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Indisciplina e a noção de justiça em adolescentes escolares

Indiscipline and the sense of justice in high school teenagers

Resumos

O objetivo foi de averiguar a noção de justiça retributiva, mais precisamente entre os alunos indisciplinados e disciplinados e observar a prevalência dos dois tipos de reações: expiatórias ou de reciprocidade. Verificar o conceito de disciplina e de indisciplina entre professores e alunos e a estes pedir para atribuir um juízo de valor. Os resultados demonstraram que os professores partiram de várias categorias para definir disciplina e indisciplina e as priorizadas foram comportamento, aprendizagem e motivação. Para os alunos ocorreram diferenças na preferência de categorias. Quanto à atribuição de valor a grande maioria, 92,59%, considera que ser indisciplinado não é algo bom. Quanto à prevalência dos dois tipos de reações expiatórias ou de reciprocidade relativas à sanção, os alunos consideraram como mais severa e justa as sanções por reciprocidade e preferiram punir através da mesma. Porém, é grande o número de alunos que optou pelas sanções expiatórias.

indisciplina; justiça; adolescência


The aim was to analyze the sense of retributive justice, particularly, among the undisciplined and disciplined students, and to observe which type of reaction prevails: expiatory or reciprocity. The teachers and students were asked about their conceptions of discipline and indiscipline. They were also asked to attribute a value judgment. Results showed that the teachers based themselves on several categories to define discipline and indiscipline, and the main were behavior, learning and motivation. As for the students, the preference for the categories differed. In attributing a judgment value, the great majority of 92,59% considers indiscipline not good. Regarding the prevailing type of reaction, expiatory or reciprocity, students consider more severe and fair the reciprocity sanction and they would rather punishment to be in such way. It was also high, though, the number of students who preferred the expiatory sanctions.

indiscipline; justice; teen age


Indisciplina e a noção de justiça em adolescentes escolares

Indiscipline and the sense of justice in high school teenagers

Maria de Fátima Pires Carneiro da CunhaI; Aline Santti ValentinII; Débora Cristina dos Santos LisboaII; Eleonora Carolina Martins MonteiroII; Priscila XanderII

IDepartamento de psicologia Universidade Estadual de Maringá-UEM. Doutora em Psicologia Escolar - coordenadora - pires@irapida.com.br

IIAcadêmicas de psicologia: priscilaxander@ig.com.br; eleonoracarolina@hotmail.com; débora_lisboa@hotmail.com; allinesantti@terra.com.br

RESUMO

O objetivo foi de averiguar a noção de justiça retributiva, mais precisamente entre os alunos indisciplinados e disciplinados e observar a prevalência dos dois tipos de reações: expiatórias ou de reciprocidade. Verificar o conceito de disciplina e de indisciplina entre professores e alunos e a estes pedir para atribuir um juízo de valor. Os resultados demonstraram que os professores partiram de várias categorias para definir disciplina e indisciplina e as priorizadas foram comportamento, aprendizagem e motivação. Para os alunos ocorreram diferenças na preferência de categorias. Quanto à atribuição de valor a grande maioria, 92,59%, considera que ser indisciplinado não é algo bom. Quanto à prevalência dos dois tipos de reações expiatórias ou de reciprocidade relativas à sanção, os alunos consideraram como mais severa e justa as sanções por reciprocidade e preferiram punir através da mesma. Porém, é grande o número de alunos que optou pelas sanções expiatórias.

Palavras-chave: indisciplina; justiça; adolescência.

ABSTRACT

The aim was to analyze the sense of retributive justice, particularly, among the undisciplined and disciplined students, and to observe which type of reaction prevails: expiatory or reciprocity. The teachers and students were asked about their conceptions of discipline and indiscipline. They were also asked to attribute a value judgment. Results showed that the teachers based themselves on several categories to define discipline and indiscipline, and the main were behavior, learning and motivation. As for the students, the preference for the categories differed. In attributing a judgment value, the great majority of 92,59% considers indiscipline not good. Regarding the prevailing type of reaction, expiatory or reciprocity, students consider more severe and fair the reciprocity sanction and they would rather punishment to be in such way. It was also high, though, the number of students who preferred the expiatory sanctions.

