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O serviço especial de saúde pública e suas ações de educação sanitária nas escolas primárias (1942-1960)

Public health special service and its sanitary education acts in primary schools (1942-1960)

Resumos

O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) foi criado em 1942, a partir de acordo entre os governos brasileiro e norte-americano, tendo como funções, o saneamento de regiões produtoras de matérias-primas, como a borracha da região amazônica e o minério de ferro e mica do Vale do Rio Doce. O SESP se expandiu nas regiões rurais brasileiras, onde construiu redes de unidades de saúde locais, focalizando tanto a medicina preventiva como a curativa, tendo como eixo principal, a educação sanitária nos mais variados espaços, dentre eles nas escolas primárias. A proposta desse artigo foi apresentar as concepções da educação sanitária, bem como as atividades educativas em saúde voltadas especificamente para escolares, buscando articular as concepções sespianas com os processos de subjetivação, que podem ou não ter contribuído na produção de outras e novas matrizes identitárias. Para esse estudo, adotamos o recorte temporal de 1942 a 1960, etapa em que o SESP apresentava-se como agência bilateral, e dotado de certa autonomia regimental e orçamentária em relação ao antigo Ministério da Educação e Saúde Pública. Como fontes históricas, foram empregadas as suas publicações nesse período, a Revista do SESP e o Boletim do SESP.

educação sanitária; SESP; escolas primárias; saúde pública; educação


The Public Health Special Services (Serviço Especial de Saúde Pública - SESP) was created in 1942 from an agreement between the Brazilian and North American governments, having as functions, the sanitation of regions which produced primary material, such as the rubber from the Amazon region and the iron ores and mica from Vale do Rio Doce. SESP expanded in the rural Brazilian regions, where it built nets of local health units, focusing not only on the preventive medicine, but also the healing one, having as its main axis, the sanitary education in the most different spaces, among them, at primary schools. The proposal of this article was to present the conceptions of sanitary education, as well as the educational health activities turned specifically to schools, seeking to articulate the sespian conceptions with the subjectivity processes, which may or may not have contributed in the production of other and new identity formers. For this study, we adopted the time cut from 1942 to 1960, stage when SESP presented itself as a bilateral agency, and gifted with certain regimental and budgetary autonomy in relation to the former Ministry of Education and Public Health. As historical sources, its publications at the time were used, the SESP Magazine and the SESP Bulletin.

sanitary education; SESP; primary schools; public health; education


O serviço especial de saúde pública e suas ações de educação sanitária nas escolas primárias (1942-1960)1 1 Este artigo é decorrente de pesquisa de doutorado de Rogério Dias Renovato vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob a orientação da Professora Doutora Maria Helena Salgado Bagnato.

Public health special service and its sanitary education acts in primary schools (1942-1960)

Rogério Dias RenovatoI; Maria Helena Salgado BagnatoII

IDoutor em Educação, Professor Adjunto do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Brasil. E-mail: rrenovato@uol.com.br

IIDoutora em Educação, Professora Livre-Docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. E-mail: mbagnato@unicamp.br

RESUMO

O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) foi criado em 1942, a partir de acordo entre os governos brasileiro e norte-americano, tendo como funções, o saneamento de regiões produtoras de matérias-primas, como a borracha da região amazônica e o minério de ferro e mica do Vale do Rio Doce. O SESP se expandiu nas regiões rurais brasileiras, onde construiu redes de unidades de saúde locais, focalizando tanto a medicina preventiva como a curativa, tendo como eixo principal, a educação sanitária nos mais variados espaços, dentre eles nas escolas primárias. A proposta desse artigo foi apresentar as concepções da educação sanitária, bem como as atividades educativas em saúde voltadas especificamente para escolares, buscando articular as concepções sespianas com os processos de subjetivação, que podem ou não ter contribuído na produção de outras e novas matrizes identitárias. Para esse estudo, adotamos o recorte temporal de 1942 a 1960, etapa em que o SESP apresentava-se como agência bilateral, e dotado de certa autonomia regimental e orçamentária em relação ao antigo Ministério da Educação e Saúde Pública. Como fontes históricas, foram empregadas as suas publicações nesse período, a Revista do SESP e o Boletim do SESP.

