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Pedagogia e literatura: crianças e bichos na literatura infantil de Clarice Lispector

Pedagogy and literature: children and animals in Clarice Lispector's children books

Resumos

Este estudo apresenta uma reflexão das relações entre a literatura infantil e a educação ressaltando a singularidade dos textos de Clarice Lispector que desconstroem a relação hegemônica adulto-criança e privilegiam o mundo das crianças e dos bichos ao inverter os pressupostos pedagógicomoralizantes que sempre estiveram presentes neste gênero literário.

Clarice Lispector; literatura infantil; educação de crianças


This study presents some thoughts about the relationship between children literature and education to project the singularity of Clarice Lispector's texts deconstructing the hegemony adult-children and distinguishing children and animals world by the inversion of the moral-pedagogical motives that always have been conected to this kind of literary genre.

Clarice Lispector; children books; children education


ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Pedagogia e literatura: crianças e bichos na literatura infantil de Clarice Lispector

Pedagogy and literature: children and animals in Clarice Lispector's children books

Nilson Fernandes Dinis

Professor adjunto na área de Psicologia da Educação no Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná. E-mail: nfdinis@hotmail.com

RESUMO

Este estudo apresenta uma reflexão das relações entre a literatura infantil e a educação ressaltando a singularidade dos textos de Clarice Lispector que desconstroem a relação hegemônica adulto-criança e privilegiam o mundo das crianças e dos bichos ao inverter os pressupostos pedagógicomoralizantes que sempre estiveram presentes neste gênero literário.

Palavras-chave: Clarice Lispector, literatura infantil, educação de crianças.

ABSTRACT

This study presents some thoughts about the relationship between children literature and education to project the singularity of Clarice Lispector's texts deconstructing the hegemony adult-children and distinguishing children and animals world by the inversion of the moral-pedagogical motives that always have been conected to this kind of literary genre.

Key-words: Clarice Lispector, children books, children education.

Texto completo disponível apenas em PDF.

Full text available only in PDF format.

Texto recebido em 19 ago. 2002

Texto aprovado em 14 nov. 2002

1 "O controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de controle - são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que separa o 'mundo interno' do indivíduo do 'mundo externo' ou, em diferentes versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o 'ego' do outro, o 'indivíduo' da 'sociedade'. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão 'o homem interior' é uma metáfora conveniente, mas que induz em erro" (ELIAS, 1994, p. 246-247).

2 "Esta seria, creio, a verdadeira tarefa dos poetas. Graças a um dom que foi universal e hoje está condenado à atrofia, e que precisariam por todos os meios preservar para si, os poetas deveriam manter abertas as vias de acesso entre os homens. Deveriam ser capazes de se transformar em qualquer um, mesmo no mais ínfimo, no mais ingênuo, no mais impotente. Seu desejo íntimo pela experiência dos outros não poderia jamais se permitir ser determinado por aqueles objetivos que regem nossa via normal, oficial, por assim dizer: teria de ser absolutamente livre de toda pretensão de sucesso ou prestígio, ser uma paixão por si, a paixão justamente pela metamorfose" (CANETTI, 1990, p. 282).

3 Para NUNES (1995, p. 132): "Os animais gozam, no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade incondicionada, espontânea, originária, que nada - nem a domesticação degradante de uns, nem a aparência frágil e indefesa de outros - seria capaz de anular". É no exercício dessa liberdade incondicionada que acreditamos que também se insira a presença da infância nos textos da autora. Por não ter ainda adestrados os instrumentos da racionalidade que se impõem no processo civilizatório, a infância é o reino da espontaneidade e da liberdade de uma experimentação vital e direta do mundo, descomprometida com os limites e preconceitos do olhar adulto e seus mecanismos de defesa que impedem sempre de atingir a realidade de uma forma imediata e autêntica.

