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Aprovar todos ou reprovar alguns: eis a questão

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Aprovar todos ou reprovar alguns: eis a questão

Reny Maria Gregolin Guindaste

Professora do Departamento de Métodos e Técnicas da Educação, Universidade Federal do Paraná

O que pretendo fazer aqui é uma reflexão sobre a questão educacional que se resume no direito à continuidade do processo escola por 4 (quatro) anos, num único ciclo escolar. Primeiramente, passarei a uma interpretação da questão a partir do próprio texto do Decreto, válido para o Estado do Paraná, que institui o assunto.

Estão explícitos no Decreto nº 2325, de 25/05/93, alguns pontos básicos:

- compromisso com a democratização;

- garantia de acesso à escola;

- permanência da criança na escola;

- flexibilidade na organização escolar;

- riqueza de procedimentos para garantir o avanço cognitivo;

- repensar da avaliação enquanto "medida" para aprovação-reprovação;

- não retenção do aluno por 4 (quatro) anos num processo escolar contínuo.

Ao instituir o prolongamento do tempo de alfabetização inicial para 4 (quatro) anos, ampliando, portanto, o Ciclo Básico de Alfabetização, instituído no Estado, gradativamente, a partir de 1988, é preciso que seja amplamente entendido o conceito de alfabetização implícito no Decreto.

Não se trata de um conceito de alfabeitzação tradicional, restrito, cartilhesco, com a finalidade de informação de um código, de um mecanismo apenas para o conhecimento do código escrito, mas sim de um conceito de alfabetização amplo, no qual se pretende, ao longo de 4 (quatro) anos, ter como produto um aluno que saiba ler e compreender textos do passado e do presente, que saiba ler nas linhas e entrelinhas não apenas os textos "escolares", mas todo e qualquer texto em circulação na imprensa do momento.

Além dessa competência para compreensão da linguagem, e aqui entende-se a capacidade do aluno para "transitar" em textos de vários ramos da ciência, é esperado ao final de 4 (quatro) anos que este aluno saiba produzir por escrito, textos claros, coerentes, avaliativos, polêmicos, assumindo um ponto de vista, posicionando-se a favor dele, já com argumentos claros e dentro de certas convensões ortográficas e formais, em língua padrão, a língua de prestígio social aceita na escrita.

Explícito este conceito de alfabetização amplo, passo a confrontá-lo com os pontos básicos do decreto, anteriormente mencionados.

Dado o compromisso com a democratização e dadas as características da clientela de escola pública, sabemos que nem sempre as crianças que chegam à primeira série, tiveram iguais oportunidades de interiorização da cultura letrada. Umas já viram a escrita em casa, nas propagandas de rua, e outras nem sequer saber para que a escrita serve, nunca manusearam um livro, por exemplo.

Essas diferenças de experiências vividas obrigam à escola certa flexibilidade curricular, pois cabe a ela promover situações para interiorização do conhecimento, em forma de atividades interessantes e significativas, capazes de fazer a criança elaborar novas relações e novas reflexões, sem ansiedade, nem punição através de reprovação.

É a partir desse requisito que a criança permanecerá na escola, a qual lhe é dado acesso, e é essa riqueza de procedimentos, entendidos como procedimentos significativos, teoricamente embasdos, que garantirá o avanço cognitivo, o processo nas atividades acadêmicas.

A não retenção do aluno por 4 (quatro) anos consecutivos, é um modo de respeitá-lo eticamente como ser humano, respeitando suas possibilidades e capacidades.

Para isso a avaliação precisa ser repensada. O fato de se considerar a avaliação não mais uma "medida" de comportamento, mostra uma superação teórica do behaviorismo. Não faz, portanto, sentido a avaliação do aluno através de provas, a partir de conteúdos apenas memorizados e descontextualizados, com um valor x por questão, como um parâmetro julgador da vida do aluno.

A avaliação deve, então, diagnosticar ao professor quais os pontos em que o aluno precisa ser trabalhado. Assim, esta avaliação é um parâmetro para direcionar as atividades a serem propostas, estratégia esta permitida pela flexibilidade escolar.