Palavras chave: educação sanitária; SESP; escolas primárias; saúde pública; educação.

ABSTRACT

The Public Health Special Services (Serviço Especial de Saúde Pública - SESP) was created in 1942 from an agreement between the Brazilian and North American governments, having as functions, the sanitation of regions which produced primary material, such as the rubber from the Amazon region and the iron ores and mica from Vale do Rio Doce. SESP expanded in the rural Brazilian regions, where it built nets of local health units, focusing not only on the preventive medicine, but also the healing one, having as its main axis, the sanitary education in the most different spaces, among them, at primary schools. The proposal of this article was to present the conceptions of sanitary education, as well as the educational health activities turned specifically to schools, seeking to articulate the sespian conceptions with the subjectivity processes, which may or may not have contributed in the production of other and new identity formers. For this study, we adopted the time cut from 1942 to 1960, stage when SESP presented itself as a bilateral agency, and gifted with certain regimental and budgetary autonomy in relation to the former Ministry of Education and Public Health. As historical sources, its publications at the time were used, the SESP Magazine and the SESP Bulletin.

Keywords: sanitary education; SESP; primary schools; public health; education.

Introdução

O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) foi criado em 1942, através de acordo entre os governos brasileiro e norte-americano, tendo como funções o saneamento de regiões produtoras de matérias-primas estratégicas aos interesses militares dos Estados Unidos, como a borracha da região amazônica e o minério de ferro e mica do Vale do Rio Doce. Além disso, a criação dessa agência binacional procurou inicialmente prover a assistência médica aos seringueiros e o treinamento de profissionais de saúde, especialmente médicos, enfermeiras e engenheiros sanitários (CAMPOS, 2008).

No período do pós-guerra, o SESP se expandiu para outros estados brasileiros, principalmente os da Região Nordeste, procurando construir redes de unidades de saúde locais, focalizando tanto a medicina preventiva como a curativa, tendo como eixo principal, a educação sanitária. Segundo Campos (2008), a expansão do SESP significou a ampliação da presença material nessas regiões mais "subdesenvolvidas" do país, em que os profissionais de saúde do SESP eram um dos contatos dessas áreas rurais com o governo federal. Assim, nesse emaranhado de sujeitos envoltos em interesses de oligarquias locais e suas interfaces com os projetos de desenvolvimento do Estado brasileiro, deu-se a capilarização do modelo sespiano, seu modus operandi, bem como suas concepções de educação sanitária nos mais variados espaços, dentre eles, nas escolas primárias dessas regiões, principalmente da zona rural.

Em relação ao cenário escolar, o SESP teve como premissa estender as ações de educação sanitária, além dos centros de saúde, e com isso, desenvolveu cursos de capacitação para as professoras primárias, bem como procurou envolver os alunos nos programas de saúde em execução, com a criação dos clubes de saúde. Segundo Bastos (1993), a escola primária exercia seu papel relevante na formação de líderes e de grande parte da população, e seu papel como centro irradiador para os lares e comunidades, justificaria essa parceria entre o SESP e os sujeitos escolares, a fim de expandir as concepções de educação, saúde e educação sanitária sespianos.

Assim, sob a perspectiva do SESP, a educação sanitária constituiu-se em um dos eixos primordiais do seu modelo de administração sanitária. Com isso pretendemos contextualizar a situação das escolas primárias nas regiões assistidas pelo SESP, principalmente na região amazônica, e em menor proporção no Vale do Rio Doce. Em seguida, apresentar as concepções da educação sanitária, bem como as atividades educativas em saúde voltadas especificamente para escolares, buscando articular as concepções sespianas com os processos de subjetivação, que podem ou não ter contribuído na produção de outras e novas matrizes identitárias.

