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Apresentação

DOSSIÊ: METALINGUAGEM E AQUISIÇÃO DA ESCRITA

Apresentação

A partir da década de 1970, diversos pesquisadores na área da aprendizagem da escrita têm demonstrado um crescente interesse em relação ao papel das habilidades metalinguísticas na aquisição da leitura e da escrita, investigando como elas se relacionam à maior ou menor eficácia nessa aquisição. Isto porque, enquanto a aquisição da língua falada é um processo natural para as pessoas criadas em sociedade, a aquisição da língua escrita requer mais do que viver em uma sociedade letrada, ou seja, sua aquisição é baseada em conceituações e regras conscientes que demandam uma aprendizagem específica. Pode-se dizer que na produção e compreensão da linguagem em situações de comunicação o falante/ouvinte utiliza processos cognitivos que objetivam a troca de informações, ou seja, o significado. Nessas situações, a atividade linguística em termos de forma é automática, pois não está focalizada nas estruturas que dão suporte à transmissão do conteúdo. De outra parte, a atividade metalinguística é necessariamente não automática e intencional, implica a capacidade de o indivíduo monitorar sua própria atividade. É, portanto, a sua natureza consciente que a torna essencial para a aprendizagem formal que ocorre no contexto escolar.

As pesquisas na área têm levantado e discutido questões importantes, por exemplo: quando se desenvolve a habilidade metalinguística, quais são os fatores que contribuem para esse desenvolvimento? ; se a habilidade metalinguística se desenvolve ao mesmo tempo para todos os componentes linguísticos (p.ex.: fonologia, sintaxe etc.), qual é a relação entre essa habilidade e a aquisição da escrita e quais são as implicações pedagógicas dos resultados dessas pesquisas?

Na realidade, a capacidade de analisar e manipular de forma intencional as unidades linguísticas pode ser adquirida como efeito da própria escolarização, mas não se pode deixar de reconhecer as inúmeras evidências de que certo nível de habilidade metalinguística é necessário para o processo de alfabetização, o que tem gerado muita controvérsia entre os pesquisadores sobre o papel preditivo da capacidade metalinguística na aprendizagem da linguagem escrita.

A posição mais aceita atualmente é a de que a conexão entre o desenvolvimento metalinguístico e a aquisição da escrita é bidirecional, ou seja, os dois fatores influenciam-se mutuamente. Assim, algum grau de reflexão sobre a linguagem é necessário para que a pessoa possa se alfabetizar, mas as capacidades genuinamente metalinguísticas resultam de aprendizagens explícitas próprias dos processos escolares de ensino-aprendizagem.

A organização deste dossiê teve como objetivo reunir contribuições teóricas e de pesquisas realizadas tanto em línguas estrangeiras como no português do Brasil. Desse modo, os artigos aqui apresentados refletem muito do estado da arte nesse campo de conhecimento. Entre as habilidades cognitivas e metacognitivas associadas à aquisição da escrita, este dossiê apresenta uma discussão teórica e resultados de pesquisas empíricas em torno de cinco habilidades metalinguísticas principais, a saber: metafonológica, metamorfológica, metassintática, metasemântica e metatextual.

No primeiro artigo, "Funcionamento cognitivo e habilidades metalinguísticas na aprendizagem da leitura", Sebastián Urquijo examina a aprendizagem formal da leitura no primeiro ano do ensino fundamental a partir de uma investigação realizada com alunos argentinos de escolas públicas e particulares. Os resultados do estudo mostram relações significativas entre o funcionamento cognitivo e o domínio das habilidades metalinguísticas com a aprendizagem formal da leitura. Em suas conclusões, o autor discute as relações encontradas entre as variáveis investigadas e destaca a influência dos fatores individuais no processo de aprendizagem da leitura.

No texto "Competência metalinguística antes da escolarização formal" os autores exploram a relação entre habilidades linguísticas e metalinguísticas, fazendo uma diferenciação entre habilidades decorrentes do uso da linguagem e habilidades de reflexão consciente sobre as estruturas e o funcionamento da linguagem. Além disso, o artigo discute o conceito de metalinguagem sob a perspectiva da linguística e da psicologia, concluindo que os linguistas utilizam o termo para se reportar aos processos de autorrefenciação (atividades de análise e descrição da própria língua), enquanto os psicólogos buscam a compreensão da atividade metalinguística, sob o ponto de vista do sujeito, mediante a manipulação reflexiva da linguagem.

O terceiro artigo apresenta uma revisão de pesquisas em que se verificou uma relação expressiva entre a consciência fonológica e a aquisição da linguagem escrita, bem como evidências de que o treinamento da consciência fonológica pode exercer uma influência benéfica nesta aquisição. Em seguida, o trabalho relata os resultados de um programa de intervenção voltado para o desenvolvimento de habilidades metafonológicas em alunos da educação infantil com o objetivo de facilitar a aprendizagem da leitura e da escrita. Nas conclusões do artigo as autoras destacam a importância de se formar professores alfabetizadores que compreendam o papel das habilidades metalinguísticas no processo de alfabetização.

