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Voltar ao passado, por quê?

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Voltar ao passado, por quê?

Rejane de Medeiros Cervi

Doutora em Educação Comparada, Professora Titular de Educação Comparada junto ao Setor de Educação da UFPR

A história da Universidade Federal do Paraná está em litígio, dadas as interpretações desenvolvidas pelos historiadores da educação nacional e o conflito que, a partir deles, se estabeleceu em relação à memória paranaense. Entendemos que este conflito deriva, em parte, da apreensão estrita da atitude oficialista do Governo Federal que alcançou nossa Instituição, em seus primórdios, e que repercute, sem exceção, nas chaves analíticas dos relatores do passado. São de todo desconhecidas as estratégias de sobrevivência institucional desenvolvidas localmente, o sabemos nós, os curitibanos. E, por isso mesmo, queremos acreditar que é preciso voltar ao passado para superar este litígio. Aliás, é também nossa crença que, mais do que isso, é útil voltar ao passado para reencontrar ideais perdidos, e revitalizar o compromisso institucional para com um futuro mais bem qualificado.

A nosso ver, um retorno sugestivo supõe uma visualização do processo evolutivo do ensino superior brasileiro no que concerne à definição política que abrigou a própria evolução da Universidade Federal do Paraná.

É o que veremos, esquematicamente.

O ensino superior no Brasil tem uma história recente. E isto vai se dar em função do próprio tratamento que a educação escolar recebeu nos primeiros trezentos anos, desde os tempos colonial e imperial. Ponto de resistência da política colonial lusitana, a educação brasileira se fez, do século 16 aos 18 sob uma condição de monopólio eclesiástico, tal como já vinha ocorrendo em outras nações do Velho Mundo.

Com referência ao ensino superior, convém lembrar, a rede universitária legada pelo período medieval estava integrada por dezenas de unidades católicas e foi aumentada desde o século 16, pela diversificação religiosa patrosinada pela Reforma. O próprio nascimento das Províncias Unidas calvinistas foi acompanhado pela criação de instituições universitárias.

No Brasil, no entanto, não se pode falar em formação superior senão na entrada do século 19, e, em universidade, senão na primeira década do século 20. As necessidades desta formação eram supridas na Europa, de preferência na Universidade de Coimbra.

Com a expulsão dos Jesuítas do Brasil, principais mediadores da ação educacional, e, a partir da transmigração da Família Real Portuguesa, para a Colônia, emergem cursos superiores e instituições educacionais e científicas, de caráter público e de sentido estritamente utilitário, centrados no eixo cortesão Rio-Bahia. Data do final da primeira década do século passado, a criação dos primeiros cursos (1808).

O vazio do ensino superior se arrasta durante o Império, apesar e em razão da intensa disputa política gerada em torno ao sediamento de universidades. Essa disputa se revela claramente no vai-e-vem de inúmeros ante-projetos de criação deste tipo de instituição, todos neutralizados a meio caminho.

Às vésperas da proclamação da República, esboçam-se reformas de ensino (Lei da Liberdade do Ensino, de Leôncio de Carvalho, 1879; Regulamento da Escola Normal do Município da Corte, 1880; Pareceres de Rui Barbosa sobre o ensino primário, secundário e superior, 1881-2; Reforma Visconde de Sabóia, na Faculdade de Medicina, 1884). O sentimento liberal impregna o começo da década de 80 e adensa a consciência republicana. Persiste o dispositivo da liberdade de ensino superior que integrou o primeiro artigo do projeto aprovado pela Comissão de Instrução Pública da Câmara dos Deputados, em 1882.

Todavia, por razões que sugerem mais investigação, o ensino superior brasileiro, em sua feição universitária, firmou-se como um caso nacional de descaso, até a virada do século. Entretanto, não deixaram de brotar iniciativas regionais, por efeito, inclusive, de uma descentralização político-administrativa conveniente (para o Governo Central) e de u'a mais marcada e sempre crescente preocupação moral e cultural expressa pela comunidade local.

É nesse contexto de motivação regional que se situa o sonho paranaense de Rocha Pombo que não ultrapassou, em sua concretização, os arranjos legais e planos formais de praxe. Há autores que aventuram registrar o lançamento de predra fundamental em terreno do antigo Largo, hoje reconhecido como Praça Ouvidor Pardinho.

Mas é só vinte anos mais tarde, sob a liderança de Victor Ferreira do Amaral (médico paranaense, rico e ilustrado) e de Nilo Cairo da Silva (o médico visionário e agilizador) que vai se consubstanciar uma iniciativa que leva à criação da Universidade do Paraná. A idéia de nossa Universidade ganha chão e se consolida graças ao clima de liberdade que pairava sobre a atividade educacional, à época regulada pelos termos da Reforma Rivadávia (1911).

Três anos ainda não haviam passado quando uma nova conjuntura política nacional, apoiada em reformas no campo social (na educação, a Reforma Carlos Maximiliano, de 1915) logra obstar a existência das universidades livres então existentes no País. É fácil admitir que a fórmula adotada para derrotá-las não foi de todo sofisticada. Era, mesmo, verdadeiramente simples: as instituições universitárias precisavam comprovar mais de cinco anos de instalação, precisavam estar sediadas em cidades com mais de cem mil habitantes e deviam mostrar solidez de patrimônio (a nova Constituição Brasileira, de 1988, revigora o critério da densidade populacional, no Parágrafo Único do Artigo 60 de suas Disposições Transitórias, para justificar a descentralização de cidades universitárias nos próximos dez anos).

