1931/1933, p. 279). Para se compreender a fundo a origem do fenômeno, frisa, faz-se mister ir procurá-la no terreno da inteligência e não mais no campo moral ou social, como era moda na época. E por mais estranho que pudesse parecer, o fenômeno era natural à criança que se encontra entre os 2 e os 8 anos de idade. A Piaget, nesse momento, o aspecto intelectual do egocentrismo parecia de tal forma nuclear que, a seu ver, era o único que podia oferecer interesse. Outras quaisquer manifestações seriam necessariamente decorrências do que havia nele de mais essencial, que é o seu caráter epistêmico (p. 287). Numa terceira definição Piaget procura, de fato, mostrar esse lado intelectual do egocentrismo que, segundo ele, consiste, de certa forma,

"num conjunto de atitudes pré-críticas e, conseqüentemente, pré-objetivas do conhecimento..." (Piaget, 1931/1933, p. 279).

Em 1932 Piaget lança Le jugement moral chez l'enfant, obra que de certo modo encerra o ciclo de pesquisas sobre o pensamento egocêntrico. A partir daí tudo serão definições, explicações e conclusões de um fato anteriormente verificado. A obra se presta a considerações de indiscutível valor pedagógico. Nela se confrontam os valores da Escola antiga e da Escola nova. E é ocioso dizer que esta, graças ao seu método próprio de trabalho, decorrência de uma visão psicológica mais conforme com as necessidades da criança e do jovem, leva a palma sobre a Escola tradicional. O método da Escola antiga, pelo que comporta de passivo e individualista, não só não facilita a evolução normal do conhecimento da criança, mas pode até prejudicar o seu desenvolvimento na medida em que favorece o egocentrismo que não encontra facilidade para o diálogo. O trabalho em equipe, o incentivo à iniciativa própria e criadora, o direcionamento para a reflexão e para a crítica, tais como preconizadas pela Escola nova, são fatores que vão pesar em favor do diálogo, da descentração e socialização do pensamento da criança, de redescoberta da realidade, da verdade, do desenvolvimento do conhecimento, enfim. Continuador de Claparède, admirador de Dewey, tendo convivido tantos anos com Pierre Bovet, com Adolphe Ferrière, com Robert Dottrens e outros pioneiros da Escola ativa, Piaget não podia deixar de saudar com simpatia um movimento pedagógico de tamanha envergadura e ao qual a sua teoria construtivista tinha tanto a oferecer.

Em Psychologie et Pédagogie Piaget enfeixa escritos de duas épocas: de 1965, a Primeira Parte, e de 1935 a Segunda. Nesta Segunda Parte dois temas estreitamente ligadcs ao egocentrismo atraem sobremaneira a atenção do autor desses escritos, cuja publicação conjunta data, aliás, de 1969. Referimo-nos à função onírica do jogo ou brinquedo infantil e à influência determinante do comportamento do adulto sobre o processo de desenvolvimento do pensamento da criança.

Depois de Claparède e de Ferrière é Piaget que se ocupa, com especial interesse, do tema psico-pedagógico do brinquedo infantil, tal como o havia feito Karl Groos cujas lições tanta aceitação tiveram na Escola de Genebra. É sobretudo no momento de brincar que a criança deixa perceber o lado egocêntrico do seu pensamento. Enquanto brinca, o universo perde para ela sua realidade objetiva para se transformar em sonho. A única realidade em torno da qual tudo continua girando é o eu da criança que brinca (p. 259). Nesse momento desaparecem as fronteiras entre corpo e meio ambiente, para triunfar, soberano, o eu da criança.