Keywords: indiscipline; justice; teen age.

Embasamento Teórico

A questão da indisciplina e da violência nas escolas, atualmente, tem sido colocada em evidência pelos meios de comunicação principalmente jornais, revistas, televisão, internet, entre outros. Elas ocorrem entre os alunos e também nas relações entre professores e alunos, aparecendo das mais variadas formas, tais como agressão, brigas, desentendimentos, roubos, uso de drogas, assassinatos e agressão à própria escola.

Chauí (1999) em seu artigo sobre uma ideologia perversa chama atenção para o fato de que as explicações para a violência impedem que a violência real se torne compreensível. Segundo ela, a sociedade brasileira não é percebida como sendo estruturalmente violenta, ou seja, a violência real é ocultada por vários dispositivos, e, na medida em que esta acontece, é considerada apenas como um acidente na superfície social. Portanto, apesar das desigualdades sociais, econômicas, culturais, das exclusões, do autoritarismo que regula as relações, da corrupção no funcionamento das instituições, do racismo e das intolerâncias religiosas, quando a violência aparece é denominada pelos meios de comunicação como um fato esporádico superficial. Lastória (2003) enfatiza a fala do Adorno ao alertar para o fato de que no ato educativo é imprescindível contrapor-se à amnésia social ou, não se deve aceitar e curvar-se às atrocidades cometidas no passado como algo que simplesmente já passou . Considera que a irracionalidade institucional do sistema não se alterou e continua impondo-se aos indivíduos, principalmente em relação aos objetivos que engendraram Auschwitz .

Essa "onda de indisciplina e violência" apresentada pela mídia e pela vivência de alguns de forma mais contínua, provoca temor a diretores, orientadores, professores, pais, alunos, enfim, a toda a sociedade. Neste trabalho, enfocar-se-á principalmente a questão da indisciplina no cotidiano das salas de aula, não será enfocado a questão da violência pois este tema por si só acarretaria análises que vão além do que se quer enfatizar no momento. Portanto, o nosso foco de análise referir-se-á aos estudos sobre indisciplina nas salas de aula.

Ao analisar as causas sobre a indisciplina, nos deparamos com diversos fatores e abordagens teóricas para compreender o fenômeno. Alguns estudos, como o de La Taille (1996), consideram a indisciplina em sala de aula como decorrente do enfraquecimento do vínculo entre moralidade e sentimento de vergonha; e este enfraquecimento explica diversos comportamentos dos alunos considerados indisciplinados. O autor cita um exemplo do aluno não sentir vergonha de suas balbúrdias pois não vê no respeito ao outro um valor a ser reverenciado. E chama a atenção para o lugar que a escola ocupa hoje na sociedade, para a criança e para a moral. La Taille (1996) propõe que deve-se reforçar na criança o sentimento de sua dignidade como ser moral e prepará-la para o exercício da cidadania. Aquino (1996) considera a indisciplina como um sintoma que surte no interior da relação educativa, podendo estar associada a uma carência psíquica do aluno. Tiba (1997) levanta outras várias causas para a indisciplina, tais como os distúrbios pessoais, as etapas de desenvolvimento, problemas de relacionamento, entre outros. Guimarães (1996) coloca que uma disciplina homogenizadora está destinada ao fracasso, visto que para ela o mais importante é que os educadores descubram os mundos de onde os alunos provêm e constituam práticas pedagógicas que levem em conta características das crianças e jovens que hoje frequentam as escolas. Desta forma, os programas, as aulas, a organização e os conteúdos ensinados deverão estar próximos da realidade e das necessidades dos alunos para que a escola passe a possuir um significado para eles, de modo a causar interesse e envolvimento por parte dos alunos.

A Organização das Nações Unidas ao pesquisar sobre as razões do crescimento da delinquência entre adolescentes no mundo (citado por MAGALHÃES, 1997) chegou à conclusão que o sentimento de abandono aparece com frequência nos relatos dos jovens que roubaram, mataram, se drogaram e/ou traficaram. No estudo afirma-se que a falta de perspectiva, o distanciamento dos pais, a separação e permanente conflito do casal, a desarmonia ou simplesmente pais ausentes por imperativos profissionais, aparecem como preponderantes nas estatísticas das famílias que geram filhos considerados desajustados.

