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Relações entre conteúdo e forma de conhecimentos e práticas pedagógicas em Geociências: imaginário de futuros professores numa disciplina de licenciatura

Relations between shape and content of Geoscience pedagogical knowledge and practice: imaginary of future teachers at an undergraduate teaching license discipline

Resumos

Pesquisas e reflexões sobre ensino, história e epistemologia das Ciências da Terra têm sido desenvolvidas, em grande parte, intimamente associadas às práticas docentes dos professores/pesquisadores universitários. Nessa mesma perspectiva, buscamos neste trabalho compreender relações que os estudantes de licenciatura em Geografia estabelecem entre o conteúdo/forma trabalhado numa disciplina universitária e o conteúdo/forma profissional, ou seja, pensado na relação com a escola básica, com o tornar-se professor. As respostas dos estudantes a uma questão por nós formulada indicou como eles representaram uma das atividades desenvolvidas na disciplina na relação com seu imaginário sobre ser professor da educação básica. As análises mostraram também que essas significações se produzem de maneiras muito diferentes entre os estudantes, fazendo intervir no imaginário a partir do qual essas significações se produzem, aspectos da memória escolar de alguns estudantes e da maneira como representam o conhecimento escolar e as práticas de ensino na disciplina Geografia da educação básica. As análises mostraram que a atividade não é transparente quanto ao que seja o "conteúdo" de ensino da atividade, posto que essas significações são o trabalho de diferentes memórias discursivas, implicado em diferentes posições-aluno. Este estudo aponta para a importância de considerar e para a possibilidade de trabalhar com os imaginários dos futuros professores sobre ensino na relação que estabelecem com os conteúdos/formas em suas disciplinas científicas universitárias.

imaginário; discurso; memória; formação de professores; Ciências da Terra


Research and studies about teaching, history and epistemology of Earth Sciences have been developed strongly associated with undergraduate teachers/researchers teaching practices. At the same way, in this work we aimed at comprehending the relationships that geography undergraduate students establish between the content/shape developed within a scientific undergraduate discipline and the professional content/shape, i.e., analysed in relation to elementary school, and becoming a teacher. The students' answers to a question we made indicated how they represented an activi-ty developed at that course in relation to their imaginary about being an elementary school teacher. The analysis also showed that the meanings were produced in different ways by the students, making them interfere in imaginaries from which those meanings were produced, about aspects of their memory as basic school students and the way they represent their knowledge and teaching practices of the discipline Geography at elementary school. The analysis showed that the activity is not transparent about its teaching content, because those meanings were the product of different discursive memories, related to different student-positions. This study points out the importance to consider and the possibility to work with future teachers imaginaries about teaching in relations that they establish to the content/shapes of their undergraduate scientific disciplines.

imaginary; discourse; memory; teaching formation; Earth Sciences


DOSSIÊ: A LINGUAGEM NA PRODUÇÃO DO ENSINO UNIVERSITÁRIO: ESTUDOS COM FOCO NAS DISCIPLINAS

Relações entre conteúdo e forma de conhecimentos e práticas pedagógicas em Geociências: imaginário de futuros professores numa disciplina de licenciatura* * Apoio parcial: CNPQ.

Relations between shape and content of Geoscience pedagogical knowledge and practice: imaginary of future teachers at an undergraduate teaching license discipline

Henrique César da SilvaI; Pedro Wagner GonçalvesII; Denise de la Corte BacciIII; Carlos Alberto Lobão da Silveira CunhaIV

IProfessor Doutor do Departamento de Geociências Aplicadas ao Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Ensino e História de Ciências da Terra do Instituto de Geociências - Unicamp. E-mail: henriquecsilva@ige.unicamp.br

IIProfessor Doutor do Departamento de Geociências Aplicadas ao Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Ensino e História de Ciências da Terra do Instituto de Geociências - Unicamp. E-mail: pedrog@ige.unicamp.br

IIIProfessora Doutora do Instituto de Geociências da USP. E-mail: bacci@igc.usp.br

IVProfessor Doutor (aposentado) do Departamento de Geociências Aplicadas ao Ensino. Instituto de Geociências da Unicamp. E-mail: lobao@ige.unicamp.br

RESUMO

Pesquisas e reflexões sobre ensino, história e epistemologia das Ciências da Terra têm sido desenvolvidas, em grande parte, intimamente associadas às práticas docentes dos professores/pesquisadores universitários. Nessa mesma perspectiva, buscamos neste trabalho compreender relações que os estudantes de licenciatura em Geografia estabelecem entre o conteúdo/forma trabalhado numa disciplina universitária e o conteúdo/forma profissional, ou seja, pensado na relação com a escola básica, com o tornar-se professor. As respostas dos estudantes a uma questão por nós formulada indicou como eles representaram uma das atividades desenvolvidas na disciplina na relação com seu imaginário sobre ser professor da educação básica. As análises mostraram também que essas significações se produzem de maneiras muito diferentes entre os estudantes, fazendo intervir no imaginário a partir do qual essas significações se produzem, aspectos da memória escolar de alguns estudantes e da maneira como representam o conhecimento escolar e as práticas de ensino na disciplina Geografia da educação básica. As análises mostraram que a atividade não é transparente quanto ao que seja o "conteúdo" de ensino da atividade, posto que essas significações são o trabalho de diferentes memórias discursivas, implicado em diferentes posições-aluno. Este estudo aponta para a importância de considerar e para a possibilidade de trabalhar com os imaginários dos futuros professores sobre ensino na relação que estabelecem com os conteúdos/formas em suas disciplinas científicas universitárias.

