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O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30

RESENHAS

Diogo da Silva Roiz

Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca. Professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul - Brasil (em afastamento integral para estudos)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 246p.

Por outras 'micro-histórias'

Seus objetivos básicos podem ser assim resumidos: a) reduzir a escala de observação do historiador, a fim de apreciar ações humanas e significados que passam despercebidos quando se lida com grandes quadros; b) concentrar essa escala em pessoas comuns e não em grandes personagens, buscando ouvir sua voz; c) extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão sociocultural relevante; d) apelar para o recurso da narrativa, ao contrário da história das grandes estruturas, sem entretanto confundir-se - dado seu conteúdo e seu estilo - com as narrativas tradicionais, predominantes no século XIX; e) situar-se no terreno da história, o que significa apoiar-se nas fontes, delimitando-se assim, claramente, a obra ficcional (FAUSTO, 2009, p. 9).

Assim, Boris Fausto sintetiza as principais características da 'micro-história'. Desde quando começou a ser divulgada em vários países, em fins dos anos de 1970, a 'Micro-história' tem recebido, cada vez mais, a atenção de pesquisadores interessados em apresentar personagens insólitos, excêntricos e obscuros na historiografia. Com isso, têm passado despercebidos, muitas vezes, trabalhos que não estão simplesmente interessados em participar desta onda 'de moda historiográfica' na pesquisa histórica, mas em repensar o campo de pesquisa, as fontes, os objetos e os personagens tratados. Até mesmo Carlo Ginzburg (2007), que foi um dos pioneiros neste campo de pesquisa na Itália, tem percebido os 'usos' e os 'abusos' que tem sido feitos da 'micro-história' nos últimos anos, dentro e fora daquele país. Ronaldo Vainfas (2002), que em seu livro Os protagonistas anônimos da história: micro-história procurou fazer um mapeamento do desenvolvimento deste campo de pesquisa, surpreendeu-se com as tentativas de diversos pesquisadores em encontrar personagens semelhantes a Domenico Scandella, dito Menochio, apresentado por Ginzburg, em seu livro O queijo e os vermes (de 1976).

Talvez, por esses motivos, o leitor acostumado com a obra de Boris Fausto (que organizou a História Geral da Civilização Brasileira, referente à República, escreveu, entre outros, A revolução de 1930, Crime e cotidiano, Trabalho urbano e conflito social, Negócios e ócios, História do Brasil, História concisa do Brasil, tenha organizado o livro Fazer América, e, recentemente, tenha publicado uma biografia sobre Getúlio Vargas) venha a se surpreender, à primeira vista, com o livro, lançado em abril de 2009, nas prateleiras das livrarias, intitulado O crime do restaurante chinês. Mesmo porque, o próprio autor, logo nas primeiras páginas do livro, já indica que sua pesquisa, num certo sentido, se inscreve no que tem sido definido, nas últimas décadas, como 'micro-história'.

No entanto, as surpresas que talvez venha a ter esse leitor, param por aqui. Ainda que o enfoque, suas preocupações, a divisão do livro (em 16 pequenos capítulos), a escala reduzida de análise e os 'personagens' sejam pessoas comuns, "invisíveis no plano dos grandes acontecimentos", as semelhanças com a 'micro-história' até aqui referidas e aceitas pelo autor, como uma maneira adequada de abordar o tema, também darão lugar a uma tentativa de avaliação crítica deste campo de pesquisa. Na medida em que o autor experimentará dar maior atenção ao 'contexto da época' (que normalmente é tido como secundário neste tipo de abordagem), em que se darão os acontecimentos que desencadearam o crime do restaurante chinês em 1938. E, além disso, os agrupa em uma análise da justiça praticada no período, da importância do carnaval para os paulistanos (e brasileiros) da década de 1930, do surgimento do futebol como 'paixão nacional' com a Copa do Mundo daquele ano, elencando 'heróis', e verificando a incidência de diferentes tipos de 'racismo' na sociedade brasileira daquele momento, principalmente, contra o negro.

Antes de avançar, convêm sintetizar o enredo do livro. Na manhã de 2 de março, por volta das seis e quarenta e cinco, o lituano Pedro Adukas, cozinheiro do restaurante, como era de costume, chega ao trabalho para abrir o local, que se encontrava na rua Wenceslau Braz, próximo à Praça da Sé. Não era um dia qualquer para a cidade de São Paulo: tratava-se de uma quarta-feira de cinzas, após três dias de carnaval. Ainda assim, Adukas continuou sua rotina, batendo palmas para que o portão fosse aberto. Ao ver que ninguém o atendeu, percebeu também que o cadeado não trancava o portão como de costume. Aos poucos levantou a pesada grade e entrou no imóvel. Lá se deparou com uma cena insólita: no salão de refeições do restaurante, encontravam-se postados no chão, e ensanguentados, os corpos de dois funcionários, e em suas imediações o corpo do dono do restaurante, o Sr. Ho-Fung, e de sua esposa, Maria Akiau, estendida em um dos quartos do imóvel. Ainda atordoado com a cena, Adukas saiu, passando pela Praça da Sé, "mal reparou na catedral ainda em construção", e dirigiu-se até a Central de Polícia. Em poucos minutos os policiais chegaram à cena do crime e iniciaram as investigações. No local perceberam que quem efetuou o crime não teve tempo para abrir o cofre, embora tenha tido para efetuar uma refeição. No cofre os policiais identificaram algumas cadernetas de anotações e balancetes, e pouco mais de vinte um conto de réis em dinheiro.