A consciência morfológica (morfossintática) é o tema dos artigos 4, 5 e 6. Abordando o tema de forma diversificada, estes artigos discutem como o desenvolvimento desta(s) competência(s) metalinguística(s) relaciona(m)-se tanto com a aprendizagem inicial como com a ampliação e o aperfeiçoamento do domínio da leitura e da escrita. Marec-Breton, Besse e Royer realizam uma revisão sistemática de trabalhos que tratam especificamente da relação entre consciência morfológica e aprendizagem da leitura. A análise dos estudos revisados pelas autoras confirma que a consciência morfológica contribui para a aprendizagem da leitura (tanto no nível da instalação das habilidades de decodificação quanto no nível do desenvolvimento da compreensão), embora sugira que diferentes componentes da consciência morfológica possam exercer maior ou menor influência sobre o desenvolvimento das capacidades de decodificação e compreensão. No artigo seguinte, Guimarães e Paula afirmam que a relação entre metafonologia e aprendizagem da leitura e da escrita está bem documentada e salientam a necessidade de ampliar os estudos teóricos e empíricos que focalizem o papel das habilidades morfo(sintáticas) implícitas e explícitas na aprendizagem da linguagem escrita, dado que estes são ainda pouco numerosos. Consideram que a partir do estágio alfabético de aquisição da escrita, o aprendiz precisa enfrentar diferentes questões relativas à leitura (decodificação e compreensão) e à escrita (ortografia), diante das quais se amplia a importância da consciência morfo(sintática), dado que mesmo nos sistemas de escrita alfabéticos não se verifica uma correspondência biunívoca e recíproca entre letra e som. Nessa perspectiva, as autoras retomam estudos conduzidos em vários idiomas, inclusive estudos realizados no português brasileiro, para verificar como estas habilidades têm sido pesquisadas. As autoras concluem que, apesar do estado incipiente das pesquisas nesta área, tendo inclusive várias questões metodológicas a serem resolvidas, os estudos têm sugerido uma influência benéfica da reflexão consciente pautada na morfossintaxe para o domínio crescente da leitura e da escrita. No último artigo da tríade, Rosa e Nunes relatam os resultados de um estudo conduzido com alunos falantes do português europeu em que realizaram uma sensibilização (priming) para tentar detectar sinais precoces da representação morfológica de radicais numa tarefa de escrita. Os antecedentes (primes) utilizados compartilhavam o radical com os alvos e continham vogais tônicas bem articuladas; os radicais das palavras alvo continham vogais scwha (indistintas) átonas, que tipicamente resultam em dificuldades ortográficas. Seus resultados mostraram uma interação significativa entre os efeitos de sensibilização e o ano de escolaridade (idade) dos participantes. Assim, os pesquisadores verificaram que os alunos mais velhos utilizaram a informação morfológica sob condições de sensibilização, mas não encontraram evidência de que os alunos mais novos o tenham feito.

O acesso semântico no processamento visual de palavras é abordado no artigo de Salles, Holderbaum e Finger. Neste texto as autoras apresentam os resultados de uma pesquisa que investigou como o contexto semântico pode beneficiar participantes brasileiros (monolíngues) e chineses (multilíngues) em tarefas de reconhecimento de palavras na língua portuguesa. Seus resultados indicam que chineses, assim como os brasileiros, adultos e crianças, apresentaram efeito de priming semântico, respondendo de forma mais rápida aos alvos precedidos por primes semanticamente relacionados. Esses resultados confirmam que, tanto para os monolíngues como para os multilíngues, o acesso lexical na língua portuguesa pode ser facilitado pelo contexto semântico.

Os artigos seguintes abordam a compreensão leitora. Bottino, Emmerick e Soares apresentam os resultados de uma pesquisa de intervenção, com o objetivo de desenvolver a capacidade de compreensão de textos, da qual participaram dois grupos de alunos: alfabetizados na infância e alfabetizados na idade adulta. A comparação e análise dos resultados obtidos mostram que os leitores menos habilidosos melhoraram seus desempenhos nos níveis de compreensão textual, principalmente na macroestrutura e na argumentação. As autoras concluem que conhecer a dinâmica do processo de compreensão de textos e as possibilidades de uso de estratégias metacognitivas de leitura pode instrumentalizar os professores para um trabalho pedagógico que promova a competência leitora dos alunos.

O último artigo, de natureza teórica e escrito com base em pesquisas realizadas com crianças no Brasil e no exterior, discute as complexas relações entre consciência metalinguística e compreensão leitora a partir da consciência fonológica, da consciência morfológica e da consciência metatextual. Neste texto as autoras destacam que, diferentemente da consciência fonológica e morfológica, as relações entre a consciência metatextual e a compreensão leitora não são tão claras, havendo resultados divergentes quanto à contribuição do conhecimento sobre as propriedades do texto para a compreensão textual. Ao finalizar o artigo, as autoras salientam que o entendimento das relações abordadas permite construir um quadro teórico a respeito do papel da consciência metalinguística, em relação ao fonema, ao morfema ou às propriedades do texto, na compreensão textual, bem como extrair implicações educacionais acerca da aprendizagem da leitura.

Após esta breve apresentação do conteúdo dos artigos, cabe salientar que para o leitor fica, além da riqueza dos trabalhos aqui colocados, o desafio de participar deste processo de construção do conhecimento relativo à aquisição e ao aperfeiçoamento da linguagem escrita, mediante o diálogo que poderá estabelecer com estes textos de acordo com seus conhecimentos, sua prática, seus saberes.

Sandra Regina Kichner Guimarães

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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