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Do fracasso para o sucesso escolar: Sobre a efetiva presença da psicologia da educação na escola

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Do fracasso para o sucesso escolar. Sobre a efetiva presença da psicologia da educação na escola* * Artigo originário de comunicação apresentada no GT "Contribuições da psicologia para a superação do fracasso escolar", durante o V Simpósio Brasileiro de Pesquisa e Intercâmbio Científico da ANPEPP, em maio de 1994.

Maria Lucia Faria Moro

Professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação, Universidade Federal do Paraná

Este trabalho contém uma reflexão sobre as possibilidades reais de aplicação na escola brasileira do conhecimento que a Psicologia da Educação já produziu.

Nossa reflexão, embora referente ao âmbito de nossa atuação profissional, o Estado do Paraná, pretende ter significado também para o que ocorre, em geral, com a educação brasileira.

Para delimitá-la, estaremos nos referindo ao ensino de 1º Grau e, mais, ao que ocorre em suas séries iniciais, pela prioridade que a atenção à educação básica representa ao nosso país, e pela sua relação com nossa atividade de investigação.

Se tratamos aqui de problemas do sistema público de ensino fundamental, esse fato não significa que a maior parte das nossas contestações, interpretações, avaliações, também não possam ser atribuídas a setores expressivos do ensino particular de 1º Grau.

Esta reflexão apóia-se principalmente em dois pressupostos, a saber:

• que a psicologia da educação no Brasil já tem um acervo, no mínimo interessante e válido, de conhecimentos a respeito das várias facetas do fenômeno ensino-aprendizagem em áreas básicas da iniciação escolar infantil.

• que o fenômeno do fracasso escolar na educação básica brasileira não é fracasso do aluno, mas é realmente o fracasso do sistema escolar que não oferece ensino de alta qualidade à maioria da população. São as próprias descobertas da Psicologia da Educação e das demais ciências da educação que apontam a competência da maioria das crianças para a aprendizagem, idependentemente de sua classe sócio-econômica, e desvelam a incompetência da escola em promover uma aprendizagem siginificativa que reconheça e aproveite aquela competência, sobre tudo no caso de alunos oriundos de famílias de baixa renda.

A má qualidade do ensino básico público e seus fatores responsáveis são fatos bastante divulgados educacionais e políticos, como também fora deles. Ano após ano é corrente a publicação em revista especializadas e em meios de comunicação mais populares, de estatísticas desanimadoras relativas à evasão, à repetência, ao fluxo escolar, que são consideradas indicadores de uma progressiva baixa de produtividade ou perda de qualidade dequele sistema nas últimas décadas (ver por exemplo, Silva, Davis, Esposito e Mello, 1993; Teixeira, 1994).

Porém, Silva, Davis, Esposito e Mello (1993) afirmam que, se este estado de coisas é muito conhecido, não se pode menosprezar a ignorância dos interessados e responsáveis, sobre as reais dimensões da ineficiência d ensino e sobre a magnitude dos esforços necessários para corrigi-la, como também muito se duvida da vontade, da possibilidade e da capacidade sócio-política do país para atacar e solucionar esse problema.

As mesmas autoras analisam ainda que, apesar de terem ocorrido tentativas de melhoria da qualidade da educação escolar, mediante programas utilizando estratégias recomendadas, seus resultados ficaram aquém do esperado devido à contribuição de fatores como: a instabilidade político-institucional, com rupturas que afetam sobretudo a educação, uma atividade que requer planejamento de longo prazo; a ambigüidade política na compatibilização das dimensões quantidade e qualidade na gestão da educação pública; a ausência de mecanismos de avaliação da qualidade do sistema de ensino e de informação à sociedade civil para possibilitar que esta exerça pressão sobre governos e exija melhor oferta educativa.

Como mecanismos, são os quantitativos de evasão e de repetência escolar que, em geral, aparecem no centro das apreciações sobre o sistema de ensino. Porém, a respeito desses indicadores, surgiu recentemente na imprensa uma posição interessante, instigadora à discussão dessa tradição de nossas estatísticas educacionais.