Durante aproximadamente quatro anos, isto é, de 1915 a 1919, a Universidade do Paraná tentou, com todo o esforço, fazer reconhecer a sua força intelectual, pedagógica e material. E contava com um reforço político suplementar nada desprezível: o apoiamento dos governos estatual do Paraná e municipal de Curitiba manteve-se constante e à altura dos tempos de Carlos Cavalcanti, Presidente do Estado, e de Cândido de Abreu, Prefeito de Curitiba em 1912, quando de sua criação.

Na luta pela afirmação da Universidade do Paraná, censos foram reprisados até alcançar uma população significativa, que relacionava as cercanias: 65 mil habitantes, contados os vizinhos de Colombo. Duvidoso e insuficiente, este índice não alterou a ordem superior.

Malogrados os mais heróicos empenhos de professores e políticos, então, veio o rendimento. A Universidade do Paraná se entrega, artificiosamente, ao mando central, adotando a fórmula de João Ribeiro de Macedo Filho. Por ela, delineava-se o desdobramento da estrutura administrativa dos cursos existentes, passando a constituir, pelo seu reagrupamento, as três Faculdades - de Direito, Engenharia e Medicina.

A união dos propósitos institucionais ficou resguardada pelo modelo implantado de "federação de Faculdades" e na coesão do seu cotidiano. Nele, os estudantes dos distintos Cursos seguem o mesmo "vademecum", mas é preciso abrir Livros de Matrícula, em separado, para efeito da inspeção federal. Direito, Engenharia e Medicina partilham, ainda que desmembradas, de um teto comum - o Palácio das Luzes, também conhecido como o Palácio da Santos Andrade - e cooperam, extraformalmente, sob a mesma direção moral de Victor Ferreira do Amaral.

Passam-se três décadas e amadurece, politicamente, o processo de restauração da Universidade do Paraná. Estamos em 1946, e o mesmo Macedo Filho lidera o "empolgante acontecimento" (conforme dizeres da imprensa à época). Com o aval do Ministro Ernesto de Souza Campos, o Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, assina o decreto que equipara, oficialmente, esta Universidade.

No momento da equiparação, a nova estrutura da Universidade Federal do Paraná incorpora a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada em 1938 e mantida pela União Brasileira de Educação e Ensino. A Reitoria da Universidade restaurada passa a subvencionar parte do custeio do programa da Faculdade de Filosofia.

Morre Macedo Filho. Flávio Suplicy de Lacerda, reitor que o substitui, já não tem opositores tão renitentes à federalização da Universidade. Seu propósito converteu-se em obsessão e seu empenho está destituído do sentimento de perda com a entrega de todas as conquistas locais para um governo sabidamente tão distante. Recebe o apoio explícito do Governador do Estado Moisés Lupion. (E aqui, cabe uma observação intermediária. Somos partidários da hipótese de que a condição de "federal" não precisava, mas corroborou na "volta de costas" da Universidade do Paraná. Um exagero? A verdade é que a identidade da Universidade ficou estremecida e não é difícil identificar, na atualidade, quanto de esforço se faz na direção de uma ação de reciprocidade, articulação, colaboração, extensão... entre a Universidade e a esfera federal, por um lado, e entre a Universidade e o Estado do Paraná, por outro).

Da federalização para cá, isto é, desde 1950, a Universidade vem se reformulando sob a inspiração da política nacional. O poder central "banca" o ânimo institucional de cada dia e, quando não o faz, resta a mobilização corporativista para manter acesa a chama de propósitos vagos, cruzados e/ou extraviados no tempo.

A Universidade ensaia mudanças e progressos que não ocorrem. E, quando sim, eles são assimétricos e circunscritos a setores bem localizados. E mais. Sofre, na atualidade, o impacto da massificação social introduzida na década de 70 simultaneamente à retirada da primeira geração docente. Renovam-se os quadros em uma situação de descontrole e de curiosa contradição.

Nos anos 70, ao tentar corresponder ao estímulo desenvolvimentista, a Universidade incorporou (sem pensar?) alguns equívocos da solução reformista de 68, cujo efeito desintegrador se manisfestou na situação formativa e no meio estudantil, por exemplo. Realizou, entretanto, alguns milagres, inegáveis, no campo da investigação. Criou a sua pós-graduação, porta programática da alforria acadêmica, mas entrou no jogo egocêntrico institucional, patrocinador privilegiado da burocracia inócua e da alienação acadêmica e social.

A valer a concepção da Universidade, como o espaço, é nosso entendimento que o supracitado processo burocratizante que rege o cotidiano de dois mil professores e quase o dobro de funcionários (se contarmos os empreiteiros e o quadro da Fundação da Universidade do Paraná) não têm condições, sequer, de deslocar a política universitária e a prática acadêmica para uma projeção de ilusão necessária.

O nosso pessimismo não é infundado nem solitário, "desgraciadamente" (como diria o espanhol). A visão aterradora de um burocratismo reforçado pelo democratismo, pela ausência de coerência e excesso de arbitrariedade, praticado pelos maratonistas do poder, desafia as soluções socializadoras inteligentes, sem espaço porque sem berço.

Na depressão dos caos, de hoje, que valor tem a memória! No entanto, resta um alerta: o passado há de servir, de modo muito especial, menos para fazer sentir saudade e mais para advertir que a nossa vocação universitária encontra-se em ostensivo estado de extremado mau trato.

Para respirar, também, quem sabe, sentimentos virtuosos que alimentam as utopias e as lutas que lhe subjazem, como o ar da esperança de melhor servir à humanidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1988
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