Para esse estudo, adotamos o recorte temporal de 1942 a 1960, etapa em que o SESP apresentava-se como agência bilateral, e dotado de certa autonomia regimental e orçamentária em relação ao antigo Ministério da Educação e Saúde Pública, depois, Ministério da Saúde, criado em 1953. Como fontes históricas, foram empregadas as suas publicações nesse período: a Revista do SESP e o Boletim do SESP.

O SESP e a educação sanitária nas escolas: "Saúde, trabalho e alegria para viver melhor o dia a dia"

Segundo relato de Bastos e Silva (1953), o panorama da situação educacional e sanitária das áreas assistidas pelo SESP não era nada favorável. Para esses autores o grave problema da Educação presenciado poderia ser decorrente da resistência da população quanto ao ensino, principalmente o desinteresse dos pais em incentivar seus filhos à frequência regular das escolas. Em outro momento, a dificuldade de acesso à escola constituía obstáculo para o processo educativo, não apenas pela distância a ser percorrida pelos estudantes, como também pelo emprego de toda a família no cultivo de alimentos para sua própria subsistência. Assim, a escola seria um entrave para o ser humano rural, que utilizava toda a sua prole para a produção do sustento da família.

Outro problema encontrado referia-se à precariedade do corpo docente das escolas que, em geral, era constituído por professoras leigas, com formação insuficiente e sem possibilidades de preparo ou aperfeiçoamento. Em geral, as professoras não tinham diploma de normalistas, chegando, em alguns estados, como no Território do Acre, a 90% do contingente total.

Além disso, os prédios escolares, em sua maioria, apresentavam instalações precárias. O ensino, nessas regiões assistidas pelo SESP, era praticado em edifícios antigos, construídos originalmente para outros fins, dotados de iluminação e ventilação inapropriados e, muitas vezes, sem qualquer tipo de conforto para professoras e alunos.

O Brasil era predominantemente rural, pois segundo Marcolino Gomes Candau e Ernani Braga (1948), apenas 23 municípios tinham mais de 50.000 habitantes em todo o país. Porém, os autores já sinalizavam o aumento da migração da população da zona rural para as cidades.

Segundo Fonseca (1989), as ações do SESP privilegiaram suas atividades nas regiões menos desenvolvidas e mais carentes, como as áreas rurais, sendo seu modelo de educação sanitária baseado no círculo vicioso da doença e da pobreza, em que esta última era consequência da primeira. No relato de Bastos e Silva (1953), o problema da saúde também estava relacionado à educação, isto é, à falta de educação:

A realidade, porém, é que ambos os problemas apresentam a mesma importância e estão inter-relacionados e tanto é improdutivo o analfabeto sadio quanto o alfabetizado doente. A ignorância e o analfabetismo, as doenças e a miséria impedem ou entorpecem o progresso humano. As enfermidades endêmicas, sobretudo nas zonas tropicais, podem minar a vitalidade de todo o povo e privá-lo do espírito de iniciativa e de energia para produzir alimentos. Deste modo, pela má alimentação, a doença leva à miséria e a miséria à ignorância, a qual, por sua vez, é um dos fatores que contribuem para perpetuar as enfermidades (BASTOS; SILVA, 1953, p. 242).

Sob o prisma do SESP, as escolas tiveram papel relevante como espaços educativos para que se criasse a consciência sanitária. Com a educação sanitária, seria possível fabricar novas subjetividades, "[...] visando à educação moral e cívica pelo estímulo dos verdadeiros ideais de solidariedade humana, amor à Pátria e cooperação para o trabalho em bem da comunidade" (SESP, 1946, p.1).

A educação sanitária era conceituada como o processo de ensino-aprendizagem pelo qual o indivíduo e a comunidade se informam e se orientam para se conduzir de modo mais inteligível com respeito à saúde. Segundo Bastos e Silva (1953), a educação sanitária procurava dar ao homem compreensão clara e sincera sobre a consciência sanitária, levando a toda comunidade o conceito de saúde como norma de bem-estar e de solidariedade social, incluindo as escolas primárias.