Trata-se do conteúdo do depoimento de Ribeiro (1993) que aponta uma significativa distorção estatística quanto aos índices de evasão escolar no Brasil: em termos reais este índice é desprezível, de 2,0% da 1ª para a 2ª série. Esta distorção, segundo o autor, é devido ao fato metodológico de as estatísticas oficiais não levarem em conta as taxas de repetência da 1ª série, calculando os indicadores do fluxo escolar somente pela comparação entre os matriculados de cada série, e fazendo então os repetentes aparecerem numericamente como alunos novos. É desconsiderado, portanto, o representamento expressivo na 1ª série causado pelas altas taxas de repetência ali verificáveis, (ao redor de 50%), distorção que, embora menor, também existe nas outras séries do ensino de 1º Grau.

Como conseqüência, segundo Ribeiro, temos: o mito da evasão escolar e o da necessidade de construção escolares, escondendo- se assim o fato de que há problemas, sim, mas no ensino. E argumenta, com base em números, que a família de baixa renda é persistente em manter seus filhos na escola, apesar de esta enxotá-los.

Ribeiro afirma que demolir a pirâmide educacional brasileira, acabar com o mito da evasão escolar parece não ser interessante para muitos, entre os quais construtores/empreiteiras, fornecedores de merenda escolar e, sobretudo, professores. Estes, destruído o mito, serão confrontados com a constatação seguinte: "as crianças querem estudar, os professores é que não conseguem ensinar...".

Para o mesmo autor, a diminuição da taxa de crescimento demográfico do Brasil permite antever menos necessidade futura de espaço escolar e também de professores (estes existem e com sobras em certas regiões). Logo, segue sendo o grande problema a repetência escolar, para cuja solução são requeridos investimentos na competência do professor e na sua motivação, e em programas sérios de avaliação de resultados educativos e da eficiência das escolas. Segundo o autor, os problemas salariais dos professores são conhecidos e devem ser corrigidos, mas sem que nos iludamos com o fato de que simplesmente corrigir salários significa que melhorias no ensino ocorram.

Diante deste quadro, qua fazemos nós os que, em princípio, trabalhamos a nível acadêmico com a produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, com a formação do profissional da educação?

De nossa parte, por um lado julgamos e, talvez, pretenciosamente, que seguimos produzindo conhecimento, em princípio, útil, aproveitável, à solução desses problemas educacionais, e que é este conhecimento divulgado, na medida do possível, em nossa atividade de formação de educadores. Constatações de que, ao menos, alguma receptividade existe a respeito e de que existem projetos, experiências de trabalho que utilizam aquela produção no cotidiano de sala de aula, ou em programas de formação e/ou aperfeiçoamento de professores, trazem-nos um sentimento de que alguma coisa útil, construtiva estamos contribuindo, tendo em vista a tão desejada melhoria qualitativa da educação escolar.

Entretanto, ao mesmo tempo que vemos a limitação deste tipo de presença diante das dimensões, da complexidade do problema. Constatamos muitas vezes nossa própria incompetência em tornar interessantes e acessíveis à prática do professor aquela produção, em reconhecer esta prática como referência significativa para nossa produção, para nossa atuação, em exercer alguma influência em decisões técnico-pedagógicas em níveis diversos.

Em suma, vemos nossa incapacidade de ultrapassar, de superar as dificuldades, os obstáculos que se colocam a uma ação mais eficiente. E, além de todas essas constatações, conforme dever de ofício devemos ter consciência e atestar a validade parcial, a transitoriedade do que produzimos, do ponto de vista da ciência.

É notória em nosso país (sempre salvaguardando as exceções) a incompetência atual das instituições de ensino superior em dar conta de uma formação no mínimo adequada aos professotes (ver, a respeito, Gatti, 1992).