Através de um estudo sueco citado por Bettelheim (1996), foi demonstrado que adultos disciplinados que estão de acordo com seus valores não têm a necessidade de pregar o autocontrole para seus filhos. Em contrapartida, os pais que dizem aos filhos para serem disciplinados, mas não se apresentam como tais mostram-se ineficazes.

Segundo Araújo (1996), quando se evoca a indisciplina, a escola focaliza o desrespeito às regras estabelecidas. Para ele, nem todas as regras obedecem a um princípio de justiça, concluindo que a indisciplina pode ser um sinal de autonomia. A indisciplina pode ser considerada imoral ou, por outro lado pode não ser imoral quando representa um protesto em relação à autoridade. Neste caso, o aluno pode não se sentir obrigado a cumprir a regra. Isto quer dizer que o aluno que é considerado indisciplinado não é necessariamente imoral. O método da repressão, de acordo com o autor, é útil apenas para os sujeitos indisciplinados que temem a autoridade. Mas há aqueles em que os sentimentos de medo e afeto não estão presentes em suas relações, levando ao desrespeito pela autoridade, ignorando as ordens e regras impostas, reforçando estados de heteronomia e não trazendo os resultados esperados. Para ele, um dos objetivos da educação é levar o sujeito a construir uma autonomia de pensamento, que faça o aluno respeitar as regras após raciocinar em princípios de reciprocidade se ela é justa ou não.

Piaget (1994, originalmente publicado em 1932) afirma que a noção de justiça e como esta se desenvolve resulta diretamente de determinados tipos de relações familiares, sociais e religiosas. A noção de justiça, segundo ele, resulta diretamente da cooperação e o sentimento de justiça desenvolve-se através do respeito mútuo e da solidariedade entre crianças. Autores como Kolberg (citado por MENIN, 1996) compartilharam esta ideia através de uma pesquisa sobre o raciocínio moral em adolescentes, concordando com Piaget quanto à importância da cooperação para a construção de uma moralidade mais autônoma. A pesquisa feita por Menin tem o objetivo de demonstrar que as escolas atuais, com frequência, constroem uma moral mais heterônoma do que autônoma, pois as regras impostas pelos professores nas escolas seguem um sistema arbitrário de punição e recompensa, que não são reexaminadas pelos alunos para que estes possam compreender seus significados racionais e sociais. Araújo destaca que um ambiente escolar democrático ou de cooperação não assegura a ação moral de quem o experiencia, porque nada garante que uma pessoa que possua um juízo moral autônomo venha a se comportar de acordo com este juízo.

Deve-se ressaltar também os estudos de Kolberg (1975, 1985, citado por FREITAG, 1997) sobre os programas de Educação Moral, que podem ser agrupados em duas grandes categorias, conforme detectou a autora Freitag. Os projetos que envolveram discussões de dilemas sociais e os projetos preocu-pados com a construção de uma comunidade justa, democrática. Este segundo projeto mostrou que os alunos são capazes de elaborar suas próprias regras e resolver conflitos resultantes de quando não observam suas próprias leis ou as transgridem. Os autores concluíram com este programa que a cooperação e a solidariedade entre estudantes e professores foi mais eficiente que o princípio da disciplina no cotidiano escolar.

Segundo Piaget (1994), há dois tipos de justiça, sendo o primeiro tipo inseparável da sanção, considerado o mais primitivo, apresentando uma proporcionalidade entre o ato e a sanção, ou uma correlação entre os atos. O segundo tipo domina a primeira, por ser mais desenvolvida. Vai implicar na ideia de igualdade, ou seja, dizemos que uma repartição é injusta quando favorece uns à custa de outros.

O problema das punições foi o primeiro item investigado em seu estudo, em que ele encontrou dois tipos de reações com relação à sanção. Para um determinado grupo de crianças, quanto mais severa a punição, mais eficaz ela se torna, pois, para este grupo, a criança devidamente castigada saberá cumprir o seu dever. Este é um tipo de reação que se apresenta em qualquer idade, mesmo entre adultos. No outro grupo, as sanções justas são aquelas onde há uma restituição, ou um tratamento de reciprocidade. Ou seja, para este grupo, a repreensão e explicação são consideradas suficientes e proveitosas, tornando-se desnecessário o castigo arbitrário.