Palavras-chave: imaginário; discurso; memória; formação de professores; Ciências da Terra.

ABSTRACT

Research and studies about teaching, history and epistemology of Earth Sciences have been developed strongly associated with undergraduate teachers/researchers teaching practices. At the same way, in this work we aimed at comprehending the relationships that geography undergraduate students establish between the content/shape developed within a scientific undergraduate discipline and the professional content/shape, i.e., analysed in relation to elementary school, and becoming a teacher. The students' answers to a question we made indicated how they represented an activi-ty developed at that course in relation to their imaginary about being an elementary school teacher. The analysis also showed that the meanings were produced in different ways by the students, making them interfere in imaginaries from which those meanings were produced, about aspects of their memory as basic school students and the way they represent their knowledge and teaching practices of the discipline Geography at elementary school. The analysis showed that the activity is not transparent about its teaching content, because those meanings were the product of different discursive memories, related to different student-positions. This study points out the importance to consider and the possibility to work with future teachers imaginaries about teaching in relations that they establish to the content/shapes of their undergraduate scientific disciplines.

Keywords: imaginary; discourse; memory; teaching formation; Earth Sciences.

Introdução

Reflexões, estudos e pesquisas sobre o ensino de geociências vêm sendo realizados há mais de uma década pelo Departamento de Geociências Aplicadas ao Ensino do IG/Unicamp, grande parte dos quais intimamente relacionados com as atividades docentes ali desenvolvidas em cursos de bacharelado e licenciatura e formação continuada de professores. Este trabalho se encontra nessa mesma perspectiva que une ensino universitário e pesquisa sobre ensino, no entanto, com uma especificidade: o foco nos estudantes, particularmente, analisando discursos produzidos na relação com uma disciplina de primeiro semestre destinada tanto aos alunos de Ciências da Terra como aos da licenciatura em Geografia, como parte de um núcleo comum, a disciplina "Ciência do Sistema Terra I" (doravante, CST-I). Nosso foco reside nos estudantes da licenciatura.

Tradicionalmente, cursos de formação inicial de professores são estruturados como sendo formados, por um lado, por disciplinas ditas de "conteúdo" ou "científicas" e, de outro, por disciplinas ditas "pedagógicas". Organização curricular e práticas pedagógicas que não deixam de atualizar um imaginário, histórico-socialmente constituído, que vê, de um lado, a aprendizagem pura e simples de "conteúdos" e, de outro, a aprendizagem pura e simples de "métodos e técnicas" de ensino. De um lado, estariam os "conteúdos" a serem ensinados e, de outro, a "forma" como esses "conteúdos" podem ser ensinados. Isso provavelmente traz profundas implicações sobre as expectativas do estudante de licenciatura quando realiza as disciplinas de ambos os "lados", e consequentemente, sobre sua participação em aula e sua própria aprendizagem. Organização, práticas e imaginários que fazem parte das condições de produção do que se diz e não se diz nas diversas disciplinas de sua formação inicial. Mas, provavelmente tem consequências também na sua futura atuação docente, no seu constituir-se enquanto professor, ou seja, no que considera como "conteúdos" de ensino, no que considera como sendo seu papel enquanto professor na produção desses "conteúdos" e nos modos como se apropria de saberes e conhecimentos relativos à sua futura profissão.

Supomos que a formação de professores, a constituição de seu imaginário, suas representações e práticas sobre educação e ensino, não se dão apenas em disciplinas "didáticas", "da educação", de "técnicas e métodos", onde se produzem falas/escritos sobre educação e ensino, e também não se dão, por outro lado, aprendendo apenas "conteúdos". Há "conteúdos" "científicos" em disciplinas ditas "pedagógicas", e "conteúdos" "pedagógicos" em disciplinas ditas de "conteúdos" "científicos".

Silva e Schnetzler (2006), por exemplo, mostram como a mediação pedagógica do professor de uma disciplina dita de "conteúdo" numa licenciatura é tomada como referência para docência de futuros professores. Segundo as autoras, a consideração da prática do professor como um exemplo a ser adotado em suas futuras atuações docentes evidencia o "importante papel que professores universitários de disciplinas científicas específicas podem ter na formação docente inicial" (SILVA; SCHNETZLER, 2006, p. 57).

Enquanto disciplina científica, "Ciência do Sistema Terra I" não se constitui num espaço para verbalizações que tematizam o ensino e a educação. Neste sentido, nossa pesquisa interveio criando uma situação em que essas verbalizações foram produzidas por escrito, particularmente sobre uma atividade específica desenvolvida anteriormente durante as aulas. Nosso objetivo foi buscar compreender aspectos do imaginário dos estudantes sobre as relações entre saber científico e saber profissional quando requisitados a pensarem sobre uma das atividades desenvolvidas na disciplina enquanto futuros professores. Como, colocados nessa posição, os estudantes interpretaram a atividade realizada na disciplina, ou seja, como a interpretaram pensando sua relação com o ensino básico e sua possível atuação como professores? Que imaginários sobre ser professor emergem nesse contexto discursivo? Que imaginários são mobilizados/deslocados para produzir os discursos/interpretações dos estudantes nessa situação?