Parece, então, que vivemos uma ambivalência de impressões, de sentimentos, otimismo e pessimismo alterando-se e deixando-se, muitas vezes, temperar-se com um sentimento de que o que fazemos é o que pode ser feito nas circunstâncias, e que alguma coisa de aproveitável, mesmo em âmbito e extensão restritos, estamos semeando.

Conteudo, ainda assim, quase sempre entremeia-se a este sentimento realista, o desânimo, a indignação, a impotência, mais que sentimentos otimistas, diante do que, ano após ano, momento após momento, projetos públicos após projetos, governo após governos, ocorre no sistema de ensino básico brasileiro.

Relatamos, a seguir, um episódio que nos despertou esse gênero de sentimentos, um dos motivos para escrevermos este texto e, parece, um bom exemplo do que Silva, Davis, Esposito e Mello (1993) apontam como instabilidade político-institucional e ambigüidade no trato dos administadores com as coisas da educaçãoo pública.

Trata-se da decisão do Governo do Estado do Paraná, expressa no Decreto de número 2325, de 25 de maio de 1993. Este Decreto institui, no ensino estadual de 1º Grau, o Ciclo Básico de Alfabetização, cuja duração é definida como de quatro anos. É a reunião das quatro séries iniciais daquele grau de ensino em um continuum único (como o próprio texto o diz) em que o aluno não é retido em qualquer delas, ficando-lhe garantido o prolongamento do tempo de alfabetização.

Vigora este Decreto a partir do ano letivo de 1994, e, para regularizar a implantação do referido Ciclo pelas escolas, o Conselho Estadual de Educação, por meio da deliberação de número 033/93, de novembro de 1993, aprovou normas específicas.

Essas normas definem, em suma, as seguintes condições para que as escolas implantem aquela inovação:

• recursos humanos e materiais para assegurar estudos complementares aos alunos que venham a necessitá-los, em um contraturno (com número de alunos limitado por turma e acevo bibliográfico para os professores e alunos).

• adoção de sistema de avaliação permanente, descritivo, diagnóstico e cumulativo, tendo como referência o Currículo Básico para a Escola Pública (com: registro para informação aos pais, previsão de projetos específicos de reencaminhamento dos alunos com defasagens acentuadas, proibição de cálculos de médias, e parecer conclusivo, ao final dos quatro anos, para orientar decisão sobre a continuidade dos estudos).

• necessidade de elaboração pelas escolas de projeto de implantação com itens determinados.

• existência de professores específicos para dirigir programas de estudos complementares.

• existência, nas escolas, de coordenação própria para o Ciclo Básico (Estado do Paraná/C.E.E., 1993)

Além dessas condições, a deliberação ainda define condições referentes a: matrícula, transferência/adaptação dos alunos, exigência e controle de freqüência e necessidade de envolvimento das famílias dos alunos, bem como da avaliação, pela Secretaria da Educação, da implantação, ao final de quatro anos.

Lembrando somente parte da história recente do Estado do Paraná na busca de solução aos problemas relativos ao ensino no início do 1º Grau, é o referido Decreto antecedido por outras medidas, de 1986/1987, que criaram e, ao que tudo indica, implantaram parcialmente um também chamado Ciclo Básico, com dois anos de duração, para garantir a alfabetização eficiente no início da escola elementar. O novo decreto complementa, portanto, determinações anteriores.

Por que tomamos este Decreto como exemplo inspirador da nossa reflexão? Que méritos ou deméritos encontramos nesse tipo de medida?

Em primeiro lugar, seu conteúdo baseia-se em princípios constitucionais e em justificativas de caráter político-educacional, expressas em termos de "... o compromisso público com a democratização do ensino..." e "... a garantia de acesso ao ensino público de qualidade e permanência da educação básica e obrigatória". (Estado do Paraná, 1993)

Como vemos, está salientada no Decreto a dimensão qualitativa da oferta escolar. Em tese, não parece haver dúvidas de que, no caso há, de parte do poder público, consciência da necessidade de atender à qualidade do ensino, de atacar problemas cruciais da escola básica, sobretudo ciência de que estes relacionam-se à questão da alfabetização e do estrangulamento que o fracasso escolar a ela ligado traz ao fluxo de alunos no sistema, em termos de evasão e repetência.