Em pouco tempo o crime foi noticiado na maioria dos jornais da época - o que é ricamente indicado no decorrer do livro, em reprodução de fotos e reportagens da época. Com manchetes variadas, atribuía-se ao crime os mais diversos adjetivos, como uma verdadeira 'chacina'. Não se sabia quem o cometeu, e se foi uma ou mais pessoas (fato que permaneceu sem resolução após o fim das investigações, que se deram alguns anos depois, em 1942). De fato:

O crime do restaurante chinês passara sem dúvida a integrar o rol dos grandes crimes ocorridos em São Paulo. O que seriam os grandes crimes? Em poucas palavras, episódios semelhantes aos que hoje assim rotulados, que se destacam pela exuberância sangrenta, por envolver paixões amorosas, pela importância dos protagonistas, ou por tudo isso junto. A diferença entre o passado e o presente se encontra na banalização, mesmo desses crimes, provocada pela multiplicação dos casos, o que reduz seu impacto. Duram pouco nas imagens da televisão, nas páginas dos jornais, em uma ou outra sessão dos tribunais do júri (p. 39).

Havia também poucas testemunhas. De início, a polícia averiguou suspeitos estrangeiros (japoneses, chineses, lituanos) que pudessem ter alguma ligação com o casal, ou com o restaurante. Depois, passaram a dar também atenção aos frequentadores do restaurante, e aos possíveis indivíduos que estiveram no local na véspera do crime. Entre os suspeitos, o jornal A Gazeta noticiou um tal João Agin, depois reconhecido como Ho Det Men, que teria passado pelas imediações dias antes da chacina. Depois de averiguar e tomar nota de outras testemunhas, a polícia passou a seguir as pistas, no encalço de outro suspeito, desta vez 'um preto', Arias de Oliveira, que chegara a São Paulo em 1937, com 21 anos de idade, vindo de Franca, no interior do Estado. Na Capital, Arias encontrara alguns trabalhos temporários, dos quais um será justamente no restaurante de Ho-Fung e Maria Akiau. Diante das suspeitas que se deram sobre Arias, o autor procurou reconstituir os momentos que este viveu no carnaval, como foi averiguado pela polícia, como se esquivou de perguntas, e quais as técnicas de persuasão que foram utilizadas para tentar indiciar o suspeito pelo crime. Neste ponto, faz um balanço das principais técnicas, teorias e formas de interrogatório usadas pela polícia de São Paulo nos anos 30.

Na noite de 19 de março, em função das pressões policiais e da própria imprensa, Arias fez uma 'primeira confissão', na qual diz ter participado de alguma forma do delito, influenciado por Maneco (Manoel Custódio Pinto). Em 22 de março, após responder a várias perguntas, volta a falar do crime: dizendo que na terça-feira, véspera do crime, esteve no restaurante para pedir a Ho-Fung o emprego de volta, ao qual havia saído há poucos dias. Argumentou que estava passando fome há vários dias e naquela noite, ao passar pelo restaurante, pediu para dormir em uma das mesas, como era já de costume entre os empregados. Mesmo neste testemunho continuou afirmando que não matará ninguém, desistira do roubo, e apenas havia feito uma refeição.

Com tais indícios, os peritos passaram a elaborar mais detalhadamente o perfil psicológico de Arias. Para a autoridade policial e para a imprensa o mistério estava resolvido. E:

Para indiciar Arias, o dr. Pedro de Alcântara tinha vários elementos acusatórios: as contradições em suas declarações, alguns depoimentos além dos de Manoel Custódio, a confissão e o conjunto de provas científicas, com destaque para o resultado do teste de Jung-Bleuler (p. 119).

Após a análise do inquérito e as deliberações de Pedro de Alcântara foi solicitada a prisão preventiva de Arias em 25 de maio.