Quanto à influência que o corportamento das pessoas adultas pode exercer sobre o desenvolvimento do pensamento infantil, as conseqüências podem ser as menos desejáveis. Na família ou na escola a criança lem no adulto jm padrão de comportamento. Porque sabe tudo e porque age de maneira correta, para ela o adulto é autoridade a ser obedecida e modelo que deve ser imitado. Porém, se essa natura! autoridade do adulto, exorbita de seus limites, transforma-se então em autoritarismo demasiado pesado para a fragilidade dum ser em desenvolvimento como o é a criança. A convivência com o adulto, que devia ser para ela motivo de diálogo e de descentração do seu modo de pensar, transforma-se então em fator inibidor. Todo autoritarismo é obstáculo à reflexão e à crítica, caminhos naturais que deve percorrer o pensamento egocêntrico para chegar à consciência da reciprocidade, da objetividade do não-eu, da verdade, enfim .

Em La construction du réel chez Tenfant (1937) o jogo simbólico ou jogo de imaginação continua a despertar o interesse analítico de Piaget. À força quase mágica do jogo simbólico, o real objetivo é transformado ao belprazer do eu da criança, passando a constituir uma realidade subjetiva absolutamente 'ndividual e incomunicável (p. 318). É a fusão do cosmo no mundo imaginário da criança que tem como epicentro seu corpo, seu eu. Como ocorre nos primeiros meses de existência, quando criança, por falta de referenciais perceptivos objetivamente consolidados e coordenados num espaço coei ente, é incapaz de distinguir de sua atividade subjetiva o mundo exterior que a cerca, o seu mundo imaginário pode também chegar a um monismo psicológico em que o universo exterior se funde no seu eu mais íntimo. Entre este estado e o estado de dualidade ou descentração psicológica há todo um processo de desenvolvimento que não deixa de ser laborioso. É nas experiências repetidas que a criança vai encontrar condições para essa necessária descentração. As experiências, interiormente reelaboradas, lhe possibilitarão transformar a assimilação egocêntrica em adaptação ou ajustamento objetivo (p. 319), bem como estabelecer uma clara diferenciação entre o seu eu e o meio ambiente em que vive. Mas isto só ocorrerá à medida em que se definirem em seu conhecimento os objetos e a causalidade, o espaço e o tempo, quando "um universo coerente sucede ao caos das percepções egocêntricas iniciais", (p. 313). Só então se poderá falar em verdade lógica e ontológica, porque só então existirão objetos que se relacionarão com um sujeito. A bipolaridade sujeito-objeto se tornará possível a partir do momento em que o egocentrismo ceder lugar à tomada de consciência.

Forçado pela crítica, em La formation du symbole chez l'enfant (1945) Piaget dá um passo à frente e tenta esclarecer um pouco mais a noção que tanta polêmica vinha causando. Como na obra anterior, nesta ele volta a afirmar que a criança, em lugar de se adaptar à realidade objetiva, assimila-a em seu esquema de ação, porém deformando-a de acordo com o modo de operar desse mesmo esquema (pp. 300-301). E Piaget insiste em fazer ver que o egocentrismo leva, de modo inconsciente, à indissociação do subjetivo e do objetivo, do que resultará logicamente uma deformação da realidade. Com isto ele terá sublinhado de outro modo e uma vez mais os elementos essenciais de que se compõe o conceito em questão.

Mas em 1948 sai a 3.ª edição de Le langage et la pensée chez l'enfant, acrescida de um novo capítulo para onde foram transplantadas, com algumas modificações, as idéias defendidas dezessete anos antes no Congresso de Paris. Nesse capítulo, o segundo desta edição, Piaget volta a redefinir o em que consiste o fenômeno, confrontando elementos da significação usual do termo com os novos elementos gnoseológicos nele introduzidos. Até então, era corrente entender-se por egocentrismo a atitude psicológica que leva o indivíduo a se colocar, conscientemente, no centro de tudo. Para Piaget, ao contrário, no egocentrismo é precisamente este estado de consciência que falta ao sujeito. Redefine ele:

"denominamos egocentrismo à indiferenciação entre o ponto de vista próprio e o ponto de vista dos outros, ou entre a atividade própria e as transformações do objeto". (Piaget, 1948, p. 67,

nota)