O conteúdo do Decreto sugere que, uma vez garantida uma escolaridade mais extensa para os alunos, pela eliminação dos mecanismos da reprovação, dando-lhes mais tempo ainda para que aconteça sua alfabetização, será mais provável que esta ocorra e provavelmente com eficiência. Logo, deixará de haver estrangulamento no sistema, com a conseqüente diminuição expressiva de índices de repetência e evasão. Está subentendida no Decreto a idéia de que a extensão dos anos de escolaridade inicial significará uma educação de qualidade melhor.

Em suma, parece ser esta, para o poder público, uma provável solução para as questões do fracasso escolar no ensino básico: sem os entraves da reprovação, o aluno permanece na escola para ter ali mais tempo, então mais e melhores oportunidades de aprender.

Por outro lado, a deliberação que o regulamento tem, entre outros, o mérito de definir uma avaliação do aproveitamento escolar que nos sugere um modo mais eficiente de verificar que conteúdos realmente o aluno domina.

Entretanto, parece, e não poderia ser diferente, nada há na deliberação sobre o que significa um aluno dominar um conteúdo, sobre a qualidade desse domínio. Ou seja, nada há quanto à qualidade da aprendizagem escolar.

Está, sim, ali presente, e de várias formas, a preocupação com aqueles alunos que não aprendem nas horas regulares de ensino (o contraturno com professores especiais, por exemplo). Parece estar subentendido então que haverá alunos com dificuldades e que, a estes, a escola deverá oferecer mais horas de ensino.

Sem querermos ser demasiadamente radicais e ler, nas entrelinhas da deliberação e do parecer que a fundamenta, o que esses documentos não dizem, tudo isso nos sugere que espera-se o fracasso escolar de certas crianças e por dificuldades delas próprias, sendo um modo de solução oferecer-lhes um reforço de ensino para que elas se "enquadrem" no que seria aproveitamento escolar regular, tal como hoje o fazem muitas das crianças que, aprovadas, série a série, cumprem regularmente os quatro anos iniciais do 1º Grau.

Portanto, em tudo isso, o legislador parece querer evitar um provável "funil de repetência" na passagem da 4ª para a 5ª série, (ver, a respeito, Ferreiro, 1992).

Contudo, tal como se encontra hoje nosso sistema público de ensino, poderá mesmo aquele "funil" ser assim evitado?

E, mais, essa permanência na escola sem os entraves da aprovação/reprovação significará mesmo uma solução do problema do fracasso naquele momentos da escolaridade? Assim, estarão sendo atendidas as exigências de melhoria da qualidade do ensino?

Antes de mais nada, queremos esclarecer que, em princípio, nada temos contra o fato de que normas governamentais devam ser estabelecidas para se manter as crianças na escola, pelo maior número de anos possíveis, cumprindo-se assim os preceitos constitucionais. E nesse aspecto está o mérito do Decreto, pois que, acreditando-se na necessidade, no valor da instituição escolar, é primeira condição as crianças irem e ficarem na escola para terem alguma possibilidade de aprender mais e melhor.

No entanto, a centração e/ou redução das análises e soluções dos problemas da escola fundamental pública aos fenômenos da evasão escolar e da repetência parece-nos uma tendência forte nos meios político-governamentais que administram a educação, sendo também muito freqüente entre os próprios educadores. E esta não nos parece evidentemente uma posição aceitável por tudo o que ela mascara em relação a uma real busca de qualidade di ensino básico, deviando a atenção e os esforços da cruel realidade da oferta escolar brasileira e das condições sofríveis de formação e de atuação profissional dos professores. Levando em consideração a distorção estatística e os mitos dela decorrentes apontados por Ribeiro (1993), aquela posição parece ser mais perigosa ainda.