Aportes teórico-metodológicos

Os aportes teórico-metodológicos da pesquisa se situam no campo da Análise de Discurso de origem francesa, baseado nos trabalhos de Pêcheux (1997; 1995) e Orlandi (1987; 1994; 1996), além de aportes do campo epistemológico relativo à disciplina em questão, notadamente a epistemologia das geociências e da geologia.

Segundo essa perspectiva discursiva, os fatos reclamam sentidos e os sujeitos se constituem simultaneamente a esse processo de interpretação. Processo que, constituído pela linguagem, implica na consideração de uma dimensão simbólica, de uma materialidade que tem a ver com a relação da linguagem com a exterioridade, ou seja, o sujeito e o contexto.

Segundo Orlandi (1994), nessa perspectiva "o discurso é definido como processo social cuja especificidade está em que sua materialidade é lingüística" (ORLANDI, 1994, p. 53), havendo assim uma construção conjunta, e não em duas instâncias separadas e unidas a posteriori, entre o social e o linguístico.

Também nessa perspectiva teórico-metodológica, a ideologia não significa ocultação da realidade, a ideologia não é conteúdo, mas é vista como "o imaginário que medeia a relação do sujeito com suas condições de existência" (ORLANDI, 1994, p. 56). O sujeito se relaciona com essas condições de existência a partir desse imaginário constituído na/pela situação imediata e pelo contexto histórico-social mais amplo do qual essa situação faz parte. O imaginário funciona pela sua capacidade de remissão de forma direta à realidade, produzindo um efeito de transparência, de sentido já-lá, do que não pode ser de outra forma (ORLANDI, 1994). Assim, ao analisarmos discursos, estamos buscando compreender os imaginários implicados na produção desse efeito de remissão direta.

Na Análise de Discurso, descrição e interpretação formam um batimento conjunto visando à compreensão, ou seja, à explicitação do modo como o discurso produz efeitos de sentidos (PÊCHEUX, 1997; ORLANDI, 1994). Diante de um objeto simbólico somos instados a interpretar. Ao admitirmos o caráter simbólico dos dados empíricos não nos esquivamos ao caráter interpretativo da nossa relação com esses dados enquanto pesquisadores, mas, buscamos explicitar nossos gestos associando nossa interpretação a uma compreensão da interpretação da qual os dados são o produto (SILVA BAENA; BAENA, 2006).

Com base nessa problemática e nesse referencial teórico-metodológico, foi definido como foco do estudo a compreensão das relações que os estudantes estabelecem entre o conteúdo/forma trabalhado na disciplina universitária e o conteúdo/forma profissional, ou seja, pensado na relação com a escola básica. Pressupondo que o ensino é constituído por práticas que também significam e intervêm na significação do que chamamos de "conteúdos".

Buscamos, portanto, compreender aspectos das condições de produção desses discursos, a constituição discursiva dos referentes e das posições dos sujeitos e o papel da memória.

As geociências têm as suas especificidades, e é preciso levá-las em consideração se estamos buscando compreender o imaginário que relaciona/separa forma e conteúdo no âmbito das relações de ensino que envolvem essa forma de conhecimento. Entre as especificidades do pensamento geocientífico podemos destacar, sinteticamente, um modo próprio de relação com o empírico, diferente do da química e da física. Trata-se de um modo em que o singular e o local têm relevância; um pensamento histórico em que a dimensão temporal é importante no estabelecimento de outros tipos de relações causa-efeito: de um lado, porque se trabalha do efeito para a causa, trabalham-se dados (evidências, pistas, formas fixadas) que dizem respeito aos efeitos e não se podem reproduzir as causas, não se pode ter acesso a elas, e, por outro lado, porque se trabalham com causalidades não-lineares e complexas, com eventos implicados em várias causas que estabelecem relações complexas entre si.

Segundo Potapova (1968), o que caracteriza os conhecimentos de Ciências da Terra é a perspectiva histórica com que os fenômenos são compreendidos. Frodeman (2001) chama a atenção para o tratamento da singularidade dos processos da história terrestre. Trata-se de lidar metodologicamente com as marcas, vestígios configurando uma forma de conhecimento interpretativa, em que se busca inferir o que aconteceu. Outra característica dos conhecimentos geocientíficos está na abordagem sistêmica do planeta. A biosfera e a noosfera, fazendo parte desse sistema, o molda e são moldadas por ele ao longo da história da Terra. Isso conduz a uma certa concepção de ambiente e das relações entre homem e natureza, em que atividades culturais, sociais e tecnológicas fazem parte da dinâmica histórica terrestre. As sociedades humanas têm, apesar de seu curto intervalo de tempo na história terrestre, influenciado o funcionamento dos sistemas terrestres, tomando parte nos ciclos de matéria e energia do planeta, ao mesmo tempo em que, em parte, se constituem em relação e pelas determinações desses sistemas.