Na justiça retributiva, que é considerada por Piaget a mais primitiva, há dois tipos de sanções. Uma é a expiatória, que possui um caráter arbitrário, pois não há uma relação entre o conteúdo da sanção e a natureza do ato sancionado. A punição se dá através da privação de algo, ou seja, levar à obediência através de uma repreensão suficiente, acompanhada por um castigo doloroso. Nesse tipo de justiça, o importante é que haja uma proporcionalidade entre o sofrimento imposto e a gravidade da falta, que tem a ver com a coação e com as regras autoritárias.

Uma outra sanção é a de reciprocidade, que é mais desenvolvida, e tem por objetivo fazer com que o indivíduo compreenda o significado da falta, sendo constituída através de uma relação necessária entre os indivíduos e seus próximos.

Piaget classifica esta sanção indo das mais severas até as menos severas.

A primeira é a exclusão, que pode ser momentânea ou definitiva, usada pelo adulto, por exemplo, quando a criança não se comporta bem em um passeio, privando-a do próximo, rompendo assim o elo social momentaneamente.

O segundo tipo é o de apelo para a consequência, direta e material dos atos. Se a criança quebra um vidro do quarto, por exemplo, o pai irá deixá-lo quebrado por alguns dias para que a criança possa sentir as consequências do seu ato.

O terceiro tipo é o de privação do culpado por algo do qual abusa. Ou seja, se a criança quebra algo, este não será mais emprestado a ela.

O quarto tipo é a restituição, onde a criança irá substituir ou pagar o objeto quebrado ou roubado.

Em quinto lugar, há a reciprocidade propriamente dita. Nesta sanção deve ser feito à criança exatamente o que ela própria fez. É uma sanção considerada em certos casos como absurda, pelo fato de devolver o mal com o mal ou responder uma destruição com outra.

Numa outra categoria encontra-se a simples repreensão, onde não haverá nenhuma punição, apenas levando o culpado a compreender onde ele rompeu o elo de solidariedade.

Em sua pesquisa, Piaget (1994) pretendia verificar se a noção de justiça de crianças entre seis e doze anos, estava direcionada à sanção expiatória ou à reciprocidade. Investigou cerca de cem crianças através de histórias por ele criadas. Os resultados apontaram para uma clara evolução entre as idades, pois, em três grupos com idades entre seis/sete anos, oito/dez anos e nove/doze, indicaram que os mais novos emitiram mais respostas expiatórias e os mais velhos foram emitindo maior número de respostas de sanção por reciprocidade. É importante ressaltar que estes grupos de crianças pertenciam a um meio social e grupo étnico específicos, ou seja, um meio popular de Genebra, da década de 30.

Piaget (1994) concluiu que a noção de justiça se desenvolve a partir da prática, da vivência do respeito mútuo e da solidariedade entre as crianças, portanto, independe da influência do reforço de preceitos ou exemplo prático dos adultos. Além disso, o autor afirma que esta noção de justiça e o respeito às regras devem ser construídos através das experiências e interações do individuo com o meio no qual está inserido.

As primeiras formas da consciência do dever nas crianças são formadas por heteronomia ou moral da coação. Neste contexto, Piaget denomina de realismo moral a tendência da criança em considerar os deveres, os valores como sendo obrigatórios. Tal realismo moral possui basicamente três características. A primeira refere-se ao fato de que o bem se define rigorosamente através da obediência, sendo que a regra não é uma realidade elaborada pela consciência, e sim é fornecida, já pronta exteriormente à consciência, já a segunda característica atenta ao fato de que no realismo moral a regra deve ser observada na íntegra, e não no espírito.Aúltima característica é que ele acarreta uma concepção objetiva da responsabilidade, pois a criança avalia as atitudes em função da conformidade com as regras já estabelecidas desconsiderando sua intenção.