Em nosso entender, essa tendência reducionista traz, muitas vezes, de modo declarado ou não, a assertiva de que o sucesso escolar estaria na permanência e no avanço dos alunos na escola tal como ela é, simplesmente.

Entretanto, e aqui está um dos pontos básicos de nossa reflexão, permanecer e avançar na escola básica que, em geral, ai está, quer dizer aprender mais e melhor? Significará que a questão da qualidade do ensino esteja sendo atendida?

Evidentemente, nossa resposta a este tipo de pergunta é negativa. É conhecido o quanto deixa a desejar, do ponto de vista da qualidade, em geral, o que as crianças aprendem e, sobretudo, como o fazem, nas séries iniciais do 1º Grau nas últimas décadas, em nosso país. Hajam vista os resultados de avaliação do aproveitamento escolar am alguns dos sistemas de ensino que se deixam avaliar, os resultados de concursos vestibulares, e as condições em que nos chaga parte expressiva da clientela de 3º grau. É assim, sustentável a hipótese de que a má qualidade do ensino é o empecilho principal à aprendizagem das crianças (ver, a respeito da alfabetização, Ferreiro, 1992).

Assim é que, sempre com as exceções animadoras que, e apesar de tudo, sempre vingam, os alunos que permanecem no sistema público de ensino e por ele avançam hoje, com certa regularidade, não representam casos de sucesso escolar. E, insistimos, este fato não se deve à incompetência da criança, mas sim à incompetência da escolar em ensinar. A psicologia tem mostrado amplamente o quanto as crianças, por exemplo e no caso, as de famílias de baixa renda, clientes da escola pública, são capazes de aprender, de elaborar soluções para seus problemas cognitivos do cotidiano, mediante formas próprias, originais, interessantes, quase sempre divorciadas daquelas colocadas pela escola, e muito mais eficientes estão que estas.

No entanto, se esse gênero de resultado tem divulgação e aceitação no meio acadêmico, ou mesmo é reconhecido nas discussões teóricas dos professores e responsáveis pela administração do ensino, no cotidiano da sala de aula ele não parece ter sido incorporado. É assim que, segundo resultados de Maluf e Bardelli (1991), por exemplo, na sua prática cotidiana, nas suas elaborações, os educadores mostram continuar atribuindo o mau desempenho escolar ás condições pessoais ou sócio-econômicas do aluno, e não à escola, às limitações do sistema e, muito menos ainda, ao seu próprio ensino. Por seu lado, o aluno auto-responsabiliza-se pelo seu fracasso. Neste estudo, as autoras exemplificam um tipo de interferência de fatores institucionais, sociais e políticos, como os analisados por Silva, Davis, Esposito e Mello (1993), na execução de um programa de intervenção que pretendia utilizar o conhecimento construído na melhoria da prática pedagógica dos professores sujeitos da pesquisa.

Enfim, diante de um quadro desanimador sobre o nosso ensino básico, e condenando o radicalismo dos que chagam então a advogar mesmo a extinção da instituição escolar, afirmamos que, em geral, as escolas mais tolhem a capacidade de aprender das crianças, do que a favorecem. Cometem assim o pecado mortal de desperdiçar as possibilidades inteligentes de toda uma geração. No quadro dessas considerações, insistimos, não queremos fazer generalizações indevidas, como também não restringimos as críticas somente ao sistema público de ensino. Parte significativa do sistema de ensino privado, também pode ser incluída entre os que desqualificam a oferta escolar, para alunos, em princípio, petencialmente capazes.

Porém, retomando um dos eixos de nossa reflexão: e sobre as contribuições da psicologia para ajudar a dar outro rumo a este estado de coisas?

Como antes afirmamos, a área tem produzido conhecimento válido, pertinente à solução desse gênero de problemas. Já invocamos, inclusive, uma ou outra dessas contribuições. Entretanto, o que ocorre com elas quando divulgadas para aplicação? Que destino têm, por exemplo, as noções, os conteúdos psicológicos dos cursos de formação e professores?