Segundo Bastos (1993), o SESP, desde o início de suas atividades, procurou ampliar os espaços de atuação da educação sanitária, não somente nos serviços de saúde, mas se estendendo ao ambiente escolar, instituição que alcançaria não apenas os estudantes, como também os pais e a própria comunidade.

O papel da escola como local que prepara as gerações para o futuro compõe um dos discursos da educação sanitária sespiana. Desse modo, a educação sanitária na escola seria um dos componentes do programa institucional de educação sanitária, a ser realizada pela equipe da escola, tendo a colaboração dos profissionais de saúde que atuavam nas unidades sanitárias: o médico, a enfermeira e a visitadora sanitária.

Sendo assim, a escola assumiria papel importante na implementação das estratégias educativas em saúde promovidas pelo SESP, pois surge "[...] como agência da qual dependemos para maior eficiência no fazer de nossos propósitos e ideais democráticos, uma realidade social sempre e sempre mais efetiva, mais humana e mais universal" - cabendo, portanto, à escola grande responsabilidade na educação sanitária dos escolares (SESP, 1951, p.6).

Como promover, então, hábitos sadios em uma população desassistida, como os habitantes do grande Amazonas? Para o SESP, o ensino da higiene nas escolas primárias precisaria considerar a situação social e cultural dos escolares, pois a imposição contundente de teorias educacionais, bem como a imposição dessas doutrinas, redundaria em fracasso.

O enfoque na escola primária e a construção de parcerias entre o SESP, a comunidade e essas escolas teve como elemento norteador de suas ações o fato de que o "[...] menino que passar por ela, muitas vezes, vai chegar a ser homem, sem ter além da escola primária outra instituição cultural que contribua a formar sua personalidade" (SESP, 1951, p.7).

A infância, mais uma vez, assumiu papel relevante nesse momento inicial das ações sespianas no Brasil, pois a visão que se tinha da escola primária recolocou esse espaço como privilegiado para legitimar e desencadear o processo civilizatório do sertão brasileiro, ainda abandonado e não civilizado:

Na escola primária, admitindo-se que o êxito da higiene se afere pela influência que ela exerce na conduta da criança, é forçoso concordar que a administração de conhecimentos sobre saúde no âmbito primário deve subordinar-se à formação de hábitos recomendáveis [...] A infância é a idade de ouro para a educação, pois além da plasticidade cerebral que caracteriza a sua personalidade, a sua mentalidade não se apresenta atingida pelas influências maléficas de crendices e superstições [...] Reunidas na escola onde passam a viver em coletividade sob uma orientação sadia, as crianças adquirirão aqueles hábitos que repetidos continuamente, permanecerão definitivamente (SESP, 1951, p.6).

O ensino da higiene ficaria sob a tutela da professora, que além das palestras proferidas sobre o assunto, deveria realizar a revista matinal de asseio, a fim de estimular a formação de hábitos saudáveis, pois, segundo o SESP, "[...] as crianças que acorrem às nossas escolas do interior, em sua maioria, são filhas de trabalhadores rurais, operários etc., que se apresentam em péssimas condições de saúde, ignorando inteiramente os mais elementares hábitos de higiene" (SESP, 1951, p.7).

Se o processo civilizatório dependeu em parte da professora, como então contribuir para formar esse sujeito tão indispensável para o ensino da higiene e da saúde em uma comunidade rural?

Segundo o SESP, as professoras geralmente apresentavam uma formação deficitária e insuficiente. Para colaborar na expansão das atividades educativas em saúde, a parceria com o professorado seria indispensável, porém: "[...] nossos professores não estão afeitos aos problemas de Saúde Pública, e assim não se encontram à altura de fazer realizar um programa amplo sobre o assunto no seio das classes estudantis" (SESP, 1951, p.8). Diante disso, a solução sespiana foi introduzir cursos rápidos para as professoras dessas regiões, geralmente ministrados nas cidades maiores, como Manaus e Belém e, quando retornavam, estabelecia-se um laço de amizade e cooperação entre a escola e as unidades sanitárias do SESP.