Vale considerar que certos atos de indisciplina são genuinamente morais, principalmente quando a atitude reflete alguma revolta do aluno por ter sido humilhado ou injustiçado. Portanto, nem todo o ato de indisciplina deve ser condenado, visto que, há necessidade de analisarem-se suas causas, bem como as normas que as sustentam. Ilustrando, Guimarães (1996) coloca que a indisciplina não expressa apenas ódio, raiva, vingança, mas também é uma forma de interromper as pretensões do controle imposto pela escola.

De acordo com Araújo (1996), um dos objetivos da educação atual é auxiliar o sujeito a construir uma autonomia do pensamento que obrigue sua consciência a respeitar regras após raciocinar em princípios de reciprocidade, se a regra é justa ou não.

A nossa proposta foi de verificar a propensão dos dois tipos de respostas, expiatória ou de reciprocidade, para o grupo de adolescentes considerados como "indisciplinados e disciplinados" dentro da escola. Ou, como estão pensando esses alunos desta década? Segundo eles, os que estão fora da lei merecem que tipo de castigos, expiatório ou reciprocidade? E os "disciplinados", como veem a questão da justiça? Será que os "disciplinados" têm a noção de justiça mais desenvolvida que os "indisciplinados"? Ou vice-versa? Será que estes dois grupos diferem em relação aos tipos de respostas? Essas foram algumas das questões que permearam o início deste projeto.

Objetivos

1. Verificar a noção de justiça retributiva entre dois grupos de alunos considerados "disciplinados" e "indisciplinados";

2. Observar nos grupos a prevalência dos dois tipos de reações expiatória e reciprocidade com respeito à sanção. A de ser justa e necessária ou quanto mais severa melhor. Ou a simples repreensão e explicação como mais proveitosa;

3. Verificar o conceito de disciplina e de indisciplina entre os professores e entre escolares e pedir para os alunos atribuírem um juízo de valor.

Metodologia

Fizeram parte da amostra 54 alunos cursando a quinta e sexta série do Ensino Fundamental na faixa etária de dez a catorze anos, sendo vinte sete considerados pelos professores como "indisciplinados"(doze do sexo feminino e quinze do sexo masculino) e vinte sete "disciplinados"(quatorze do sexo feminino e treze do sexo masculino) pertencentes a escolas públicas estaduais do norte do Estado do Paraná mais precisamente na cidade de Maringá. A maioria, ou 40,74%, pertencia à faixa etária de onze anos, 31,48% estavam com doze anos, 12,96% com dez , 9,26% com treze e 5,55% com catorze anos. Para escolha dos alunos, foi utilizado um questionário direcionado aos professores, que lecionavam na quinta e sexta séries, e aplicado de forma individual em vinte e cinco professores, pertencentes a três escolas diferentes. Esse questionário continha perguntas sobre quais alunos eles consideravam "indisciplinados" e quais os mais "disciplinados", pedindo também como eles definiam esses conceitos. A escolha dos professores foi realizada de forma aleatória a partir de uma lista dada pela escola com todos os nomes dos docentes que lecionavam nas quinta e sexta séries do Ensino Fundamental. A maioria dos professores, ou 90%, era do sexo feminino com idade que variava dos trinta e dois aos cinquenta e quatro anos. Os alunos apontados mais frequentemente pelos professores como "indisciplinados" ou "disciplinados" foram incluídos na amostra. A coleta de dados com os professores teve início no final de abril do ano de 2003.

Foram realizadas entrevistas individuais e diretivas com os alunos, cujo teor foi previamente elaborado e testado com indivíduos que não pertenciam a amostra. Nelas estavam incluídas as questões pertinentes aos objetivos, tais como o que é indisciplina e pedia para que eles dessem um juízo de valor sobre o fato de alunos serem considerados indisciplinados. Pedia também a justificativa para a resposta. Após estas perguntas eram contadas quatro histórias dentre as sugeridas por Piaget (1994) e faziam-se as perguntas pertinentes conforme a sugestão do autor citado. As perguntas todas seguiram o roteiro proposto por àquele autor e todas elas estão no livro indicado. Deve-se ressaltar que entre as histórias escolhidas, algumas referiam-se às condutas por reciprocidade e outras por expiação. Todas as entrevistas foram gravadas em fita cassete, as quais foram transcritas, fornecendo assim o material para análise dos resultados. Essa coleta de dados teve início em julho de 2003 e estendeu-se até dezembro desse mesmo ano. As análises foram realizadas por história e não por criança, contando por unidade cada resposta de cada uma das crianças relativa àquela faixa e ao grupo pertencente. isto significa que foram 216 respostas no total para análise.