Mas, para que se cumpra o estabelecido é preciso o cumprimento de alguns pontos. Conforme o próprio Decreto, é preciso que e estabeleçam, critérios e que sejam dadas as condições necessárias.

Esses critérios não podem ser critérios padronizados para a avaliação do aluno. Esta é uma questão relevante do assunto e mais necessária de ser repensada do que quando a retenção do aluno estava prevista, pois, se não houver avaliação para interferência no processo, o sucesso do "plano" está em risco.

Condições necessárias, sejam quais forem e como forem estabelecidas, dever ser concentradas no atendimento individual ao aluno que não conseguir progredir no processo escolar, por algum elemento humano na escola: o pedagogo, por exemplo.

Tendo feito essa considerações, a partir do Decreto, passarei a analisar alguns dados a fim de apontar alguns pontos sobre os quais precisamos refletir antes de implantar uma inovação na educação.

Em primeiro lugar, lembrarei que alguns estudos de caso, de crianças de ciclo básico de alfabetização, mostram o progresso dessas criança, fato esse constatado pelo critério de acompanhamento longitudinal. A significação crescente dos textos produzidos, evidenciam que a proposta pedagógica do Ciclo Básico, que acompanha o avanço de pesquisas recentes, na lingüística e ba psicologia, e que está explicitada e exemplificada em alguns Cadernos do Ensino Fundamental, tem vantagens significativas em relação ao ensino tradicional. (ver Cadernos do Ensino Fundamental, nº 2, Alfabetização & Parceria).

Mas, por outro lado, a avaliação do projeto pedagógico do Projeto Realidade, de Ponta Grossa, feito recentemente, mostra que a interiorização do discurso teórico e a oferta de cursos de capacitação não é suficiente para alterar o senso comum da tradição escolar, interiorizado em cada professor. (IPARDES, 1993, p.55-64).

Portanto, emerge outro ponto a ser refletido: a formação do docente o qual deve dominar a linguagem, saber produzir textos (para poder diagnosticar os problemas do texto do aluno) e tomar uma atitude científica diante de várias ciências.

A análise do Projeto Realidade no qual foram investidos esforços acadêmicos, busca de atualização e recursos financeiros, mostra-nos que o professor ainda não está apto a avaliar os textos das crianças nem encaminhar adequadamente a produção e reestruturação dos textos dos alunos.

Este professor faz recussitar o macanismo, as frases isoladas, o treinamento motor, a colagem, a silabação, a cartilha, apesar dos incessantes cursos de capacitação, com preocupação do repasse das tendências da pesquisa psicológica, educacional e lingüística.

Outro fato a ser mencionado em relação ao Projeto Realidade é que apesar da tentativa de superação do tradicional, a retenção do aluno da 1ª para a 2ª série fez com que os índices de reprovação continuassem altos, pois o encaminhamento da avaliação não superou o tradicional.

Para finalizar essa reflexão sobre o assunto da reprovação ou não da escola, examinarei, a seguir, dados coletados numa escola pública estadual de Curitiba. Trata-se do caso da aluna Vanessa, que já reprovou 3 (três) anos consecutivos a 1ª série e 2 (dois) anos a 2ª série.

O texto 1, abaixo, é um texto que a professora usou para ditado, uma atividade descontextualizada, sem finalidade para qualquer uso da linguagem.

Texto 1 - O MACACO NO FOGUETE (Ofélia Fontes).

Samba e Bamba são macacos. Macacos muito especiais. E moram num lugar muito especial, também.

Eles moram na "Base de Foguetes Céu Azul". Moram numa casinha branca. Eles olham pela janela para ver os foguetes... Zum!

Lá vão os foguetes!... Para o alto, para o alto, a caminho do céu!...

Os astronautas queriam levar os macacos para o espaço. Bamba não pôde subir no foguete, porque seu coração estava fraco.

Então os astronautas levaram Samba no foguete.

Samba gostou muito da viagem e disse que, da próxima vez ele gostaria de ir à Lua.