Em 1945, o Boletim do SESP (1945a) divulgou a realização de cursos de educação sanitária voltados para a formação de professoras primárias nas cidades de Vitória, Belém e Manaus. O primeiro curso foi realizado em Manaus, em janeiro de 1944, sendo planejado pelo Dr. Clair E. Turner e o Dr.Orlando José da Silva. Participaram cerca de 20 professoras do interior do Amazonas, mais 25 professoras ouvintes da capital amazonense. Sobre o relato dos cursos foi possível atentar para alguns detalhes que envolviam a capacitação das professoras, a saber: os cursos ocorriam no período de férias, em intervalo não superior a 20 dias; eram realizados em período integral, manhã e tarde; os próprios funcionários do SESP ministravam as aulas e, por ocasião do término, as professoras preparavam relatório com planos de trabalho para o próximo ano letivo.

No Boletim do SESP (1947), trechos de um relatório foram transcritos, descrevendo as condições físicas da sua escola, bem como as suas propostas de implementação da higiene:

O estabelecimento em que exerço o magistério é um prédio muito bonito, porém vive completamente abandonado, nem uma pessoa que zele pelo asseio e arranjo do mesmo. Quanto ao mobiliário é paupérrimo, para 7 salas há apenas 30 carteiras, isto no máximo. Quanto à Higiene, acho imensa dificuldade para mantê-la devido o próprio estabelecimento de ensino ser anti-higiênico. Não há nenhum aparelho sanitário, nem lavatórios. Porém pretendo melhorar a situação fazendo lavatórios improvisados com alguidar, bacia ou cuia, que é para os meninos acostumarem-se a lavar as mãos antes e depois da merenda. As carteiras são inteiramente anti-pedagógicas. Diariamente farei a inspecção dos alunos, verificando a higiene corporal (cabelos, unhas, dentes, mãos e vestuário) e também se estão dispostos, se não apresentam sintomas de qualquer doença. No princípio do ano letivo, isto é, depois de se efetuar a matrícula dos meninos, levantarei o quadro de observação de cada um procurando selecioná-los e vacinar os que ainda não foram. Sempre procurarei fazer uma palestra minuciosa sobre o mosquito que transmite a Malária, doença que assola a cidade. Com exemplos, procurarei incutir a todos o uso de mosquiteiros. Brevemente nessa cidade será empregado o D.D.T. e então terei oportunidade para palestrar sobre sua composição e seu efeito que não é permanente, tendo a duração de quatro meses. Serve para matar baratas, moscas e outros insetos, porém o fim empregado pelo S.E.S.P. é para a extinção do mosquito, transmissor da malária (SESP, 1947, p.10).

Os cursos eram realizados em parceria com os órgãos estaduais de ensino, sendo ofertada, nesse período, uma bolsa de estudo. O programa apresentava os seguintes conteúdos: doenças transmissíveis, saneamento básico, saúde escolar, agricultura e técnicas de educação sanitária. No relatório anual de 1948, o SESP declarou que cerca de 259 professoras primárias frequentaram os cursos de educação sanitária (SESP, 1948) .

Assim, as professoras retornavam às suas escolas e um movimento de coalizão em prol da saúde se organizava. As unidades sanitárias e todo o pessoal envolvido na educação sanitária passavam a contar com o apoio do professorado, cujo relacionamento se estreitava através de reuniões, mesas redondas, empréstimos de livros, distribuição de folhetos e panfletos ou quaisquer materiais educativos que pudessem contribuir para a educação sanitária.

Para o SESP, o papel educativo da escola na comunidade deveria considerar a participação e também o recrutamento dos pais, na implementação das ações educativas em saúde. A educação sanitária deveria extrapolar seus limites, avançando pelos espaços não formais e invadindo os lares sem, entretanto, atuar de modo coercitivo, mas possibilitando que "[...] os conselhos adquiridos pelos escolares tenham ressonância nas suas casas onde geralmente não o encontra" (SESP, 1951, p.7).