Essas concepções repercutem na forma que tem a disciplina em estudo e, mais do que isso, porque se trata de uma disciplina cuja prática docente tem estado intimamente associada a reflexões, estudos e pesquisas sobre o ensino de geociências, sobre as próprias Ciências da Terra, por docentes que também atuam como pesquisadores na área de ensino de ciência/geociências. Esses aspectos epistemológicos, na relação forma/conteúdo dos conhecimentos geocientíficos, têm sido considerados na relação forma/conteúdo didática da disciplina (CARNEIRO et al., 2008; CARNEIRO et al., 2001; COMPIANI; CARNEIRO, 1993).

Procedimentos metodológicos

Aspectos metodológicos gerais

Um aspecto teórico-metodológico importante a considerar diz respeito ao fato de que, neste caso, trata-se de uma disciplina "de conteúdo", isto é, em princípio, questões a respeito do ensino de ciências/geociências não seriam explicitamente abordadas e, portanto, não teríamos verbalizações produzidas sobre esse tema. No entanto, ao intervir coletando/produzindo dados, fizemos produzir verbalizações e, portanto, elaborações e formulações sobre o ensino. Ou seja, os modos como coletamos os dados fazem parte das condições de produção do ensino e dos discursos produzidos e posteriormente analisados. A questão colocada aos estudantes implicou em deslocar a posição do sujeito, de aluno que aprende um "conteúdo" científico, para o aluno que pensa em como ser professor, ou seja, para a posição de um futuro professor. Pela questão produzida, esse deslocamento fez os alunos tomarem uma atividade anteriormente desenvolvida na disciplina como objeto de seu discurso. É a análise dos discursos, enquanto efeitos de sentidos, associados a essas formulações/verbalizações produzidas por esse instrumento/condição de produção que apresentamos neste trabalho.

No dia da primeira prova da disciplina, foi solicitado aos alunos que terminavam a prova que respondessem por escrito a seguinte questão:

Se você fosse professor do ensino fundamental ou médio, você aplicaria a atividade das dunas com seus alunos? Por quê?

A questão faz referência a uma das atividades desenvolvidas em aulas anteriores à prova e que será descrita e comentada na próxima seção.

Algumas informações sobre os alunos também foram obtidas por meio de questionário aplicado em outra pesquisa, cujas respostas foram a nós gentilmente disponibilizadas. Esse questionário foi aplicado no dia da confirmação da matrícula aos alunos ingressantes, que, em princípio, posteriormente, se matriculariam na disciplina em questão, do qual destacamos a questão que indagava sobre o que o motivou a fazer o curso escolhido. Aqui, cabe observar que vários alunos da disciplina entraram depois (em outras chamadas do vestibular) e, portanto, não temos essas informações sobre eles.

A natureza da disciplina Ciência do Sistema Terra

Aspectos gerais

As disciplinas CST-I e II abordam conteúdos geológicos e a natureza e modos de construção do conhecimento geológico (CARNEIRO et al., 2008). Possuem material didático próprio (um "roteiro" de aulas), produto/processo desse trabalho de reflexão/pesquisa associado à docência dos pesquisadores/docentes do Departamento, além de livros-textos como Press et al. (2006) e Teixeira et al. (2000) e uma série de outros textos de diferentes gêneros, incluindo literatura e divulgação científica. Elas têm poucas aulas expositivas, muitas aulas práticas em pequenos grupos, muitas aulas de debates e exposição dialogada, vídeos (documentários), trabalhos de campo, ou seja, são muito diversificados os contextos das relações sociais que as constituem, assim como os recursos utilizados e as práticas em que os estudantes e professores se envolvem durante os processos de ensino e aprendizagem.

A atividade das dunas

Esta atividade costuma ser trabalhada logo nas primeiras aulas da disciplina. Ela é uma adaptação do livro "Investigando a Terra", a versão brasileira do Earth Science Curriculum Project (1973). Na disciplina, ela faz parte do roteiro de aula (CARNEIRO et al., 2003), que comporta um conjunto de atividades e textos de apoio didático. O título deste tópico é "Terra - um planeta em transformação" e o subtítulo, "Transformações terrestres".

Durante a atividade, os alunos, em pequenos grupos, recebem as duas fotos em preto e branco, como nas Figuras 1 e 2 abaixo, coladas em cartolinas amarela e verde, apenas com a designação A ou B em cada uma delas, e seguem as orientações do roteiro1 1 . No livro "ESCP - Investigando a Terra" (1973), as fotos encontram-se no capítulo 1, p. 5. :



1. Seu grupo recebeu um par de fotografias tiradas de um mesmo local, abrangendo a mesma área, porém com um intervalo de uma para outra de cinco anos.

2. Reúna evidências no sentido de mostrar a hipótese indicada pelo professor2 2 . Esta segunda instrução é modificada oralmente para que os alunos construam e escolham suas próprias hipóteses. .