Por um desequilíbrio entre assimilação e acomodação, a criança de 2-3 a 7-8 anos de idade é levada a fundir dois mundos bem distintos num só mundo que é ela mesma (p. 63). Fusão que se manifesta em graus diferentes conforme o período de idade em que a criança se encontre. Esse desequilíbrio, mais acentuado nos primeiros anos, vai se tornando menos sensível 9 medida que a criança consegue estabelecer diferenças entre o seu eu e o eu do outro, entre o seu mundo subjetivo e interior e o mundo objetivo e exterior que a cerca. Dessa bipolaridade gradualmente consciente entre o seu eu e o eu do outro surge para ela a necessidade de um interlocutor. É quando, pelo processo de descentração do seu pensamento, ela sai da fase dos solilóquios e monólogos para entrar na fase do diálogo. É quando o egocentrismo vai cedendo terreno à socialização. A criança se libera então parcialmente do ego para encontrar o alter, conforme assinala Piaget no curso que deu no Collège de France em 1942 e publicado em livro - La psychologie de rintelligence - em 1947.

Na sua Introduction à Pépistémologie génétique (3 vols., 1950b) o estudo comparado de dois tipos de atividade do sujeito, subjetiva e egocêntrica uma, e operatória a outra, pretende mostrar que enquanto esta aumenta de importância dentro do processo de desenvolvimento cognitivo da criança, aquela diminui, tendendo a desaparecer. A atividade egocêntrica, mais intensa nos primeiros anos, tende a diminuir e mesmo a desaparecer à medida em que se processa a descentração do pensamento operatório da criança (II, p. 69). Dentro duma perspectiva de desenvolvimento normal, uma cede lugar à outra. O eu inconsciente é substituído por um eu consciente, possibilitando-se assim a necessária diferenciação entre sujeito e objeto. É nessa fase que o ego encontra condições de dialogar com o alter. É então que se abre caminho para o desenvolvimento da inteligência como para a evolução de todo conhecimento científico (II, p. 138).

Porém, a particularidade mais saliente que o 3.º volume da obra nos oferece, com relação ao tema de que nos ocupamos, é o conceito de sociocentrismo, que outra coisa não é que um egocentrismo coletivo ou social. À semelhança do indivíduo que, voltado sobre si mesmo e sobre suas idéias, não distingue a realidade nem o ponto de vista dos outros, parcelas da sociedade (tribo, partido, classe social), pelo fato mesmo de adotar uma determinada ideologia, interpõe um obstáculo epistêmico entre a doutrina pela qual se orienta e outras verdades possíveis. Sobre o leque do termo ideologia inscreva-se todo corpo de idéias, capaz de influir sobre um determinado grupo social: ideologias cosmogónicas e teológicas, políticas e metafísicas, explicita Piaget (III, p. 241).

Embora a ciência não se reduza à técnica, existe entre ambas uma certa continuidade e relação que favorece o progresso do conhecimento. À ação da técnica, que visa resultados concretos e eficazes, a ciência acrescenta uma compreensão das relações já estabelecidas, mas pouco explicadas, entre sujeito e objeto. A ciência, graças à sua capacidade de interiorizar a ação, ultrapassa os simples limites da técnica para operar com cálculos, deduções e explicações, o que vem, de certo modo, prolongar e enriquecer os recursos da técnica. Porém, entre técnica e ciência se interpõe o obstáculo da ideologia. Obstáculo de caráter epistêmico que, como o egocentrismo sobre o indivíduo, vai atuar sobre o grupo social (classe, religião, partido) a modo de barreira que o impedirá de enxergar outras verdades que não aquelas pelas quais se guia. Para o sociocentrismo a única realidade é a realidade do grupo. A única verdade é a verdade do grupo social que se transforma num centro de referências e para o qual todo o universo deve convergir. Há nesse fenômeno social uma centração sobre o sujeito coletivo, como há no egocentrismo uma centração sobre o sujeito individual. Por maiores que sejam as diferenças de grau e conteúdo, não se pode negar que existe entre ambos os fenômenos um parentesco de estrutura que se opõe às operações descentradas da razão (III, p. 245).