Mais uma vez, o modelo civilizatório sespiano apregoava a importância de se estabelecer contatos e estreitar laços, através de reuniões com os pais, formalizadas nos círculos de pais e mestres, pois

os pais devem ser chamados não somente para participar ativamente do programa de Educação Sanitária Escolar, como também de qualquer campanha de Saúde Pública, pois assim eles terão oportunidade de sentir a possibilidade de solucionar, no lar, problemas que venham dificultando a vida sadia e feliz (SESP, 1951, p.7).

Os Clubes de Saúde: "Aprender Fazendo"

Além do envolvimento dos pais, a proposta do SESP para a educação sanitária foi criar os Clubes de Saúde, agregando os alunos dos grupos escolares, "oferecendo à mocidade das escolas primárias não somente os estímulos necessários para manter e desenvolver o entusiasmo de todos, como também os elementos de defesa contra os inimigos da saúde" (SESP, 1946, p.1).

Os Clubes de Saúde foram inspirados na experiência de Carlos Sá com o Pelotão de Saúde nas escolas do Rio de Janeiro. A estratégia do SESP foi romper com a falta de espírito coletivo da população rural e assim, despertar uma consciência coletiva, em prol da comunidade, pois "[...] se não é possível tornar mais eficiente a ação da escola sem urbanização, impossível seria a ação educativa sem que fosse primeiramente disposto o trabalho de forma a despertar uma mentalidade coletiva" (BASTOS, 1993, p.331).

Segundo o SESP, o homem amazônico entendia que as obras sociais e públicas eram atribuições do governo, logo, a participação dessas comunidades rurais seria insuficiente, sendo necessária a criação dos Clubes de Saúde, que ajudariam a fabricar novas subjetividades que considerassem relevante a participação de todos na construção de uma nação mais solidária e permeada de preceitos democráticos:

É de ressaltar o critério que está presidindo à fundação desses clubes de saúde pela idéia de liberdade que desde o início os instituidores de tão magnífico programa estão dando às crianças, pois somente são alistados como membros dos clubes de saúde os adolescentes que espontaneamente assentirem, sem qualquer compressão estranha. Com essa atitude, sob todos os pontos elogiável, os resultados têm sido plenamente satisfatórios, pois raras são as crianças cujos sentidos estão despertando para os grandes problemas nacionais que não manifestem, desde logo, desejo de filiar-se aos clubes de saúde (SESP, 1945b, p.7).

No artigo de Manceau et al. (1948), que trata dos Clubes de Saúde, seus princípios, sua organização, as atribuições dos líderes, das escolas, de um modelo de estatuto, reforçam e fazem circular as concepções de que o ser humano deve agir conscientemente, em favor da comunidade, para encontrar soluções, não dependendo apenas do governo, mas da liberdade que agora presencia, tornando possível conquistar melhorias na saúde pública.

Desse modo, os autores pretendem despertar o sentido da coletividade, além de criar uma consciência sanitária. Para eles, "[...] o Clube de Saúde estimula a formação de líderes, tão necessários ao desenvolvimento das coletividades" (MANCEAU et al., 1948, p. 726), porém só poderia ser formado em localidades com escolas.

O primeiro Clube da Saúde foi fundado em 1943, em Santarém, Pará, com o alistamento de 129 crianças de ambos os sexos. Esse clube foi instalado solenemente no teatro Vitória, tendo comparecido as autoridades do município, professores, membros da prefeitura e numerosas pessoas (SESP, 1945b). Já em 1946, somavam-se 19 Clubes, no Amazonas, com 2.000 escolares associados (BASTOS, 1993). Em 1948, o SESP aponta a existência de 31 clubes no Amazonas e 3 no Vale do Rio Doce (SESP, 1948).

Como operavam esses Clubes? A concepção basilar dessas organizações escolares era a do Aprender Fazendo. Para Manceau et al. (1948), o aprender fazendo está relacionado aos atos físicos que pratica durante a realização dos projetos. Porém também mencionam o aprender sentindo que está ligado a reações emocionais como aquelas que resultam de ouvir uma palestra ou ver um cartaz.