Na análise sobre o conceito de disciplina e indisciplina dados pelos professores e alunos, foi usada a classificação sugerida por Bardin (1997), analisando as respostas a partir de categorias mais gerais. Com as categorias estabelecidas, fazia-se a classificação das respostas, as quais foram realizadas por duas pessoas. Se ocorria desacordo, procurava-se rever os motivos, após os esclarecimentos chegava-se a um acordo. Geralmente, os motivos dos desacordos eram desatenção na hora da classificação. Na maioria das vezes, o acordo ocorreu em torno de 80% a 90%. Das categorias pôde-se chegar à subcategorias para melhor explicitar os conceitos. Após a classificação fez-se análise estatística por porcentagem para melhor visualização dos dados.

Deve-se ressaltar que esta pesquisa teve aprovação do comitê de ética e seguiu todos os parâmetros recomendados por ele. Às escolas a que esta pesquisa estava vinculada foi solicitado o consentimento junto a direção, explicitaram-se os objetivos, a metodologia, os procedimentos e todos os dados de interesse dos participantes para dirimir quaisquer dúvidas sobre a pesquisa. Os pais dos alunos também assinaram termo de consentimento que continha todos os dados da pesquisa.

Resultados

Pode-se observar que a noção de justiça retributiva entre os dois grupos de alunos "disciplinados" e "indisciplinados" variou de diversas formas e também intragrupo. Os fatores de diferenças foram em relação à idade, ao gênero, às respostas para as questões de como os alunos puniriam crianças que haviam feito algo errado e em relação ao tipo de respostas referente à qual sanção era mais justa e a mais severa.

Comparando os alunos de 11 e 12 anos pesquisados por Piaget em 1930 com os nossos adolescentes de 2003, 78% dos da década de 30 priorizaram a sanção por reciprocidade. Os da nossa década (60,89%) preferiram às sanções por reciprocidade e 39,10% as sanções expiatórias. incluindo agora todas as idades, nesse estudo 56,48% puniriam através da sanção por reciprocidade e 43,06% puniriam com a sanção expiatória, que é ao nosso ver um número bastante elevado.

Como se viu anteriormente no embasamento, a opção por determinado tipo de sanção não depende somente da idade, mas do tipo de educação familiar, social, religiosa etc. Este resultado sugere que a educação formal e informal vivenciada nessas escolas pesquisadas não tem incentivado ou não tem encontrado meios que façam prevalecer a tendência para as sanções por reciprocidade que, segundo Piaget (1994) seriam mais evoluídas que as expiatórias.

Para o grupo dos considerados "indisciplinados", 51,88% preferiu a sanção por reciprocidade, 47,22% a sanção expiatória. Observou-se que nesse grupo a preferência pela reciprocidade diminuiu mais ainda, em relação à década de 30. No grupo dos "disciplinados", 61,11% preferiu a sanção por reciprocidade e 38,89% a sanção expiatória. Vê-se, portanto, que no grupo considerado "disciplinado" a maioria tem a noção de justiça mais desenvolvida de acordo com os critérios de Piaget (1994).

Quanto ao gênero, pôde-se verificar que as mulheres "disciplinadas", mais do que os homens "disciplinados" e "indisciplinados'', deram preferência para a sanção por reciprocidade.

Quando a variável foi idade, os menores, ou os de 10 anos, preferiram a sanção expiatória para punir. Este fato está de acordo com os achados de Piaget (1994), quando este afirma que o grupo de menor idade é mais propenso a dar respostas do tipo expiatória e os maiores por reciprocidade. No entanto, ele considerava a hipótese de que em outros meios os resultados poderiam ser completamente diferentes, o que não ocorreu para esta faixa etária.

Sabe-se que as sanções expiatórias estão relacionadas com a coação e as regras autoritárias. Trata-se de uma regra imposta que o indivíduo transgride e que para recolocar as coisas em ordem ou reconduzir o individuo à obediência utiliza-se de uma repreensão severa acompanhada de um castigo doloroso.