Em seus Études sociologiques (1965a) Piaget retoma literalmente as considerações feitas quinze anos antes no 3.º volume de sua Introduction à l"épistémoiogie génétique.

Contrariamente a tudo o que se poderia esperar, por volta de 1950 o conceito de egocentrismo não tinha sido ainda inteiramente digerido pela comunidade de psicólogos, o que levou Piaget a se lamentar mais uma vez, e agora em sua Autobiographie (1950a), do inadequado do termo. Porém, o termo em si não foi o único obstáculo à boa compreensão do conceito: as explicações do fenômeno, dadas apressadamente por ele nos primeiros anos, eram por demais vagas para que pudessem evitar ulteriores malentendidos (Piaget, 1950a, p. 140). Em razão disso Piaget se sente obrigado a escrever, em 1951, mais um artigo - Pensée egocentrique et pensée sociocentrique - para, de certa forma, responder às críticas feitas ao conceito de egocentrismo por Henri Wallon. Nese artigo, em parte calcado sobre o § 6.º do capítulo XII do 3.º volume de sua Introduction à l'épistémologie génétique, Piaget volta a redefinir o fenômeno psicológico, outra vez ressaltando nele o que contém de inconsciente:

"o egocentrismo infantil é a confusão inconsciente do ponto de vista próprio com o ponto de vista dos outros." (Piaget, 1951, p. 39).

A inconsciência que leva o sujeito a confundir seu eu subjetivo com a realidade do mundo que o cerca é, de fato, elemento essencial no conceito de egocentrismo. Porque é inconsciente da dualidade sujeito-objeto, a criança confunde, no seu entendimento, uma coisa com outra. Ressaltando esse aspecto de inconsciência, Piaget torna mais clara a definição dada três anos antes, quando então pôs em relevo o caráter de indiferenciação do egocentrismo que não permite à criança estabelecer fronteiras claras entre o seu ponto de vista e o ponto de vista dos outros, entre a sua atividade interior e a realidade exterior do objeto (Piaget, 1948, p. 67, nota). Pelo fato de a criança de 2 a 8 anos de idade não dispor ainda de um mecanismo apropriado, não assimilará como convém as influências sociais externas. Em conseqüência, não chegará a conquistar nem a autonomia da própria pessoa, nem a estabelecer a reciprocidade característica das personalidades autônomas (p. 39).

Na obra De la logique de l'enfant à la logique de l'adolescent (1955), que tem como co-autora Bärbel Inhelder, aparece um aspecto novo do egocentrismo, desta vez não mais na idade infantil, mas na idade juvenil: é o colorido messiânico de que se pode revestir um egocentrismo tardio que leva jovens banhados de intelectualidade ou sinalizados por ideais sociais a se sentirem com vocação de reformadores. Reformadores da arte, da religião, da sociedade, etc. É nessa idade, que vai do buço à barba, que se concebem grandiosas obras literárias, revolucionários tratados de filosofia e de política, de religião e de moral. Obras quase sempre mortas no primeiro capítulo. É dentro desse quadro psicológico que Piaget interpreta as ambições de reformador de que se sentiu possuído quando ainda jovem imberbe, ocasião em que prometeu consagrar a vida à tarefa nada modesta de conciliar as verdades da fé com as verdades da ciência. Confissão autobiográfica documentada em seu livro de estréia - Recherche (1918) - que não teve reedição, e novamente mencionada em Sagesse et illusions de la philosophie (1965b).

Agastado contra os psicólogos que, ignorando muitas vezes o modo de proceder das ciências exatas, ainda se apegavam às significações correntes do termo, quando deviam discuti-lo em função das suas novas definições, Piaget com Inhelder em La Psychologie de l'enfant (1966), ao tratar do jogo simbólico, não mais o qualificará, como antes, de "egocêntrico", mas falará em simbolismo "centrado sobre o eu" (Piaget/lnhelder, 1966, p. 49, corpo e nota n.º 2). O circunlóquio que, na passagem citada, parecia destinado a substituir definitivamente o malfadado vocábulo egocentrismo e seu derivado, não terá, contudo, a preferência de Piaget, como se poderá ver nas suas obras publicadas depois de 1966.