Então, as ações educativas em saúde se concretizavam pela execução de projetos e demonstrações, sob a orientação das visitadoras sanitárias e das professoras primárias. Na verdade, a visitadora agia como elo de ligação entre as unidades sanitárias do SESP, o clube e a escola, acompanhando todas as sessões e sugerindo temas.

Para o funcionamento dos Clubes de Saúde, seria necessário: ter pelo menos 20 escolares interessados, além de um líder e uma líder, uma diretoria, um programa de trabalho organizado; realizar uma sessão quinzenal para a instrução da higiene e contar que 70% dos seus associados estivessem envolvidos em projetos (MANCEAU et al., 1948).

Dos projetos desenvolvidos nos Clubes de Saúde, merece ênfase o de hortas caseiras, considerando que nas regiões do Amazonas, o emprego de hortaliças na dieta da população era escasso. Para alguns projetos, o SESP recebeu apoio do Ministério da Agricultura, que ofereceu sementes e instruções para o plantio.

Outro projeto de destaque foi o das bibliotecas escolares. Por intermédio dos Clubes de Saúde, o SESP incentivou a organização de pequenas bibliotecas, que poderiam ser utilizadas pelos escolares e professores e também pela comunidade. Dessa forma, o SESP possibilitou a circulação de artefatos culturais, que disseminaram suas concepções de higiene, saúde e bons hábitos entre a população rural.

Diante do abandono e esquecimento que essa população vivenciava não era incomum o sentimento de gratidão pelas ações realizadas pelo SESP, como por exemplo, a organização das bibliotecas. No texto abaixo, vemos um ofício da professora Esmerina Nunes Ferreira, Diretora do Grupo Escola de Abaetetuba, agradecendo o envio dos livros para a biblioteca:

É-nos sumamente honroso acusar o recebimento dos livros ofertados ao "Clube de Saúde", desta Casa de Ensino, por esse Serviço. O material que motivou o presente, veio ao encontro a uma velha aspiração dos que militam aqui na propagação do saber para a grandeza do Brasil; preenchendo também uma escala das necessidades que se ressente no campo dos primeiros passos da criança abaetetubense. E, portanto, partindo do princípio que a oferenda de hoje é de brasileiros, é que levamos a agradecer aos ofertantes, afirmando sem restrições que: - O S.E.S.P. prestou um grande serviço ao Brasil Criança desta terra (SESP, 1947, p. 4).

As reações de gratidão também se estendiam aos alunos, como vemos na carta publicada no Boletim SESP (1945b, p.12), legitimando, assim, as ações educativas em saúde dessa agência na população escolar rural brasileira:

Chegamos à Escola às 11 horas do dia 14 de outubro de 1945. Viemos todos uniformizados para assistir a inauguração de nosso Pelotão de Saúde, que foi fundado pela nossa professora, D. Lizete Barbosa de Castro e o Ilmo. Snr. Dr. Edilberto, Sr. Dr. Ari Rosmarinho, o patrono de nosso pelotão. O primeiro discurso foi do Dr. Edilberto, o 2º. Dr. Ari Rosmarinho, o 3º, foi o meu discurso e se eu não fiz a gosto de todos eu lhe peço desculpa. Assistimos três filmes recreativos e educativos. Gostei muito de todos os filmes, mas gostei mais do filme da Alimentação. Já estou construindo uma horta em minha casa, gostei muito do Dr. Edilberto, dos conselhos de Higiene que ele deu aos alunos desta escola. Gostei muito dos outros discursos de D. Guiomar e do Sr. Dr. Ari Rosmarinho, Dr. João Mendonça, do Sr. Chefe dos Escoteiros, Sr. Lincoln Barbosa de Castro. Gostei muito do comportamento de meus colegas. Fiquei muito satisfeito com os elogios que eles fizeram a nossa escola. Ganhei uma caneca, um sabonete, uma escova e uma pasta, um pente e um par de tamancos dados pelo Dr. Edilberto; ganhei um caderno dado pelo Dr. Ari tem muito sabonete para repartir dado por ele. Muito obrigado. Estou muito animado, hei de escovar os meus dentes, tomar banho, hei de cumprir todos os deveres. (José Maria Januário. Fazenda São José, 21 de outubro de 1945. Aluno da Terceira Série).