A atividade consiste em buscar identificar qual das fotografias é a mais antiga, ou seja, foi tirada antes da outra, e defender sua posição apoiados em evidências obtidas com a análise das fotos. Após um determinado tempo de discussão nos pequenos grupos os professores passam a orientar um debate geral, onde representantes de cada uma das hipóteses (A viria antes de B, ou B viria antes de A), apresentam para a classe argumentos levantados pelo seu grupo, defendendo-a, desenvolvendo-se um debate mediado pelos professores.

O contexto da atividade em aula

Para termos uma ideia da aula em que essa atividade se insere, transcrevemos abaixo trechos quando da sua aplicação em outro ano letivo, gravado em vídeo.

Após a leitura individual do roteiro, um dos professores explica a atividade para os alunos:

P - [...] a partir de alguma coisa fixada, fossificada. A gente vai trabalhar hoje com fotografias. A gente vai extrair informações e montar uma explicação a respeito do que aconteceu, a respeito de uma certa transformação. Esse é o nosso alvo de trabalho.

O professor continua, sendo uma das primeiras aulas da disciplina, a falar do roteiro de aulas que os alunos utilizarão durante o curso, sendo o desta atividade um exemplo, e explica o esquema de trabalho: primeiro pequenos grupos e depois o debate geral.

Para exemplificar as interações no debate geral, tomamos trechos da fala de uma aluna:

A1 - Tem um outro detalhe que a gente observou... eu vou desenhar [dirige-se à lousa com ambas as fotos na mão]. Tá aqui [mostrando as fotos]. Só que é só pra chamar a atenção. Se vocês prestarem atenção... aqui, ô... a foto verde (Fig. 2), né... Tá em linha reta. Mas se vocês observarem aqui tem a... um curtinho. Ali, ô [indicando um dos esboços feitos na lousa que representavam as duas fotos]. Tem o reto e tem uma saidinha aqui. Na foto verde. Nós encaramos isso como uma evidência de que antes tinha alguma coisa que passava por aqui que a gente encarou como esse desvio que tinha na foto amarela. Então por isso que a gente acha que a amarela é mais antiga. [...] A partir daí fica mais complicado porque a gente foi enquadrando coisas que a gente viu nisso, não foi... encontrando evidências...

P - Algum esclarecimento, dúvida da apresentação da [aluna1]?

Silêncio.

P - Então, eu pediria para o outro grupo fazer a apresentação.

Durante os debates, os alunos traziam à tona hipóteses sobre como as dunas seriam formadas e, portanto, qual teria sido a direção dos ventos, apontavam diferentes evidências ("Ah, outra evidência foi o poste") que eram interpretadas de maneiras diferentes ("Não é uma estrada construída, é uma trilha"), diferenças que eram debatidas.

Os professores, durante o debate, basicamente intervêm apenas organizando as interações.

Análise

Numa primeira abordagem, as respostas dos alunos foram sintetizadas num quadro (Tabela 2) que serviu como dados para uma primeira análise. Esta direcionou uma análise mais detida das formulações dos estudantes. Estas análises apontaram que as respostas dos estudantes constituem diferentes referentes em relação à atividade, que sua constituição está relacionada a representações de ensino, em parte, relacionadas provavelmente à sua história de vida escolar, e que há bastante variação sobre o que consideram como sendo o "conteúdo" da atividade.

A Tabela 1 mostra o percentual de respostas dadas pelos 29 estudantes que responderam a questão.

Já a Tabela 2 indica uma síntese das respostas dos alunos e sua frequência, já com indicativos de categorização e análise, conforme explicitaremos a seguir.

Os indicativos de categorização podem ser percebidos na Tabela 2 observando-se a seguinte indicação:

  • negrito: indica o "conteúdo" da atividade no imaginário dos alunos;

  • itálico: indica outros "conteúdos" presentes na atividade, formas de pensar etc.;

  • sublinhado: indica os aspectos "pedagógicos", "didáticos" das atividades (saberes profissionais).

A grande maioria dos alunos (82,7%) aplicaria a atividade no ensino fundamental ou médio. E é nas justificativas que dão para essa opção que podemos compreender aspectos sobre como seu imaginário representa a atividade e, nesta representação, o que é ser professor (na relação com conhecimentos geocientíficos) e, portanto, a relação entre conteúdos profissionais e conteúdos escolares referentes às Ciências da Terra.

Em termos de representações sobre ensino, notamos, pelas respostas dos alunos, que eles levam em consideração: a existência ou não de pré-requisitos (conhecimentos anteriores) para realizar uma atividade e, neste sentido, há discordâncias em relação a essa atividade. Todos os três alunos que responderam que não a aplicariam justificaram suas respostas apontando justamente a falta de conhecimentos anteriores para a sua realização, pois a atividade "exigiria uma base teórica", "o ensino médio não possui foco suficiente para a correta interpretação da atividade", "faltaria uma base". Mesmo o estudante que respondeu afirmativamente em relação ao ensino médio, mas com a ressalva para o ensino fundamental, justifica sua escolha considerando também a existência ou não de pré-requisitos, embora interprete a atividade de maneira diferente em relação a esse aspecto, pois considera que a atividade "não apresenta tantos pré-requisitos de saber".