Verifica-se, portanto, que os nossos adolescentes, pertencentes a essas escolas investigadas neste início de século XXI, têm se identificado cada vez mais com práticas que usam a coação e regras autoritárias como forma de fazer justiça. As práticas ou condutas que vão ao encontro da cooperação e as regras de igualdade diminuíram, em vez de aumentarem com o passar do tempo, se comparadas com as da década de 30. Sabemos do risco que a humanidade corre quando prevalece a prática autoritária e de coação em detrimento da cooperação e das regras de igualdade. Mezan (2005) lembrou a afirmação de Wilhelm Reich de que o ser humano está pronto para odiar aquilo que "não é espelho" de si mesmo, porque este impulso de odiar e massacrar o diferente faz parte da nossa psique. Ora, acrescenta-se e pergunta-se faz parte de nossa psique porque foi construída pelo tipo de relações engendradas no cotidiano, onde a noção de justiça e o respeito às regras deveriam ser construídos através das experiências e interações do indivíduo com o meio no qual está inserido? Ou porque nos foi dada, pronta e de forma inconsciente, como nos aponta Cohn (1986) ao enfatizar que a ideologia é um processo formador da consciência e opera ao nível inconsciente? Essas são questões teóricas que chegam aos nossos dias e trazem contribuições divergentes acerca da formação da consciência e dos valores. Certamente esta pesquisa não resolve este tipo de problema, mas traz à tona que os alunos investigados têm se identificado cada vez mais com práticas que usam da coação e regras autoritárias. Isso não é o que nós, enquanto educadores, gostaríamos de ter como ideal das relações futuras.

Seja qual for dessas teorias citadas acima a que vai prevalecer nas próximas décadas, defende-se que as escolas e a educação em geral poderiam estar contribuindo ou promovendo o pensamento de reciprocidade como forma de expressar a justiça em nossos dias. Tanto através de sua prática, mais precisamente da sua ação, quanto através de debates, reflexões e indagações em seu cotidiano.

Analisando em segundo lugar a questão de qual a sanção mais justa, os alunos em sua grande maioria responderam que era a sanção por reciprocidade, mais precisamente a restitutiva. Comparando com a resposta de como puniriam, eles preferiram punir através da sanção por reciprocidade restitutiva e é essa sanção também que eles consideraram a mais justa.

Para os alunos de 10 anos, a sanção mais justa foi a de reciprocidade, mas para punir eles indicaram a sanção expiatória. Então, aqui observou-se uma contradição nessa faixa etária, ou seja, consideraram a sanção mais justa, a reciprocidade, mas prefereriram punir com a sanção expiatória. Para os alunos de 11, 12, 13 e 14 anos, todos consideraram a mais justa a sanção por reciprocidade e também todos nessas idades preferiram punir com a sanção por reciprocidade, aqui não houve contradição.

Para a questão da sanção mais severa, viu-se que para toda a amostra a sanção considerada mais severa foi à sanção por reciprocidade, mais precisamente a consequência direta, ou seja, aquela em que a criança deveria sentir as consequências dos seus atos.

Observou-se, portanto, que para a amostra que investigamos, os alunos preferiram punir através da sanção por reciprocidade restitutiva e a sanção que eles consideraram mais severa foi a reciprocidade com consequência direta. Lembrando que a sanção que eles escolheram como a mais justa foi à reciprocidade restitutiva, concluiu-se que este grupo de alunos pesquisados preferiu punir com a sanção que considerou mais justa do que com aquela que considerou mais severa.

Uma recente pesquisa da universidade de Zurique (citado por NEiVA, 2004) demonstrou que homens adultos optaram pela punição mais severa, quando eram vítima de trapaça, e a punição imputada no trapaceiro acionava na vitima a região cerebral responsável pelo sentimento de recompensa.

Vale lembrar, que segundo Piaget, as sanções por reciprocidade mais severas indo da mais severa para menos eram: 1-) consequência direta, 2-) reciprocidade simples, 3-) restitutiva, 4-) simples repreensão. Verificou-se, de acordo com o levantamento das respostas dos alunos, que para punir e como sanção mais justa, eles escolheram a sanção por reciprocidade restitutiva, ou seja, uma das menos severa.