L'Épistémologie génétique (1970) é cronologicamente a última obra de Piaget que abre um maior espaço ao problema do egocentrismo e na qual ele sintetiza muito do que já havia escrito em trabalhos anteriores.

Partindo de sua teoria construtivista do conhecimento, nesta obra Piaget sublinha a importância da ação como primeiro instrumento de interação entre sujeito e objeto. No processo de interação importa distinguir dois períodos que geneticamente se sucedem: o período das atividades sensório-motoras, anterior ao aparecimento da linguagem e a toda conceptualização representativa, e o período em que essas atividades se traduzem em pensamento e conceito. Até certo limite dentro do primeiro período, por falta de coordenação das ações, o adualismo sujeito-objeto é total, o que aliás já havia afirmado J. M. Baldwin. De egocentrismo radical é como Piaget qualifica essa fase em que a criança não só não é ainda capaz de estabelecer fronteira entre o seu mundo interior e o universo exterior, mas não chega mesmo a ter consciência do seu próprio corpo, embora faça dele o ponto de convergência de tudo o que o cerca. O diálogo sujeito-objeto começa a se estabelecer, é verdade, antes ainda da fase da inteligência representativa, entre o primeiro e segundo anos de vida quando, graças a uma incipiente descentração das ações, se opera no interior da criança a "revolução copernicana", assim chamada por Piaget para exprimir a importância da sucessão de duas fases que não podem ser confundidas.

Em virtude dessa descentração incoada o corpo deixa de ser o único ponto de referência para começar a ser percebido pela criança como um objeto que existe entre tantos outros. Mas tudo isto se opera de forma lenta e gradual. O que quer dizer que o adualismo inicial e radical é sucedido por um egocentrismo graduado que tende a ser tornar, como já se disse, menos acentuado à medida em que se vai firmando a fronteira entre o eu da criança e o universo exterior. É quando o seu eu subjetivo se abre para o universo objetivo. Quando a realidade começa a se distinguir do sonho. É a fase do diálogo entre sujeito e objeto. Porém, isto só ocorrerá de forma plena a partir dos 7-8 anos de idade. O desenvolvimento genético do conhecimento, tanto quanto do progresso da ciência dependerá sempre da maior ou menor clareza desse diálogo. Clareza que não será perfeita enquanto subsistirem resquícios de egocentrismo no pensamento desse animal racional, que é o homem.

IV - EGOCENTRISMO: MODALIDADES

Dada a importância essencial que passou a ter o aspecto intelectual para a compreensão do egocentrismo, outros aspectos do conceito anteriormente abordados por Piaget foram relegados a segundo plano, sobretudo a partir do momento em que eminentes psicólogos começaram a cobrar do Professor de Genebra melhores explicações do fenômeno por ele descrito. O próprio Piaget atribui certos malentendidos ao fato de haver ele se ocupado primeiro de aspectos secundários do problema e de só mais tarde ter-se aplicado ao que o fenômeno contém de mais essencial (Piaget, 1948, p. 68). Acuado pela crítica, ele faz então o que pode para se explicar. Chega mesmo a escrever que o egocentrismo epistêmico é, a seu ver, o único importante. Sendo assim, será tentativa inútil ir procurar o caráter específico do egocentrismo infantil no que ele contém de social ou moral, insiste Piaget. O egocentrismo é problema antes de tudo de conhecimento. Conseqüentemente sua origem é de ordem primeiramente intelectual (Piaget, 1931/1933, p. 279, e 1948, pp. 67-68).

Porém, o que é secundário pode também ter importância e às vezes não pequena. Originariamente de caráter intelectual, o egocentrismo não deixa, contudo, de ter reflexos sobre outras áreas da psicologia humana, que não devem passar despercebidas e das quais o fenômeno recebe diferentes qualificativos. Entre outras, na obra Oü va I education (1972) Piaget menciona uma diversidade de manifestações egocêntricas, comportando algumas delas sérias conseqüências para o desenvolvimento psicogenético da criança.