Vemos que, nesses casos, a opção do aluno é feita a partir de uma representação mais ou menos comum da atividade: a de que seu objetivo principal estaria na explicação do fenômeno de movimentação e formação das dunas, ou seja, da ação do vento como agente transformador da paisagem, e, para isso, ele teria que saber como os ventos atuam sobre a areia formando dunas, um dos aspectos do que foi discutido em aula, após a realização da atividade. Ou seja, esses alunos concebem a atividade como uma aplicação de conhecimentos supostamente adquiridos previamente e parecem ter como foco o produto do conhecimento científico.

Considerando que sujeitos (posições) e sentidos se constituem simultaneamente, essa interpretação desses estudantes sobre a atividade possui uma memória provavelmente associada a uma posição de aluno do ensino médio (ou de toda sua escolaridade básica). Em geral, quando se colocam atividades para alunos resolverem em sala de aula, são atividades de "aplicação" de conhecimentos supostamente aprendidos em aulas ditas "teóricas". Ou seja, essas atividades normalmente possuem um caráter avaliativo (verificar conhecimentos já ensinados), e se dão quase sempre depois de uma aula expositiva. O exemplo abaixo representa um indício do imaginário que se refere ao caráter avaliativo da atividade.

Sim, porque desenvolve o senso da especulação construindo a capacidade de levantar hipóteses independentes de acertar ou errar o sentido de sua movimentação. (RR)

No entanto, no processo de interpretação desse aluno, a atividade recupera a memória desse sentido avaliativo, ao mesmo tempo que a desloca em relação a um outro sentido possível para a atividade de ensino, pois não estaria em jogo nesta atividade "acertar ou errar". A existência de um sentido anterior (memória) é uma condição de produção desse (novo) sentido. É esse sentido já existente que lhe permite produzir um outro sentido para a atividade. Como coloca Pêcheux (1999, p. 56), "uma memória é necessariamente um espaço móvel de divisões, disjunções, de deslocamentos e de retomada, de conflitos de regularização [...] Um espaço de deslocamentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos".

A interpretação daqueles estudantes é coerente com sua opção em não utilizar essa atividade no ensino médio, pois o "esquema" de aula pré-conhecido não foi respeitado nessa atividade. Não houve "explicação teórica" anterior, mas posterior, sobre a formação de dunas e ação erosiva e sedimentar dos ventos, sobre a qual os alunos poderiam ter se baseado para "responder" a questão requisitada por ela.

Assim, para aqueles alunos que responderam negativamente, o "conteúdo" desta atividade seria a "compreensão da ação dos ventos", como coloca um outro estudante que a aplicaria na educação básica, ou, de maneira mais geral, "a compreensão de fenômenos que provocam transformações", como apontou outro estudante. Na primeira significação, teríamos um "conteúdo" específico e, na segunda, um exemplo de um conteúdo mais geral "transformações terrestres", o qual, realmente é apontado por outros alunos. De fato, essa expressão "transformações terrestres" é o subtítulo dado à atividade no roteiro de aulas (CARNEIRO et al., 2003). Ao significarem, os estudantes estabeleceram relações diferentes, como o interdiscurso, mobilizaram diferentes memórias discursivas que funcionaram, quando foram as mesmas, também de maneiras diferentes.

Poderíamos nos perguntar se esses estudantes não realizaram a atividade a partir desse imaginário, constituído, muito provavelmente, em sua história escolar passada, ou seja, o de que atividades realizadas em aula são precedidas por explicações "teóricas" para sua "aplicação" e "verificação" de aprendizagem (avaliação).

Dessa forma, podemos considerar que nesse imaginário a forma da atividade é apenas um meio para se "transmitir", para ensinar determinados conteúdos. Os conteúdos poderiam ser os mesmos, mas a forma não seria considerada adequada, ou a atividade não deveria ser aplicada por este "conteúdo", que seria imaginariamente o conteúdo desta atividade, muito complexo para estudantes da educação básica. Nesta linha de interpretação, o imaginário sobre a forma da aula, constituído na/pela história escolar dos estudantes, estaria condicionando o que considera como sendo o "conteúdo" do ensino, mas, de modo inverso, o que considera como conteúdo determina o modo como representa a atividade (e provavelmente, a desempenha enquanto aluno).

Mas vemos que a atividade não é transparente quanto ao que seja seu "conteúdo" de ensino, posto que essas significações são o trabalho de outras memórias discursivas, implicado em diferentes posições-aluno. As respostas dos alunos configuram diferentes "conteúdos" para a atividade, que podem ser agrupados em duas grandes categorias.

Na primeira categoria, produto (em negrito na Tabela), incluímos: compreensão dos fenômenos geológicos da Terra; relações entre homem e meio; compreensão da ação dos ventos; a Terra é algo dinâmico, em constante mudança e transformação; noção de tempo geológico; introduzir outros elementos (vegetação característica dessas regiões, relacionado a solo pouco nutritivo); estar ciente das importantes transformações geográficas.

Já na segunda categoria, processo (em itálico na Tabela), incluímos: o raciocínio interdisciplinar; capacidade de percepção e observação; o interesse pela pesquisa; criar um senso crítico; formular teorias; investigar os fenômenos geológicos.