Retomando o exemplo do Decreto paranaense e da deliberação que o normatizava, vemos que seu conteúdo apóia-se em idéias que têm suas raízes na psicologia educacional: a de uma flexibilização de currículos e de procedimentos para o avanço cognitivo/afetivo do aluno; (nos próprios considerandos do Decreto é evocado o avanço cognitivo/afetivo do aluno como objetivo da ação escolar); a da concepção da avaliação como um processo visando qualificar o que o aluno aprende; a do atributo de continuidade do processo ensino/aprendizagem escolar.

Portanto, examinando o mérito daquelas medidas governamentais unicamente do ponto de vista do valor teórico de sua justificativa, de seu conteúdo, nada se pode argüir em contrário, pois elas contêm referências a aspectos fundamentais da ação docente, e a princípios pedagógicos válidos para embasá-la, de modo a melhorar-lhe a qualidade. São conhecidas as formas inadequadas de o professor avaliar o aproveitamento escolar do aluno, sua impossibilidade de promover uma efetiva alfabetização, em um ano, da maioria da clientela da escola pública, sua desatenção a aspectos como: flexibilidade curricular, continuidade da aprendizagem, necessidade de promover o desenvolvimento da criança em suas diversas facetas, entre outros pontos de interesse.

Entretanto, com a vigência e aplicação do Decreto, ousamos asseverar que, mais uma vez, nada acontecerá de fato na maioria das salas de aula paranaenses das quatro séries iniciais do 1º Grau naquele sentido.

A presença daqueles princípios em documentos legais, escritos orientadores, planos governamentais, é uma contante há décadas e décadas em nosso contexto. E quando da realização de cursos de preparação ou de reciclagem de professores para esse gênero de inovação, lá estão esses princípios, explicados e reexplicados, acompanhados de fórmulas, sugestões, caminhos didáticos para serem postos em prática. Se então muito dos professores se entusiasmam e os acatam, depois, no seu cotidiano, eles ou não têm condições profissionais, apoio, para modificar sua ação, ou pensam em colocar em prática idéias, princípios, simplesmente alterando nomes, rótulos. E permanece a realidade da sala de aula tal como tradicionalmente sempre tem sido.

Este parece ser sempre o destino do conhecimento, das contribuições da psicologia, no caso, quando divulgado dessa forma. Gostaríamos que tudo se passasse de outro modo, mas temos muita segurança em dizer que, os conhecimentos estão sempre presentes à nível de discurso, mas pouco ou nada é dele efetivado na real prática educativa.

O mesmo ocorre nos cursos de formação de professores. Ali, nós, os formadores temos, em geral, a tendência à teorização excessiva e, na melhor das hipóteses, pouca margem damos à concretização do conhecimento abordado. Não que condenemos, em tudo isso, as boas exposições teóricas: o estudo teórico, quer nos cursos de formação, que na reciclagem dos professores em serviço é necessário e indispensável. É inaceitável influenciar alguém a fazer algo sem que este alguém tenha uma idéia ou noção sobre por que realiza aquilo, sem que tenha elementos ideativos para elaborar, reelaborar, criticar sua ação, sua realidade. Insistimos, sim, no quão improdutivos ou inúteis são nossos discursos teóricos na provocação de uma real mudança na prática profissional de qualquer grupo de professores ou futuros professores.

Mas, em grande parte das circunstâncias seguimos agindo desse modo, mesmo porque nos consolamos, ou acalmamos nossa consciência, admitindo que, dessa forma, estamos fazendo alguma coisa, que se alguém deve fazer alguma conferência, dar algum curso, encarregar-se de uma área de formação, que sejamos então, quem sabe, nós, os que dominamos aquele gênero do conhecimento, uma vez que o produzimos.