Se se desejasse, pois, vê-lo dividido segundo as suas diferenciações específicas, o egocentrismo apresentaria as seguintes modalidades: Egocentrismo - intelectual e afetivo; primitivo e refinado; verbal e não verbal; lógico e ontológico; individual e coletivo (sociocentrismo).

As razões da divisão se encontram ora na diversidade das áreas psíquicas sobre as quais incide mais acentuadamente o egocentrismo; ora no seu grau ou intensidade; ora no modo de se manifestar; ora na sua categoria lógica; ora no número de indivíduos em que o problema se manifesta.

Por ser ao mesmo tempo de caráter psicológico e comportamental e por ocorrer num período de idade em que a educação encontra condições as mais propícias, o egocentrismo infantil é tema que interessa igualmente à psicologia e à pedagogia. Não só a ordem das idéias (egocentrismo lógico), mas sobretudo a validade do conhecimento (egocentrismo ontológico) sofrerão graves prejuízos, quando condicionadas por um fenômeno subjetivo e inconsciente que não permite ao sujeito fazer a necessária distinção entre o seu eu e a realidade externa que o cerca. E, dentro duma perspectiva de desenvolvimento integral e harmônico, prejudicado o processo cognitivo, tudo o mais ficará comprometido. Basta imaginar as conseqüências que um egocentrismo acentuado e tardio poderá ter sobre os campos afetivo e moral, sobre os domínios da linguagem e da comunicação social (diálogo e cooperação), etc. Problemas que urgem tanto o psicológico quanto o educador.

Aceitação, discordâncias, reparos, dúvidas, interrogações?

A tese de Piaget suscitou as mais variadas reações da parte dos especialistas da psicologia infantil.

Em todo caso, a teoria piagetiana, que teve o mérito de inflamar os espíritos, historicamente permanece de pé, não obstante as polêmicas à que deu origem e que, diga-se em tempo, não desvaneceram de todo ainda.

Em que pese às controvérsias levantadas, passados tantos anos, importa saber se os educadores aceitaram, e até que ponto, o desafio a eles lançado pelo Professor de Genebra em 1923, quando os convidou a testar, na prática, a validade de uma teoria psicológica que, dada a área primordial a que se refere, haveria de ter conseqüências do maior interesse dentro do campo pedagógico.

Université de Genève, 1984.

V - NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Ver revista EDUCAR, Curitiba, 4(1):66-72, jan./jun. 1985.

(2) Comparar o artigo, publicado em L'Éducateur, com o capítulo III da 1.ª edição - IV da 3.ª edição - do livro Le langage et la pensée chez l'enfant.

(3) O artigo em referência, "com algumas modificações" nele introduzidas pelo próprio autor, é a comunicação apresentada por Piaget ao Vll.º Congresso Internacional de Psicologia, realizado em Berlim, em setembro de 1922. Como o título o dá a entender, a preocupação central de Piaget nesse trabalho é o estudo do pensamento simbólico. Porém, certas semelhanças deste fenômeno com o do egocentrismo levaram o autor a confrontrar os dois problemas, aproximando deles ainda um terceiro, o fenômeno do autismo, tal como o define Bleuler e que vinha merecendo a atenção de Piaget pelo menos desde 1918 (Piaget, 1918, p. 165). O problema do egocentrismo ocupa, no entanto, espaço reduzido no citado artigo.

VI - BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

a) De Jean Piaget:

1918 - Recherche. Lausanne, Édition La Concorde, 1918. 211 p.

1923a - (Em colab. com Valentine Chatenay) "Sur um caractère frappant du langage enfantin". L'Éducateur, Institut J.-J . Rosseau. Genebra, LIX, n.º 7, 7 de abril de 1923, pp. 97-104.

1923b - "La pensée symbolique et la pensée de l'enfant". Archives de Psychologie (Universidade de Genebra), XVII, n.º 72, maio de 1923, pp. 273-304.