4 A existência ou não de uma literatura especificadamente infantil tem sido tema de debate de muitos especialistas. Uma das posições mais coerentes que conhecemos é a da escritora Cecília Meireles: "São as crianças na verdade que o delimitam, com sua preferência. Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas lêem com utilidade e prazer. Não haveria pois uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori" (MEIRELES, 1984, p. 20).

5 "Hoje fui entrevistada por quatro menininhas de 11 anos com fotografias & perguntas & perguntas & perguntas, por causa da estória da mulher que matou os peixes. E se era verdade que eu gostava de bichos. E disse é claro. Também sou bicho" (NUNES, 1988, p. 298).

6 Nesse sentido, o texto de Clarice para as crianças guarda ressonâncias com seus textos para adultos nos quais o narrador já tentava desconstruir o pensamento lógico-racional: "Que mal porém tem eu me afastar da lógica?" (LISPECTOR, 1993, p. 17).

7 ARÊAS (1997-8, p. 149) chama a atenção para o fato do livro ter sido escrito nos anos 70, portanto, em "anos ditatoriais".

8 "O texto exemplifica as duas características da ficção que recorre a animais como assunto e personagem: a) o cão simboliza a criança; mais que isso: dá vazão a uma imagem de infância que a considera uma faixa etária e desprotegida, necessitando amparo permanente e cuidados suplementares. Postula as incompetências da criança para cuidar de si mesma e justifica a intervenção constante do adulto na vida dela; b) o texto assume uma postura, já que aproveita a ocasião para transmitir ensinamentos morais e incutir atitudes, pregando principalmente a obediência" (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 112).

9 "Há uma tristeza cômica no espetáculo desses cavalheiros amáveis e dessas senhoras não menos gentis, que, em visita a amigos, se detêm a conversar com as crianças de colo, estas inocentes e sérias, dizendo-lhes toda a sorte de frases em linguagem infantil, que vem a ser a mesma linguagem de gente grande, apenas deformada no final das palavras e edulcorada na pronúncia... Essas pessoas fazem oralmente, e sem o saber, literatura infantil" (ANDRADE, 1994, p. 221) .

  • ANDRADE, C. D. Coelho pensante. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 22.884, p. 6, 10 nov. 1967.
  • ANDRADE, C. D. Literatura infantil. In: ______. Confissões de Minas Rio de Janeiro: Americ., 1944. p. 220-221.
  • ARÊAS, V. Children's corner. Revista USP, São Paulo, n. 36, p. 145-153, dez./fev. 1997-98.
  • LISPECTOR, C. Água viva Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
  • ______. Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
  • ______. A descoberta do mundo Rio de Janeiro: F. Alves, 1992.
  • ______. A Legião Estrangeira São Paulo: Ática, 1977.
  • ______. O mistério do coelho pensante Rio de Janeiro: Rocco, 1981.
  • ______. A maçã no escuro Rio de Janeiro: Paz e terra, 1974.
  • ______. A mulher que matou os peixes Rio de Janeiro: F. Alves, 1991.
  • ______. Para não esquecer São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
  • ______. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
  • ______. Quase de verdade Rio de Janeiro: Rocco, 1978.
  • ______. Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
  • ______. A vida íntima de Laura Rio de Janeiro: J. Olympio, 1974.
  • NUNES, B. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.
  • NUNES, B. (Coord.). A paixão segundo G. H., edição crítica Brasília: CNPq, 1988.
  • CADERMATORI, L. O que é Literatura Infantil São Paulo: Brasiliense, 1986.
  • CANETTI, E. A consciência das palavras: ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
  • COELHO, N. N. A literatura infantil: história, teoria, análise (das origens orientais ao Brasil de hoje). São Paulo: Quíron, 1981.
  • ELIAS, N. O processo civilizador Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994. v. 1.
  • HESSE, H. O lobo da estepe Rio de Janeiro: Record, 1986.
  • LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história & histórias. São Paulo: Ática, 1985.
  • MEIRELES, C. Problemas de literatura infantil Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
  • ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola São Paulo: Global, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 2003

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2002
  • Aceito
    14 Nov 2002
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