É importante apontarmos que a atividade foi realizada no início do curso, mas a coleta desses dados, ou seja, as reflexões dos alunos sobre ela a partir da questão formulada, foram produzidas no meio do curso, no mesmo dia da aplicação da primeira prova. Muitos alunos passam a significar a atividade quanto ao seu "conteúdo" retroativamente, ou seja, a partir de "conteúdos" que só foram trabalhados a posteriori, denotando inclusive problemas conceituais na compreensão desses conteúdos. Como exemplos, podemos citar os casos abaixo:

Sim. Ao explicar-lhes a ação do intemperismo no relevo, acredito ser importante o uso de imagens como exemplos. (BB)

Sim, pois com a atividade das dunas, nós temos uma percepção das marcas do tempo geológico [...] (AB)

No primeiro caso, o aluno confunde os conceitos de intemperismo e erosão; confusão não pouco comum nessa altura do curso e entre alunos iniciantes. No segundo caso, não se trata da escala do tempo geológico posto que o fenômeno analisado precisa ser tratado na escala de anos e não de milhões de anos.

Mas, de todo modo, com a categorização acima queremos evidenciar dois tipos de "conteúdos" presentes na relação imaginária dos alunos com a atividade desenvolvida: conteúdos-produto e conteúdos-processos, baseando-nos e adaptando categorias desenvolvidas em trabalhos anteriores (ALMEIDA; SILVA, 1994). As respostas incluídas na segunda categoria (processos) indicam um tipo de conteúdo que não está centrado no produto do conhecimento científico, mas em aspectos de seu processo de produção. Ela se manifesta em respostas como:

Sim, pois é uma atividade que deixa bem claro vários aspectos. Depois do debate e da explicação, foi possível aplicar a forma de raciocínio utilizada para outras questões, além de ter sido divertido e intrigante. (LB)

Observar fenômenos ou o produto deles [...] (ML)

Sim, pois é uma atividade que faz o aluno pensar dentro de diversas perspectivas, tendo que levar em conta vários detalhes, pois se levar em conta apenas um, tomará ou poderá tomar uma idéia errada do que de fato acontece. (MV)

Sim, porque desenvolve o senso da especulação construindo a capacidade de levantar hipóteses independentes de acertar ou errar o sentido de sua movimentação. (RR)

Sim, atividades como aquela tendem explorar a capacidade de percepção do aluno, sendo um recurso pedagógico interessante, pois permite ao aluno a chance de formular teorias e propor soluções a sistemas, ao invés de apenas aprendê-los em um livro. (RC)

Parece fazer parte também do imaginário dos alunos na produção dessas respostas sobre a atividade as representações que têm da geografia escolar. Indicativos disso estão em respostas como as exemplificadas abaixo e sua relação com o que os alunos colocaram na questão formulada no momento da confirmação de sua matrícula da Universidade, quando justificaram a escolha do curso, em que se ressalta uma visão da geografia enquanto área que trabalha a relação entre o humano e a natureza, a sociedade e a natureza.

Exemplos de respostas dos alunos à questão formulada sobre a atividade das dunas:

Ela também é fundamental para demonstrar que devemos ser críticos diante das relações entre o homem e o meio [...] (LFC)

Outro fato que poderia ser explorado é o do planejamento urbano, já que a duna cobre parte da estrada em uma foto, e se fosse previsto com antecedência a estrada seria construída em outro lugar. (MV)

Exemplos de respostas dos alunos, quando justificaram porque escolheram o curso de geografia:

Resolvi fazer geografia para melhor entender o funcionamento físico do planeta e também as consequências para a humanidade e como interferir na natureza positivamente. (BB)

Optei por geografia por ser um curso que prepara a pessoa para uma visão crítica, sobre vários fatos da sociedade, política, meio-ambiente [...] (FH)

Sempre me identifiquei com a relação do homem com o meio-ambiente [...]. Isso ocorreu porque eu tinha uma professora muito boa que me mostrou a Geografia não como uma aula que só se vê mapa, mas como uma ciência que tem como objetivo entender a relação homem-natureza. (GM)

Minha opção por geografia foi devida minha afinidade pelo curso. Geografia é uma "ciência" completa, pois você estuda desde os aspectos do solo, até impactos ambientais que uma ocupação humana pode trazer ao local, analisando todos os aspectos físicos e humanos de um determinado local, completando um ao outro. (GE)

Para entender as relações entre o homem e o sistema terra e procurar soluções para aprimorar estas relações. (WO)

Essas respostas indicam um imaginário que relaciona, como característica do conhecimento da geografia, o humano/social ao natural/físico/ambiental. Isso significa que, no encontro da atividade com o imaginário (e a posição) de alunos e futuros professores de geografia, produziu um deslocamento no sentido da atividade. Para vários alunos não se trata de pensar as transformações terrestres como transformações simplesmente no ambiente físico, mas como "transformações sociais". Isso tem a ver com o fato das imagens apresentarem elementos que permitam interpretar o humano na paisagem em transformação, como a presença de postes de rede elétrica e estradas, que os estudantes utilizaram muito em suas argumentações, interpretações e debate no momento da aula. Mas os sentidos não vêm das imagens, mas das relações destas com o imaginário destes estudantes construído em sua relação anterior com a geografia escolar.