1923c - Le langage et la pensée chez l'enfant. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1923. 319 p.

1924 - Le jugement et le raisonnement chez l'enfant. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1947. 204 p.

1926 - La représentation du monde chez l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France, 1972. 335 p.

1927 - La causalité physique chez l'enfant. Paris, Félix Alcan, 1927. 347 p.

1931/1933 - "Quelques remarques sur I egocentrisme de l'enfant". Compterendu du Congrès International de l'Enfance, Paris 1931. Paris, Fernand Nathan, 1933, pp. 279-287.

1932 - Le jugement moral chez l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France, 1969. 334 p.

1935/1965 - Psychologie et Pédagogie (Escritos de 2 épocas: 1935 e 1965). Paris, Denoël, 1969. 265 p.

1937 - La construction du réel chez l'enfant. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1977. 342 p.

1945 - La formation du symbole chez l'enfant. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1976. 310 p.

1947 - La psychologie de l'intelligence. Paris, Armand Colin, 1974. 212 p.

1948 - Le langage et la pensée chez l'enfant (3.8 edição revista e aumentada). Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1948. 214 p.

1950a - "Autobiographie" (as primeiras partes redigidas em 1950). Cahiers Vilfredo Pareto - Revue Européenne d'Histoire des Sciences Sociales, n.º 10. Genebra, Droz, 1966. pp. 129-159.

1950b - Introduction à l'Épîstémologie génétique (3 volumes). Paris, Presses Universitaires de France, 1950. I: 361 p.; II: 355 p.; III: 344 p.

1951 - "Pensée égocentrique et pensée sociocentrique". Cahiers Internationaux de Sociologie, X, pp. 34-49. Paris Édition Seuil, 1951.

1955 - (Em colab. com B. Inhelder) De la logique de l'enfant à la logique de l'adolescent. Paris, Presses Universitaires de France, 1955. 314 p.

1964 - Six études de psychologie. Genebra, Denoël/Gonthier, 1976. 189

1965a - Études sociologiques. Genebra, Droz, 1965. 204 p.

1965b - Sagesse et illusions de la philosophie. Paris, Presses Universitaires de France, 1965. 287 p.

1966 - (Em colab. com B. Inhelder) Psychologie de l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France (col. "Que sais-je"), 1982. 128 p.

1970 - L'Épistémologie génétique. Paris, Presses Universitaires de France, 1976. 127 p.

1972 - Où va l'éducation (Escritos de 2 épocas: 1948 e 1971). Paris, Denoël/Gonthier, 1972. 138 p.

b) De outros Autores:

1932 - BOVET, Pierre. Vingt ans de vie: L'Institut J.J. Rousseau de 1912 à 1932. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1932. 203 p.

1960 - TANNER, J.M./INHELDER, B. Entretiens sur le développement psycho-biologique de l'enfant, I, O.M.S., 1953. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1960. 255 p.

1976 - INHELDER, B./CHIPMAN, H.H. Piaget and his School: A Reader in Developmental Psychology. New York-Heildelberg-Berlim, Springer-Verlag, 1976. 301 p.

1977 - INHELDER, B./GARCIA, R./VONÈCHE, J. Épistémologie génétique et équilibration (Hommage à Jean Piaget). Neuchâtel-Paris-Montréal, Delachaux et Niestlé, 1977. 142 p.

1977 - GRUBER, H.E./VONÈCHE, J.J. The Essential Piaget. London and Henley, Routledge and Kegan Paul, 1977. XLII-881 p.