Ctba, 22/06/93

Eis o que Vanessa escreveu.

Texto 2 -

Curitiba, 22 de junho de 1993

Ditado - "O MACACO NO FOGUETE" - (Ofélia Fontes)

-Seba e bolo. soú. macaco. macacos muito epesinho, e um preto. e. pésinho teba.

- Eles morro no "base do foguete céu". morro uma casinha boca.

Eles onho pela janela para ve sou foguete...ZUM! lave-se o foguete?... para o cão para o car, acaninho de céu?...

- Soa aponda queri leva sou. macacos. para o four.

- bolo. na siba no foguete. oro. estava fraca. e faa a donari, bame tomo.

- saba goteino. da. daso ama que, para. via. esano, ao.

Como é facilmente observável Vanessa só acerta palavras cujas sílabas correspondem ao padrão silábico ca nônico do português: cv. (consoante e vogal).

Vanessa tem equívocos na escrita de sílabas complexas (CVC) e não interiorizou a convenção de escrita das marcas de nasalidade do português. Por isso ela escreve "seba" no lugar de samba e "sou" no lugar de "são" e escreve "aponda" ao invés de astronauta.

Cada vez que seu problema emerge há uma desintegração total da escrita em atividades descontextualizadas, características de escola tradicional.

Porém, ao escrever um texto para alguém, e ao usar a linguagem numa situação significativa, a linguagem de Vanessa é melhor estruturada.

Existe seqüência no texto e podemos considerar que apesar de alguns equívocos quanto à convenção ortográfica e linguagem é significativa.

Texto 3 - A VOVÓ E MARIA

A vovó foi a casa de sua prima Maria. e elas sairo da casa para ir no mercado. Coparo um cilo de asuca e um cilo de dave. parafaziu café da tarde. e a vovó tomou café e depois a vovó foi para casa de ela.

Vanessa - 22/06/93

Como poderia esta aluna ser avaliada a partir do ditado anterior, no qual a linguagem é ininteligível, por ser uma atividade descontextualizada?

No seu texto espontâneo, emerge seu problema de escrita de nasais. As palavras "saíram" e "compraram" são grafadas "sairo" e "coparo" e a hipótese é que aqui não se trata de uma marca da variante não padrão, mas sim do problema da grafia de nasais e sílabas complexas.

Nem mesmo as sílabas como VC do tipo "os" ou "is" em "depois" estão interiorizadas, pois apenas o padrão CV está interiorizado. Portanto, o mesmo problema de convenção de escrita, presente no ditado, aparece aqui, porém em menor escala, uma vez que a criança grafa corretamente "prima" e "mercado".

Concluindo, a análise dos textos de Vanessa nos obriga a repensar a retenção da criança por 3 (três) anos consecutivos em cada série escolar.

Para que esta criança supere estes problemas está sendo atualmente atendida no contraturno e o trabalho está sendo o de conscientização da convenção da escrita, uma vez que sua narrativa oral e a estruturação de seu texto são boas.

Com relação à análise de casos e ao Decreto em questão podemos inferir que apesar de alguns cuidados que devem ser tomados na explicitação de critérios para o decreto nº 2325, como o de permitir algumas exceções, fica evidenciado que é necessária a superação da avaliação tradicional e mecanicista no que diz respeito à reprovação escolar.1 1 Os dados de Vanessa foram obtidos a partir do projeto de extensão: Diagnósticos e acompanhamento longitudinal de Casos Problemas de Alfabetização. Projeto Nº 147- PROEC - UFPR.

  • IPARDES, Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social. Estudo de Caso: Projeto Realidade. Uma experiência em alfabetização no Município de Ponta Grossa Curitiba, 1993.
  • PARANÁ, SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Alfabetização & Parceria nş2. Cadernos de Ensino Fundamental 1991.
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    Os dados de Vanessa foram obtidos a partir do projeto de extensão: Diagnósticos e acompanhamento longitudinal de Casos Problemas de Alfabetização. Projeto Nº 147- PROEC - UFPR.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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