Naquele período, a Frente Negra Brasileira estava iniciando a sua atuação na defesa dos direitos e da dignidade dos negros no país. Se propondo a 'luta contra a discriminação racial', a Frente, depois sucedida pela União Negra Brasileira (que terá uma existência efêmera), atuou na defesa de Arias, contratando para defendê-lo o advogado Paulo Lauro. Mesmo com sua atuação, os pedidos de revogação da prisão foram negados. Neste processo, o autor faz uma fina análise entre o crime e a Copa do Mundo de 1938, e 'a construção do racismo à brasileira'. Para ele:

Aparentemente, esse momento de euforia na vida da cidade, suscitado pela Copa do Mundo, nada tinha a ver com o crime do restaurante chinês. Em grande medida, a constatação é óbvia. Mas um possível fio, quase invisível, parece estender-se entre os dois acontecimentos. Já dissemos que a imagem de Arias como 'monstro', como 'fera humana', não se ajustava à sua figura humilde e pacífica. É certo também que esse descompasso, além das dúvidas levantadas no processo, foi gerando uma aura de simpatia em torno dele. E é nesse ponto que surge o fio da sensibilidade. Embora a rigor não fossem parecidos, havia alguma semelhança, que pode ter levado muita gente, inconscientemente, a associar as imagens do grande ídolo Leônidas da Silva e do modesto Arias de Oliveira, acusado de um crime terrível (p. 153).

No julgamento o advogado de defesa, Paulo Lauro, passou a demonstrar a fragilidade com que as provas da acusação estavam organizadas: dos testemunhos aos testes periciais, até as declarações do próprio Arias. Na passagem do dia 31 para o dia 1 de fevereiro de 1939, Arias foi declarado inocente das acusações. Mas essa só seria a primeira etapa de um processo, que do primeiro para o segundo julgamento, passar-se-ia mais dezenove meses, com os quais Arias teria que esperar na prisão. Após o resultado do segundo julgamento, que se dera a 9 de setembro de 1940, a acusação tentou mais um recurso em junho de 1941, em um longo parecer circunstanciado de mais de cem páginas. Em 27 de agosto de 1942, por dois votos a um, dar-se-ia a decisão dos desembargadores sobre o processo movido contra Arias, dando-lhe a absolvição. Encerrado o processo contra Arias em 1942, nem a polícia nem os jornais se voltaram mais ao caso, que foi arquivado. Contudo:

Um dos aspectos mais significativos do caso é que este não constitui mais um exemplo tautológico da pura e simples 'dominação da classe dominante', potencializada pelo preconceito racial. Tanto a existência incontestável da dominação social quanto o preconceito de raça são caracterizações genéricas necessárias, mas que pouco nos dizem sobre suas formas e seus matizes, em particular quando se trilha o caminho da micro-história.

Na verdade, na reconstrução da história de um moço pobre, negro, sem padrinhos brancos, a circunstância da pobreza se converte em traço de simpatia aos olhos da opinião pública. Ao mesmo tempo, a abundante referência à cor preta de algumas testemunhas e do próprio Arias indica uma naturalização do racismo, ou seja, vê-se como natural (e desabonador) esse rótulo aplicado a pessoas que na época eram chamadas de 'gente de cor' quando se queria mostrar alguma consideração por elas (p. 213-214).

O que mais surpreenderá ao leitor deste livro serão as razões que fizeram com que o autor o escrevesse. Além da importância do caso judicial, do impacto do crime e das reviravoltas do processo, foi também naquele ano de 1938 que o autor teria a última reunião de sua família, em função do falecimento de sua mãe. Que tornariam as comemorações seguintes totalmente diferentes, assim como a postura de seu pai diante da vida. Com tal desfecho, sem dúvida, inesperado, o autor demonstra também a importância da 'memória coletiva', sobre o impacto de eventos 'traumáticos'. Neste livro, o autor mostra que um dos pontos altos da 'micro-história' está em indicar que todo tema é importante e deve ser pesquisado, e sua banalização não está 'em si', mas sim na forma como é pesquisado. Contudo, para que esta abordagem não paire também em fragilidades é necessário reconhecer que o uso adequado do contexto e das fontes são fundamentais, para que a 'micro-história' seja um complemento necessário a 'macro-história', e não a sua exclusão, ou substituição, que apenas faria com que ambas as 'escalas de análise' permaneçam incompletas. Com esta percepção, o leitor verá que este livro não é apenas mais um exemplo de 'micro-história', mas também uma tentativa de análise crítica deste tipo de abordagem. Que se desdobra ainda nas sutilezas com que o autor, efetivamente, constatará as diferenças e os distanciamentos necessários entre a narrativa histórica e a narrativa literária dos romances. A lamentar apenas a pouca articulação entre este livro e o resto de sua obra que, possivelmente, o tornariam ainda mais consistente, nas suas interpretações sobre a década de 1930 e o crime do restaurante chinês.

Texto recebido em 10 de setembro de 2009.

Texto aprovado em 15 de dezembro de 2009.

  • GINZBURG, C. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de: Rosa Freire d'Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • VAINFAS, R. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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