  • (1) Ver revista EDUCAR, Curitiba, 4(1):66-72, jan./jun. 1985.
  • (2) Comparar o artigo, publicado em L'Éducateur, com o capítulo III da 1.ª edição - IV da 3.ª edição - do livro Le langage et la pensée chez l'enfant.
  • 1918 - Recherche. Lausanne, Édition La Concorde, 1918. 211 p.
  • 1923a - (Em colab. com Valentine Chatenay) "Sur um caractère frappant du langage enfantin". L'Éducateur, Institut J.-J . Rosseau. Genebra, LIX, n.º 7, 7 de abril de 1923, pp. 97-104.
  • 1923b - "La pensée symbolique et la pensée de l'enfant". Archives de Psychologie (Universidade de Genebra), XVII, n.ş 72, maio de 1923, pp. 273-304.
  • 1923c - Le langage et la pensée chez l'enfant. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1923. 319 p.
  • 1924 - Le jugement et le raisonnement chez l'enfant. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1947. 204 p.
  • 1926 - La représentation du monde chez l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France, 1972. 335 p.
  • 1927 - La causalité physique chez l'enfant. Paris, Félix Alcan, 1927. 347 p.
  • 1931/1933 - "Quelques remarques sur I egocentrisme de l'enfant". Compterendu du Congrès International de l'Enfance, Paris 1931. Paris, Fernand Nathan, 1933, pp. 279-287.
  • 1932 - Le jugement moral chez l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France, 1969. 334 p.
  • 1935/1965 - Psychologie et Pédagogie (Escritos de 2 épocas: 1935 e 1965). Paris, Denoël, 1969. 265 p.
  • 1937 - La construction du réel chez l'enfant. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1977. 342 p.
  • 1945 - La formation du symbole chez l'enfant. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1976. 310 p.
  • 1947 - La psychologie de l'intelligence. Paris, Armand Colin, 1974. 212 p.
  • 1948 - Le langage et la pensée chez l'enfant (3.8 edição revista e aumentada). Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1948. 214 p.
  • 1950a - "Autobiographie" (as primeiras partes redigidas em 1950). Cahiers Vilfredo Pareto - Revue Européenne d'Histoire des Sciences Sociales, n.ş 10. Genebra, Droz, 1966. pp. 129-159.
  • 1950b - Introduction à l'Épîstémologie génétique (3 volumes). Paris, Presses Universitaires de France, 1950. I: 361 p.; II: 355 p.; III: 344 p.
  • 1951 - "Pensée égocentrique et pensée sociocentrique". Cahiers Internationaux de Sociologie, X, pp. 34-49. Paris Édition Seuil, 1951.
  • 1955 - (Em colab. com B. Inhelder) De la logique de l'enfant à la logique de l'adolescent. Paris, Presses Universitaires de France, 1955. 314 p.
  • 1964 - Six études de psychologie. Genebra, Denoël/Gonthier, 1976. 189
  • 1965a - Études sociologiques. Genebra, Droz, 1965. 204 p.
  • 1965b - Sagesse et illusions de la philosophie. Paris, Presses Universitaires de France, 1965. 287 p.
  • 1966 - (Em colab. com B. Inhelder) Psychologie de l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France (col. "Que sais-je"), 1982. 128 p.
  • 1970 - L'Épistémologie génétique. Paris, Presses Universitaires de France, 1976. 127 p.
  • 1972 - Où va l'éducation (Escritos de 2 épocas: 1948 e 1971). Paris, Denoël/Gonthier, 1972. 138 p.
  • 1932 - BOVET, Pierre. Vingt ans de vie: L'Institut J.J. Rousseau de 1912 à 1932. Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1932. 203 p.
  • 1960 - TANNER, J.M./INHELDER, B. Entretiens sur le développement psycho-biologique de l'enfant, I, O.M.S., 1953. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1960. 255 p.
  • 1976 - INHELDER, B./CHIPMAN, H.H. Piaget and his School: A Reader in Developmental Psychology. New York-Heildelberg-Berlim, Springer-Verlag, 1976. 301 p.
  • 1977 - INHELDER, B./GARCIA, R./VONÈCHE, J. Épistémologie génétique et équilibration (Hommage à Jean Piaget). Neuchâtel-Paris-Montréal, Delachaux et Niestlé, 1977. 142 p.
  • 1977 - GRUBER, H.E./VONÈCHE, J.J. The Essential Piaget. London and Henley, Routledge and Kegan Paul, 1977. XLII-881 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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