Entretanto, já sabemos que outros são os caminhos para, de fato, fazer acontecer na sala de aula a plicação das contribuições da psicologia, em nosso caso. Temos já exemplos claros mostrando que são frutíferos os projetos de preparação de professores em serviço, de treinamento em sua própria sala de aula. No caso da alfabetização, já existem na literatura muitos exemplos bem sucedidos desse gênero de ação, sendo admitida e sustentada a idéia de que, no dia-a-dia escolar, a própria criança é um agente de capacitação do professor, desde que a ela seja dada a oportunidade de revelar-se como ser que pensa, que elabora conhecimento sobre a escrita no caso (Maluf, 1992; Ferreiro, 1992).

Muitos desses projetos se caracterizam, em geral, por ter continuidade temporal, independentes das vicissitudes do poder público e das ingerências políticas das administrações educacionais, condições estas que se combinam com os propósitos firmes de grupos de professores e de responsáveis pelas escolas, com o apoio técnico inteligente e consciente de pessoal especializado e com a utilização adequada de meios modernos de comunicação. São projetos que, em sua maioria, têm apoio financeiro de agências de pesquisa, nacionais e internacionais, ou de organizações ou de entidades não governamentais e, assim sendo, têm sua continuidade mais garantida e sua eficiência avaliada de forma mais sistemática.

Não podemos esquecer, nesse quadro ainda restrito de ações de transformação pedagógica bem sucedida, de experiências excepcionais de professores que, praticamente sozinhos, enfrentando toda sorte de empecilhos, são capazes de levar avante, em suas salas de aula, inovações de alta qualidade. Estas, muitas vezes, perdem-se no anonimato e nem sempre são valorizadas quando estão esses professores em situações mais formais de reciclagem, por exemplo.

Logo, existem caminhos para que possamos, efetivamente melhorar a qualidade da prática escolar, sempre atentando para o quanto aquela prática é, por excelência, campo de verificação de muitas das hipóteses da psicologia.

Então, se a área já dipõe de um corpo de conhecimentos válidos, passíveis de aplicação para a transformação qualitativa da escola, para nós o problema parece estar muito mais na forma de fazer aquela utilização, em nosso modus operandi. Teremos que ser mais competentes naquela ação, na superação de nossos limites, no confronto com os obstáculos e dificuldades de todo gênero que vivenciamos a respeito, no mundo acadêmico, e nesse também, transformando necessariamente nossas próprias práticas.

  • ESTADO DO PARANÁ/GOVERNO DO ESTADO. Decreto nº 2325 Curitiba, maio de 1993 (mimeo).
  • ESTADO DO PARANÁ/C.E.E. Deliberação nº 033/93 Curitiba, nov. de 1993 (mimeo).
  • FERREIRO, E. Com todas as letras São Paulo: Cortez, 1992.
  • GATTI, B. A. A formação dos docentes: o confronto necessário professor x academia. Cadernos de Pesquisa São Paulo, n.81, p. 70-4, maio 1992.
  • MALUF, M. R.; BARDELLI, C. As causas do fracasso escolar na perspectiva de professoras e alunos de uma escola de primeiro grau. Psicologia: Teoria e Pesquisa Brasília, v.7, n.3, p. 263-71, 1991.
  • MALUF, M. R. (org.). SEMINÁRIO MULTIDISCIPLINAR DE ALFABETIZAÇÃO. (2: 1992: São Paulo) Anais São Paulo: PUCSP, 1992.
  • RIBEIRO, S. C. A mentira da evasão. Veja, São Paulo: Ed. Abril, p.7-9, 28 jul. 1993.
  • SILVA, T. N.; DAVIS, C.; ESPOSITO, Y. L.; MELLO, G. N. DE. O descompromisso das políticas públicas com a qualidade de ensino. Cadernos de Pesquisa São Paulo, n.84, p. 5-16, fev. 1993.
  • TEIXEIRA, I. (1994). Indicadores sociais. Brasil: educação em colapso. Conjuntura Econômica Rio, FVG, v.49, n.1, p. 49-50, jan. 1994.
  • *
    Artigo originário de comunicação apresentada no GT "Contribuições da psicologia para a superação do fracasso escolar", durante o V Simpósio Brasileiro de Pesquisa e Intercâmbio Científico da ANPEPP, em maio de 1994.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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