Segundo Bastos (1980), os Clubes de Saúde repercutiram muito bem entre as comunidades, conquistando elogios das autoridades municipais e estaduais e acabando por obter ressonâncias entre os moradores das cidades que prestavam apoio aos clubes, por meio de doações. Desse modo, o modelo sespiano, seu ethos, seu modus operandi, suas concepções e não apenas as relacionadas à saúde e educação, avançaram em uma região abandonada pelo Estado e sob a mercê dos poderes locais. Todavia, como afirma Campos (2006), o SESP "[...] pôs em prática uma agenda perfeitamente afinada com o projeto de construção do Estado Nacional e desenvolvimento do país", ampliando sua autoridade pública e a construção simbólica da nacionalidade brasileira (CAMPOS, 2006, p. 271).

As ressonâncias desses dispositivos que balizam entre os espaços-tempos, que vão do macro ao micro, das políticas internacionais ao cotidiano do ser humano rural, dos escritórios de planejamentos às salas de aula, possibilitaram a expansão do saber da higiene e podem ter contribuído ainda que embrionariamente na constituição de outras subjetividades, de outros processos de individualização ou de autonomia, como tomar para si as responsabilidades em resolver os problemas de sua comunidade. Essa ambivalência desliza e percorre as práticas discursivas da educação sanitária promovida pelo SESP e vai tornando visíveis os deslocamentos do poder sobre a vida, sobre os corpos, e neste caso, sobre as professoras primárias, escolares e familiares.

Considerações finais

As propostas e ações sanitárias do SESP estavam ancoradas no modelo explicativo das péssimas condições de saúde do brasileiro rural, em que a educação sanitária ocuparia relevância estratégica, por ser considerada uma das soluções para romper o círculo de doenças. Logo, para o SESP, a educação sanitária não poderia se restringir às unidades de saúde locais, mas também às escolas primárias e aos seus sujeitos, professoras, pais, alunos e comunidade, tal era a importância dessas ações em seus propósitos.

O ideário sespiano sobre educação sanitária utilizou-se de múltiplas estratégias, que envolveram cursos de capacitação às professoras primárias e a criação de clubes de saúde, delineando parcerias do espaço escolar com as unidades sanitárias. Por outro lado, a partir da perspectiva do Aprender Fazendo, levou aos alunos os saberes da higiene, compondo modos de ser e estar com saúde, e assim preenchendo os vazios de uma população desassistida. E desse modo, mesmo diante das dificuldades estruturais e dos complexos interesses, tanto locais, como estadual e federal, o SESP avançou propagando seu ideário de educação e saúde através da educação sanitária.

Finalizamos referindo-se ao papel relevante do SESP no que concerne à educação sanitária. Não se trata aqui de tecer somente críticas, nem relatar atos heróicos dessa agência nas batalhas travadas contra a doença, mas compreender suas ações que se difundiram por uma nação ainda desconhecida pelo mundo e por si mesma, levando suas representações, propagando suas verdades e expandindo seu modelo de administração sanitária em um momento de transições epistemológicas e de concretização de outros campos do saber. Um verdadeiro caldo de elementos que entrecruzavam: práticas de subjetivação, práticas de interdição, como também práticas de resistências - algumas visíveis, outras silenciosas - na imensidão de um Brasil, ainda em busca de identidade.

Texto recebido em 29 de novembro de 2009.

Texto aprovado em 14 de setembro de 2010.

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  • 1
    Este artigo é decorrente de pesquisa de doutorado de Rogério Dias Renovato vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob a orientação da Professora Doutora Maria Helena Salgado Bagnato.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Aceito
      14 Set 2010
    • Recebido
      29 Nov 2009
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