Conclusões e discussão

A análise das respostas dos estudantes à questão por nós formulada indicou como eles representaram a atividade desenvolvida na relação com seu imaginário sobre ser professor da educação básica. As análises mostraram que essas significações se produzem de maneiras muito diferentes entre os estudantes, fazendo intervir no imaginário a partir do qual essas significações se produzem, aspectos da memória escolar de alguns estudantes e da maneira como representam o conhecimento escolar e as práticas de ensino na disciplina Geografia da educação básica. A atividade colocou os sujeitos numa dada posição a partir da qual a significaram quando a realizaram. Mas a questão formulada solicitou uma outra posição, a de pensarem-na enquanto professores da educação básica a partir da significação que produziram sobre ela enquanto alunos da disciplina. Assim, a posição-aluno na disciplina se "transfere" para a posição-aluno no ensino médio, vista sob a ótica de um futuro professor. Essa "transferência" é instaurada pela situação discursiva da elaboração das respostas para a questão formulada sobre a atividade.

As análises mostraram que a atividade não é transparente quanto ao que seja seu "conteúdo" de ensino, posto que essas significações são o trabalho de outras memórias discursivas, implicado em diferentes posições-aluno. Pudemos inferir possíveis relações entre as posições-aluno na significação dessa atividade e imaginários sobre ser professor, sobre aulas e "conteúdos" de geografia constituídos a partir de suas memórias enquanto alunos da educação básica. As formulações dos alunos configuraram diferentes "conteúdos" para a atividade, que podem ser agrupados em duas grandes categorias: a categoria produto e a categoria processo. Também categorizamos as respostas dos alunos em outros dois aspectos: forma e conteúdo, buscando analisar como essas categorias aparecem indissociáveis ou dicotomizadas.

A constituição do imaginário de futuros professores, na/pela mediação concomitante da atividade desenvolvida na disciplina e da questão formulada na pesquisa parece ter se dado no entrecruzamento de diferentes memórias e posições de sujeitos. É nesse jogo de posições, de configurações diferenciadas a partir de diferentes posições instauradas, em parte pelas mediações pedagógicas que constituem a disciplina, por mediações pedagógicas vivenciadas na educação básica, e pela mediação da própria pesquisa, que os diferentes sentidos sobre as relações forma/conteúdo e processo/produto se constituíram.

Assim, em várias formulações pudemos notar o que preveem/antecipam, mas também supor algo a respeito da posição que talvez tenham ocupado na realização da atividade. Grande parte dos alunos parece ter se sentido desafiada em sua curiosidade investigativa, em sua capacidade de argumentação, formulação de hipóteses e busca de evidências empíricas para sustentá-las. Outros, parecem ter se incomodado pela atividade não corresponder às suas expectativas relacionadas a memórias associadas provavelmente à educação escolar anterior.

A disciplina Ciência do Sistema Terra (e provavelmente, outras "disciplinas de conteúdo") trata-se de uma "disciplina de conteúdos" ou de uma "disciplina "didática" quando pensada na formação de professores? Não se aprende a ser professor também sendo aluno? Não se aprendem "técnicas e métodos" de ensino pelas "técnicas e métodos" de ensino vivenciados enquanto alunos?

Acreditamos que este trabalho aponta para a possibilidade de trabalhar as significações de estudantes sobre as próprias aulas que vivenciam em suas disciplinas "de conteúdos científicos", seja na própria disciplina ou em outras, como as chamadas "pedagógicas" e, para tal, acreditamos que as análises realizadas contribuam para acentuar a importância de compreender as condições de produção dessas significações, os imaginários que estão a elas associados como possibilidades de sentidos a serem trabalhadas. As verbalizações dos estudantes que apresentamos e analisamos permitiriam trabalhar inúmeros aspectos de concepções de ensino e de (geo)ciências importantes para o futuro professor de ciências.

Por fim, destacamos o modo como lemos/escutamos as verbalizações de estudantes considerando-as não apenas pelo seu conteúdo mas pelo seu processo e condições de produção, entre as quais se incluem as próprias requisições e questões que colocamos aos nossos alunos. Desse modo, podemos ler/escutar nessas verbalizações pistas sobre imaginários que podem ser trabalhados que nos permitem compreender como nossas atividades e práticas pedagógicas estão sendo significadas por nossos alunos. Trata-se de uma possibilidade concomitante de conhecermos melhor o funcionamento de nossas disciplinas enquanto docentes, conhecermos melhor nossos alunos na sua relação com os conhecimentos e práticas que trabalhamos em nossas disciplinas e dar aos alunos também a oportunidade de se conhecerem em seu processo, contínuo e ininterrupto, mas não sem rupturas, deslocamentos e retomadas, de tornarem-se professores.

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  • *
    Apoio parcial: CNPQ.
  • 1
    . No livro "ESCP - Investigando a Terra" (1973), as fotos encontram-se no capítulo 1, p. 5.
  • 2
    . Esta segunda instrução é modificada oralmente para que os alunos construam e escolham suas próprias hipóteses.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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