Quanto aos conceitos de indisciplina definidos pelos professores, as categorias priorizadas foram as de comportamento, motivação e de aprendizagem. Observou-se que o conceito de indisciplina para os professores entrevistados não está restrito aos que não respeitam as normas, as regras do bom comportamento do aluno idealizado, mas também aquele que não é motivado, o desinteressado, o que não aprende, o que não entende o conteúdo.

Quanto ao conceito de disciplina para os professores observou-se um avanço. Os professores em sua grande maioria já definem o disciplinado como aquele que é participativo, mas fala na hora certa. Pouquíssimos ainda definem o disciplinado como aquele que escuta e fica quieto. A escola ainda idealiza um tipo de aluno que cada vez mais não faz parte da realidade da maioria das salas de aula, ou seja, o aluno disciplinado. Esta idealização acaba promovendo atuações e práticas que, em vez de incluirem o aluno, acabam excluindo por não saber lidar com a problemática. E estas atuações muitas vezes tornam-se uma barreira, um empecilho para promoção desses alunos.

A definição dada pelos alunos sobre o conceito de indisciplina não apresentou diferença em relação à definição dos professores. Os alunos partiram também do comportamento, da desmotivação e da não aprendizagem para defini-la.

Pouquíssimos alunos reportaram-se ao fato do aluno indisciplinado ser um aluno mau, ou seja, poucos levaram em conta um valor moral para definir indisciplina. Observa-se que a eles pouco importa se o outro possui valores do tipo "respeitar o outro" e consequentemente ser bom aluno, ou o contrário. A grande maioria partiu de definições objetivas do comportamento, do tipo não ficar quieto, atrapalhar, bagunçar etc.

Quanto à questão dos valores, quando se perguntou se ser indisciplinado é bom ou ruim, a grande maioria respondeu que é ruim. isto significa que a nível verbal, a indisciplina não é algo bom, os alunos não têm desprezado este sentimento, a indisciplina ainda não é um valor positivo. La Taille (1996) afirmou que indisciplina em sala de aula decorre do enfraquecimento entre moralidade e o sentimento de vergonha, observa-se portanto que a nível verbal os alunos não têm desprezado esse sentimento. O conceito de indisciplina concebida pelos alunos ainda não é um valor. Pode-se argumentar aqui que a sociedade ainda não invalidou o conceito de indisciplina como algo ruim, uma vez que, como diz Chauí, cada cultura e sociedade valida determinados juízos e valores e invalida outros de acordo com seus princípios e define para seus membros o que devem respeitar ou detestar. Na ação, eles manifestam a indisciplina nas mais diversas formas apontadas pelos professores e por eles mesmos, mas na palavra, na linguagem ou no verbal ainda é algo ruim e não se deve praticá-la.

As justificativas que os adolescentes deram para argumentar por que a indisciplina é algo ruim foram as mais diversas: 1) porque prejudica o desempenho; 2) prejudica a relação; 3) prejudica o futuro profissional; 4) o aluno é que se prejudica; 5) valor moral.

Quanto ao fato da relação ficar prejudicada eles enfatizaram a relação com os professores, alunos e pais. Para essa justificativa da relação, ocorreram diferenças de respostas entre os homens e as mulheres. Os homens "indisciplinados" consideraram mais importante a figura de autoridade do professor e de como esta relação deve ser preservada.As mulheres, por sua vez, priorizaram a relação com as companheiras, pois esta seria a mais atingida em caso de indisciplina.

Enfim, os resultados desta pesquisa remetem para algumas reflexões que consideramos importante como por exemplo a escola precisar incluir práticas que tornem a educação promotora do pensamento em que prevaleçam outras alternativas, como a noção de justiça por reciprocidade, para contrapor as condutas que levam para o pensamento expiatório e às práticas de coação. Vale ressaltar que pesquisas têm demonstrado a importância da vivência e prática da cooperação e das regras de igualdade para promoção do pensamento por reciprocidade.

Texto recebido em 11 de julho de 2007.

Texto aprovado em 9 de maio de 2008.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    2009

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2007
  • Aceito
    09 Maio 2008
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